UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUISTA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS JULIO CESAR CAETANO COSTA REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA POESIA ERÓTICA ROMANA: POLÍTICA E SEXUALIDADE EM CATULO (I A.C.) FRANCA 2023 JULIO CESAR CAETANO COSTA REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA POESIA ERÓTICA ROMANA: POLÍTICA E SEXUALIDADE EM CATULO (I A.C.) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História e Cultura. Sob a supervisão da Prof.ª Dr.ª Margarida Maria de Carvalho (Departamento de História e Pós- graduação em História da UNESP/Franca). FRANCA 2023 C837r Costa, Julio Cesar Caetano Representações de gênero na poesia erótica romana: política e sexualidade em Catulo (I a.C.) / Julio Cesar Caetano Costa. -- Franca, 2023 132 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientadora: Margarida Maria de Carvalho 1. História do Império Romano. 2. Catulo. 3. política. 4. sexualidade. 5. gênero. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. JULIO CESAR CAETANO COSTA REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA POESIA ERÓTICA ROMANA: POLÍTICA E SEXUALIDADE EM CATULO (I A.C.) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História e Cultura. BANCA EXAMINADORA Presidente: _________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Margarida Maria de Carvalho (UNESP/Franca) 1ª Examinadora: _____________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Nathalia Monseff Junqueira (UFMS/Pantanal – Pós-doutoranda UNESP/Franca) 2ª Examinadora: _____________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Semíramis Corsi Silva (UFSM/Santa Maria) AGRADECIMENTOS O desenvolvimento desta pesquisa se mostrou um grande desafio intelectual e a sua finalização só foi possível graças ao apoio que recebi no decorrer de toda essa jornada. Em primeiro lugar, agradeço à minha orientadora, a Prof.ª Dr.ª Margarida Maria de Carvalho, por todos os ensinamentos e principalmente pela paciência ao me instruir quanto a temas de pesquisa tão delicados. Sou grato à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Franca) pelo suporte oferecido nos anos que se passaram. Agradeço também aos membros da minha Banca de Qualificação, constituída pela Prof.ª Dr.ª Luciane Munhoz de Omena (UFG/Goiânia) e pela Prof.ª Dr.ª Semíramis Corsi Silva (UFSM/Santa Maria). Sou grato à Prof.ª Dr.ª Nathalia Monseff Junqueira (UFMS/Pantanal – Pós-doutoranda UNESP/Franca), à Prof.ª Dr.ª Natália Frazão José (UNESP/Franca) e à Prof.ª Dr.ª Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (UNESP/Assis) por seu ingresso à nossa Banca de Defesa como titular e suplentes respectivamente. As suas recomendações e comentários foram fundamentais para o desenvolvimento e finalização desta pesquisa. Não poderia deixar de agradecer à querida Larissa que, mais do que uma colega historiadora, tornou-se uma grande amiga que muito me apoiou nessa trajetória. Sem o seu respaldo, a escrita desta Dissertação não seria possível. Aos meus amigos, Rick, Vanessa e Igor, por todo o tempo desprendido ao me ouvirem falar exaustivamente acerca da minha pesquisa e pelas suas contribuições nas nossas longas conversas. Por fim, mas não menos importante, agradeço à minha mãe pela base familiar de que dispus nos últimos anos para efetuar um bom trabalho. A todos vocês, minha gratidão imensurável. RESUMO Esta Dissertação tem por intuito analisar as representações e os discursos sexuais e de gênero presentes nas poesias invectivas de Catulo, poeta que viveu nos anos finais da República Romana no século I a.C. A princípio, voltamo-nos para o contexto socioliterário do poeta e do grupo em que esteve inserido, os poetae neoteroi, a fim de elucidarmos o caráter social e coletivo da experiência poética na Antiguidade Romana. Em seguida, elaboramos um levantamento bibliográfico dos mais recentes estudos sobre as representações sexuais e de gênero na Antiguidade. Dessa forma, demonstramos a variedade de discursos e problematizamos a binariedade e oposição presumida entre masculino e feminino. Desejamos elucidar que as narrativas poéticas encenam e retratam múltiplos discursos sexuais e de gênero. Em seguida, traçamos possibilidades e aproximações entre os discursos e as práticas cotidianas, levando em conta as limitações concernentes a um texto literário. Por fim, miramos os poemas selecionados e discutimos as perspectivas e questões decorrentes da visão catuliana tangentes às práticas por ele encenadas. Nosso repertório teórico engloba os estudos mais recentes ligados à sexualidade, às práticas sexuais e ao gênero. Discutimos as argumentações acadêmicas que presumem uma hegemoneidade dos comportamentos e discursos sexuais na Antiguidade Clássica. Em conclusão, expomos a utilização do vocabulário erótico como ferramenta legítima de crítica social e política. Palavras-chave: História do Império Romano; Catulo; política; sexualidade; gênero. ABSTRACTY This Dissertation aims to analyze the sexual and gender representations and discourses present in the invective poetry of Catullus, a poet who lived in the final years of the Roman Republic in the 1st century BC. At first, we turn to the socioliterary context of the poet and the group in which he was inserted, the poetae neoteroi, in order to elucidate the social and collective character of the poetic experience in Roman Antiquity. Then, we elaborate a bibliographic survey of the most recent studies on sexual and gender representations in Antiquity. In this way, we demonstrate the variety of discourses and problematize the presumed binary opposition between male and female. We wish to elucidate that poetic narratives stage and portray multiple sexual and gender discourses. Then, we outline possibilities and approximations between discourses and everyday practices, taking into account the limitations concerning a literary text. Finally, we look at the selected poems and discuss the perspectives and issues arising from Catullus' vision related to the practices he enacted. Our theoretical repertoire encompasses the most recent studies related to sexuality, sexual practices and gender. We discuss the academic arguments that presume a hegemony of sexual behaviors and discourses in Classical Antiquity. In conclusion, we expose the use of erotic vocabulary as a legitimate tool for social and political criticism. Keywords: History of the Roman Empire; Catullus; Politics; Sexuality; Genre. RESUMEN Esta Disertación tiene como objetivo analizar las representaciones y discursos sexuales y de género presentes en la poesía invectiva de Catulo, poeta que vivió en los años finales de la República romana en el siglo I a.C. En un primer momento, recurrimos al contexto socioliterario del poeta y del grupo en el que se inserta, los poetae neoteroi, para dilucidar el carácter social y colectivo de la experiencia poética en la Antigüedad romana. Luego, elaboramos un levantamiento bibliográfico de los estudios más recientes sobre las representaciones sexuales y de género en la Antigüedad. De esta manera, evidenciamos la variedad de discursos y problematizamos el supuesto binarismo y oposición entre masculino y femenino. Queremos dilucidar que las narrativas poéticas escenifican y retratan múltiples discursos sexuales y de género. Luego, esbozamos posibilidades y aproximaciones entre discursos y prácticas cotidianas, teniendo en cuenta las limitaciones propias de un texto literario. Finalmente, observamos los poemas seleccionados y discutimos las perspectivas y los problemas que surgen de la visión catuliana en relación con las prácticas que promulgó. Nuestro repertorio teórico abarca los estudios más recientes relacionados con la sexualidad, las prácticas sexuales y el género. Discutimos los argumentos académicos que suponen una hegemonía de los comportamientos y discursos sexuales en la Antigüedad Clásica. En conclusión, exponemos el uso del vocabulario erótico como herramienta legítima de crítica social y política. Palabras clave: Historia del Imperio Romano; Catulo; Política; Sexualidad; Género. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 9 CAPÍTULO I – CATULO E OS POETAS NOVOS: CRISE LITERÁRIA E CRISE POLÍTICA NA REPÚBLICA ROMANA TARDIA ..................................................... 13 1. 1. Crise na República: narrativas e impactos literários ............................... 15 1. 2. Poetae Noui: Catulo e as tradições literárias ............................................ 33 1. 3. Estrutura do texto estilo e linguagem poética .......................................... 42 1. 4. Pesquisas e temas em Catulo .................................................................... 44 CAPÍTULO II – SEXO E PODER NA ANTIGUIDADE ROMANA: DISCURSOS SOBRE PRAZER, CORPO E GÊNERO NO SÉCULO I .......................................... 49 2. 1. Corpo e gênero em Roma........................................................................... 49 2. 2. Representações do feminino na Antiguidade Clássica ........................... 55 2. 3. Representações masculinas na Antiguidade: poder, sexo e gênero entre homens ................................................................................................................ 68 CAPÍTULO III – AS INVECTIVAS ERÓTICAS DE CATULO ................................... 76 CAPÍTULO IV – SEXO E OBSCENIDADE EM CATULO: REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E RELAÇÕES DE PODER NA REPÚBLICA ROMANA ......................... 97 4. 1. Imagem do homem ideal: o vir na República Romana ........................... 100 4. 2. Obscenidade e espelho reverso da masculinidade ................................ 108 4. 3. O vir e as mulheres: imagens femininas nas invectivas catulianas ...... 117 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 122 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 124 Documentações textuais .................................................................................. 124 Obras de referência .......................................................................................... 125 Obras gerais ...................................................................................................... 125 9 INTRODUÇÃO Notamos nas documentações referentes à Antiguidade Clássica uma grande variedade de representações sexuais, heterogêneas quanto ao estilo artístico e gosto do autor. Tais retratos vêm sendo discutidos desde o Medievo cristão e passaram por múltiplas abordagens a depender do período histórico e da sociedade que os interpretaram. Parte dessas discussões se preocupou em evidenciar o caráter positivo da sexualidade cristã em detrimento de um passado denominado “pagão”. Em meio a essas obras antigas, chamou-nos a atenção a produção de Catulo, um jovem poeta da região de Verona que viveu em Roma durante os anos finais da República do século I a.C.1 Em seus poemas, encontramos muitos cenários sexuais. Boa parte deles é dedicada aos possíveis amores catulianos e aos prazeres que ele desfrutava com os seus amigos e amantes. No Poema 5, vemos o seu canto direcionado à sua amada Lésbia: Vamos viver, minha Lésbia, e amar, / e aos rumores dos velhos mais severos, / a todos, voz nem vez vamos dar. Sóis / podem morrer ou renascer, mas nós / quando breve morrer nossa luz, / perpétua noite dormiremos, só. / Dá mil beijos, depois outros cem, dá / Mais mil ainda e enfim mais cem – então / Quando beijos beijarmos (aos milhares!) / Vamos perder a conta, confundir / P’ra que infeliz nenhum possa invejar, / Se de tantos souber, tão longos beijos (CATULO, Poema 5). Como este, há uma série de poemas catulianos que exaltam não somente uma amada – há também amantes masculinos, como Juvêncio, mencionado em alguns textos – mas os atos de amor em si. Deparamo-nos com os beijos infindáveis prometidos ao final do excerto acima mencionado e as “nove contínuas trepadas” que Catulo promete a Hipsitila no Poema 32. Peço minha, boa, doce Hipsitila. / Minhas delícias, meus encantos, pede / Que eu vá dormir a sesta junto de ti. / E se pedires cuida disto: que outro / Não introduza entraves na portinha / Nem queiras tu sair por aí fora. / Mas fica em casa e vai te preparando / Para umas nove contínuas trepadas. / E se é que vais chamar-me, chama logo, / Que almoçado, deitado, e satisfeito, / Tanto a túnica eu furo quanto o manto. (CATULO, Poema 32). Mas essas não são as únicas abordagens do autor antigo. De fato, abundam nas suas produções outros contextos e utilidades para o vocabulário sexual. Muitos 1 Ressaltamos que todas as datas mencionadas nesta Dissertação pertencem ao período anterior ao nascimento de Cristo, exceto quando devidamente assinalado. 