Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes São Paulo, 2018 MARCIO JOSÉ DE FREITAS TIPOGRAFIA, IMAGEM E EXPRESSÃO: UMA TENTATIVA DE DESPRENDER A PALAVRA ESCRITA DE SEU SIGNIFICADO VERBAL Dissertação de mestrado apresentada para o Programa de Pós-graduação em Artes como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes junto ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Área de concentração: Artes Visuais Linha de Pesquisa: Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais da Arte Orientador: Prof. Dr. Omar Khouri São Paulo, 2018 MARCIO JOSÉ DE FREITAS TIPOGRAFIA, IMAGEM E EXPRESSÃO: UMA TENTATIVA DE DESPRENDER A PALAVRA ESCRITA DE SEU SIGNIFICADO VERBAL Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP F862t Freitas, Marcio José de, 1972- Tipografia, imagem e expressão : uma tentativa de des- prender a palavra escrita de seu significado verbal / Marcio José de Freitas. - São Paulo, 2018. 232 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. Omar Khouri. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Tipografia. 2. Imagem. 3. Poesia visual. 4. Comunicação não-verbal. 5. Poesia concreta. I. Khouri, Omar. II. Universi- dade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 809.13 (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) São Paulo, 2018 MARCIO JOSÉ DE FREITAS TIPOGRAFIA, IMAGEM E EXPRESSÃO: UMA TENTATIVA DE DESPRENDER A PALAVRA ESCRITA DE SEU SIGNIFICADO VERBAL Dissertação de mestrado aprovada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes no Curso de Pós-graduação em Artes junto ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, com a área de conhecimento Artes Visuais, pela seguinte banca examinadora: Prof. Dr. OMAR KHOURI - Orientador Departamento de Artes Plásticas / Instituto de Artes de São Paulo Prof. Dr. AGNALDO VALENTE GERMANO DA SILVA Departamento de Artes Plásticas / Instituto de Artes de São Paulo Prof. Dr. RENATO ESSENFELDER ABRAHÃO FILHO Pós-Graduação em Comunicação e Consumo / ESPM-SP … Agradecimentos … em especial ao professor Omar Khouri, meu orientador, pela generosidade sem fim e pela profunda inspiração. … aos professores Agnus Valente, Zé Leonardo, Rita Bredariolli e Rosangela Leote, do Instituto de Artes da Unesp, que ajudaram a encontrar um caminho possível. … aos professores Aranha (em memória) e Mané Bononato, da escola Theobaldo De Nigris, que me transmitiram o amor pela tipografia. … às professoras Anna Paula S. Gouveia e Regina Wilker, sempre. … aos professores, que não são professores mas que me ensinaram a ver coisas que eu não era capaz, Mássimo Gentile (em memória) e Thea Severino. … às amigas Ana Novi, Lúcia Quintiliano e ao amigo Gustavo Simon. … às minhas alunas e alunos, pela energia jovial transferida. … ao mais que professor, o amigo Renato Essenfelder. … aos meus pais José J. Freitas e Maria J. Marconi, devo tudo. … aos meus filhos, Gabriela e João, amor incondicional. … à Andrea Kulpas, amor e companheira que me faz sorrir. Resumo Este trabalho se propõe a investigar a imagem da tipografia e seu poten- cial expressivo no campo das artes e da poesia visual. Considerando tipo- grafia como a reprodução em série da escrita, incluindo toda a atividade necessária para que essa reprodução aconteça, a pesquisa aborda seus dois aspectos constituintes, o verbal e o visual. Esses dois elementos são codependentes para que se dê a escrita: a parte verbal é a razão que justi- fica sua existência e a visual, o que permite ela estar no mundo. A refle- xão aqui, no entanto, é feita predominantemente sobre as expressões não verbais da tipografia, o que se justifica pela relevância que a imagem tem para a sociedade atualmente. Portanto, o esforço foi de buscar um des- membramento possível entre esses dois valores indissociáveis da escrita. Assim, são apresentados de forma inédita os painéis Tipo-imagem-grafia. Inspirados nos estudos de Ana Hatherly e no Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, os painéis visam oferecer, por meio da descontextualização, a possibilidade de direcionar a atenção do observador prioritariamente à imagem da tipografia – mesmo que por um breve momento, antes que se inicie o processo de decodificação do texto, que os conhecedores do código alfabético fazem quase que automática e instantaneamente. Os painéis garantem ao observador participação na construção deste pro- jeto, a partir do pressuposto de que ele não é uma obra encerrada em si, mas sim que cria a possibilidade de ler o que nunca foi escrito. Por meio do processo de imaginação dado pela montagem nos painéis, retorna-se ao princípio essencial de memória da palavra escrita. Palavras-chave: Tipografia. Imagem. Poesia visual. Comunicação não-verbal. Poesia concreta. Abstract This work aims to investigate the image of typography and its expressive potential in the field of visual arts and poetry. Considering typography as a serial reproduction of writing, including all the activity necessary for its reproduction to occur, the research addresses its two constituent aspects: verbal and visual. These two elements are codependent for wri- ting: the verbal part is the reason that justifies its existence and the visual, which allows its existence in the world. The reflection here, however, is made predominantly by the non-verbal expressions of typography, which is justified by the relevance that image has for society today. The- refore, the effort was to seek a possible dismemberment between these two inseparable values of writing. Thus, the Type-image-graphic panels are presented in an unprecedented way. Inspired by the studies of Ana Hatherly and Atlas Mnemosyne of Aby Warburg, the panels aim to offer, through decontextualization, the possibility of directing the attention of the observer primarily to the image of typography - even if for a brief moment, before it begins the process of decoding the text, which the connoisseurs of alphabetic code do almost automatically and instantly. The panels guarantee to the observer participation in the construction of this project, based on the assumption that it is not a finished work in itself, but rather it creates the possibility of reading what has never been written. Through the process of imagination given by the assem- bly on the panels, one returns to the essential principle of the memory of the written word. Key words: Typography. Image. Visual poetry. Non verbal comunication. Concrete poetry. Lista de imagens Figura 1. Pluvial, Augusto de Campos, 1959. Fonte: Campos, 2014: 106. Figura 2. Tabuleta suméria, c. 3100 a.C. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 21 Figura 3. Fragmento de manuscrito do século II d.C. em uncial grega. Fonte: . Acessado em 20 de março de 2018. Figura 4. Coluna de Trajano, c.114 d.C., Roma, Itália. Fonte: Fontes Meggs e Purvis, 2009: 44-45. Figura 5. Detalhe da inscrição na base da Coluna de Trajano, Roma, Itália. Fonte: . Acessado em 30 de maio de 2017. Figura 9. Página do caderno de anotações do desenhista gráfico Flávio Cescato, 2017. Foto: Marcio J.Freitas. Figura 10. Disco de Festo, lado 1 e lado 2, c. 1700 a.C., Museu Arqueológico de Heraklion. Fonte: . Acessado em 14 de novembro de 2017. Figura 11. Infográfico: Sistema de fundição de tipos de Gutenberg em ilustração do início do século XIX. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 97. Figura 12. Páginas da Bíblia de 42 linhas, Gutenberg, 1455. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 100. Figura 13. De Divinis Institutionibus, Lucius Coelius Lactantius, 1465. Fonte: McNeil, 2017: 17. Figura 14. De Praeparatione Evangelica, Eusebius Pamphilus, 1470. Fonte: McNeil, 2017: 21. Figura 15. De Aetna, Pietro Bembo, 1495. Fonte: McNeil, 2017: 30-31. Figuras 16 e 17. Hypnerotomachia Poliphili, Francesco Colonna, 1499. Fonte: . Acessado em 14 de novembro de 2017. Figura 18. Secundi Novo Comensis Epistolarum Libri Decem, C. Plinii, 1508. Fonte: McNeil, 2017: 32-33. Figura 19. Colofão de um dos livros de Aldo Manuzio, 1499. Fonte: Fonte: Smeijers, 2015: 44. Figura 20. Minúscula carolíngia e tipografia humanista. Fonte: Smeijers, 2015: 44. Figura 21. Anunciação, Fra Angelico, c. 1440. Fonte: . Acessado em 19 de julho de 2018. Figuras 22 e 23. Duas matrizes de impressão tipográfica da gráfica Antica Tipografia Biagini, em Lucca, Itália. Fotos Rodrigo Saiani. Figura 24. Paisagem, Joan Miró, 1968. Fundação Joan Miró. Foto: Marcio J.Freitas Figura 25. Duas Faces, Marcio J.Freitas, 2008. Figura 26. Salto, Augusto de Campos, 1954. Fonte: Campos, 2014: 93. Figura 27. Experimento: cada tipo de letra, uma mensagem. Fonte: Melo, 1993: 53. Figura 28. Experimento: comparação entre estilo tipográfico e arquitetura. Fonte: . Acessado em 20 de janeiro de 2015. Figura 29. O Ovo, Simias de Rodes, século III a.C. Fonte: . Acessado em 10 de abril de 2017. Figura 30. Poema de Manuel da Gama Lobo, século XVII. Fonte: Hatherly, 1983. Figura 31. Poema de Gregório de Matos, século XVII. Fonte: Hatherly, 1983. Figura 32. Poema provavelmente de Luis Tinoco, século XVII. Fonte: Hatherly, 1983. Figuras 33 e 34. Esboço e página impressa do livro Alice in Wonderland, Lewis Carroll, 1865. Fontes: e Meggs e Purvis, 2009: 322. Figuras 35 e 36. Esboço e página impressa de Un Coup de Dés Jamais n’Abolira le Hasard, Stéphane Mallarmé, 1897. Fontes: e Meggs e Purvis, 2009: 322. Figura 37. Il Pleut, Apollinaire, 1918. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 323. Figura 38. Reine de Joie, Henri de Toulouse-Lautrec, 1892. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 259. Figura 39. Página de rosto do livro The Story of the Glittering Plain, William Morris e Walter Crane (ilustração), 1894. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 224. Figura 40. The Glasgow Institute of Fine Arts, Margaret e Frances Macdonald, com J. Herbert McNair, 1895. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 28. Figura 41. De Stijl, Vilmos Huszár, 1917. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 392. Figura 42. Les Mots en Liberté Futuristes, Filippo Marinetti, 1919. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 320. Figura 43. Soirée du Couer à Barbe, Ilya Zdanevitch, 1923. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 335. Figura 44. Pagina de La Fin du Monde Filmeé par l‘Ange Notre Dame, de Blaise Cendrars; ilustração de Fernand Léger, 1919. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 318. Figura 45. La Section d’Or, Theo Van Doesburg, 1920. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 393. Figura 46. Cartaz, Rudolf Kock, 1923. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 237. Figura 47. Capa de Die Kunstismen, El Lissitsky e Hans Arp, 1925. Fonte: Blackwell, 2004: 47. Figura 48. Cartão autopromocional, Fortunato Depero, 1927. Fonte: Blackwell, 2004: 64. Figura 49. Büro, Theo Ballmer, 1928. Fonte: . Acessado em 10 de abril de 2017. Figura 50. Capa Klaxon nº 1, 1922. Fonte: Melo e Coimbra, 2011: 125. Figura 51. Trio à La Haye, Piet Zwart, 1929. Fonte: Peignot, 2005: 99. Figura 52. Cartaz para 3ª Bienal de São Paulo, Alexandre Wollner, 1955. Fonte: Wollner, 2003: 88. Figura 53. Der Film, Josef Müller-Brockmann, 1960. Fonte: . Acessado em 10 de abril de 2017. Figura 54. The Yarbirds, The Doors & Others, B. McLean, 1960. Fonte: Blackwell, 2004: 118. Figura 55. Davida Bold, Herb Lubalin, 1965. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 513. Figura 56. Manuale Typographicum, Hermann Zapf, 1969. Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 471. Figura 57. The World, Paula Scher, 1998. Fonte: Scher, 2005: 134-139. Figura 58. Philadelphia Explained, Paula Scher, 1998. Fonte: Scher, 2005: 134-139. Figuras 59 e 60. Ray Gun, David Carson, 1993. Fonte: Blackwell, 2000. Figura 61. Folheto de divulgação da exposição O Tipógrafo Dançarino. Fonte: arquivo pessoal. Figuras 62 a 73. Cartazes da série Rocks Off, Marcio J.Freitas, 2011-2012. Fonte: arquivo pessoal. Figura 74. Material promocional do lançamento da Futura, publicado pela fundição de tipos alemã Bauer, 1927. Fonte: Blackwell, 2004: 54. Figura 75. Alfabeto Universal, Herbert Bayer, 1925. Fonte: Blackwell, 2004: 45 Figura 76. Experimento, Marcio J.Freitas, 2018. Figura 77. nascemorre, Haroldo de Campos, 1958. Fonte: Amaral, 1977: 148. Figura 78 a 83. Experimento, Marcio J.Freitas, 2018. Figura 84. Desenho, Ana Hatherly, 1970. Fonte: . Acessado em 11 de abril de 2017. Figura 85. Desenho, Ana Hatherly, 1975. Fonte: . Acessado em 11 de abril de 2017. Figura 86. Primeira página da carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, 1º de maio de 1500. Fonte: . Acessados em 18 de julho de 2018. Figura 87. Imagem de artigo, jornal Haaretz, Tel Aviv, Israel, 19 de julho de 2018. Fonte: . Acessado em 21 de julho de 2018. Figura 88. Il Cranio Sezionato, Leonardo Da Vinci, 1489. Fonte: . Acessado em 21 de julho de 2018. Figura 89. Estilos tipográficos de caracteres chineses, da empresa Monotype. Fonte: Zì, Xíng Sànbù: Rìcháng shēnghuó de zhōngwén zì xíng xué. Taiwan, Liǎnpǔ Chūbǎn: 2014. p. 135. Figura 90. Atlas Mnemosyne, Painel 46, Aby Warburg, 1929, em sua biblioteca. Fonte: . Acessado em 18 julho de 2018. Figura 91. Exposição Aby Warburg: Mnemosyne Bilderatlas, ZKM - Center for Art and Media, 2016. Foto: Tobias Wootton. Fonte: . Acessado em 18 de julho de 2018. Figura 92 . Reconstrução do painel 32, para a exposição no ZKM. Foto: Tobias Wootton. Fonte: . Acessado em 18 julho de 2018. Figuras 93 a 105. Painéis Tipo-imagem-grafia, Marcio J.Freitas, 2018. Sumário Introdução 19 a. acerca da escrIta 29 Escrita-memória 46 b. acerca da tIpografIa 55 Anatomia de um tipo 79 O silêncio da página tipográfica 84 Evolução visual e estilos 93 Tipografia e expressividade 100 Série de cartazes Rocks Off 137 A fase ortodoxa da Poesia Concreta e a Futura 146 Outras tipografias, outros poemas 154 c. desassocIar o IndIssocIável 163 d. tIpo-Imagem-grafIa 177 consIderações fInaIs 197 Referências bibliográficas 199 Apêndice 1: A produção dos painéis 205 Apêndice 2: Legendas das imagens dos painéis 208 Apêndice 3: Projeto gráfico 221 Apêndice 4: Genealogia do alfabeto 228 p.19 in tr o d u çã o Esta pesquisa se inicia a partir da percepção de que na palavra escrita – e consequentemente na tipografia, por motivos que veremos a seguir – coexistem dois atributos: um verbal e um visual (Carpintero, 2012: 68). Segundo Geoffrey Sampson (1996: 18), escrita é um instrumento idealizado para a execução de uma tarefa com a função de expressar ideias ou pensamentos: é a representação da fala, um objeto que a torna visível, é a imagem da palavra falada. É constituída por mar- cas, símbolos, figuras e letras traçadas sobre uma superfície (Meggs e Pur- vis, 2009: 18). Assim, pode-se afirmar que a palavra escrita possui uma 2 0 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O expressão poética nada desprezível: quando seus dois aspectos, o ver- bal e o visual, são explorados em conjunto, com o mesmo objetivo, isso potencializa a comunicação e a expressividade. Ou seja, há, na essência da palavra escrita, características intersemióticas. No entanto, grande parte das investigações científicas e acadêmicas sobre a escrita, realizadas até a primeira metade do século XX, se con- centrou no aspecto verbal dela, o que deu primazia a este lado semân- tico, e deixou à forma gráfica um plano instrumental de registro e difusão de informação. A quebra de paradigma proporcionada pelas Vanguardas Artísticas no início do século XX, somada às teorias desconstrutivistas de Jacques Derrida, abrem nova perspectiva para o entendimento da letra, do ponto de vista de sua imagem (Cauduro, 1998). Isso permite a explo- ração do seu aspecto não-verbal e, portanto, de seu completo potencial de comunicação expressivo e poético, dado não apenas pelo significado do texto, mas também por sua forma gráfica. Segundo a professora e pesquisadora Priscila Farias (1998: 11), entende- -se tipografia como sendo uma técnica de reprodução em série da escrita a partir de um modelo ideal de letra: daí, optou-se para este trabalho res- tringir-se ao estudo da escrita tipográfica – que surge, no Ocidente, com o trabalho de Johannes Gutenberg no século XV, em Mainz, Alemanha. Farias evidencia ainda que todo o conjunto de práticas subjacentes a essa técnica de reprodução também é considerado tipografia. Portanto, este estudo não se limita ao desenho do signo, mas busca englobar a dispo- sição das letras sobre a superfície do papel, os espaços em branco e as relações entre todos os elementos da composição. Sob este aspecto, pos- sui afinidades com o movimento da Poesia Concreta brasileira, que tem como um de seus pilares a exploração do espaço gráfico e da composição tipográfica como expressão poética (Campos, 1972: 132-133), chegando, I N T R O D U Ç Ã O 2 1 inclusive, na sua fase ortodoxa, a usar preferencialmente a tipografia Futura, desenvolvida por Paul Renner em 1928 [fIgura 1]. Por se tratar de uma pesquisa sobre a visualidade da tipografia, o pre- sente trabalho se torna importante pela relevância que a imagem tem na sociedade atual – tempos pós-sociedade do espetáculo (Guy Debord) e pós-era da reprodutibilidade técnica (Walter Benjamin), conceitos que vimos se concretizarem no século XX e que hoje fazem parte do cotidiano, com pessoas usando aparelhos que são, ao mesmo tempo, criadores de imagem, registradores de memória e aparelho de móvel. Segundo Jean Baudrillard (1990: 178), grande parte das experiências que vivemos acon- tece por meio da imagem, e esta acabou por se tornar a própria coisa em si. Muitas pessoas nunca viram, por exemplo, uma baleia, senão em foto- grafias, no cinema ou na televisão; se alguém tem a noção de como são as cenas em campos de batalha de uma guerra, é mais por ter visto imagens que fotojornalistas produziram como enviados especiais a esses locais. Outro fator que sintetiza o modo como a imagem se tornou parte inte- grante da realidade atual, pode ser visto em um simples passeio pelas ruas, com um olhar atento: em quase todos os lugares das cidades, sejam espaços públicos ou privados, encontra-se uma tela de TV. No trans- porte público, em cafés e restaurantes, salas de espera, nas academias de ginástica, nas escolas. Mesmo que não seja vista um monitor comu- nitário, seguramente haverá ao menos um de caráter pessoal: um smar- tphone, que se tornou uma extensão do corpo humano, e para onde as pessoas direcionam suas atenções. ::: A proposta deste trabalho não é encerrar-se em conceitos herméticos ou chegar a conclusões a partir de recapitulações históricas, mas de manter 2 2 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O Figura 1 Pluvial, Augusto de Campos, 1959. Poema da fase ortodoxa da Poesia Concreta brasileira, composto com a tipografia Futura Bold, todo em caixa-baixa. abertas as possibilidades de criar relações, conexões, sobreposições e desdobramentos em todos os sentidos, a fim de buscar algo que ainda não foi visto e tentar encontrar novos significados a partir da leitura de imagens; uma abertura para a “função memorativa própria das imagens da cultura ocidental” da qual fala Didi-Huberman (2013a: 389). Para tanto, partimos da conceituação da escrita, sua evolução e impor- tância na construção da sociedade ocidental. Não se ignora que, antes de mais nada, a tipografia está intimamente conectada à escrita e que o aspecto verbal é a parte que justifica sua existência. Desde sua origem, é uma ferramenta de memorização, que amplia o alcance de uma narrativa ao longo do tempo. No caso da escrita fonética, a situação da nossa cul- tura, é vista como a representação gráfica da fala (Meggs e Purvis, 2009: 18). A escrita comporta tanto o “pensamento em linha”, que segue um sentido de leitura imposto, quanto o “pensamento em superfície”, que dá liberdade aos olhos de caminhar vagamente, conceitos dados pelo filó- sofo tcheco naturalizado brasileiro Vilém Flusser (2007: 102-125). Por- tanto, a escrita carrega no traço da sua morfologia tanto a objetividade e a profundidade da palavra quanto a expressividade sensorial das imagens. O capítulo 2, por sua vez, trata da definição de tipografia. São levan- tados seus aspectos visuais, suas características morfológicas e a evo- lução estética dos estilos tipográficos ao longo dos séculos, buscando entender como o desenho das letras pode se relacionar com outras áreas do conhecimento. Segundo Robert Bringhurst (2005: 136), estudar a his- tória da tipografia é tratar das relações entre desenho tipográfico e as demais atividades humanas. A imagem da tipografia não é algo isolado ou que permanece à margem: faz parte do desenvolvimento da cultura, sendo um fator atuante na construção da identidade; é uma parte inte- grante de qualquer idioma, no sentido de que é a representação da fala. I N T R O D U Ç Ã O 2 3 2 4 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O Com os objetos escrita e tipografia definidos, partimos para a tenta- tiva de desprender a palavra de seu valor verbal no capítulo 3, em favor de centrar o estudo na expressividade visual e gráfica. Este rompimento se mostrou uma tarefa extremamente difícil. Se o observador é alfabeti- zado, ou seja, conhecedor do código, ao olhar para uma letra, ele auto- maticamente vai associá-la ao fonema que ela representa. Seria simples transpor essa barreira escolhendo uma escrita diferente da que o observa- dor está acostumado: por exemplo, uma escrita ideográfica oriental para alguém alfabetizado na escrita latina ocidental. Por não estar familiari- zado com o código, para este observador evidentemente o que se desta- caria seriam os desenhos dos caracteres e sua imagem, sendo estes os únicos elementos passíveis de serem absorvidos. Porém, essa possibi- lidade foi descartada, porque o estudo teria que se debruçar sobre uma escrita tipográfica não latina, sem conexão com nosso idioma, não per- tencente à cultura ocidental nem à brasileira, e, assim, a pesquisa toma- ria um caminho fora do propósito inicial. A maneira encontrada de conseguir algo mais próximo do despren- dimento pretendido foi a partir do caminho indicado por Aby Warburg com o Atlas Mnemosyne, que, segundo Georges Didi-Huberman (2013a: 25), desconstruiu o modelo epistêmico tradicional de história da arte, em favor de um modelo cultural que se exprime por estratos, blocos híbri- dos, rizomas e complexidades híbridas, se valendo dos não saberes de um modelo psíquico. Uma montagem de imagens que, após serem reu- nidas em uma mesma superfície, criam outras relações, deixando em aberto alguns possíveis entendimentos ainda não vistos (Didi-Huber- man, 2013b: 383). Outro fator que levou a esse caminho é a relação entre o objeto de estudo desta pesquisa, a tipografia, com o Atlas Mnemosyne, quando é considerado o aspecto de memória existente na escrita. Portanto, inspirado no Atlas, de Aby Warburg, o capítulo 4 é cons- tituído por montagens de reproduções fotográficas de diversas obras – tipografias, poesias, artes plásticas, artes gráficas – de maneira rizomática e despreocupada com anacronismos, para buscar outras relações, ana- logias e leituras, dentro do universo da expressão visual. Não é intenção criar um atlas, e não se poderia chamar isso de mapa; os painéis foram nomeados de Tipo-imagem-grafia. Não se pretende seguir uma lineari- dade lógica e não se tem o objetivo de chegar a conclusões: a intenção é agrupar e organizar algumas questões, como um apanhado de ideias colocadas sobre a mesa antes de fazerem parte de algo maior. São con- juntos de imagens heterogêneas, que foram criadas em momentos diver- sos, com objetivos muitas vezes díspares e com múltiplas inspirações, as quais tiramos do seu contexto original para serem dispostas em novas relações. Imagens que têm em comum apenas o fato de serem imagens, e por isso permitem que sejam “lidas” livres da semântica – livres de seu aspecto verbal  –, ou seja, vistas como o que são em sua materiali- dade. Estão desnudas e, por isso, são passíveis de diversos outros enten- dimentos não previstos ou inesperados, em que cada leitor-observador pode ter a própria experiência, de significações e de estéticas. Da mesma maneira, os textos que acompanham essas pranchas são pequenas mon- tagens com palavras, memórias, relações que foram suscitadas a partir dessa nova (re)leitura – a leitura do que nunca foi escrito, a leitura antes de toda linguagem (Huberman, 2011: 16). A decisão de não fazer uma interpretação posterior dos painéis Tipo- -imagem-grafia se dá por dois motivos. O primeiro, já apresentado acima, é intenção manter a abertura para possíveis encontros de significações subjetivas que cada leitor-observador pode ter a partir de suas referên- cias e repertórios pessoais. O segundo é que os diferentes métodos de I N T R O D U Ç Ã O 2 5 2 6 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O interpretação apresentam limitações ora por se preocuparem mais com o conteúdo do que com a forma, enfraquecendo assim a imagem, ora por se preocuparem demasiado com a forma, aumentando processos espe- culativos (Burke, 2004). O historiador Peter Burke é um dos defensores do uso de imagem como evidência e indício histórico. No entanto, levanta alertas para quando se usam imagens para embasar fatos. Ele apresenta críticas e ressalta os principais problemas do que chama de “métodos de interpretação de imagens”. 