10 dos seus poemas remetem a invectivas contra os seus adversários. Temos por hipótese que Catulo usa o sexo como um símbolo da sociabilidade política romana, servindo de ferramenta para a crítica política e social direcionada aos seus oponentes. As acusações são variadas. Vibênio rouba nos balneários e o seu filho tem “o cu devorador” no Poema 33. Aurélio e Fúrio são ameaçados em mais de um poema devido às suas críticas ao conteúdo sexual poético catuliano. Para atingir tais homens, ele não poupa palavras que poderiam soar obscenas ou sexualizadas demais. Em inúmeros dos seus textos são atacadas personalidades importantes e conhecidas da História Romana. Relembramos Júlio César, acusado simultaneamente de passividade sexual e corrupção, e o próprio Cícero (106 – 43). Ambos viveram na mesma época que Catulo. Esta Dissertação pretende analisar tais poemas invectivos imbuídos de conteúdo sexual. Com isso, intentamos evidenciar as formas dos discursos sexuais e de gênero presentes nessas obras, bem como a sua possível aplicabilidade social. Noutras palavras, temos por objetivo problematizar as práticas e os discursos sexuais de forma a elencar a sua proximidade quanto às experiências pragmáticas e cotidianas do período elencado. Assim, demonstraremos que o discurso catuliano não estabelece regras sociais indiscutíveis e é plausível que encontremos situações conflitantes. Para tanto, será necessário problematizarmos as imagens que as pesquisas acadêmicas construíram ao redor dele. Devido ao seu conteúdo sexual, o caráter político das suas poesias foi muitas vezes relegado a segundo plano. Os investigadores tentaram reaver nas poesias eróticas, não apenas nas de Catulo, evidências do comportamento sexual dos romanos antigos. Dessarte, criou-se a imagem dos poetas amantes, que passavam mais tempo em suas camas do que discutindo os assuntos tradicionais da República Romana. Além disso, esse estilo poético passou a ser considerado como uma fonte para as possíveis relações mantidas pelos seus autores e como prova de uma teia de vínculos sociais e políticos baseada no sexo. Nesse sentido, sabemos que Catulo adquiriu a sua toga romana aos dezesseis anos e que, desde então, envolveu-se com o ambiente sexual e poético da comunidade romana (DUNN, 2016, p. 37-42). Conforme pesquisadores como Daisy Dunn, as frequentes associações ao ambiente social e político romano oferecem uma imagem, ainda que orquestrada pelo poeta, dos vínculos estabelecidos entre as elites romanas e os estrangeiros. A ligação 11 de Catulo com os seus amantes e as repetidas críticas por ele apresentadas contra importantes figuras republicanas são consideradas testemunhos dos seus posicionamentos políticos. Portanto, são capazes de revelar a sociabilidade em torno das poesias antigas. Independentemente dos seus conteúdos, tal literatura nos apresenta valores comuns à sociedade e é capaz de ressaltar certas atitudes coletivas no que tange aos mais variados temas (DUNN, 2016, p. 47-71). Os argumentos de Dunn se aproximaram daqueles de João Angelo Oliva Neto. O tradutor salientou que a persona poética catuliana é criada para se posicionar sobre assuntos diversos e de interesse da sociedade. O poeta busca cativar os seus leitores com uma leitura estruturada, ordenada para criar o efeito de realidade com a finalidade de produzir reflexão. Por causa dessa organização artística, presente em qualquer obra de arte, seja ela literária ou não, Oliva Neto destacou a necessidade de uma problematização do discurso, que não deve ser visto como um relato fiel da realidade (OLIVA NETO, 1996a, p. 36-38). Isso posto, as observações de Oliva Neto se estenderam para além das simples menções diretas efetuadas por Catulo. Citamos as acusações dirigidas por ele aos seus rivais ou as suas declarações amorosas. Quando o autor antigo escreve, ele imprime a sua visão sobre o amor, um ideal que representa uma parte da sociedade na qual ele se inseria, e não todo o conjunto. Nesse caso, reportamo-nos aos jovens aristocratas, homens em sua maioria. Aqui, reavemos um novo problema que é fundamental para a problematização do discurso sexual. Aquilo que denominamos como discursos de gênero. Optamos pelo uso do plural, pois entrevemos numa mesma documentação – em nosso caso os poemas catulianos – diferentes representações sobre o gênero, pautadas em questões sexuais. O discurso sexual assinala formas plurais de manejo dos corpos e dos comportamentos. Por isso, a análise de tais questões feitas pelo pesquisador acadêmico pode ser definida como uma História da Sexualidade experiencial. Ao nos atentarmos às interações sociais baseadas no sexo como uma experiência, somos capazes de questionar as imposições dos discursos e investigar se outras possibilidades discursivas ou práticas são possíveis. Não se trata de negarmos totalmente o discurso, mas de não o compreendermos enquanto realidade indiscutível. Logo, revelam-se profusas configurações de desejo nas documentações antigas cujos alicerces são regras sociais que se alteram a partir da severidade e da atenção coletiva (FOUCAULT, 1998, p. 5-6). 12 Michel Foucault defendeu que os pilares sobre os quais se fincavam os discursos sexuais na Antiguidade Clássica foram muitos. Consequentemente, ele reforçou que tais obras apresentavam um fragmento da realidade, recortado e formulado mediante os ditames literários e os valores do escritor em questão. Os autores antigos discutiam o sexo sob uma perspectiva de desenvolvimento pessoal. Depois, os cristãos passaram a falar do sexo a partir de uma ótica coletiva. Isso significa que o comportamento sexual se tornou um problema de todos com o crescimento do cristianismo. Embora tivessem alguns pontos em comum, como a dominação masculina, a moral sexual cristã se projetava para todos e as diretrizes eram prenunciadas com o objetivo único da procriação e da obediência às leis divinas. Segundo Foucault, certos aspectos compuseram a construção de um discurso sexual, tal qual o medo da perda da virilidade. Desde então, foram criadas as imagens sexuais impróprias, como a do afeminado e da mulher masculinizada. Construiu-se um esquema de atividades em que os corpos eram direcionados de acordo com o seu gênero a determinados comportamentos sexuais e sociais. Em vista disso, edificaram- se as imagens do homem e da mulher romana ideais (FOUCAULT, 1998 p. 11-19). Outrossim, o discurso sexual esteve intimamente ligado à construção de uma imagem generificada do indivíduo. Para explorar essa ligação mais a fundo, embasamo-nos nas reflexões providas por Joan Wallach Scott. A autora utilizou recortes documentais voltados para as suas perquirições quanto às posições masculinas e femininas ocupadas na Antiguidade Romana e à distância entre os discursos e as práticas sexuais diante de outras áreas sociais tais quais a política e o cotidiano. O trabalho de Scott foi fundamental para compreendermos as interações sexuais romanas como fluidas e não engessadas por um suposto sistema binário de posicionamento sexual e de gênero. Recortes como classe e etnia oferecem ferramentas ao pesquisador a fim de depurar o discurso literário e encontrar indícios ou lampejos da realidade retratada. Assim, veremos que as mulheres e os afeminados ocuparam posições sociais e discursivas heterogêneas na Antiguidade Romana (SCOTT, 1988). Por fim, elencamos a organização desta Dissertação. O primeiro capítulo se trata de uma contextualização histórica de Catulo. Dedicamo-nos a expor algumas características dos últimos anos da República Romana do século I. Também buscamos entender como ele e o grupo de poetas ao qual pertencia se integravam na sociedade romana e enumeramos o caráter político das relações públicas. No 13 segundo capítulo, apresentamos uma breve discussão bibliográfica e teórica acerca dos temas que permeiam esta Dissertação, isto é, o sexo e o gênero na Antiguidade. Dispomos de vários trabalhos recentes de pesquisadores engajados em problematizar antigos pressupostos concernentes às práticas sexuais antigas. Eles questionaram o viés moderno que vilanizou o sexo e as suas possibilidades discursivas ultrapassando a binaridade presumida. Visamos ainda apresentar os avanços acadêmicos que se distanciaram dos discursos promovidos pelas documentações antigas e apresentaram outras abordagens sobre o sexo e o gênero na Antiguidade Clássica, com destaque para o período por nós selecionado. O terceiro capítulo consiste no catálogo de poesias a ser comentado e destrinchado posteriormente. Inserimos uma curta introdução que expôs as motivações das nossas escolhas e dos critérios e métodos usados para a elaboração da nossa análise. Nesse capítulo, problematizamos alguns termos sexuais e a concepção de obscenidade. Por fim, o Capítulo IV foi composto pelo nosso estudo documental sustentado pelo catálogo do Capítulo III. Nele, demonstramos a nossa hipótese com as múltiplas formas com as quais Catulo se apropria do sexo em prol de criticar politicamente os seus adversários e produzir uma reflexão sobre as situações sociais em torno do amor, do sexo e da política. Com isso em mente, damos início aos nossos estudos. CAPÍTULO I – CATULO E OS POETAS NOVOS: CRISE LITERÁRIA E CRISE POLÍTICA NA REPÚBLICA ROMANA TARDIA Antes de prosseguirmos para a análise dos poemas selecionados, é importante contextualizarmos o autor em questão e a sua obra, além de definirmos as referências bibliográficas que dialogam com os nossos objetivos, o nosso tema e a nossa hipótese de pesquisa. Em outras palavras, este capítulo consiste no tratamento documental do texto catuliano. Nesse momento, buscaremos estabelecer os limites temáticos e teórico-metodológicos da nossa abordagem e discorreremos quanto às relações entre a literatura, a política e as práticas sociais do cotidiano romano no período que conhecemos como República Tardia (entre meados do século II e I). Em prol de compreendermos como Catulo se apropria dos valores e das práticas sociais romanas na escrita das suas invectivas, faz-se necessário observarmos como a literatura e a sociedade interagiam entre si no período referido. 