1. A iconografia identifica o objeto, reconhece o signifi- cado convencional para fazer uma interpretação do significado intrín- seco que pode revelar atitudes da sociedade por meio das imagens. Seu problema, segundo Burke, é o enfoque especulativo e intuitivo de um método logocêntrico que privilegia o conteúdo sobre a forma: a ima- gem ganha a importância de uma ilustração de ideias, desconsiderando a forma como parte da mensagem e desprezando as emoções suscita- das por ela (Burke, 2004: 48-52). 2. A psicanálise se apega aos significa- dos simbólicos e associações inconscientes: o sonho, fantasias, proje- ções autorreprimidas, mensagens subliminares. A psicanálise trabalha com seres vivos, porque não se pode colocar mortos no divã, e atua no plano individual, o que inviabiliza tanto a interpretação exata ou cien- tífica da imagem quanto o entendimento do coletivo das sociedades. Burke diz ainda que ela é um método extremamente necessário, porque as pessoas projetam o inconsciente nas imagens, mas é impossível, por- que despreza a falta de evidências históricas, que se perderam (Burke, 2004: 214-216). 3. O estruturalismo, também conhecido por semiologia, permite que a imagem seja vista como um sistema de signos, o que dá importância para a organização interna e para a composição (a forma). A crítica ao estruturalismo que Burke faz parte de um questionamento: o de que a ideia de ler imagens como textos não seria apenas uma metá- fora; existe a “linguagem” das imagens ou existem diferentes lingua- gens, assim como existem o inglês, o árabe, o chinês? O autor levanta a questão de o estruturalismo ser reducionista, sem permitir margem para ambiguidades ou para iniciativas humanas. Em comparação, enquanto o método de iconografia se ocupa com o conteúdo, deixando a forma num segundo plano, os estruturalistas vão em caminho contrário, enfa- tizando a “forma do conteúdo” (Burke, 2004: 216-222). 4. O pós-estru- turalismo está conectado com a pós-modernidade, se ocupa da polisse- mia e entende a ambiguidade como parte do processo de interpretação; sua fraqueza é a presunção de que qualquer significado atribuído à ima- gem é válido. Essa ênfase ao ambíguo não é a novidade, porém o novo no pós-estruturalismo são a indeterminação e a alegação de que os produ- tores de imagens não podem controlar totalmente o significado de suas obras (Burke, 2004: 222-223). No mesmo sentido, toma-se o ensaio O Ato Criador, de Marcel Duchamp (1887-1968), em que o artista chama a atenção para a existência do fator inconsciente no processo criativo, por meio do qual algumas das decisões tomadas no plano estético são deixadas à intuição subjetiva do artista e “não podem ser objetivadas numa autoanálise, falada ou escrita, ou mesmo pensada” (Duchamp, 1986: 72). Assim, o público ganha relevância his- tórica pois a ele é transferido o papel de reagir criticamente à obra: “Em última análise, o artista pode proclamar de todos os telhados que é um gênio; terá de esperar pelo veredicto do público para que a sua declara- ção assuma um valor social e para que, finalmente, a posteridade o inclua entre as figuras primordiais da História da Arte” (Duchamp, 1986: 72). Se os métodos de interpretação de imagem descritos por Burke (2004) ou se ocupam do conteúdo mais do que da forma ou privilegiam a forma I N T R O D U Ç Ã O 2 7 2 8 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O do conteúdo, se desprezam evidências históricas e se abrem para espe- culações, este trabalho fortalece e permite infinitas possibilidades de leituras e releituras para a tipografia como imagem por não fornecer nenhuma interpretação que já não esteja na superfície da materialidade da própria imagem, deixando – e até mesmo incitando – que essas espe- culações sejam realizadas pelo leitor-observador segundo a medida sub- jetiva de seu repertório e suas referências pessoais. No sentido descrito por Duchamp (1986), fortalece, ainda, a importância da participação do observador na construção da crítica deste trabalho. p.29 a ac er ca d a es cr it a Segundo o linguista Steven Roger Fischer (2009b: 13), linguagem é o meio que permite a transmissão de pensamen- tos, um fator que permite acontecer a comunicação. Para ele, os humanos se comunicam de diversas maneiras, a fala é uma delas e a escrita trans- mite a fala por meio de signos gráficos. De maneira objetiva, o historia- dor Philip Baxter Meggs e o professor Alston Willcox Purvis (2009: 18), afirmam que a escrita é a contrapartida visual da fala. Por outro lado, o professor de linguagem em ciências aplicadas Geoffrey Sampson (1996: 18) define a escrita como “um instrumento idealizado para execução de 3 0 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O uma tarefa, com a função de expressar e registrar ideias e pensamen- tos”. No entanto, Fischer (2009a: 14) defende que só podemos chamar de escrita propriamente dita o sistema que preenche a três requisitos. O que o linguista chama de “escrita completa”, deve: 1. ter como objetivo a comunicação; 2. consistir de marcações gráficas artificiais feitas em uma superfície durável; e 3. usar marcas que se relacionem convencio- nalmente para articular a fala de maneira que a comunicação seja alcan- çada. Vale lembrar também que a artista portuguesa Ana Hatherly (1981: 138), afirma que a escrita tem sua origem na pintura e, portanto, não se pode dissociar um texto escrito de seu aspecto pictórico. Assim, podemos concluir que a escrita é uma linguagem de estreita conexão com a fala, sendo sua versão visual: é tanto o verbal quanto o visual de uma palavra, e esses dois pontos são elementos indissociáveis. A escrita é um instrumento sistemático artificial, inventado com o obje- tivo específico de memorização e de estabelecer comunicação entre os seres humanos. Diferentemente da fala, esta comunicação não necessa- riamente ocorre no exato momento em que acontece, mas pode ser deci- frada em algum tempo futuro. Flusser (2007: 102-125) apresenta duas formas de narrativa, a de linha (texto) e a de superfície (imagem). A primeira tem um ponto de partida, um percurso e um ponto de chegada; a segunda apresenta a mensagem completa de uma vez. “Precisamos seguir o texto se quisermos cap- tar sua mensagem, enquanto na pintura podemos apreender a mensa- gem primeiro e depois tentar decompô-la” (Flusser, 2007: 105). As duas são representações simbólicas, mas a diferença entre elas está em dois aspectos: o primeiro, no modo como a leitura é realizada. O texto tem uma dimensão, enquanto a imagem tem duas; um quer chegar a algum lugar, a outra já está lá; é uma diferença de tempo. Flusser (2007: 106) A C E R C A D A E S C R I T A 3 1 clarifica a questão com a observação de que “demora muito mais tempo descrever por escrito o que alguém viu em uma pintura do que simples- mente vê-la”. O segundo aspecto diferencial é que o pensamento em linha é conceitual: mais claro, objetivo, consciente e nítido; o pensa- mento em superfície é imaginativo: mais completo, subjetivo, incons- ciente e ambivalente.1 Portanto, a escrita carrega ao mesmo tempo as duas formas de pensamento, a narrativa em linha e a narrativa em super- fície; se isso for utilizado conscientemente, a capacidade expressiva da escrita é, de fato, muito relevante. Pode-se dizer que este é o principal potencial expressivo da escrita, o fato dela ser um objeto com caracte- rísticas tanto verbal quanto visual – em outras palavras ser texto e ima- gem ao mesmo tempo. História da escrita A raiz do surgimento da escrita está na necessidade de armazenar informação, para estabelecer comunicação em outros tempos e em diferentes lugares (Fischer, 2009a: 13). Um dos mais antigos registros de escrita de que se têm conhecimento são algumas tabuletas de argila, datadas de cerca de 3100 a.C., encontradas na antiga cidade suméria de Uruk, na Mesopotâmia – situada onde hoje é territó- rio do Iraque, a aproximadamente 220 quilômetros de Bagdá [fIgura 2]. Nessas tabuletas, sinais gráficos foram gravados na argila ainda mole, os quais se acredita que simbolizam negociações comerciais (Meggs e Purvis, 2009: 21). Nota-se nelas um sistema de escrita pictográfico pri- mitivo, riscado sobre a superfície da argila ainda úmida, provavelmente com uma espécie de estilete de madeira. Apesar de outros objetos grafados com sinais pictográficos mais antigos terem sidos encontrados, a maioria dos autores considera o surgimento 1. Para evitar a pos- sibilidade de pensar que Flusser ignora o potencial da ima- gem na construção do pensamento oci- dental contempo- râneo e, ao mesmo tempo, afastar qualquer tentativa de comparar a supe- rioridade de algum tipo de narrativa em relação a outro, vale registrar que o filósofo afirma que o pensamento imagético está se tornando capaz de pensar conceitos, de transformar o con- ceito em seu objeto, e pode tornar-se metapensamento de um modo de pensar conceitual (Flusser, 2007: 118). 3 2 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O Figura 2 Tabuleta suméria, c. 3100 a.C., encontrada na cidade de Uruk, apresenta uma escrita pictográfica primitiva. A C E R C A D A E S C R I T A 3 3 da escrita a partir das tabuletas sumérias de Uruk. Isso por falta de melho- res evidências ou porque nelas se encontra um sistema um pouco mais avançado do que o básico da pictografia referencial, em que um sinal representa exatamente aquilo que é o seu desenho. Para Fischer (2009a: 30), apenas quando o valor fonético do símbolo começa a superar o valor semântico é que existe a possibilidade ao que o autor chama de “escrita completa”; quando a ligação do símbolo com o referente deixa de exis- tir diretamente, abre-se a possibilidade de potencializar o sistema para expressar quase tudo de um discurso articulado; é quando passamos a não perceber mais no símbolo gráfico um objeto externo além do som que ele representa. A partir da escrita suméria, diversas outras apareceram até o surgi- mento do sistema alfabético, em aproximadamente 1200 a.C. No entanto, Fischer (2009a: 258) esclarece que não se pode falar em evolução na his- tória da escrita, pois sistemas de escrita não mudam sem uma ação deli- berada de agentes humanos, com algum objetivo específico. Segundo o autor, não foram as necessidades econômicas ou de simplificação que determinaram as mudanças nas escrituras, mas sim fatores de adequa- ção à fala ou propósitos de facilitar a interpretação dos sinais: Ao contrário da opinião popular, a economia e a simplicidade não são as forças motoras por trás dos sistemas de escritas ou do desenvolvimento de escrita, o brâmane índico, por exemplo, nunca teria “regredido” de um alfabeto conso- nantal simples para um sistema complexo com diacríticos em vogais, criando um amplo pseudo-silabário de sinais. Muito mais significativa na história da escrita do que a economia e a simplicidade é a precisão, maior realce fonético, resistência à mudança, não-ambiguidade, devoção e outros fatores em geral superficiais (Fischer, 2009a: 258). 