14 Tal arco temporal foi dotado de certa excepcionalidade na memória coletiva e acadêmica e configurou os anos de instabilidade da República, protagonizados por Sula (138 – 78), Pompeu (106 – 48), Júlio César (100 – 44), Marco Antônio (83 – 30), Cleópatra (69 – 30) e, por fim, Otávio (63 a.C. – 14 d.C.), o futuro Augusto. Essas tensões políticas foram representadas sob inúmeras facetas, tanto pela produção textual da própria República quanto por aquelas do Principado. O intelectual e o político em Roma estavam intrinsecamente conectados e produziram uma variedade de relações entre os políticos romanos e a produção escrita, haja vista a abundância de políticos que foram escritores. Catulo e os poetas novos pertenceram a esse contexto histórico. Eles se investiram das suas inspirações helênicas e propuseram um rompimento com o status quo literário romano da época em que viveram. A primeira seção deste capítulo discutirá com maior afinco essas questões. Num segundo momento, propomos a discussão de alguns aspectos literários e estilísticos do texto catuliano. Longe de nos estendermos sobre questões filológicas e literárias, pretendemos depurar os recursos literários utilizados pelo poeta. Levaremos em conta o estilo de escrita do autor, a sua linguagem e o vocabulário empregados nas invectivas e os recursos artísticos narrativos que compõem as suas obras. Destacamos o uso do humor e de um vocabulário escatológico e sexual como recursos poéticos de Catulo. Esse item tem a finalidade de expor os problemas e possíveis caminhos para a interpretação dos símbolos apresentados em nossas documentações, sejam eles explícitos ou implícitos, apresentados sob recursos retóricos tais como a ironia, a sátira e a invectiva. Por fim, elaboraremos um levantamento das principais obras que trataram de Catulo e da literatura do século I e destacaremos aquelas que se aproximam do nosso tema de pesquisa. As análises acadêmicas internacionais demonstram um interesse contínuo pelo poeta por nós selecionado e as perspectivas que trabalham com as práticas sexuais e as representações de gênero têm ganhado espaço. Por outro lado, um esforço multidisciplinar proporciona diferentes interpretações e possibilidades teórico-metodológicas dos textos catulianos. Isso posto, este capítulo tem o objetivo de ambientar a nossa análise documental e de mensurar os limites do discurso poético catuliano enquanto representação das relações sociais romanas da República Tardia. A partir dessas reflexões, poderemos situar os limites da exegese de um texto poético como propagador e representante dos valores culturais identificáveis dentro de uma determinada sociedade num arco temporal preestabelecido. 15 1. 1. Crise na República: narrativas e impactos literários Os últimos anos da República Romana foram palco de diversos conflitos políticos internos. Tais eventos originaram discursos sobre a crise política, com acuações e temores diversos. Em geral, os problemas perpassavam medidas consideradas ameaçadoras para a estabilidade do poderio romano e a unidade das instituições republicanas. Andrew Lintott considerou essa crise como uma consequência do estabelecimento e da expansão da influência romana no Mediterrâneo e nos seus arredores. As relações pactuadas por meio da República conectavam política e intelectualmente diversas cidades e regiões. Na maioria dos casos, a diplomacia era preferida e as elites regionais propunham acordos benéficos para ambas as partes. A crescente chegada de estrangeiros em Roma modificou muitas das suas estruturas cívicas e militares. Ademais desses indivíduos, a plebe e os escravos protagonizaram eventos turbulentos devido à insatisfação com a sua posição social. Conforme Lintott, o cenário desses eventos abarcou as experiências dos irmãos Graco (século II) e teve o seu desfecho com a ascensão de Otávio. O acadêmico elencou alguns eventos importantes que se sucederam às tentativas de reforma dos Graco e demonstrou como as relações internas romanas impactavam nos seus conflitos políticos externos. No que tange à crise republicana e a esses acontecimentos, é preciso problematizarmos os discursos da antiguidade. As documentações nos oferecem visões particulares desses eventos e diferentes autores podem apontar causas distintas para tais adversidades (LINTOTT, 2008b, p. 1-4). Gostaríamos de comentar certas situações presentes nos principais discursos dessa época e que sobreviveram até os nossos dias. Ainda que a diplomacia fosse preferida, inúmeros conflitos militares ocorreram sob o intuito de se estabelecer a influência romana. Ao longo do arco temporal mencionado, Roma levou a cabo os seus negócios em diversas regiões: na Ibéria2, na Gália3, na Sicília, no norte da África, na Grécia, na Macedônia e na Ásia4. Após a derrota de Cartago, os romanos focaram na expansão das suas atuações em cidades antes controladas pelos cartaginenses. 2 Atual Península Ibérica. 3 Hoje, corresponde à região central da Europa que compreende a França, os Alpes e parte do território sul e oeste da Alemanha. 4 Hodiernamente conhecida como Oriente Médio. 16 A força militar era usada pontualmente e Roma preferia se estabelecer de forma pacífica. Por conseguinte, muitas das famílias ricas dessa região viram oportunidades para ingressar nos negócios romanos. Os cargos republicanos e a possibilidade de lucro por meio da comercialização com as aristocracias romanas aumentavam o apreço por essa cidadania, status que passou a ser desejado por muitas das cidades conquistadas. Entretanto, tornar-se um cidadão romano não era uma posição regular ou fácil de se conseguir. Havia resistência entre os setores mais conservadores de Roma e algumas cidades recorreram à guerra civil (LINTOTT, 2008c, p. 16-20). As tribulações envolvendo as cidades aliadas de Roma na Península Itálica tiveram origem nas reformas dos irmãos Graco. As tentativas de redistribuição do ager publicus entre os membros da plebe e as novas leis concernentes à posse de terra prejudicaram vários aristocratas estrangeiros e romanos. Durante a década de 120, a cidadania foi oferecida a muitos aliados de Roma fora da Península Itálica, porém, as cidades italianas não gozavam unanimemente desse status. Sabemos que, ao adquirir a cidadania, os habitantes de um estipulado local tinham a sua carga de impostos aliviada e conquistavam a possibilidade de usufruir e participar das instituições romanas. A oferta dessa posição serviria para amenizar os prejuízos da redistribuição de terras. Por sua vez, as elites regionais pretendiam inserir a si mesmas e as suas cidades na extensa e lucrativa teia de relações políticas, econômicas e sociais estabelecidas através das instituições de Roma. Dessa forma, elas se beneficiariam legalmente e seriam elevadas ao mesmo status social dos cidadãos romanos. Por outro lado, como dissemos anteriormente, esse benefício não era facilmente compartilhado pelas plebes regionais. Em sua maioria, as relações políticas e econômicas envolviam apenas as elites aristocráticas. Por isso, as demais elites aliadas de Roma perceberam que era melhor lidar com os romanos de igual para igual, e não como subordinados aos seus interesses (GABBA, 2008, p. 104-105). Evidenciou-se uma polarização política que se tornou central nos discursos relativos à crise republicana: populares contra aristocratas. Cada grupo se apropriou de maneira particular dos valores e das tradições romanas ao direcionar as suas acusações e pleitear as suas exigências. Apesar da crescente receptividade aos estrangeiros, havia resistências e temores. Tanto os plebeus quanto os aristocratas romanos receavam que a chegada massiva das elites regionais resultasse no colapso do sistema republicano. De mais a mais, a plebe urbana de Roma se ressentia das conquistas aliadas e desejava ampliar a sua influência política. A partir de então, 17 surgiram homens e intelectuais na cidade de Roma que se apoderaram dessa contenda para estabelecer as suas carreiras políticas. Dentre as apreensões vividas, encontrava-se uma série de mudanças sociais e institucionais promovidas pelos populares. Por causa da presença dessas novas dinâmicas nas relações romanas, diferentes influências culturais se instalaram em Roma (GABBA, 2008, p. 106-109). Em grande parte, o medo em torno de uma possível subversão da República estava relacionado às experiências militares, econômicas e políticas dos magistrados e generais romanos. Destacamos as circunstâncias à volta de Júlio César, partícipe em múltiplos fatos impactantes da República Romana Tardia, desde a sua aliança com Pompeu e Crasso (114 – 53) – o primeiro triunvirato – até a sua morte nos idos de março de 44. O poeta com o qual trabalhamos fez parte de uma série de membros da sociedade romana envolvidos nas polêmicas e temores gerados pelas ações de César. As atitudes deste personagem promoviam e se beneficiavam das novas dinâmicas no Mediterrâneo. Salientamos que boa parte das mudanças estruturais romanas ocorreram por meio das mãos de generais como Mário (157 – 86), Sula, Pompeu e César (GABBA, 2008, p. 104-128). Portanto, se desejamos captar a forma como se estabeleceram os discursos políticos do período sobre o qual nos debruçamos, precisamos articular as transformações e os debates levantados em torno desses nomes. A aliança entre Pompeu, Crasso e César aconteceu após a supressão da Revolta de Espártaco (73 – 71). Pompeu já havia se destacado no conflito contra Lépido (90 – 13) desde a morte de Sula. As conquistas militares configuravam a principal forma de se obter poder e influência em Roma. Lépido tinha inspirações semelhantes àquelas do ex-ditador Sula, quadro preocupante para o senado, visto que ele se recusou a desmobilizar o seu exército após obter a vitória. No entanto, Lépido não exigiu o cargo de ditador e optou por seguir com as suas tropas para a Península Ibérica. Lá, ele alcançou uma série de vitórias em nome de Roma. Nesse contexto, César ainda era jovem e começava a ganhar notoriedade. Em 75, ele foi capturado por piratas, resgatado e se vingou dos seus raptores. No mesmo período, Pompeu lutava contra Sertório (76/75) e Crasso combatia Espártaco. Considerando- se os êxitos atingidos, os dois últimos desejavam celebrar os seus triunfos em Roma, mas somente Pompeu pôde fazê-lo. Uma vitória contra escravos merecia, no máximo, uma ovação para Crasso (SEAGER, 2008, p. 209-223). 18 Daí em diante, Pompeu e Crasso conquistaram o cargo de cônsul, e compartilharam uma crescente rivalidade. O primeiro era jovem e gozava do prestígio das suas vitórias, todavia, o segundo era um candidato mais velho e apropriado para tal ofício. Não obstante, esses homens não chegaram a se enfrentar por intermédio da violência direta. No esforço de se aproximarem da plebe e de angariar a opinião pública a seu favor, Pompeu e Crasso dedicaram atenção especial às vagas de tribuno desse estrato social. Foi nessa condição que surgiu a alcunha de populares, atribuída a tais magistrados. Ocupar um cargo no tribunato era uma conquista significativa para os menos abastados e impossibilitados de exercer um cargo público. Ordinariamente, era nessa instituição que se ambientavam as contendas entre os interesses aristocráticos e aqueles dos plebeus (SEAGER, 2008, p. 223-228). Os reveses em torno dos populares – também chamados de homens novos – resultaram em revoltas camponesas. Os envolvidos eram sujeitos desprovidos de terra ou que tinham pequenas propriedades, incapazes de competir com as extensas áreas de cultivo dos ricos. Diante desse panorama, o ressentimento contra as aristocracias induziu numerosas contendas cujo objetivo era aliviar os encargos dos pequenos proprietários e garantir benefícios por meio da República. Generais como Pompeu e César se aproveitaram dessas condições para construir a sua reputação entre os plebeus e os mais pobres, afora a conquista de um apoio popular massivo favorável às suas proposições. Em oposição, temos conhecimento de que no ano de 63, quando ocorreu a Conspiração de Catilina, Cícero era cônsul e conseguiu repreender os populares (WISEMAN, 2008, p. 347- 350). Em 59, César forçou a retirada do seu companheiro, Bíbulo (102 – 48), do consulado e ocupou esse cargo na pretensão de efetuar as reformas que os tribunos da plebe anteriores não conseguiram aprovar. Ao lado de Crasso, Pompeu articulou as suas ações para homologar leis do seu interesse, normas estas que envolviam os direitos da plebe e o uso da terra. Esses três personagens firmaram um acordo, o primeiro triunvirato, com a finalidade de unir as suas práticas governamentais na busca de um desígnio em comum. Sem embargo, a aliança não durou muito tempo. Os envolvidos, a despeito da sua popularidade e dos interesses compartilhados, priorizaram as suas carreiras políticas pessoais. Com o tempo, as suas metas se desencontraram e os membros do primeiro triunvirato entraram em conflito. Desde então, César intensificou as suas investidas militares contra os gauleses e as vitórias que se sucederam nesse local elevaram a reputação desse personagem e acirraram 19 as suas disputas com Pompeu. Ao mesmo tempo, as atitudes de ambos desagradaram o senado, porquanto essa instituição não era consultada por eles em relação às diretrizes das campanhas bélicas