3 4 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O Diferentemente da língua falada, a escrita não se altera naturalmente. A diglossia acontece porque existe uma evolução da língua falada verná- cula, viva e que se modifica e avança rápida e livremente, enquanto que a língua escrita, culta e oficial, é petrificada por um sistema que muda muito mais lentamente (Fischer, 2009a: 259). As mudanças da linguagem escrita é algo intencional, controlado pela humanidade e não natural. O tipógrafo e professor húngaro Ladislas Mandel (2006: 17) afirma que “a criação das formas escriturais é uma coisa do intelecto e não pode- ria ser explicada nem pelo acaso nem pelos instrumentos de traçar, que são simplesmente os prolongamentos de nossas mãos, escolhidos para melhor traduzir nosso pensamento”. Independentemente disso, a escrita se espalhou e passou por mudan- ças: a partir dos sumérios, a escrita se difunde para outros lugares do mundo antigo e o sistema sofre adaptações para atender a necessidades locais de demais povos que o adotam, com acréscimo de sinais, usos de logogramas – sinais que representam palavras – e fonogramas – sinais que representam sons (Fischer, 2009a: 34). A história da escrita passa pelos egípcios, que a consideravam uma tarefa sagrada: por ser um presente do deus Thoth, senhor de todas as sabedorias, chamavam-na de palavra de deus. Mas foi o grego Clemente de Alexandria, por volta do século II d.C., o primeiro a chamar a escrita egípcia de hieróglifo, que quer dizer escultura sagrada (Fischer, 2009a: 35). A escrita era tão importante na cultura do Egito antigo que os escri- bas eram uma classe social importante e influente, com alto prestígio e riqueza (Fischer, 2009a: 43). Ao longo do império egípcio, o sistema teve três distinções: 1. o hieróglifo usado em monumentos e em outros locais grandiosos; 2. o hierático – em grego, sacerdotal –, uma cursiva simpli- ficada usada pelos sacerdotes em escritos religiosos; e 3. uma escrita A C E R C A D A E S C R I T A 3 5 mais abstrata, rápida, chamada de demótico – do termo grego para popu- lar – que tinha uso secular, comercial e legal (Meggs e Purvis, 2009: 30). Segundo Fischer (2009a: 41), esses três estilos se diferenciavam somente na aparência gráfica, mas eram parte de um mesmo sistema de escrita. Além de demonstrar certa relevância no senso estético dos egípcios, seus sinais eram extremamente desenhados, fato considerado como a razão da demora para que o mundo moderno a considerasse como escrita e não decoração ou alguma espécie de sinais mágicos, de função mística. Somente no século XIX, após as tropas do francês Napoleão Bonaparte encontrarem um monólito de c. 196 a.C., conhecido como Pedra de Roseta, que os hieróglifos puderam ser traduzidos: a pedra continha a mesma inscrição, uma celebração a Ptolemeu V, em três diferentes escritas: hie- róglifo, demótico e em grego; assim descobriu-se que os sinais egípcios se tratavam de uma escrita. Dos egípcios, a escrita chegou aos fenícios, habitantes semitas do litoral de Biblos, Tiro, Sídon e Beirute, que controlaram os portos do mar Mediterrâneo e possuíam grande influência comercial no século XI a.C. Por serem um povo mercante, eles tinham necessidades decorrentes dessa atividade, e adaptaram a escrita para esses fins, com um alfabeto consonantal simplificado (Fischer, 2009a: 82). Na tradição mitológica grega, Cadmo, rei fenício, partiu em busca de sua irmã que havia sido capturada por Zeus, e assim o alfabeto chegou a Atenas. O fato é que, segundo Meggs e Purvis (2009: 39-42), o alfabeto fenício foi adotado na Grécia por volta de 1000 a.C. A colaboração grega para o desenvolvimento da escrita se deu, a princípio, com a geometri- zação e a padronização das formas dos sinais, com traços horizontais, verticais, curvos e diagonais, comuns até hoje (ver o subcapítulo Ana- tomia de um tipo, pág. 81). Esse primeiro estilo da escrita grega, que é 3 6 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O muito comum em inscrições em pedras encontradas posteriormente, ser- viu de inspiração para a criação das tipografias sem serifa de estilo gro- tesco, na primeira metade do século XIX2. Além disso, no século II d.C., os gregos desenvolveram outro estilo de desenho de letras, um pouco mais arredondado, chamado de uncial [fIgura 3], que permitia que men- sagens fossem escritas mais rapidamente (Meggs e Purvis, 2009: 39-42). As unciais gregas, por suas formas menores, levaram ao surgimento das letras minúsculas (Fischer, 2009a: 211). Muito já foi dito sobre a influên- cia e a importância da Grécia para o desenvolvimento da humanidade, e seguramente a escrita atuou tanto para registrar sua cultura, fortalecendo a identidade grega, quanto para transportá-la a outros povos. A escrita chegou até os romanos por meio dos etruscos, mas, com a conquista da Grécia, a literatura, a arte e a religião grega são absorvidas e adaptadas para as condições da sociedade romana; a partir disso, foram disseminadas por todo o império (Meggs e Purvis, 2009: 43). A ascensão de Roma como império transformou o alfabeto latino no mais impor- tante durante muitos séculos, o que reverbera até hoje, porque esse foi o sistema adotado em praticamente todo Ocidente. Roma se orgulhava de seus feitos e conquistas e constantemente erguia monumentos para registrar esses acontecimentos e exaltar os imperadores. As letras roma- nas gravadas nestes monumentos, conhecidas como monumentais (Capi- talis Monumentalis) [fIguras 4 e 5], são consideradas segundo Meggs e Purvis (2009:45) muito belas, por suas proporções clássicas e foram pro- jetadas para ter grande duração. Muitos creditam a esse estilo o surgi- mento das serifas, as terminações nos traços das letras (ver o subcapítulo Anatomia de um tipo, pág. 81). Os romanos também foram responsáveis por introduzir a variação de espessura nas letras caligráficas, decorrente dos materiais utilizados, como tinta e bico de pena (Fischer, 2009a: 214). 2. Segundo Paul McNeil (2017: 123), a primeira tipografia sem serifa que se tem notícia apareceu em uma única linha de um epécime de William Caslon 4º, composta toda com caixa-alta, no ano de 1816. A C E R C A D A E S C R I T A 3 7 F igura 3 Fragmento de manuscrito em uncial grega do século II d.C. 3 8 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O A C E R C A D A E S C R I T A 3 9 F iguras 4 e 5 Coluna de Trajano, c. 114 d.C., e detalhe da inscrição na sua base. O monumento é exemplo da letra monumental e traz a mensagem: “O Senado e o Povo Romano dedicam esta coluna ao imperador Trajano, filho de Nerva, pontífice máximo no seu 17º ano no tribuno, tendo sido aclamado seis vezes imperador, seis vezes cônsul, pai da pátria, para demonstrar a grande altura a que o monte se encontrava e foi removido para tais grandes trabalhos”. 4 0 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O O latim se tornou a língua oficial do cristianismo, atravessando toda a Idade Média. Ao longo da história, a escrita romana assumiu diversas formas: quadradas (Capitalis Quadrata), usadas até o século V, eram cui- dadosas, lentas, e imponentes, feitas com pena chata; rústicas (Capita- lis Rustica), mais estreitas e rápidas (Meggs e Purvis, 2009: 45). Durante a Idade Média, surgiram outros estilos de escrita caligráfica: a cursiva, a chanceleresca e a semiuncial, entre outros. No final do século VII, durante o império franco, a escrita caligráfica parecia legível apenas para os próprios escribas. Com intuito de man- ter a unidade do império, Carlos Magno – que curiosamente era analfa- beto –, por volta do ano 789, encomenda ao bispo inglês Alcuin de York a tarefa de organizar e unificar o sistema de escrita. Alcuin supervisiona a criação do que mais tarde se chamaria de letra minúscula carolíngia, a partir da escrita semiuncial romana; simplificada, limpa de abrevia- ções e ligaturas, tinha o imperativo da legibilidade e prevaleceu em toda Europa ocidental. A minúscula carolíngia constituiu uma linha divisó- ria e tornou-se a escrita mais importante até o Renascimento. Por volta de 1400, a escrita carolíngia estava fragmentada em duas correntes: a gótica e a humanística (Fischer, 2009a: 218). Nesse mesmo período, os primeiros humanistas, da escola que surge em Florença, adotam a escrita carolíngia como oficial, chamando-na de Antiqua; ela seria a base usada pelos primeiros tipógrafos italianos para desenvolver os tipos móveis, um século mais tarde. . escrita e sociedade Com sua capacidade de registro e de maior abrangência que a tradição oral, a escrita permitiu a organização de normas que estabeleceram o convívio social. Facilitou o acúmulo de conhecimento A C E R C A D A E S C R I T A 4 1 e o desenvolvimento cultural. A partir disso, foram criadas bibliotecas, nas quais estão armazenadas informações sobre tantos assuntos quantos a sociedade for capaz de abordar: religião, história, matemática, direito, astronomia, medicina… A literatura nasceu à medida que lendas e mitos, elementos comum da tradição oral de contar histórias, foram sendo regis- trados. Textos escritos relatam com datas e detalhes os eventos ocorri- dos ao longo dos séculos, nos diferentes reinados e impérios. Contratos, certidões e registros comerciais permanecem acessíveis desde que foram escritos; pesos e medidas foram padronizados, facilitando o desenvol- vimento tecnológico (Meggs e Purvis, 2009: 23-24). Um dos códigos de leis mais antigos ao qual se têm acesso é uma ins- crição com caracteres cuneiformes em um monólito de rocha de dio- rito de 2,44 metros de altura, em forma de totem. Encontrado em 1901, na Mesopotâmia, o Código de Hamurabi [fIguras 6 e 7] – rei da Babilô- nia entre 1792 a.C. e 1750 a.C., a quem se atribui a autoria das leis – apre- senta crimes e suas respectivas punições, em uma sociedade do mundo antigo que prezava pela ordem e justiça. Contém 282 leis quadriculadas em 21 colunas: “o ladrão que roubar de uma criança será executado”; “o construtor que erigir uma casa e esta desabar provocando a morte do proprietário será executado” (Meggs e Purvis, 2009: 24-25). Desde o Código de Hamurabi, as leis e normas de convívio social são registradas em códigos escritos, o que as transformam em algo durável e confiável. Da mesma forma, isso ocorre em outras áreas na organiza- ção da sociedade. Segundo Fischer (2009a: 276), as sociedades moder- nas são dependentes da palavra escrita para quase todos os aspectos da interação humana. Mandel (2006: 17) afirma que a invenção do alfabeto foi uma etapa decisiva na história da humanidade e do nascimento das sociedades 4 2 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O Figuras 6 e 7 Código de Hamurabi, datado entre 1792 a.C. e 1750 a.C., e detalhe da inscrição, exposto no Museu do Louvre (Paris, França). As 282 leis grafadas em escrita cuneiforme, formando uma textura, sustentam a imagem do deus- sol Shamash que supostamente ordenou o rei Hamurabi a escrever as leis para o povo da Babilônia. A C E R C A D A E S C R I T A 4 3 modernas: “Decompondo a linguagem falada em um certo número de símbolos fônicos – letras –, o alfabeto permitiu anotar com a mesma escrita todas as línguas da região, estabelecendo assim fortes elos de comunicação entre os povos”. O registro e a transmissão de conhecimento são fatores que atuam na evolução da sociedade. Descobertas científicas, que marcam essa evo- lução ou que rompem paradigmas, normalmente são feitas por pessoas que dedicaram tempo estudando os livros que outros escreveram sobre suas pesquisas, que, por sua