executadas (GOLDSWORTHY, 2016, p. 264-270). Posteriormente a uma sequência de conquistas, o senado requisitou a presença de César num processo contra a sua conduta. Ele se negou a comparecer e decidiu voltar à Roma acompanhado do seu exército. Esse evento ficou conhecido como a travessia de Rubicão e foi o responsável por marcar César como um alvo dessa instituição naquele momento. Pompeu, que já não se encontrava em bons termos com César, deveria ser o responsável por derrotá-lo. Porém, César aniquilou as forças de Pompeu e este fugiu para o Egito. Ao chegar lá, os ptolomeus decidiram matá-lo e entregar a sua cabeça para César, conduta que aborreceu bastante este general. Com a morte de Pompeu, César se proclamou ditador e submeteu o senado à sua vontade mais uma vez. Todavia, as polêmicas que circundavam o general não acabaram, em especial quando temos em mente o seu encontro no Egito com Cleópatra (GOLDSWORTHY, 2016, p. 290-300). Normalmente, os romanos reagiam de forma exacerbada no que tange aos territórios orientais. Eles viam essas regiões e os seus habitantes com certo desdém e desconfiança. A aliança entre César e Cleópatra provocou um encadeamento de acusações em Roma. Grande parte dos romanos relacionava o comportamento sexual e as relações de gênero características do oriente como propulsores da depravação e corrupção do ditador. Nesse ambiente, condutas consideradas femininas foram associadas à sexualidade exacerbada e a valores sociais escusos. Cleópatra foi apontada diversas vezes como uma corruptora dos valores romanos e a sua presença em Roma era desconcertante para tradicionalistas como Cícero. As acusações desse tipo não se restringiram à vinculação entre a figura de César e a de Cleópatra. As aventuras sexuais do ditador, fossem elas verdadeiras ou não, protagonizaram a construção de um discurso político contra o magistrado (GOLDSWORTHY, 2016). Adrian Goldsworthy (2018) e Victor da Silva Menezes (2018) deram bons exemplos acerca das tensões em torno da imagem de Cleópatra e do oriente. De acordo com o primeiro, existia em Roma uma péssima opinião pública no que concerne a esses territórios, particularmente sobre o Egito ptolemaico. Desde o envolvimento de Júlio César com a rainha egípcia, uma série de supostos escândalos 20 fundamentados na luxúria e em hipotéticas aspirações monárquicas foram denunciados. A questão bélica também se sobressaía, pois César havia ganhado prestígio militar e político com as vitórias por nós mencionadas. Roma já via com maus olhos os reis e uma rainha era considerada pelos conservadores uma séria ameaça à República (GOLDSWORTHY, 2018, p. 27-39). Por outro lado, Menezes utilizou Catulo para comentar a reputação de afeminado de Júlio César. Em adição aos laços mantidos com Cleópatra, o poeta antigo menciona as empreitadas desse personagem na Gália – território próximo do local de nascimento de Catulo – e na Bitínia. Essas campanhas são consideradas por ele como corruptas e é sugerido que, nesse intervalo de tempo, houve um envolvimento sexual entre Mamurra (general de César)5, César e as lideranças locais. Malgrado a alegoria sexual servir como um parâmetro para a corrupção do ditador, alguns boatos ganharam força. Um deles foi a ligação do general romano com o rei da Bitínia, outro líder oriental, o que lhe valeu a alcunha de rainha da Bitínia. Ora, reputamos que o oriente consistia num problema para os romanos desde a Média República, como foi o caso de Jugurta (160 – 104) e Mário (MENEZES, 2018, p. 22). Dessarte, o que era de fato essa crise republicana? Inúmeros foram os conflitos que compuseram esse cenário, mas podemos traçar alguns eventos fundamentais na demarcação de um período de crise republicana que precedeu o Império. Inteiramo- nos de que não havia entre os romanos uma ideia de ruptura com a Res Publica, e sim uma ressignificação desse ideal. Contudo, os escritores da Antiguidade expuseram visões e medos dos mais variados ao se debruçarem sobre um fato, ainda que tivessem um algoz em comum. Rastrear os interesses desses intelectuais inseridos num jogo de poder se mostra mais ou menos efetivo de acordo com a disponibilidade de documentações auxiliares, isto é, da análise das redes de sociabilidades. A título de exemplo, a obra de Cícero é bastante extensa. Porém, proporcionalmente, temos acesso a poucos textos que dialogam com os seus, estejam eles alinhados aos mesmos ideais que os dele ou não. Não obstante, o binômio composto por Catulo e Cícero é a escolha mais frequente dos pesquisadores que se especializam no final da Republica Romana. Essa associação se mostra frutífera por vários motivos. Cícero foi um importante político e orador tradicionalista republicano e é a única referência que temos quando tratamos das alcunhas imputadas ao grupo de 5 Os personagens históricos sem o seu arco temporal explicitado não possuem data de nascimento e morte conhecidas. 21 poetas ao qual Catulo pertencia. Por sua vez, Catulo é o único poeta da sua geração conservado pelo tempo. Esses personagens ocuparam polos opostos nas discussões acerca dos conflitos políticos da República Tardia. Perante o contexto exposto, mencionemos alguns dados biográficos do nosso poeta. Caio Valério Catulo nasceu em Verona, na Gália Cisalpina6. Estima-se que o ano do seu nascimento tenha sido 84/82 e que ele tenha falecido em 54/52, aos 30 anos de idade7. Infelizmente, as informações quanto à vida desse personagem histórico são escassas. Oliva Neto (1996a, p. 16) nos inteirou que o poeta era filho de uma família abastada, o que teria proporcionado a ele oportunidades únicas na obtenção de riquezas na República Romana. O nosso personagem testemunhou grande parte dos importantes eventos descritos acima, incluindo a Conspiração de Catilina. Ele pertenceu a um grupo denominado poetae neoteroi (poetas neotéricos), responsáveis por inserir a cultura latina numa tradição poética helênica, cujo representante fundamental era Calímaco de Cirene (300 – 240). Catulo escreveu em métricas poéticas distintas, como a elegia, a sátira, o hino e o iambo. Conforme Paulo Sérgio Vasconcellos (1991, p. 12-20), o poeta se mudou para Roma sob o intuito de estudar e viver os prazeres da sua juventude. Ao contrário da maioria ambiciosa que pretendia competir pelas altas magistraturas, ele desejava se dedicar à poesia e à literatura. Em 57, viajou para a Bitínia na comitiva de Mêmio. A estadia de Catulo nessa região não foi muito agradável. No Poema 28, dirigindo-se a dois amigos, Verânio e Fábulo, ele comenta a sua má sorte nos negócios. O poeta faz referências ao egoísmo do praetor: “Mêmio, tu, lento e sempre, este teu pau / meteste- me na boca, e eu deitado” (CATULO, Poema 28). Como podemos ver, até mesmo para comentar os próprios infortúnios o poeta se vale do vocabulário obsceno e das representações sexuais. Após esse período, ao regressar à Roma, ele passou por Tróia e visitou o túmulo de um irmão, a quem dedicou o Poema 51. As poesias de Catulo mencionam personagens reais, fossem eles seus amigos e colegas ou seus inimigos. O tom usado na sua obra oscila entre a crítica feroz, o deboche entre colegas e o deleite dos prazeres sexuais. A título de exemplo, temos a 6 Região situada entre os Alpes e o atual norte da Itália. A partir de meados do século II, os romanos demonstraram maior interesse nessa área. Logo, surgiram novas colônias e a presença dos romanos nas cidades desse território se intensificou (GABBA, 2008, p. 108). 7 Vasconcellos ponderou que o poeta tenha vivido entre os anos de 82 – 52. O autor argumentou que os poemas direcionados a César podem remeter a eventos que aconteceram por volta de 53 e 52 (VASCONCELLOS, 1991, p. 12-20). Em contrapartida, Oliva Neto (1996a, p. 15) defendeu a datação de 84 – 54. 22 sua amada Lésbia ou os seus amantes masculinos, tal qual Verânio. Entre esses poemas de cunho sexual, encontramos também as invectivas, que oferecem amplo material para a discussão de práticas sexuais e relações de gênero na Antiguidade Romana. Notamos na leitura das nossas documentações que a obra de Catulo estava atenta às condições políticas de Roma. Por outro ângulo, quando ele nomeia os integrantes da aristocracia romana, demonstra parte da dinâmica social entre esta camada de cidadãos e a literatura. Por encontrarmos diversos personagens reais nos seus textos, supõe-se que Lésbia, a amada cantada em algumas das suas poesias eróticas, refere-se à Clódia. Ela era irmã de Públio Clódio Pulcro (93 – 52), um político romano de valores populares. No entanto, Clódia também foi esposa de Quinto Metelo Celer (103 – 59), que ocupou o cargo de pretor em 63 e era um apoiador e amigo de Cícero. Metelo esteve presente na defesa de Cícero no caso de Caio Rabirio, julgado por envolvimento no ataque que causou a morte de Lúcio Apuleio Saturnino8, no ano 100. Em fevereiro de 62, Metelo ainda liderou o segundo exército contra a Catilina e permaneceu o restante do ano como propretor na Gália Cisalpina. Nesse ínterim, a sua esposa, Clódia, permaneceu em Roma. Possivelmente, foi nesse período que ela e Catulo teriam se encontrado na cidade de Verona. O relacionamento entre eles perdurou até 59 (COLLINS, 1952, p. 12-13). Depois da morte de Metelo no ano de 59 e do afastamento de Catulo da cidade de Roma, Célio Rufo (82 – 48)9 se envolveu com Clódia. Ela o acusou de envenenar Metelo e a vitória de Rufo foi conquistada pela defesa de Cícero. Enquanto isso, Catulo partiu para a Bitínia em busca de fortuna. O seu Poema 83 faz referências a uma Lésbia habilidosa em enganar o seu marido ao fingir que não gostava do nosso personagem quando, na verdade, eles eram amantes: Lésbia, na frente do marido, fala mal / de mim, prazer enorme ao imbecil. / Sua besta, nada vês! Se, esquecida de mim, / calasse, ela estaria sã, mas berra, / xinga, pois não só lembra, mas – o que mais forte – / tem ódio, isto é, já arde; logo, fala (CATULO, Poema 83). 8 Questor em 104 e três vezes tribuno da plebe (103, 100 e 99 – a última nomeação não foi exercida devido ao seu assassinato). Esse político se alinhava aos considerados populares dentro do espectro político desenvolvido nos anos finais da República, que consistia, em termos gerais, na oposição entre populares e conservadores. 9 Um dos associados de Catilina durante a conspiração. Quando o conluio foi derrubado, ele sobreviveu por pouco. Construiu uma amizade com Cícero e retomou a sua carreira política (COLLINS, 1952, p. 13). 