vez, tiveram como base também livros escri- tos por outros anteriores. Há dúvidas se, por exemplo, podemos afirmar categoricamente que Albert Einstein teria chegado à elaboração da Teo- ria da Relatividade por si só, sem os conhecimentos registrados por pes- quisadores anteriores. Nessas sociedades nas quais o alfabetismo se restringia a um grupo seleto, como no antigo Egito ou Ilha de Páscoa antes da presença de missionários, a escrita tem pouco efeito. Em sociedades onde o alfabeto é bem difundido o impacto da escrita é profundo. Ele preserva a língua falada; eleva, padroniza e normatiza, enriquece e gera muitos outros processos ligados à língua com amplas impli- cações sociais. Sociedades humanas avançadas, como o Primeiro Mundo, não podem existir sem a escrita (Fischer, 2009a: pp.258-259). Florian Coulmas3 afirma que “as habilidades de ler e escrever dão acesso ao conhecimento, e conhecimento é poder” (apud Fischer, 2009a: 277). Pode-se aprofundar essa ideia com a afirmação de Décio Pignatari (2004; 53-55): segundo o autor, uma maior capacidade de manipulação (manejo, utilização, controle de um sistema) do código significa ter maior 3. Coulmas, Florian. The writing systems of the world. Oxford e Nova York, 1989 4 4 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O repertório, o que aumenta a possibilidade de obter informação; sendo a palavra escrita o código central e unificador das sociedades desenvolvi- das, ela se transforma em um código “crítico-interpretativo” de outros códigos – visuais e musicais por exemplo. Isso é confirmado por Fischer (2009: 259), que afirma que os que têm a fala mais próxima da escrita são geralmente os líderes da sociedade. No entanto, é preciso clarificar que Pignatari não privilegia a alta cultura sobre a baixa. O poeta brasileiro evidencia que o repertório reduzido – que se dá pela baixa capacidade de manipulação do código central – pode não ser tão restrito quando se define a partir de outro código que não a escrita: ele cita, como exem- plos, a criatividade de danças populares como o samba, oriundo do can- domblé, comparadas ao balé clássico; como a música popular brasileira se mostra culturalmente mais importante que a nossa música erudita (Pignatari, 2004: 55); ou, ainda, o caso do futebol: O futebol também mostra a superioridade relativa dos repertórios vinculados a códigos subsidiários ou laterais (em confronto com o código central). Os ingle- ses o criaram como combate simulado. E com este “conteúdo”, ele se introdu- ziu e se firmou entre nós, enquanto os “brancos” mandaram (Fluminense, Pau- listano) – até que os negros o transformaram em dança e lhe conferiram o traço criativo e distintivo que o tornou famoso em todo o mundo (Pignatari, 2004: 56). É imprevisível pensar aonde se chegará no futuro com o uso da escrita. Cada vez mais, com a disseminação de computadores, as pessoas passam mais tempo se comunicando com a linguagem escrita do que com a falada (Fischer, 2009: 275). É comum, sobretudo nas gerações mais jovens, as pessoas usarem o aparelho de telefone móvel – que tem, como uso ori- ginal em seu surgimento, a intenção de que duas pessoas que estejam A C E R C A D A E S C R I T A 4 5 longe fisicamente possam falar entre si sem diferença temporal –, pre- ferencialmente para enviar mensagens escritas e imagens fotográficas; pessoas não distantes, que muitas vezes estão no mesmo ambiente, usam comunicadores instantâneos de mensagens pela internet, no lugar sim- plesmente de falar em voz alta. O código escrito enviado por computa- dores a partir da Terra permite controlar uma espaçonave que atravessa o Sistema Solar; por outro lado, peregrinos religiosos no Tibete há sécu- los cumprem um ritual de se rastejar sobre textos sagrados por acredi- tarem que assim se pode absorver a sabedoria das escrituras budistas. Estudiosos afirmam que o ato de escrever alivia problemas psicológicos e estimula o sistema imunológico. O que se pode dizer, segundo Fischer (2009: 278), é que pelo tempo que a escrita continuar a existir e a servir ao desenvolvimento, registrando nosso conhecimento e nossa memó- ria, ela estará definindo e criando uma nova sociedade. Qualquer que seja a forma que a escrita tome no futuro, ela permanecerá cen- tral à experiência humana, promovendo habilidades e registrando memórias. Como já deixou registrado com pincel e tinta, um escriba egípcio, cerca de qua- tro mil anos atrás: “Um homem morreu e seu corpo se tornou terra. Todos os seus parentes se desintegraram no pó. É pela escrita que será lembrado. (Fis- cher, 2009: 278) escrita e poder A escrita é um instrumento de poder usado para fortalecimento identitário e cultural, muitas vezes imposta por conquis- tas e por colonizações. Disseminando sua cultura, os romanos eterniza- ram o alfabeto latino em todos os lugares que fizeram parte do seu impé- rio. Atualmente, é possível que o inglês, idioma escrito com o mesmo sistema alfabético latino dos romanos – independentemente se com 4 6 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O acréscimos ou a eliminação de alguns signos –, se torne suporte de um novo imperialismo cultural, quando se observa a tendência de um código único internacional que usa esse idioma e é fortalecido pelas comunica- ções feitas pela rede de computadores mundial (Fischer, 2009: 274). Se por um lado cresce o acesso à informação, por outro cria uma segrega- ção, quando exclui do processo de comunicação pessoas que não conhe- cem a língua, o que pode gerar um sentimento de não pertencimento e crise identitária. Segundo Donny Correia (2018), o cientista político estadunidense Joseph Nye “cunhou o termo ‘soft power’ para se referir ao tipo de domi- nação que passou a ser corriqueira nas disputas mundiais por território: não mais nos campos de batalha, mas sim no âmbito da língua, do esporte, da religião e da cultura em geral” no final dos anos 1980. Além da obvie- dade dos filmes de Hollywood, a língua inglesa, falada ou escrita, é usada para colonização e dominação, é um instrumento de poder das nações juntamente com a pressão política, sanções econômicas e força militar. Escrita-memória Vilém Flusser (2007: 46) afirma que “as máquinas são simulações dos órgãos do corpo humano” e, como exemplo disso, apresenta a alavanca como o prolongamento de um braço, com a qual se pode “enganar” o limite dado pela força gravitacional exercida pela Terra, uma lei da física, para levantar um peso maior do que nossa força suportaria (Flusser, 2007: 184). Pode-se dizer que a função de registro exercida pela escrita é uma ampliação da capacidade da memória humana; ela abre possibilidades para que a informação carregada por ela alcance distâncias maiores e A C E R C A D A E S C R I T A 4 7 F igura 8 In Memoriam, Luise Weiss, 2000. 4 8 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O chegue a diversas pessoas do futuro; em outras palavras, pretende ser um transmissor de histórias. Foi esse fator memória o principal e pri- meiro propósito da invenção da escrita. Segundo Meggs e Purvis (2009: 21), a necessidade de lembrar quem havia pago os impostos em forma de colheita, quanto de alimento havia guardado e se essa quantidade seria suficiente para alimentar toda a comunidade até a próxima safra foi o ponto de partida para o uso de escrita como registro nas socieda- des que a criaram. Mas talvez não passe de uma falsa recordação. Como observa Jean Baudrillard (1990: 39), a quantidade de coisas armazenadas hoje em dia nos dispositivos de memória é tão grande, e são tantas as mensagens, que elas nunca encontrarão tempo de serem lidas: não conseguirão dar à luz uma única ideia. Ou talvez seja uma tentativa de superar a morte, segundo Flusser (2007: 90) quando afirma que a comunicação humana é um artifício para nos fazer esquecer a falta de sentido de uma vida con- denada à morte. Também o filósofo grego Platão4 (c. 427-347 a.C.) faz, em Fedro, uma crítica à escrita e a sua eficácia para a memória: “[…] essa descoberta [a escrita] provocará nas almas o esquecimento de quanto se aprende, devido à falta de exercício da memória, porque confiados na escrita, é do exterior, por meio de sinais estranhos, e não de dentro, graças a esforços próprios, que obterão as recordações. Por conseguinte, não descobriste um remédio para a memória, mas para a recordação” (Platão, 1997: 275a-b apud Rodrigues, 2015: 101). O questionamento de Platão é um pensa- mento de quem vivenciou a mudança da tradição oral para a escrita, ape- sar disso é algo que pode ser notado quando um ser humano do século XXI precisa recorrer à agenda do telefone móvel para certificar-se do seu próprio número. No entanto, conforme afirma Rodrigues (2015: 113), 4. Platão. Fedro. Tra- dução José Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70. 1997. A C E R C A D A E S C R I T A 4 9 Figura 9 Página do caderno de anotações do desenhista gráfico Flávio Cescato, 2017. 5 0 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O “grande parte dos intérpretes analisa somente na perspectiva do silêncio da escrita e sua falta de vida mencionada por Sócrates como algo muito negativo. Todavia se olharmos na perspectiva da relação com Eros, que gera um sentimento duradouro pela busca da verdade, provavelmente Sócrates não negaria o valor de todos os escritos, porque ele mesmo se dedicou bastante a essa atividade”. Ou seja, talvez a preocupação de Pla- tão fosse com a verdade necessária para a satisfação da alma humana, e não se podia ter total confiança de que um discurso escrito fossilizado, que desse sempre a mesma resposta, seria passível de interpretação ade- quada às diferentes necessidade futuras. ::: Por outro lado, nas rugas das letras, por suas curvas e retas, é transpor- tada a marca da passagem do tempo. A escrita-memória quer fazer algo sobreviver ao tempo, quer ser uma pequena presença de ausência. Não é fácil entender a cultura dos tempos atuais, o que somos e como pen- samos, sem o que foi deixado escrito e sem pistas de como chegamos até aqui; quem conseguiria pensar em um mundo sem a existência de A Divina Comédia, de Dante Alighieri? Não é possível dizer se imagina- ríamos o inferno diferente de como o pensamos hoje, mas talvez sería- mos mais tristes e menos imaginativos. Mas o que é a passagem do tempo? O passado é imutável, o futuro, imprevisível, nunca chega, e o presente, de um certo ponto de vista, não existe: no exato momento em que ele acontece, já vira passado. Quando um orador pronuncia sua fala, são necessárias frações de segundo para que o som – um objeto físico caracterizado por ondas – chegue até o ouvinte; no exato momento em que a palavra sai da boca da pessoa que fala, ela já é passado, não poderá nunca mais ser alterada. Da mesma maneira, a A C E R C A D A E S C R I T A 5 1 palavra escrita só poderá ser lida em algum momento do futuro. Aí, mais uma qualidade da escrita-memória, sua relação com o passado e com o futuro, uma ponte de ligação entre os tempos. O que se escreve está congelado, fixo à superfície do suporte que o carrega, não há mudança. Mas não é como o passado, que ingenuamente se pensa impossível de ser alterado: por meio de releituras, mudanças promovidas por experiências, novas vivências e diferenças de ponto de vista, o passado pode ser alterado constantemente. Como observou Ben- jamin (1987: 239), memória não é um instrumento para exploração do passado, mas sim o meio: é onde se deu a vivência, igual ao solo no qual antigas cidades estão soterradas e o arqueólogo precisa escavar. Uma ver- dadeira lembrança deve fornecer uma imagem daquilo de que se lem- bra, assim como um relatório arqueológico. É preciso escavar a página escrita em todas as suas camadas: o verbal, o visual, a figura, o fundo, a forma e a função. Assim, a imagem da escrita poderá ser uma imagem dialética, no sentido que observou Didi-Huberman (2010), e a tipogra- fia deixa de ser apenas um arquivo-memória. Formas complexas que faziam algo bem diferente que fornecer