23 Mostra-se problemático tomarmos as referências da poesia de Catulo como fatos, entretanto, algumas aproximações são inevitáveis. É preciso lembrarmos que, no geral, temos meras conjecturas no que tange à relação entre Catulo e Clódia. Poucos são os dados da vida do poeta que sobreviveram aos nossos dias, além daqueles contidos nos seus próprios textos. Apuleio é quem nos dá a pista de que a amante do poeta se chamava Clódia. Todavia, existem pelo menos três personagens históricas com esse nome e que viveram na época de Catulo (VASCONCELLOS, 1991, p. 19). Embora seja difícil de se estabelecer um consenso entre os pesquisadores, há quem defenda que Clódia, esposa de Metelo, e Lésbia são a mesma pessoa, mesmo que essas representações sejam programadas e estilizadas. Ademais da problemática ao redor de Lésbia e Clódia, deparamo-nos com a presença de outros personagens reais nas poesias de Catulo. Vejamos dois exemplos. O primeiro diz respeito a Júlio César e o seu general, Mamurra: Quem pode ver, quem pode suportar / (só um veado, um viciado em jogo!) / Mamurra ter o que a Gália Cornada / tinha antes e a última Britânia? / Rômulo chupador, tu vês e aguentas? / E ele agora, superior, super-rico, / vai perambular pelas camas todas / qual os branquinhos pombos, qual Adônis? / Rômulo chupador, tu vês e aguentas? / És bem veado, viciado em jogo! / Em nome disto foi, comandante único, / que no ocidente andaste à ilha última / p’ra que este teu Pinto todo fodido / comesse ali duzentos ou trezentos? / É outra a liberdade dos ladrões? / Não fodeu tudo? Não consumiu tudo? / Dilapidou primeiro os bens do pai, / depois despojos Pônticos, e após, / Ibéricos, bem sabe o Tejo aurífero. / Temem-no as Gálias, temem-no as Britânias. / Esse infeliz por que ajudais? Que sabe mais que devorar grandes patrimônios? / Em nome disto, em Roma ó mais potentes, / ó sogro, ó genro, destruístes tudo? (CATULO, Poema 29). Nesse poema, constatamos um pouco da agressividade presente na crítica política de Catulo e do uso que ele faz do sexo como analogia para a devassidão moral dos indivíduos implicados. O texto foi escrito depois das campanhas de César na Gália Transalpina e das suas campanhas no sul da ilha Britânica. Esses empreendimentos promoveram uma série de conflitos nas regiões mencionadas. Em vista disso, há uma profusão de obras desse gênero nas quais o nosso personagem critica as atitudes de César e dos seus aliados, como as de número 41, 43, 54, 57, 93, 94, 105, 114 e 115, em adição àquela mencionada anteriormente. A impetuosidade romana e as constantes alianças de caráter duvidoso estabelecidas por César e pelos seus subordinados são comparadas a atos sexuais de forma explícita. Essa 24 abordagem, que parece um grande manifesto político da parte de Catulo, configura um padrão nos seus poemas críticos e de conteúdo sexual explícito. Ele também dedica algumas das suas produções a Calvo (14, 50, 53 e 96), pessoa por quem demonstra grande proximidade e amizade. Em outros momentos, o tom de Catulo é mais pessoal e bem-humorado, conforme o Poema 16: Meu pau no cu, na boca, eu vou meter-vos, / Aurélio bicha e Fúrio chupador, / que por meus versos breves, delicados, / me julgastes não ter nenhum pudor. / A um poeta pio convém ser casto / ele mesmo, aos seus versos não há lei. / Estes só têm sabor e graça quando / são delicados, sem nenhum pudor, / e quando incitam o que excite não / digo os meninos, mas esses peludos / que jogo de cintura já não têm. / E vós, que muitos beijos (aos milhares!) / já lestes, me julgais não ser viril? / Meu pau no cu, na boca, eu vou meter-vos (CATULO, Poema 16). Na passagem supracitada, o poeta rebate as críticas de dois colegas que denunciavam aquilo considerado por eles como vulgaridade nos versos catulianos num tom que aparenta ser bastante debochado. Para tanto, além de se desculpar dizendo que não cabe ao poeta ser casto nos versos, e sim nos costumes, ele denuncia a hipocrisia dos colegas. Catulo menciona que, não obstante o ato de o criticarem, os sujeitos em questão eram leitores assíduos da sua obra e a menção de certos termos latinos como cinade e pathice – traduzidos como veado e bicha – designam que eles possivelmente se deliciavam com atividades sexuais não muito convencionais. Os vocábulos mencionados designam um papel de passividade sexual, o que equivalia a um sentimento de vergonha para os homens romanos, tópico a ser problematizado no Capítulo II desta Dissertação. Sarah Culpepper Stroup explorou as relações entre o desenvolvimento literário e a vida pública romana. No seu livro, ela pontuou que o ambiente político de Roma produzia numerosas alianças e rivalidades complexas. No nosso caso, tanto Cícero como Catulo se opunham a César, porém, eles não tinham a mesma perspectiva moral relativa à literatura. Enquanto Catulo se recusava a dedicar uma vida aos assuntos públicos, Cícero se orgulhava de ser um político e orador notável e os seus textos apresentam um tom moralizador e vinculado aos valores aristocráticos romanos. Vale notar que os dois não eram nativos de Roma, mas provinham de famílias abastadas pertencentes a cidades sob a influência romana. Stroup apresentou um estudo sobre o vocábulo ottium que, na República Romana Tardia, referia-se a um período de afastamento das atividades públicas com a intenção de se 25 dedicar à escrita. No entanto, não se tratava de qualquer produção, e sim de uma reflexão concernente a assuntos elevados. Do ponto de vista de Cícero, essa prática deveria excluir os temas ligados aos amores e às trivialidades cotidianas. A autora demonstrou que a palavra tem origem grega e passou a deter um sentido distinto na época republicana. Em oposição à definição romana, a ociosidade para os gregos não correspondia fundamentalmente a uma obrigação intelectual. Ela ainda poderia designar o descanso físico e o afastamento temporário dos ofícios públicos em geral (STROUP, 2010, p. 37-40). Sob a ótica da República Romana, o ottium passou a designar o tempo pessoal investido no aprimoramento intelectual em contraposição ao negotium, período no qual o indivíduo desempenhava um cargo público. Havia a possibilidade de que o ottium fosse qualificado como inhonestum, isto é, que o sujeito tivesse se ausentado de maneira imprópria do serviço público. Catulo representa aqueles que se recusavam a escrever acerca de assuntos elevados – característicos do ottium – e que, ao mesmo tempo, não desejavam percorrer o cursus honorum. No que tange à vida pública e literária, Stroup buscou demonstrar como essas relações e concepções ordenavam toda uma sociedade, denominada por ela como sociedade de patronos ou de aristocratas romanos. A autora alegou que, a princípio, a literatura era produzida e consumida por um círculo social muito específico e que é necessário nos atentarmos para as especificidades desse contexto (STROUP, 2010, p. 41-42). A abordagem de Stroup (2010) se alinha àquela de Stephen Harrison (2005b). Ao comentar os discursos tangentes à crise republicana, este pontuou que cerca de setenta e cinco porcento dos textos desse arco temporal pertencem a Cícero. Outra parte significativa de tais produções foi redigida por Catulo. Por esse motivo, tanto Stroup quanto Harrison apontaram que é muito fácil nos prendermos aos ideais ciceronianos relativos à República Romana Tardia. Sem embargo, é possível depurarmos as intenções do orador ao confrontá-lo com outros escritores tal qual Catulo. Stroup e Harrison demonstraram como Cícero e Catulo se inseriram nos ambientes político e literário romanos e como essas duas esferas interagiram ininterruptamente. O mundo dos patronos definido por Stroup se desenrolou no caos da crise republicana e as alianças organizadas produziram algumas das múltiplas visões do período que chegaram aos nossos dias. Isso posto, consideramos que Cícero é uma figura indispensável na construção de um panorama dessa crise, mas não devemos nos ater apenas à sua perspectiva. Daí optarmos pela sua associação 26 com Catulo. Este estudo pretende localizar as interconexões entre os discursos desses personagens e as possibilidades de validá-los em contraste com as práticas cotidianas da época em que viveram. Harrison (2005b, p. 38) enfatizou que, no decorrer desse período, a literatura romana se diversificou e a influência helênica recebida por ela se intensificou. No ano de 70, a chegada de Partênio de Niceia foi interpretada como uma porta de entrada para os impactos calimaquianos em Catulo. Outrossim, tal qual Stroup (2010), Harrison constatou como as dinâmicas sociais daquele instante estipularam os parâmetros de uma literatura tradicional e bem-vista e daquelas linhas que foram rejeitadas. Cícero e Catulo beberam de fontes helênicas, todavia, as estruturas e as finalidades das suas obras foram díspares. Em meio a esse turbilhão, encontramos uma pluralidade de discursos quanto à temática da crise republicana, cada qual tipificado segundo o seu redator. Apesar de Stroup ter exposto a possibilidade de que Cícero e Catulo tivessem mantido contato um com o outro e até trocado palavras, é difícil acreditarmos na existência de qualquer simpatia entre ambos. A imagem que temos do orador é a de um cidadão muito engajado nas questões públicas em oposição a um poeta que se dedicou a cantar sobre os amores e os seus prazeres. Não obstante, realçamos que Catulo não se exime do seu compromisso político, ele apenas o faz sob parâmetros e perspectivas diferentes daquelas de Cícero. No Poema 10 vemos uma situação interessante. Catulo se encontra no fórum, ocioso, quando é levado por Varo a comentar um dos amores do seu amigo: “Varo, para que eu visse seus amores, / de meu ócio no Fórum me levou. / Puta!, assim pareceu-me de repente / mas não sem elegância ou sem encanto” (CATULO, Poema 10). Stroup viu no poema citado acima uma representação da posição de Catulo quanto ao ócio. O poeta é removido de um espaço onde não tem voz ou grande importância – a política, representada pelo fórum – e é conduzido a tecer comentários sobre os amores de Varo. O Poema 10 segue com um repertório de ofensas explícitas. A autora julgou que esse texto mostra a posição de Catulo, quer dizer, alguém que rejeita o fórum e, em simultâneo, abraça espaços mais íntimos e pessoais. No caso de Cícero, a palavra ottium aparece cento e oito vezes nos seus discursos. Na maioria das ocasiões em que isso ocorre, o orador se refere a um momento de paz entre as instituições políticas e a comunidade romana. O vocábulo é correlacionado a termos como pax, concordia, silentium e tranquilitas. Cícero também designa os seus 27 momentos pessoais de ottium como honestum pela sua dedicação pretensamente exclusiva aos interesses da República. Sob esse prisma, lograríamos aferir o forte compromisso moral e cívico para com a República que o orador desejava transparecer. As referências a um ottium estritamente literário se manifestam a partir dos discursos de Cícero lavrados após o seu consulado. Stroup destacou dois deles, a saber: Pro Anchio e Pro Plancio. Neles, o republicano define que o ottium é um meio formal de se dedicar à escrita, mas, como já pontuamos, a uma escrita específica, alinhada aos seus valores na defesa das tradições e instituições romanas (STROUP, 2010, p. 45). Logo, atinamos que a oposição entre Catulo e Cícero deve ser alinhada aos conceitos de público e privado, coletivo e individual. O Poema 68b contém referências ao ottium quando o poeta se queixa de que essa prática é ruim para a sua saúde, uma vez que ela o atormenta com as recordações dos seus amores: “O ócio, Catulo, te faz tanto mal. / No ócio tu exultas, tu vibras demais. / O ócio já reis e já ricas cidades / antes perdeu” (CATULO, Poema 51, 13-16). Sem embargo, existem alguns problemas nessa afirmação do poeta. Catulo manifesta igualmente a sua insatisfação com os políticos e as suas respectivas atitudes dentro das instituições políticas. Portanto, não nos parece apropriado defini-lo como um opositor de uma escrita que se interessa pela política e um defensor de uma produção inteiramente pessoal. Por outro lado, concordamos com Stroup (2010) ao considerar que a poesia de Catulo se ambientava em situações da vida privada e cotidiana, e não das relações políticas. Catulo manifesta as suas queixas pessoais, alinhadas aos interesses políticos por ele defendidos. Mesmo que não tenha pretendido seguir uma carreira exclusivamente dedicada à exegese política, esses aspectos não estão ausentes na sua poesia. Eles aparecem através dos comentários triviais do poeta no que concerne às práticas do cotidiano. Dessa forma, depreendemos que as dinâmicas sociais complexas existentes entre os romanos se pautavam não só nas agendas políticas que eles favoreciam, mas também nos status literário e civil aos quais se alinhavam. As invectivas de Cícero são diferentes das de Catulo, posto que o orador se interessa pela defesa das instituições políticas e da literatura tradicionais. Em compensação, o tom moralista catuliano se manifesta através do cotidiano e das suas práticas. Se Cícero não se detém em questões de cunho sexual, Catulo transforma o sexo numa ferramenta de 28 ataque pessoal e político. Discutiremos a relação entre a moral política e o sexo no Capítulo II desta Dissertação. Retornemos à questão do ottium. Durante essa prática, os escritores eram patrocinados por amigos, geralmente outros políticos simpáticos à sua escrita. No caso de Catulo, temos Cornélio Nepos (100 – 25). Além de patrono da arte catuliana, é provável que ele também tenha sido um poeta. Para mais, um mesmo