as condições de puras experiências sensoriais. Falar em imagens dialéticas é no mínimo lançar uma ponte entre a dupla distância dos sentidos (os sentidos sensoriais, o ótico e o tátil, no caso) e a dos sentidos (os sentidos semióticos, com seus equívocos, seus espaçamentos próprios) (Didi-Huberman, 2010: 169). A imagem dialética compreende todos os sentidos, é imagem que critica a imagem; ela critica não apenas a nossa maneira de vê-la, mas a maneira de constituí-la como imagem, e nos obriga a olhá-la verda- deiramente (Didi-Huberman, 2010: 172). O autor observa, ainda, que a 5 2 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O imagem dialética é dependente do trabalho crítico da memória para existir – memória no sentido que Walter Benjamin entendia, não como coleção de coisas passadas, mas como aproximação das coisas passadas ao seu lugar, “uma concepção de memória como atividade de escavação arqueo- lógica, em que o lugar dos objetos descobertos nos fala tanto quanto os próprios objetos”  (Didi-Huberman, 2010: 174). Por isso, a palavra escrita é também uma imagem congelada no espa- ço-tempo, uma representação da sociedade que a produziu. Ler Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, é voltar ao Rio de Janeiro do século XIX, ter contato com o vocabulário e o imaginário da época: palavras comuns naquele tempo, mas que foram sendo deixadas de lado em favor de outras, fato natural e orgânico da evolução da palavra falada; a ortografia que sofreu rearranjos nas reformas e acordos ortográficos; e, não menos importante, os costumes, a indumentária, os lugares, ima- gens que criamos a partir da narrativa no livro. Ler Memórias Póstumas também nos faz observar que a palavra escrita se torna cada vez mais abs- trata, não acompanha mais a evolução natural da palavra falada usada no cotidiano, soterrando dialetos, esquecendo sotaques e ignorando influên- cias possíveis. Como afirma Fischer (2009: 275), de certa maneira o uso do alfabeto latino pode representar uma fossilização da forma das escritu- ras, e um livro do futuro pode ter a mesma aparência que a do livro atual. produção e registro de conHecimento Nunca se produziu tanto quanto na era atual, da sociedade marcada pela revolução tecnoló- gica da informação com a rede mundial de computadores. Antes mesmo da internet, Baudrillard (1990: 23) já observara que “através da mídia, da informática, do vídeo, todo o mundo tornou-se potencialmente criativo.” A C E R C A D A E S C R I T A 5 3 As pessoas passaram a ser mais do que meros leitores ou observadores: são, ao mesmo tempo, autores, editores e leitores. A tecnologia facilitou o excesso de produção de conteúdo e os números comprovam esse fato: segundo o historiador Nicolau Sevcenko (2001: 24) “80% das descober- tas científicas de todos os tempos se deram nos últimos 100 anos”; o filó- sofo Zigmunt Bauman (2008: 54-55) afirma que, “como calculou Ignacio Ramonet5, nos últimos 30 anos se produziu mais informação no mundo do que nos 5 mil anos anteriores: um único exemplar da edição domini- cal do The New York Times contém mais informação do que a que seria consumida por uma pessoa culta do século XVIII durante toda a vida”; o antropólogo Thomas Hylland Eriksen6 (1999: 92. apud Bauman, 2008: 55) afirma que “mais da metade de todos os artigos publicados nas revis- tas de ciências jamais são citados”. O surpreendente é a obesidade de todos os sistemas atuais, essa “gravidez dia- bólica”, como diz Susan Sontag, do câncer, que é a de nossos dispositivos de informação, de comunicação, de memória, de armazenamento, de produção e de destruição, tão pletóricos, que têm de antemão a garantia de já não servi- rem. Não fomos nós que extinguimos o valor de uso, foi o próprio sistema que o liquidou pela superprodução. Tantas coisas são produzidas e acumuladas, que nunca mais terão tempo de servir (o que é uma sorte no caso das armas nuclea- res). Tantas mensagens e sinais são produzidos e difundidos que nunca mais terão tempo de ser lidos. Sorte nossa! Porque a ínfima parte que absorvemos já nos põe em estado de eletrocução permanente (Baudrillard, 1990: 39). Todo esse excesso característico da atualidade não é um fato desimpor- tante se atentarmos para o que nos faz lembrar Baudrillard (1990: 18), que “o excesso de conhecimento dispersa-se indiferentemente na superfície 5. Ramonet, Ignacio. La tyrannie de la communication. Paris: Galilée, 1999. 6. Eriksen. Thomas. H. Tyranny of the moment: fast and slow time in the information age. London: Pluto, 2001. 5 4 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O em todas as direções”. Evidentemente, os seres humanos têm um limite capacitacional dado por sua formação biológica e talvez não estejamos absorvendo nenhuma informação mais profunda do que um milímetro. É interessante notar que praticamente toda a informação gerada pela humanidade, de dados financeiros a textos, filmes, fotografias e músi- cas (as mesmas informações que Baudrillard afirma que nunca conse- guiremos absorver), está escrita em um sistema binário (bits) e regis- trada em minerais formados por óxido de carbono, elemento principal para a construção dos discos rígidos dos computadores, ou qualquer outro equipamento que usa o processo de gravação magnética (Sinnec- ker, 2018). Já existe tecnologia mais avançada de gravação, conhecida pela sigla SSD, que usa um processo elétrico no lugar do magnético, mas ninguém consegue garantir por quanto tempo durará esses registros, e, assim, a memória do nosso tempo pode simplesmente ser apagada por uma movimentação solar ou por desgaste do material – segundo Sinnec- ker (2018), 92% de tudo o que foi produzido desde a segunda metade do século XX está armazenado nesse mineral. p.55 Definir tipografia é uma tarefa complexa, com múltiplas configurações possíveis: pode-se dizer que tipografia é uma oficina de impressão que usa pequenas peças de metal, com letras em alto-relevo, para reproduzir em série um material que contém escrita; também pode ser o modelo de desenho da letra que se imprime, com sua morfologia, forma e contraforma, estilo e acabamento; ou, ainda, ser o domínio de um saber, que reflexiona sobre suas histórias, tradições, téc- nicas e práticas (Carpintero, 2012: 42-44). A palavra tipografia tem sua origem com o surgimento da imprensa no século XV, trabalho do alemão b ac er ca d a ti p o g ra fi a 5 6 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O Johannes Gutenberg (c. 1398-1468). Etimologicamente, vem do grego, da junção de týpos (marca feita de golpe, marca impressa, figura, símbolo, emblema) e graphe– (escrita, escrito, convenção, documento, descrição), e poderia ser definida como grafia através de tipo, sendo “grafia” uma escrita e “tipo” um modelo – neste caso, um modelo de letra. No entanto, essa definição não contempla toda a carga de signifi- cados que foram acrescentados ao termo no decorrer dos cinco séculos que nos separam de Gutenberg. O ofício tipográfico inclui as tarefas de desenvolver e desenhar o tipo; de compor o texto seguindo o código e as convenções da escrita e do idioma; de fazer imprimir a página e repro- duzir a escrita-modelo sobre um suporte; de organizar o suporte para uso e conservação. Essa abrangência é melhor dada pela definição pro- posta pela pesquisadora brasileira Priscila Lena Farias, quando afirma que tipografia é “o conjunto de práticas subjacentes à criação e utiliza- ção de símbolos visíveis relacionados aos caracteres ortográficos (letras) e para-ortográficos (tais como números e sinais de pontuação) para fins de reprodução, independentemente do modo como foram criados (a mão livre, por meios mecânicos) ou reproduzidos (impressos em papel, gra- vados em documento digital)” (Farias, 1998: 11). Ou seja, tudo o que está relacionado à reprodução em série de mate- rial escrito, desde a elaboração e o planejamento visual até a encaderna- ção, passando por diversas etapas intermediárias, é tipografia. Por outro lado, é comum encontrar profissionais das artes gráficas, publicitários e escritores usando o termo tipologia como sinônimo de tipografia. Os defensores desse termo separam a criação e o desenvolvi- mento de desenho de letras, uma tarefa intelectual, da parte industrial gráfica, uma tarefa técnica. Em um primeiro momento parece lógico, sobretudo se considerarmos o termo tipologia como estudo (logia) de tipo A C E R C A D A T I P O G R A F I A 5 7 (modelo de letra). No entanto, o termo tipologia é muito amplo e abran- gente, o que poderia causar desacordos e incertezas. Tipologia pode ser entendido, segundo o dicionário de língua portuguesa Houaiss, como “estudo de classificação ou organização baseada em tipos”, o que per- mite que seja aplicado em diversas áreas do conhecimento. Serve para qualquer disciplina que faça algum tipo de organização ou classificação de modelos (tipos), independentemente do objeto que se esteja classifi- cando – podendo-se, inclusive, ser a classificação de estilos tipográficos ou de modelos de letra. A pesquisadora brasileira Lucy Niemeyer (2006: 14-15) trata da questão de maneira objetiva quando afirma que tipogra- fia compreende o desenho e a produção de letras e sua adequada dis- tribuição e espacejamento sobre uma superfície para transmitir infor- mação e que tipologia é o processo de classificação ou o estudo de um conjunto, qualquer que seja a natureza dos elementos que o compõem. Portanto, por ser mais abrangente à atividade e por ser mais especí- fico ao objeto de estudo deste trabalho, optou-se por usar o termo tipo- grafia no sentido descrito por Priscila Farias, assumindo sua definição como toda atividade, conceitual ou prática, relacionada à reprodução em massa de uma escrita. Entende-se que está contemplado, nessa definição, o desenho de símbolos representativos dessa escrita. Não será usado o termo tipologia, pois não é intenção fazer alguma classificação tipográfica. História da tipografia Gutenberg não foi o primeiro a impri- mir com tipos móveis. Em cerca de 1045, Bì Sheng, um alquimista chi- nês, produziu, com uma mistura de argila e cola, tipos móveis que eram compostos e cozidos para formar uma espécie de matriz em alto relevo, da qual se poderiam tirar cópias idênticas; depois da impressão, a peça 5 8 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O precisava ser aquecida novamente, para soltar os caracteres, de maneira que eles pudessem ser reutilizados em outro trabalho (Meggs e Purvis, 2009: 60). Acredita-se ser o primeiro impresso com tipos móveis de metal uma obra produzida na atual região da Coreia em 1234, com o título Tex- tos Rituais Prescritos do Passado e do Presente (Man, 2002: 100). No entanto, muito antes já se imprimia a partir de moldes em alto-relevo. O chinês Wang Chieh utilizou uma matriz única entalhada artesanalmente em madeira para imprimir o Sutra do Diamante – um texto de revelações de Buda, entre elas uma que diz que “aquele que repetir este texto será edificado”. Chieh registrou no final do Sutra que produziu o objeto em honra aos seus pais, e para sua distribuição ampla e gratuita, na data de 11 de maio de 868 (Meggs e Purvis, 2009: 58). Além disso, o historiador John Man (2002: 27) afirma que o objeto mais antigo que foi reproduzido a partir de uma matriz de que se tem notícia é um disco de barro cozido de cerca de 16 centímetros, que con- tém uma escrita em espiral com 241 sinais de cada lado. Encontrado na ilha de Creta em 1908, o Disco de Festo – o nome se deve ao local em que os arqueólogos o encontraram – foi produzido por volta de 1700 a.C. [fIgura 10]. Segundo Man (2002: 27) os sinais presentes no disco, ao que tudo indica, não foram desenhados, e sim gravados com selos rígidos de metal. Esses fatores sugerem que a invenção de Gutenberg não foi exata- mente o ato de imprimir a partir de uma matriz em relevo formada por peças individuais e móveis. Certamente Gutenberg foi beneficiado por circunstâncias de seu tempo e da região onde vivia, a Europa do século XV. A primeira delas, a escrita fonética latina, que, diferentemente das escritas orientais ideo- gráficas, conta com poucos sinais. Bringhurst (2005: 133) afirma que os tipos móveis encontraram na Europa a “longa e fértil história da letra A C E R C A D A T I P O G R A F I A 5 9 F igura 10 Disco de Festo, lado 1 e lado 2, c. 1700 a.C., Museu Arqueológico de Heraklion. De acordo com os pesquisadores, a inscrição foi feita com moldes de metal pressionados sobre o barro (Man, 2009: 27). 6 0 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O romana”. John Man (2004: 134), por sua vez, afirma que, “comparado com um inventor de qualquer civilização precedente, Gutenberg contava com a espantosa vantagem de trabalhar com poucas dúzias de símbo- los, e não com várias centenas, e com as ferramentas de uso tradicional para gravar em metal”. A segunda circunstância benéfica foi a existência da demanda da distribuição de impressos, dada não apenas pelo cres- cimento constante de universidades, mas sobretudo por uma crise do Cristianismo, que estava fragmentado, com rivalidades e disputas entre papas, anti-papas, imperadores alemães, imperadores romanos e con- selhos de anciões (Man, 2004: 89). O cardeal alemão Nicolau de Cusa, contemporâneo de Gutenberg, acreditava que todos os mosteiros deve- riam possuir uma Bíblia bem traduzida e editada em sua biblioteca, para que todos os cristãos usassem um único texto idêntico, com os mesmos preceitos para seus rituais; assim o catolicismo fortaleceria sua homo- geneidade, podendo resolver os problemas da fragmentação e das riva- lidades (Man, 2004: 167). ::: Interessante traçar um breve paralelo de uma visão antagônica. Dife- rentemente do pensamento do cardeal Nicolau de Cusa, os muçulma- nos suspeitavam que a palavra escrita e sua reprodução em série dada pela tipografia poderia introduzir possíveis e indesejáveis inovações em seus rituais, promovendo o rompimento das tradições, o que pode expli- car o motivo pelo qual a imprensa não causou um impacto imediato no mundo islâmico – isso se daria somente no século XIX (Man, 2004: 247). “Para os muçulmanos, segundo Robinson7, a impressão ‘atacava aquilo que tornava o conhecimento algo digno de confiança, o que dava a ele valor e autoridade.’ Sem a transmissão autorizada, sem a memória, toda 7. Robinson, Francis. Islam and the impact of print in south Asia. In: Nigel, Crook (ed.). The transmission of knowledge in south Asia. Oxford, 1996. A C E R C A D A T I P O G R A F I A 6 1 autoridade desaparece, e a vontade de Deus torna-se indeterminada” (Man, 2004: 251). O fato de ter Bíblias idênticas, com o mesmo conteúdo e a mesma apa- rência, bem editadas e bem traduzidas, à disposição nas bibliotecas, não foi suficiente para manter o Cristianismo unido e homogêneo. Ao con- trário, algumas décadas depois da invenção da imprensa, em 1517 Marti- nho Lutero iniciou o que ficou conhecido como a Reforma Protestante, fixando suas 95 teses em portas de igrejas e, em seguida, preparando a primeira tradução da Bíblia para o alemão – antes, era usado sempre o latim (Man, 2004). Isso não deixa de ser um indício de que impedir a disseminação do conhecimento dificulta a possibilidade de inovação, o que pode ser considerado uma espécie de congelamento da evolução, seja esta pessoal ou da própria sociedade, além de manter o poder e a autoridade para quem detém o conhecimento. Não é casualidade que a imprensa chega ao Brasil somente em 1808, junto com a corte portu- guesa de D. João VI, que fugia das tropas de Napoleão (Semeraro, 1979: 7). a genialidade de gutenberg Pelo menos dois fatores tem- porais existentes no contexto de Gutenberg viabilizaram, portanto, o sur- gimento da imprensa: 1. a crescente demanda por livros; e 2. o número reduzido de signos do alfabeto latino, o que facilitou a produção de tipos móveis. Além de perceber nesses dois fatores a possibilidade de um negó- cio lucrativo, Gutenberg teve a genialidade de adaptar as técnicas de gra- vação, punção e fundição de metal, tarefa na qual sua família e ele pró- prio possuíam tradição, como gravadores de moedas, em Mainz. Para Meggs e Purvis (2009: 97), a chave da invenção de Gutenberg foi o molde em duas partes para forjar letras individuais, que se ajustava para 6 2 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O matrizes de caracteres estreitos, como a letra , e largos, caso da letra . Os moldes permitiram que grande volume de tipos fosse moldado de maneira rápida, com variações mínimas no desenho da letra [fIgura 11]. De acordo com o tipógrafo holandês Fred Smeijers (2015: 62), “a inven- ção da impressão tipográfica não é muito mais do que a implementação de conhecimento que já estava disponível. Esse conhecimento foi reti- rado de seus contextos originais, reunidos e trazidos para um outro con- texto. Então, outra coisa podia ser feita com ele: imprimir”. Todas as téc- nicas já existiam e estavam à disposição: a fundição e gravação de metal, a reprodução a partir de matriz em alto-relevo, os tipos móveis, a prensa usada na extração de óleo de oliva, o papel, a tinta; Gutenberg adaptou- -as para atender às necessidades da impressão. Pensar em cada letra como uma coisa separada, fazer punções para cada letra, golpeá-las em matrizes, fundir peças com uma altura padrão e fazer com que elas sejam retangulares para que possam ser postas lado a lado com facilidade para compor palavras e depois uma linha de texto de forma que as linhas possam finalmente compor colunas de texto da cabeça aos pés da página: esse pensa- mento é a “invenção da impressão tipográfica e da tipografia” (Smeijers, 2015: 62). O ofício do gravador de punção é esculpir o metal, tirando as par- tes “vazias” das letras e deixando em relevo somente as partes “cheias”, ou, como diz o professor Gerrit Noordzij (2013: 13), as partes brancas e pretas; essa escultura deve ser feita no exato tamanho em que o texto será impresso. A parte em branco (aquela que não se vê na impressão) já desde o início é tão fundamental quanto a parte preta (a parte da letra que se vê), e a qualidade do resultado do desenho da letra é dada sobre- tudo pela relação entre o olhar e a mão do gravador que corta o metal. A C E R C A D A T I P O G R A F I A 6 3 F igura 11 Sistema de fundição de tipos Fonte: Meggs e Purvis, 2009: 97 1 PUNÇÃO Com técnica já usada na gravação de moedas, a letra era esculpida na ponta do metal 2 MATRIZ A punção era golpeada em um metal mais macio, formando a letra em baixo-relevo 3 MOLDE A matriz era então montada em um sistema com altura fixa e largura ajustável, onde era derramado metal derretido Tipo Frente VersoMolde aberto Matriz 6 4 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O O princípio da técnica de produção de tipos móveis e a prensa de Gutenberg foi o mesmo usado nos 400 anos subsequentes, passando por pequenos aprimoramentos (Meggs e Purvis, 2009: 99). Começou a perder força com o surgimento da máquina de composição mecânica inventada pelo alemão radicado nos Estados Unidos Ottmar Mergentha- ler (1854-1899), na época da Revolução Industrial, em 1886 (Meggs e Pur- vis, 2009: 183). A máquina ficou conhecida como linotipo e foi usada até o final do século XX, com o advento dos computadores. Não se pode considerar verdade absoluta que o primeiro impresso de Gutenberg foi a Bíblia de 42 linhas [fIgura 12]. O alemão imprimiu, em 1450, uma análise gramatical do latim, que era muito utilizada por estu- dantes da época, chamada Ars Grammatica. Além disso, imprimiu algu- mas Cartas de Indulgências , a pedido de Nicolau de Cusa, e um texto cha- mado Profecias Sibilinas, no qual reaproveitou os mesmos tipos móveis com que imprimiu uma outra obra chamada Donatus. Estudos realizados pela Universidade da Califórnia comprovaram, em 1984, que a tinta des- ses impressos foi a mesma utilizada na Bíblia de 42 linhas (Man, 2004: 163-166). Mas pode-se afirmar que a Bíblia de Gutenberg foi o primeiro livro impresso com tipos móveis em metal, dentro do que consideramos hoje como o desenho padrão de livros. Para esse trabalho, Gutenberg teve que escolher o tipo, criar o molde, fundir o tipo – e, para isso, estudou a liga de metal mais adequada –, desenvolver uma tinta específica, diferente da usada na época em xilo- gravura, e adaptar a prensa (Meggs e Purvis, 2009: 97). O alemão pro- curou imitar as publicações da época. Para isso, entalhou 290 carac- teres, incluindo todas as diferentes formas de cada letra para simular o manuscrito dos copistas, com 83 ligaturas (Man, 2004: 171). O tipo de letra escolhido não poderia ser outro senão a textura quadrada, de A C E R C A D A T I P O G R A F I A 6 5 F igura 12 A bíblia de Gutenberg Fontes: Meggs e Purvis, 2009 e Man, 2004. ■ Formato in-quarto (30,7 cm x 44,5 cm). ■ Total de 1282 páginas, em dois volumes. ■ Tiragem de 210 exemplares, sendo 180 em papel e 30 em velino. ■ Consumiu 5 mil peças de couro de bezerro para as cópias em velino e 200 mil folhas de papel produzidas na Itália, manualmente ■ Nas primeiras 9 páginas, cada coluna tem 40 linhas; na décima, tem 41, e no restante do livro. ■ Cada página contém, em média, 2500 toques; cada linha 33, em média. ■ Cabeçalhos, capitulares e textos coloridos foram feitos à mão, posteriormente à impressão. ■ O trabalho levou 2 anos e contou com 18 trabalhadores. ■ Restaram, na atualidade, 12 cópias em velino e 39 em papel. 6 6 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O estilo gótico, comumente usada nos manuscritos na Alemanha daquela época. Bringhurst (2005: 24) afirma que “o propósito original da tipo- grafia era simplesmente o de copiar. A tarefa do tipógrafo era imitar a mão do escriba para permitir uma replicação rápida e exata”, Para Fis- cher (2009: 236), em um primeiro momento a escrita à mão influenciou a tipografia, mas esta logo se viu livre da pena caligráfica, e as duas téc- nicas convivem bem até hoje. Embora nos anos 1400 a Europa tenha conhecido a invenção da impressão dos tipos móveis em metal, a cópia à mão de livros continuou por hábito, devo- ção religiosa, pobreza ou necessidade política; e continua até hoje. Os primei- ros tipógrafos simplesmente imitavam as caligrafias conhecidas dos copistas medievais. Alguns escribas desenhavam grandes iniciais nos primeiros livros impressos, enquanto outros se dedicavam a desenhar novas fontes que avança- vam a nova técnica. Logo, a impressão começou exercer influência, e as letras da tipografia se viram livres da mão e pena humana (Fischer, 2009: 236). Mesmo porque, segundo Smeijers (2009: 43) observa, o objetivo da tipografia não tinha nada a ver com desenho de tipo, e sim com a eco- nomia de tempo, expressada na intenção de produzir cópias de livros de maneira mais rápida do que se fossem escritos à mão. No entanto, a observação de Smeijers não elimina o fato de que existe um indício da tendência, no campo da linguagem, de uma inovação imitar a anterior, até que a nova consolide-se. Um exemplo recente pode ser dado pelos primeiros sites, que simulavam o que pretendiam ser: sites de notícias tentavam se parecer com os jornais impressos; livros digitais simula- vam até o movimento das páginas sendo viradas, em alguns casos até com efeitos sonoros. A C E R C A D A T I P O G R A F I A 6 7 Para seu feito, Gutenberg tomou bastante dinheiro emprestado. Aca- bou não conseguindo pagar todas as dívidas. Antes mesmo de ver o lucro das vendas do livro, foi banido de sua cidade natal Mainz e perdeu sua oficina para o credor Johann Fust (c. 1400-1466). Este, em sociedade com o principal assistente de Gutenberg, Peter Schoeffer (c. 1425-1502), con- tinuou o trabalho da gráfica (Meggs e Purvis, 2009). Johannes Gutenberg morreu sem estardalhaço, em 1468, e só recebeu o reconhecimento por seu trabalho muitos anos depois (Man, 2004). No entanto, independentemente de questões judiciais e dos méri- tos, a imprensa determinou uma nova organização social, na visão da historiadora Albertine Gaur8 (apud Fischer, 2009: 239): “as duas déca- das que Gutenberg passou aperfeiçoando a tipografia marcaram o início do período moderno e todos os avanços científicos, políticos, eclesiás- ticos, sociológicos, econômicos e filosóficos subsequentes não teriam sido possíveis sem o uso e a influência da tipografia” . Fischer (2009: 249) afirma que “a história da imprensa é parte inte- grante da história geral da civilização”, porque ela mudou a sociedade de forma fundamental: fazer cópias quase que ilimitadas permitiu um acesso à informação de maneira quase igualmente ilimitada. Assim, tudo o que a escrita gerou na antiguidade, tanto os benefícios quanto os problemas, questões de memória e de identidade, foi potencialmente ampliado com a imprensa, à medida que crescia seu alcance. Fischer (2009: 249) encerra dizendo que “a imprensa possibilitou a existência da sociedade moderna, e não é exagero afirmar que ela é tão importante para a humanidade como o controle do fogo e da roda”. 