patrono poderia custear vários escritores de diferentes vertentes. Assim, vislumbramos que o julgamento de Cícero acerca da escrita é pautado em valores republicanos que exacerbavam a importância das instituições políticas e da moral promovida pelas camadas dirigentes da sociedade romana (STROUP, 2010). A seguir, discutiremos a natureza dos discursos sobre a crise republicana. Rodrigo Santos Monteiro Oliveira fez interessantes considerações relativas à produção de discursos que tratam desse momento turbulento da República. Utilizando-se de bases filosóficas, o foco do historiador foi analisar a reprodução de textos acerca da crise política através de Lucrécio (99 – 55) e Manílio. O autor ressaltou que, nessa época, a literatura considerada tradicional se voltava para fins políticos, educativos ou históricos. Servindo-se dos estudiosos e eruditos helênicos, a produção literária ideal deveria promover os valores romanos. Mais do que isso, as variáveis associações do período, fossem elas intelectuais ou políticas, mostram-nos uma sociedade complexa e que tinha uma narrativa própria no que corresponde à sua história e aos seus processos cívicos. Consequentemente, é importante frisarmos que o fim da Res Publica não era algo comentado pelas documentações romanas (OLIVEIRA, 2021, p. 38). Na fase posterior à República, o Principado de Augusto se ocupou de criar uma narrativa que não obliterasse a Res Publica, e sim que a ressignificasse. Dessarte, escritores como Tito Lívio (59 a.C. – 17 d.C.) foram responsáveis por atribuir ao Augusto a responsabilidade de restituir a ordem republicana, conciliando todos os membros da comunidade cidadã. A intenção dessa propaganda era se apegar às tradições romanas, a fim de validar o poder e as novas formas institucionais do Principado. As obras literárias operaram no sentido de construir diferentes argumentos a favor dos patronos que a elas estivessem associados (OLIVEIRA, 2021, p. 39-42). Porém, como demonstrado por Stroup, na República Romana Tardia ocorreu uma maior flutuabilidade entre as posições de patronus e cliens. O privilégio do ottium provido por um patrono poderia ser conquistado com maior facilidade no período 29 catuliano do que na época do Império (STROUP, 2010). Assim sendo, entrevemos que é possível pensarmos numa comunidade na qual os compromissos oficiais e as práticas privadas eram alternadas de acordo com a política romana. Caso o sujeito estivesse desempenhando um cargo público (negotium), não poderia se dedicar à produção literária. Para tanto, era necessário ou ter muito dinheiro – o que permitiria até mesmo o ato de se tornar o patronus de outros cliens – ou recorrer a um amigo que o patrocinasse (OLIVEIRA, 2021, p. 39-42). Não nos concentraremos demasiadamente em Cícero. Embora reconheçamos a sua importância, o nosso objetivo é pontuarmos a sua colocação dentro de um contexto literário que nos ajudará a entender Catulo e as suas invectivas eróticas, dirigidas a políticos e possíveis cidadãos notáveis da República. Não faz parte das nossas intenções discutir os pilares do pensamento conservador romano, e sim reconhecê-lo como uma contraparte dos valores literários advogados por Catulo. Essa identificação nos permitirá inferir as possibilidades quanto à verossimilhança dos discursos literários com a realidade da República Romana Tardia e os fatos que eles descrevem. Paul Veyne (2013) validou esse aspecto na sua definição de um demi monde presente nas narrativas elegíacas de Catulo – e dos elegíacos posteriores – que ambienta, de forma artística e representativa, o cotidiano. Contudo, Veyne configurou esse demi monde como algo restrito, ou melhor, uma vida trivial da qual os romanos não se orgulhavam. Então, parece-nos que ele concorda com a posição postulada por autores conservadores como Cícero. Isso posto, salientamos que o caráter social dos textos romanos foi levado em consideração em todas as referências bibliográficas que tivemos acesso. Ao refletirmos acerca da relação entre as esferas literária, social e política dos fins da República, reportamo-nos aos questionamentos sobre o sexo e o gênero. Entrevemos nos discursos referentes à crise republicana uma preocupação recorrente com a depravação moral e a invasão de valores orientais em Roma. Essas ojerizas são manifestadas com destaque quando os autores da Antiguidade citam as relações políticas entre César e Marco Antônio, em especial quando associados à Cleópatra. Pompeu e Sula também aparecem nas narrativas. Todos esses personagens protagonizaram conflitos bélicos, alianças e reformas estruturais nas instituições romanas e as suas ações foram julgadas conforme o temperamento de cada escritor. Cícero se apegou às tradições romanas para denunciar a ganância e devassidão de César. O tom moralista do orador relaciona o comportamento sexual e a afeminação 30 promovida pelo Oriente como ameaças à ordem republicana. De fato, o que transparece nas nossas referências bibliográficas é a descrição de instituições inseridas numa cultura masculinizada, que rejeitava a subversão dos valores tradicionais romanos. Pior do que isso, tal qual constatamos nas atitudes de César e Marco Antônio ao lado de Cleópatra mencionas por tradicionalistas como Cícero, é a presença de uma mulher governante que perturba os alicerces políticos e morais de Roma. As tensões por nós relatadas evidenciavam valores de gênero que operavam na estruturação e legitimação do poder e das instituições romanas. A tradição postulava comportamentos específicos tanto para homens quanto para mulheres e criava categorias excludentes para aqueles que não se adequassem a esse sistema. Exemplo disso era o uso dos termos impudicus, cinadeus e pathice, apresentados previamente. Entretanto, acentuamos que Catulo dedica certos poemas a mulheres em termos semelhantes àqueles direcionados a homens. Tendo isso em vista, consideramos apropriado inserirmos a participação feminina na construção desse ambiente literário. Além de se revelarem como alvo das invectivas catulianas, as mulheres surgem como possíveis escritoras. Portanto, elas estariam presentes num ambiente que, segundo Stroup (2010), deveria ser predominantemente masculino. Logo, é palpável a distância entre o discurso e a realidade cotidiana, práxis que não foi uma exclusividade dos romanos. Ainda hoje, deparamo-nos com falas conservadoras no que tange ao sexo, mesmo após a revolução sexual dos anos de 1970. A plausibilidade das mulheres romanas terem exercido papéis como escritoras não significa que os homens as conjecturavam para encargos políticos, no sentido de um negotium ou uma magistratura. Afinal, a simbologia dos espaços que elas ocupavam era construída a partir da interação entre o masculino e o feminino. Como pesquisadores de gênero, interessamo-nos por desconstruir essas manifestações e procurarmos estabelecer os seus limites efetivos dentro das práticas sociais republicanas. Noutras palavras, o discurso moralista não era hegemônico, por mais que o pretendesse ser. Ele atravessava os cidadãos da República Romana Tardia de formas distintas e influía nas suas posições políticas e literárias em proporções divergentes. Como vimos, Catulo se opôs a César, mas não era adepto das tradições como Cícero. Ambos acusam César de perversão, ganância e de ser afeminado. Contudo, se Catulo se relacionava com homens e mulheres casualmente, então, qual 31 era o parâmetro da imoralidade para o nosso poeta? Cícero considera os modos de Catulo e do grupo ao qual ele pertencia como impróprios para Roma, como vetores de uma degeneração própria da juventude. Sob esse prisma, quais eram as bases do conservadorismo moral que permitiram essa ambivalência entre o orador e Catulo? Essas são as aproximações possíveis e os distanciamentos necessários quando pensamos em Catulo e Cícero como representantes da literatura referente à crise republicana. Em síntese, podemos dizer que Catulo tem intensões artísticas e políticas e que Cícero se dedica puramente às segundas. Daniele Sberna defendeu que o poeta antigo tem uma atitude libertária no que concerne à literatura. A influência de Calímaco o teria levado a ambicionar uma liberdade estética. Portanto, o nosso personagem intenta debater temas considerados por ele oportunos, utilizando-se dos estilos e das métricas desenvolvidos na cultura helênica. A nossa pesquisa compreende que esses discursos, qualificados como conservadores e vanguardistas, são apropriados dentro de esferas heterogêneas, tanto pelos autores antigos quanto pelas suas vivências cotidianas. Esses discursos não representam a realidade, mas a transformam de acordo com os valores de cada escritor. Se entendemos que esses sujeitos compartilhavam uma mesma cultura e modos, embora não concordassem em tudo, podemos descortinar elementos gerais integrantes dessa sociedade (SBERNA, 2017, p. 7-15). As exposições de Lintott (2008b) e Oliveira (2021) sustentam o nosso posicionamento quanto ao período denominado como crise republicana. Esses autores definiram o início de um arco temporal de transformações e instabilidades nas instituições romanas, localizado em meados do século II, devido às reformas dos Graco e da guerra contra Jugurta. Lintott e Oliveira conceituaram que, após a ascensão de Mário, o exército e o senado sofreram modificações com a chegada dos novos homens. Estes eram aristocratas e novos ricos em processo de ascensão no cursus honorum, agora aberto à plebe por meio de cargos tal qual o de tribuno da plebe. De origem humilde, Mário foi o primeiro plebeu a chegar ao consulado. Essa situação abriu precedentes, como já dissemos anteriormente, para as empreitadas de César, Pompeu e Crasso sob a finalidade de conquistar benefícios políticos através do apelo popular, sobretudo quando o senado se opunha a eles. As alterações promovidas por Mário no exército e no cursus honorum marcaram transformações profundas no corpus social e militar da República, como o aumento do poder dos generais com as suas conquistas militares e o apelo ao público. Essa situação 32 perturbou as ordens tradicionais romanas e implantou incertezas. No fim do primeiro triunvirato, Crasso já estava morto e César rompeu com Pompeu. Então, em 49, iniciou-se uma guerra civil (OLIVEIRA, 2021, p. 70-72). Com a sua vitória, posto que Pompeu se refugiou no Egito, mas foi morto por Ptolomeu, César se tornou ditador perpétuo e continuou a fazer prevalecer a sua vontade sobre àquela do senado. Ele usou as instituições republicanas e o cursus honorum como uma ferramenta de estruturação do seu poder político, possibilitando- lhe a conquista de riquezas e de um exército com força expressiva. As suas ações foram duramente criticadas por Cícero, mesmo que indiretamente, afinal, o orador nunca ofendeu o ditador direta ou explicitamente em vida. Enquanto isso, Otávio e Marco Antônio cresceram apadrinhados por César. Temendo a exponencial carreira militar do ditador, uma conspiração de senadores e aristocratas planejou a sua morte. Enquanto ele se preparava para outra investida militar, foi convocado pelo senado na data de 15 de março de 44 e só saiu de lá morto (UNGERN-STERNBERG, 2014, p. 91-95). Com os idos de março de 44, Otávio e Marco Antônio herdaram a responsabilidade de vingar a morte de Júlio César. O segundo mandou executar Cícero e outros responsáveis pelo ataque fatídico. O discurso dele e de Otávio se voltou para a memória de César e a restauração da ordem, perturbada pelos assassinos do ditador. Nesse momento, formou-se o segundo triunvirato entre Otávio, Marco Antônio e Lépido. Cleópatra decidiu se aproximar de Marco Antônio, pois não desejava renunciar ao controle do Egito. Esses dois personagens protagonizam uma das mais contadas e referenciadas histórias de amor e política do mundo ocidental. A associação feita por eles do amor com o poder é bastante evidenciada pelas documentações romanas, em especial naquelas do Principado. Essas obras destacam que Antônio se perdeu nos encantos de Cleópatra e se afeminara (OLIVEIRA, 2021, p. 38). As conexões com o Egito são muito interessantes para a nossa análise de Catulo. Como veremos adiante, ele se inspirava num poeta alexandrino. Enxergamos nisso uma possibilidade de justificativa da rejeição poética catuliana por conservadores como Cícero. Ainda é possível constatarmos que, na República Romana Tardia, houve a construção de um discurso antialexandrino ou antioriente. Dentro desse cenário, as vinculações de Catulo a essa cultura eram desaprovadas. O contato com tais referências poderia promover o mesmo efeito que teve em César e 33 Antônio: a afeminação, a ganância, as pretensões monárquicas, em suma, toda uma ordem contrária às representações republicanas romanas. A seguir, comentaremos certos aspectos que levaram à rejeição dos poetas neotéricos por outros literatos romanos. Um dos motivos seria a relação entre o ottium e a literatura política da República. Em vista disso, Cícero será a nossa contraparte de Catulo. Devido ao seu apego tradicionalista, o orador foi estabelecido pela tradição acadêmica como um dos grandes intelectuais da política romana. A sua preocupação com as instituições é demonstrada em vários dos seus escritos como, por exemplo, em A República. Descortinaremos que, apesar da oposição literária entre Cícero e Catulo, o ambiente político romano permitia nuances que talvez seriam confusas para as concepções contemporâneas. Os dois se opuseram a César num dado momento das suas vidas, mas eles não compartilhavam de um mesmo interesse literário intimamente ligado à vida política romana. Não temos o interesse de nos debruçarmos de maneira detalhada sobre as concepções políticas de Cícero a esse respeito, e sim pontuarmos que aquelas concernentes ao ottium eram distintas a depender do autor ao qual nos referenciamos. 