8. Gaur, Albertine. A history of writing. Vol. 2, edição revis- ta. Londres, 1992. 6 8 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O ::: Rapidamente a imprensa se espalhou pela Europa, que vivia um período de transição do mundo medieval para o Renascimento. A tipografia chega à Itália primeiramente na comuna de Subiaco, em 1465, pelas mãos de Konrad Sweynheym e Arnold Pannartz, dois alemães que haviam traba- lhado na oficina montada por Gutenberg, quando esta não estava mais sob sua tutela. Os dois tipógrafos criaram uma tipografia combinando as letras maiúsculas das inscrições monumentais romanas com as minús- culas carolíngias de manuscritos italianos do século IX [fIgura 13] (Meggs e Purvis, 2009: 120-121). Ainda com marcante influência gótica, esse pri- meiro tipo romano deu o primeiro passo em direção ao que se tornaria o padrão de estilo de letra na produção de livros. Na época do Renascimento, tudo acontecia em Florença, mas não a tipografia. Por alguma razão, os Médici, mecenas locais da arte e da cul- tura, consideravam o livro manuscrito superior ao impresso. A tipogra- fia do século XV encontrou em Veneza – que era o centro de conexão comercial da Europa com o Oriente – o principal lugar para prosperar. O francês Nicolas Jenson, que havia sido mestre da Casa da Moeda Real de Tours, na França, um excelente abridor de moldes para cunhagem de moedas, estabeleceu sua gráfica em Veneza; ele foi um dos mais impor- tantes criadores de tipografia de todos os tempos. Seu tipo no livro De Praeparatione Evangelica [fIgura 14] é considerado um dos mais belos, em parte por ser extremamente legível e também porque Jenson tinha uma habilidade particular para equalizar os brancos das letras, criando uma tonalidade homogênea em toda a página (Meggs e Purvis, 2009: 126). O humanista Aldo Manuzio, depois de frequentar a gráfica de Jenson por algum tempo, inaugurou a própria oficina, também em Veneza, em 1494, quando estava com quase 45 anos. Renomados eruditos e técnicos A C E R C A D A T I P O G R A F I A 6 9 qualificados foram recrutados para operar a imprensa aldina, que rapi- damente se tornou uma das mais influentes. Entre seus parceiros estava o puncionista Francesco Griffo, que pesquisou escritas pré-carolíngias com a intenção de produzir um tipo italiano que fosse mais autêntico do que o de Jenson. Seu trabalho foi primeiramente usado no livro De Aetna, de Pietro Bembo, e ficou conhecido pelo nome de Bembo [fIgura 15] (Meggs e Purvis, 2009: 132). Em 1499, Manuzio publicou Hypnerotomachia Poliphili, de Francesco Colonna [fIguras 16 e 17]. Para esta obra, Griffo projetou novas maiúsculas, para melhorar a combinação delas com as minúsculas de Bembo: com base nas inscrições romanas, os novos desenhos de maiúsculas conta- vam com proporção de 1:10 na espessura do traço em relação à altura. Além disso, as maiúsculas também um pouco menor do que a das ascen- dentes das letras minúsculas, técnica que ainda é usada por tipógrafos da atualidade, para corrigir um efeito óptico na textura da composição. Esse tipo se tornaria a principal referência para os tipógrafos france- ses (Meggs e Purvis, 2009: 132), e as versões digitais da fonte tipográfica Bembo utilizadas hoje partiram desta dessa obra como referência para a execução do resgate histórico (McNeil, 2017: 30). Manuzio produziu, em 1501, livros no formato 7,7 cm x 15,4 cm, uma espécie de livro de bolso, por motivos econômicos: sua intenção era bara- tear o custo para poder aumentar a tiragem e, consequentemente, as ven- das. Para essas publicações Griffo desenvolveu o primeiro tipo itálico [fIgura 18]. Inclinado, veloz e informal, ele foi baseado na caligrafia chan- celeresca italiana e proporcionou uma economia de 50% de espaço em relação ao tipo anterior de Griffo, o Bembo (Meggs e Purvis, 2009: 134). Mas logo se percebeu que os itálicos são menos legíveis que os tipos redondos, e eles passaram a ser usados para destacar trechos do texto. 7 0 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O Figura 13 De Divinis Institutionibus, Lucius Coelius Lactantius, 1465. O primeiro tipo romano, de Konrad Sweynheym e Arnold Pannartz, ainda apresentava forte influência gótica no seu traço. A C E R C A D A T I P O G R A F I A 7 1 F igura 14 De Praeparatione Evangelica, Eusebius Pamphilus, 1470. Os tipos de Jenson influenciaram muitos tipógrafos e, a partir deles, foram desenvolvidos inúmeros resgates históricos digitais. 7 2 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O Figura 15 De Aetna, Pietro Bembo, 1495. Impresso por Aldo Manuzio com tipo gravado por Francesco Griffo. Figuras 16 e 17 (à dir.) Hypnerotomachia Poliphili, Francesco Colonna, 1499. Impresso por Manuzio com tipos de Griffo e xilogravuras de Benedetto Bordone (c. 1455-1530). A terminação em pirâmide invertida era uma característica das publicações de Manuzio. A C E R C A D A T I P O G R A F I A 7 3 7 4 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O Figura 18 Secundi Novo Comensis Epistolarum Libri Decem, C. Plinii, 1508. Impresso na oficina de Aldo Manuzio, o primeiro tipo itálico de Francesco Griffo não tinha maiúsculas, usava-se no lugar um tipo redondo no lugar. A C E R C A D A T I P O G R A F I A 7 5 ::: Por volta da metade do século XVI, a França tomou o lugar da Itália como principal produtor de inovações relevantes para a história e o desenvol- vimento da tipografia (Meggs e Purvis, 2009: 143), mas o que foi feito em Veneza determinou o percurso que a escrita tipográfica e o desenho de tipos seguem até hoje – fato que é notável na sociedade ocidental em qualquer material escrito, de livros à sinalização urbana, de papel às publicações digitais. Fischer (2009: 249) afirma que “a imprensa engran- deceu o alfabeto latino”, e este se tornou “o principal sistema de escrita do mundo no começo do século XXI”. A impressão com tipos móveis mudou a própria linguagem. Até a idade da imprensa, cada escriba que criava um texto – isto é, não copiava, mas produ- zia um texto – escrevia foneticamente. Ele (só raramente acontecia de ser uma mulher) tentava reproduzir uma palavra como falava. (E os copistas escreviam de acordo com normas monásticas ou de chancelarias locais.) Com a imprensa, novos padrões foram estabelecidos. Os tipógrafos em geral imprimiam a língua da região comercial em que o livro seria vendido. Isso era feito para ser enten- dido pelo maior número de clientes potenciais – ou seja, para aumentar o lucro (Fischer, 2009: 248). Com a produção de letras sendo feita a partir de um molde, de uma matriz, a imprensa congelou a forma da escrita, que foi padronizada pelos primeiros editores e tipógrafos no intuito de atender a demandas comer- ciais, o que acabou por criar uma homogeneização linguística e cultu- ral. Fischer (2009: 249) afirma que “a palavra impressa nivelou dialetos para criar um padrão de língua falada e escrita nacional”, e que isso “foi a sentença de morte para centenas de dialetos regionais particularmente 7 6 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O nos anos 1800 e 1900 – primeiramente marginalizados pela imprensa, depois extintos pelo advento do rádio, filmes e televisão”. Por outro lado, enquanto a palavra escrita ficou fixada, a falada continuou se modifi- cando de maneira orgânica, sobretudo nas classes mais pobres, o que favoreceu a diglossia. A palavra vernacular avança com maior rapidez e muito mais livremente do que a palavra culta, que se movimenta lenta- mente, devido a fatores como tradição, estética, devoção, controle social e alfabetismo limitado (Fischer, 2009: 259). Smeijers (2015: 43) observa que, na tipografia, a influência dos intelec- tuais italianos ligados ao Renascimento foi marcante. Por volta de 1500 os tipos começaram a ser vistos como algo separado da escrita, e é no trabalho dos humanistas que se nota a tomada de consciência da forma das letras e sua disposição na página. Eles eram usuários da imprensa e, com desejo de emular o que acreditavam ser a antiguidade clássica, opta- ram erroneamente por usar, como modelo medieval, a escrita carolín- gia [fIguras 19 e 20] (Smeijers, 2015: 43). Do ponto de vista da visualidade, Smeijers (2015: 60) afirma que foram os primeiros puncionistas que “defi- niram as formas finais e visíveis do desenho de tipos: formas que foram passadas a nós e que muitas vezes permaneceram essencialmente inal- teradas”. Pode-se dizer que o desenho de tipos para impressão nasce na Itália Renascentista. Nas palavras de Fischer (2009: 249), “o crescente uso deste alfabeto pela imprensa nos últimos 550 anos teria sido o maior fator para que o alfabeto latino se tornasse o principal sistema de escrita do mundo no começo do século XXI”. Dois fatores poderiam explicar esse fenômeno. Primeiramente, o de que o alfabeto latino é eminentemente adaptável para empréstimos a idiomas diversos (Fischer, 2009: 250): o colonizador europeu disseminou sua cultura pelos lugares que dominou e, com isso, A C E R C A D A T I P O G R A F I A 7 7 F igura 19 Colofão de um dos livros de Aldo Manuzio, que usa o tipo de Griffo. “Mesmo sem saber o título do livro de onde foi retirado, nós sabemos que deve se tratar de um texto humanista”. Figura 20 Os humanistas adotaram a minúscula carolíngia (esquerda), e a adaptaram para a impressão tipográfica (direita). “Mas alguém consegue escrever essas letras?”, pergunta Smeijers. 7 8 T I P O G R A F I A , I M A G E M E E X P R E S S Ã O A impressão com tipos móveis mudou a própria linguagem Steven R. Fischer (2009: 248) sua linguagem escrita foi usada para fortalecimento político, fazendo pre- valecer seu controle sobre os dominados; e em segundo, é o fato de que a durabilidade de uma tipografia é dada por sua legibilidade (Bringhurst, 2005: 23), e a legibilidade é dada pela semelhança. No texto A Doutrina das Semelhanças, Walter Benjamin (1994: 108) trata da importância do “semelhante” para a compreensão das coisas que nos são ocultas, afirmando que, para o homem, “talvez não haja nenhuma de suas funções superiores que não seja decisivamente codeterminada pela faculdade mimética”. Seres humanos leem por semelhança, fazendo relações e analogias a partir do repertório e das referências que são cons- truídas com a experiência e o aprendizado. O professor e tipógrafo holandês Gerard Unger (2016: 8) afirma que pro- vavelmente não visualizamos as letras separadamente quando lemos um texto, ainda que, para ler, seja preciso reconhecer as letras; esse processo é um conjunto de conhecimentos familiares usados inconscientemente. “Tudo o que aprendemos, tudo o que sabemos e, consequentemente, A C E R C A D A T I P O G R A F I A 7 9 conseguimos fazer, fica armazenado em nosso cérebro como traços de memórias ou engramas. Engramas são ligações entre neurônios criadas pelo aprendizado, que podem ser ativadas por estímulos sensoriais ou pensamentos. Eles nos fornecem informações, emoções e impulsos para ações e, por associação, estabelecem novos contatos com outros engra- mas