1. 2. Poetae Noui: Catulo e as tradições literárias Os poetas novos escreviam num estilo helenístico e foram inspirados por outros autores do mesmo gênero que viveram quase três séculos antes deles. Entre os mais referenciados estão Euforião e Calímaco, ambos alexandrinos. Devido a isso, algumas alcunhas foram imputadas ao grupo de forma pejorativa, sendo elas: cantores de Euforião (cantoris euforionis), poetas novos (poetae noui) e poetas neotéricos (poetae neoteroi). Conforme afirmou Oliva Neto, a principal referência a esses termos se encontra em Cícero, mais especificamente em três textos dele: As Tusculanas, O Orador e em uma das suas cartas dirigidas a Ático. Nos seus escritos, Cícero demonstra desprezo por esses poetas e pelas suas ambições literárias e evidencia o caráter temerário diante dessa juventude e da novidade das suas referências literárias (OLIVA NETO, 1996a, p. 15). Entretanto, as alcunhas supracitadas acarretam alguns problemas. Elas eram pejorativas e implicavam em questões complexas na identificação dos poetas que pertenciam e esse grupo, visto que eles não intitulavam a si mesmos com tais termos. Ainda assim, somos capazes de investigar aspectos peculiares que os conectavam. 34 Oliva Neto nos transmitiu uma lista de nomes de poetas neotéricos contemporâneos a Catulo10 e relatou que todos eram originários da região da Gália Cisalpina. Alguns deles aparecem nos textos catulianos e protagonizam diferentes situações. Há aqueles poemas em que o autor saúda os seus amigos e demonstra a sua afetividade. Noutros, nos quais a invectiva se faz presente, ele abusa de um vocabulário escatológico e cheio de referências sexuais (OLIVA NETO, 1996a, p. 16). Outras vítimas das suas invectivas foram Júlio César, Mamurra, Pompeu, Cina (? – 84), o próprio Cícero e até mesmo o mítico fundador de Roma, Rômulo (771 – 717). Portanto, é notável o esforço de Catulo em conferir uma verossimilhança à sua narrativa poética, na qual ele cria a ilusão de uma arte sincera e espontânea, em diálogo com as questões políticas e culturais cotidianas da República Romana Tardia. Boa parte das suas invectivas se direcionam a homens. Não obstante, encontramos outras dedicadas a mulheres, apresentadas como amantes ou rivais do poeta. Entre elas, temos Lésbia, Aufilena, Ameana e algumas que não são nomeadas, definidas como amantes ou prostitutas que se envolvem com os personagens presentes nos textos. Mais adiante, voltaremos a discutir os recursos literários empregados por Catulo. Definir o grupo dos poetas neotéricos tem se mostrado um desafio para os pesquisadores. Em proveito de encontrarem os elementos que tornariam possível categorizá-los sob uma vertente literária, vários aspectos são levados em conta. O texto de Richard Oliver Allen Marcus Lyne (2007) nos forneceu um panorama dessas principais considerações. Segundo ele, os textos de Cícero são um ponto de partida para os questionamentos acerca de uma escola neotérica. Em sua análise, Lyne defendeu que as referências do orador agem como paródias do estilo literário dos poetas novos. Além disso, as alcunhas por ele usadas revelam o desprezo de Cícero por esses personagens. John H. Collins (1952) comentou que por muito tempo se pensou na possibilidade de Cícero e Catulo terem sido amigos, ou simpáticos um ao outro, principalmente devido à oposição em comum a César. Cícero não menciona o poeta diretamente, ao menos não nas obras que sobreviveram até os nossos dias, porém, Catulo dedica um poema a ele, no qual comenta uma possível invectiva do orador direcionada ao poeta: 10 Licínio Calvo (82 – 46), Hélvio Cina (85 – 44), Varrão Atacino, Quinto Cornifício (? – 42) e sua irmã, Cornifícia, Valério Catão, Cornélio Nepos, Fúrio Bibáculo (103 – ?) e Tícidas. 35 Ó tu mais loquaz dos filhos de Rômulo, / de quantos são e quantos foram, Cícero, / e de quantos hão de ser no futuro: / um muito obrigado te diz Catulo / o pior dentre todos os poetas / tanto pior de todos os poetas / quanto tu o melhor dos oradores (CATULO, Poema 49). A oposição entre Cícero e Catulo é o artifício humorístico desse poema usado para zombar da reputação do primeiro. Estabelece-se uma relação de proporcionalidade inversa entre os termos poetae e patronus – traduzidos como poeta e patrono – e a qualidade de cada um no papel assumido. A relação entre o advocatus, defensor das tradições, e o poeta vanguardista se mostra incompatível. O que possuímos, principalmente nas cartas de Cícero, são críticas gerais ao grupo dos poetas ao qual Catulo pertencia. Collins (1952, p. 4) transmitiu que Licínio Calvo, orador rival de Cícero e aliado de César, conseguiu aproximar Catulo do ditador. Nosso poeta dedica alguns dos seus textos a Calvo (14, 50, 53 e 96) onde demonstra grande proximidade e amizade. A relação com Cícero, todavia, não revela muitos aspectos do grupo dos poetas neotéricos, embora seja viável elencarmos alguns traços da sua escrita, já que a sua obra configura uma paródia. Discutiremos isso mais adiante, quando listarmos os aspectos estruturais do texto do orador. O teor negativo dos termos empregados pelo tradicionalista estava vinculado à juventude dos integrantes do grupo, à vulgaridade dos seus versos – que se valiam de vocábulos nunca escritos ou proferidos por tradicionalistas como Cícero – e ao desprezo dos poetas neotéricos pelas tradições literárias. Cícero e Catulo defendiam status quo diferentes em relação à literatura. O primeiro intercedia por uma tradição vinculada a escritores como Ênio (239 – 169). O segundo rompia com esses valores e propagava um movimento literário originário de Alexandria. Os neotéricos advogavam um discurso de estilo ático, coloquial, flexível e simples. Cícero favoreceu o estilo asiático, artificial, retórico e ornado, com sentenças cuidadosamente metradas. Atinamos que a crise literária acompanhou a crise política romana e a oposição de Cícero não impediu que os neotéricos se estabelecessem ou que César interrompesse as suas empreitadas (VASCONCELLOS,1991, p. 17-18). Nesse ambiente crítico e de alianças inconstantes, a obra catuliana e dos poetas novos tinha ambições vanguardistas que se opunham às tradições literárias republicanas. Outrossim, é difícil precisarmos exatamente o que se concebia por um poeta neotérico nos tempos de Catulo. Os comentários de Cícero nos dão apenas pistas quanto a essa concepção, pois são paródias que imitam a estrutura dos seus textos. Além disso, da geração do nosso poeta, temos acesso meramente ao trabalho 36 de Catulo. Já os seus sucessores produziram obras bem mais documentadas, como aquelas de Tibulo (54 – 19), Propércio (43 – 17) e Ovídio (43 a.C. – 18 d.C.). Nos tempos de Catulo, uma nova realidade intelectual se expandia pelo Mediterrâneo. A cultura helênica, difundida por meio da paideía, tornava-se uma espécie de cosmopolitismo antigo. A ascensão da escrita e do livro aliados à expansão da influência romana sobre o globo helenizado inseriram Roma e o latim nesse mundo (OLIVA NETO, 1996a, p. 18-22). Retornemos ao texto de Lyne na busca pela associação desses fenômenos ao desenvolvimento da literatura neotérica. O autor alegou que, malgrado Cícero não fornecer material suficiente para compreendermos com clareza a escola poética em questão, é exequível reavermos informações no próprio texto catuliano. Lyne também se preocupou em rastrear as origens do termo neoteroi. De acordo com ele, o vocábulo aparece em comentadores gregos e latinos e era usado para definir poéticas distintas da épica homérica. Essa palavra denotava uma novidade em estilos e temas poéticos até então não contemplados pela cultura helênica. De mais a mais, o termo é escrito em grego por Cícero, o que reforça a referência helênica. Mas, como dissemos previamente, os poetas gregos e romanos que compunham esse grupo nunca se referiram a si mesmos como neoteroi. Em seguida, Lyne arguiu que a carta a Ático supracitada foi escrita no ano de 50, data na qual Catulo provavelmente já estava morto. Para esse autor, identificar similaridades entre o texto ciceroniano e o catuliano – no caso, o Poema 64 – valida um estilo compartilhado por outros poetas, posto que Cícero se referia a um coletivo, e não apenas a Catulo (LYNE, 2007, p. 111). A tradição estabeleceu que neoteroi, em geral, refere-se a poetas novos, jovens e opositores dos estilos literários longos e muito ornamentados como a épica e os anais. No Poema 36 encontramos um exemplo disso. O nosso poeta chama os Anais de Volúsio de papéis cagados. Catulo destina determinados textos ao comentário das obras de outros poetas, rivais e amigos. A partir disso, é possível destacarmos certos integrantes do grupo dos poetas novos. Enquanto poemas como o 35, 50, 53 e 95 elogiam os seus colegas, outros são hostis e reforçam as suas posições frente às concepções literárias da República Romana Tardia. Os poemas das pessoas referenciadas por Catulo não sobreviveram ao tempo. Por conseguinte, torna-se difícil elaborarmos um quadro específico de regras e orientações literárias que conectavam os poetas novos. O que sabemos é que esse grupo pretendia executar uma arte simplificada, erudita e 37 vinculada a poetas do passado. A temática amorosa e sexual e o vocabulário escatológico parecem configurar alguns aspectos em comum. O humor erótico também é apontado como uma dessas características. O uso de estilos métricos mais curtos e diretos, como os iambos polímeros e a elegia, pode ser identificado como um atributo em comum (LYNE, 2007, p. 116-120). Por fim, Lyne comentou um elemento chave na poesia catuliana e que foi preservado pelos poetas eróticos posteriores: a poesia de Lésbia. Até então, não havia na literatura romana um estilo poético dedicado a narrativas relativas a amantes. De fato, o amor e o erotismo estavam presentes em passagens precisas, no entanto, não existia uma poesia estritamente voltada para esses amores ou que desse forma e personalidade às amantes. Outrossim, o autor não aludiu aos poemas homoeróticos e glosou acerca da variedade de temas em Catulo, condição que torna difícil categorizar o poeta como um elegíaco amoroso. O nosso personagem escreveu em variadas métricas, exemplificadas pelos seus hexâmetros iâmbicos, além de ter redigido sobre outros relacionamentos que não aquele com Lésbia (LYNE, 2007, p. 130-135). Nesse ponto, trazemos os argumentos de David Wray (2011) para solucionarmos tal problema. O acadêmico considerou que a heterogeneidade presente em Catulo foi uma fonte de inspiração para poetas elegíacos posteriores, como Tibulo, Propércio e Ovídio. Entretanto, Wray pontuou que esses três poetas não consideravam o nosso personagem um elegíaco, ainda que o referenciassem. Em suas palavras: As suas práticas poéticas [...] apontam para um aprendizado que inclui um estudo diligente não apenas das longas elegias, mas tudo o que Catulo escreveu. Os gêneros da poesia latina, inter-relacionados, eram sempre abertos a influências de fora de seus limites genéricos permeáveis, e todas as coleções de elegias sobreviventes contém momentos, por exemplo, onde eles se apegam às tradições do epigrama romano (WRAY, 2011, p. 26). Ou seja, os poetas elegíacos ulteriores a Catulo viam nele não uma, e sim múltiplas referências literárias a serem estudadas e reproduzidas. A partir disso, desenvolveu-se a poesia amorosa romana, cujo espelho foram as narrativas referentes à Lésbia. Mas, para Wray, Lésbia tem ares de um personagem mais próximo do real, mesmo que escondida por seu pseudônimo. No caso das amadas de Propércio e Tibulo, o artifício literário que as constrói é mais focado numa narrativa 38 fictícia e não há uma unidade pretendida. Constatamos que os poemas catulianos passam por efusões líricas baseadas nas emoções do poeta (WRAY, 2011, p. 66). Então, se Catulo não é o pai da elegia amorosa, a quem se reportariam os poetas elegíacos? Roy K. Gibson (2012) pretendeu responder a essa pergunta nomeando para tal função um poeta do qual não dispomos de nada mais que nove linhas incompletas, isto é, Cornélio Galo. Igualmente, Gibson reconheceu que Cornélio se inspirou em Catulo para começar a produzir as suas elegias sobre Lícoris, a sua amada. Conforme o autor, Cornélio agiria como a principal ligação entre Catulo e Propércio. Esses poetas teriam compartilhado de um mesmo interesse em termos de modelos helenísticos, mas adaptaram a sua arte de modo ímpar. Do nosso ponto de vista, a afirmação de Gibson (2012) não nos parece bem sustentada, porquanto o próprio tenha evidenciado a falta de documentações que sirvam de aporte para a sua teoria, relegando as poesias de Lésbia a um caráter distinto das elegias posteriores. Consideramos que a sua visão, que tira Catulo do protagonismo do movimento, não corresponde às inúmeras evidências da influência catuliana e da reprodução dos seus estilos poéticos naqueles que o sucederam. Isso posto, a abordagem de Gibson não deixa de ser fundamental para determinarmos que Catulo foi um escritor elegíaco, bem como um devoto das práticas atribuídas aos poetas neotéricos. Ao lado das considerações de Wray (2011), reconhecemos que o nosso poeta e os membros da sua geração foram os responsáveis por inserir em Roma uma pluralidade de temas e tendências poéticas que, com o passar do tempo, metamorfosearam-se em estilos próprios. Por exemplo, captamos em nossa leitura que Catulo usa textos mais curtos e diretos a fim de ofender. Simultaneamente, quando se trata dos seus amigos e amantes, ele é mais engenhoso. Os poetas neotéricos trabalharam esses conceitos cada um à sua moda. No caso catuliano, atentar-nos-emos às imprecações, por nós denominadas como invectivas. O autor antigo dá demasiada atenção à forma, ao estilo e à temática, algo preterido pelos textos tradicionais que tinham um objetivo único e específico, quer dizer, a propaganda e a manutenção do regime republicano (LYNE, 2007, p. 113). Por fim, trataremos da principal inspiração poética dos neotéricos, quer dizer, Calímaco de Cirene. Esse poeta alexandrino foi o mestre, e não o criador de um estilo literário. A grafia dos seus poemas se baseava no uso dos dísticos elegíacos e dos iambos, tal qual Catulo. Veyne asseverou como o nosso personagem e os poetas 39 neotéricos das gerações posteriores foram influenciados por Calímaco. A imitação dos estilos dele estaria longe de ser considerada como plágio. Era por meio dessa prática que os poetas exibiam a sua erudição e a sua capacidade de emular um estilo literário antigo em moldes latinos. Essa inspiração fica evidente em três poemas de Catulo, os de número 65, 66 e 116. Consoante a Veyne, algumas características fundamentais da escrita calimaquiana são a simplicidade e o maneirismo, presentes de acordo com o gosto de cada poeta. Em geral, os textos de Calímaco não têm um interlocutor ou eu lírico bem definido. Tudo é construído de forma ligeira pela união de termos e palavras, o que resulta na sensação de que o poeta oscila entre diferentes pontos de vista na poesia. Nas palavras de Veyne, um texto calimaquiano é ilegível, no sentido de não ser possível definirmos um objetivo único e coeso para os poemas, nem mesmo um interlocutor bem estipulado. Às vezes, Calímaco não define um alvo para os seus textos e o interlocutor é modificado na mesma poesia ou simplesmente não é percebido. Ora o poeta se dirige aos seus/suas amantes e amigos ou inimigos, ora se perde em comentários mitológicos rebuscados de erudição e técnica. Por último, muitas das suas obras são curtas e objetivas (VEYNE, 2013, p. 31-58). Richard Hunter fez considerações interessantes no que concerne à influência de Calímaco na elegia romana. Ele apontou que esse poeta era conhecido e comentado por Quintiliano, para quem os modos elegíacos eram pouco sérios. Hunter também demonstrou como os Aitia de Calímaco serviram de modelo para a escrita de várias elegias romanas, desde as eróticas até as bucólicas de Virgílio. Ele definiu a presença calimaquiana na vida dos romanos nos seguintes termos: “Apesar da Aitia não ser sobre “as experiências emocionais dos poetas” da maneira como a elegia romana se propunha, teve como seu centro uma voz poética com claras e definidas características e obsessões”. No próximo subtópico deste capítulo, discutiremos visões como a de Quintiliano, que separavam uma literatura séria de outra trivial, inseridas nas tensões literárias e políticas na República Romana do século I (HUNTER, 2012, p. 159). Regressemos a Calímaco. A escrita de imprecações era outra marca desse poeta. Ele repudiava os longos poemas cíclicos, como a épica, e cultivou versos ligeiros em formato iâmbico ou elegíaco. As suas invectivas tinham como objetivo a sátira de valores morais e literários dos seus contemporâneos. Com esses dados em mente, assinalamos o principal elo entre Calímaco e Catulo, isto é, a ofensa contra certas concepções sociais coletivas. Catulo, ao contrário de Calímaco, ataca os 40 valores e costumes literários tradicionalistas ao mesmo tempo em que investe as suas imprecações contra os políticos romanos. Veremos como esse conflito literário se conectava diretamente à política em contextos diferentes daqueles vividos pelo poeta alexandrino. Afinal, ambos vivenciaram regimes políticos e cívicos distintos. Roma era uma República enquanto Alexandria estava sob o comando único da dinastia ptolemaica, oriunda de Alexandre, o Grande (OLIVA NETO, 1996a, p. 31-35). Kathleen McCarthy arrazoou que a performance poética do eu lírico catuliano estava atrelada à invectiva. Era por meio dela que o poeta expressava as suas opiniões e conferia características singulares ao seu eu lírico e aos personagens envolvidos. Para ela, ao utilizar hipérboles na intenção de atiçar os seus alvos, esses poemas atrelam práticas sociais, tal qual o flagitatio – poemas 12, 16, 25 e 42 comentados pela autora – e a linguagem. Porém, McCarthy não analisou a presença dos vocábulos escatológicos como parte da construção desse ambiente. Do nosso ponto de vista, eles equivalem a uma ferramenta poética que contribui na aproximação do eu lírico com o seu público-alvo (McCARTHY, 2019, p. 113-133). Enfim, gostaríamos de indicar o trabalho de Daniele Sberna (2017), intitulado Callimachus and Catullus in a Quest for Liberty. Nessa obra, a autora sublinhou que, dentro dos seus devidos contextos e momentos históricos, Calímaco e Catulo demonstraram insatisfação com alguns aspectos da cultura escrita de seu tempo. Ambos se propuseram a redigir poesias refinadas que abandonassem os antigos métodos e técnicas estabelecidos pela literatura clássica. Esse movimento foi fortemente influenciado pela expansão do helenismo no Mediterrâneo a partir do século III. Além de Calímaco, a poetisa Safo de Lesbos também já foi associada a Catulo. Cecilia Piantanida (2021) dedicou uma obra completa às tradições literárias helenistas e à sua influência na cultura do século XXI. Para ela, as temáticas e os estilos de escrita de Safo e Catulo foram vitais na estruturação de uma literatura erótica e/ou romântica no mundo ocidental. Malgrado o seu estudo tenha se limitado às produções puramente literárias, julgamos que essa influência se estende à música popular ocidental, ao menos no que diz respeito às letras das músicas, principalmente naquelas em que as relações sexuais e de gênero são representadas. Retomaremos essa discussão no Capítulo IV desta Dissertação. A despeito da variedade de métricas e estilos utilizados pelos poetas neotéricos, não foram eles que os criaram. Pelo contrário, a sua originalidade se encontra no horizonte das narrativas ao terem tratado de qualquer assunto. Ainda 41 assim, dadas configurações se tornaram habituais. O jambo e o epigrama eram usados nas invectivas, a elegia para as melancolias amorosas e bucólicas, o hino para os temas mitológicos e religiosos. Muitas vezes, esses elementos coexistiam numa mesma poesia. A presença da mitologia grega era recorrente. Nesses casos, os mitos ilustravam situações desenvolvidas na narrativa. Esse recurso servia como forma de expor a erudição dos poetas e o seu domínio da cultura helênica. Uma pastoral em traje de passeio foi como Veyne definiu a elegíaca dos neotéricos (VEYNE, 2013, p. 183-208). A tradição iniciada por Catulo e pela sua geração vigorou por todo o período imperial e, mesmo com o seu declínio no Medievo, ela ressurgiu e inspirou a poética renascentista. Concebemos que diferentes contextos históricos e literários se cruzavam em Roma no momento do surgimento dessa poética. Havia uma multiplicidade de discursos e conflitos manifestados no ambiente intelectual da República Romana. Esses atos demonstravam a forte conexão da poética com a política e a presença da sexualidade como um regulador moral de grande importância. Logo, pretendemos investigar se havia um tratamento particular da sexualidade por parte dos poetas em questão. Perguntamo-nos em que medida Catulo e os neotéricos podem ser considerados como revolucionários e subversivos. Temos consciência de que a opinião sobre o discurso depende do olhar do pesquisador e da seleção documental e, assim como explanou Julia Gaisser (2007a, p. 2), é preferível olharmos para Catulo de todas as formas possíveis. Dessarte, o acúmulo de interpretações e análises quanto à obra do poeta enriquecerá cada vez mais o debate acerca da sexualidade antiga e das relações de poder ambientadas pelo gênero. Isso posto, gostaríamos de postular uma definição viável para os poetas neotéricos, de forma que possamos conectar elementos que os uniam e estabelecer os limites dessas definições. Portanto, consideramos aqueles que integraram a geração de Catulo e aquelas de épocas posteriores que se adequavam aos seguintes elementos: a inspiração em Calímaco e outros poetas elegíacos helenos, como Safo e Euforião; o uso de um vocabulário popular e escatológico distante do ideal promovido pela tradição romana; a redação de invectivas; o apreço por textos curtos e ligeiros; a rejeição ao estilo dos anais e dos textos épicos; a temática amorosa. A confluência desses elementos pode ser identificada em todos os poetas tidos como neotéricos, de Catulo a Ovídio. Outro elemento que tencionamos levar em conta são 42 os conflitos políticos com o Egito alexandrino, fenômeno não trabalhado com afinco na bibliografia