45 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. Imaginário, Cultura Global e Violência Escolar Joyce Mary Adam de Paula e Silva Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista – Campus de Rio Claro, Rio Claro, SP, Brasil joyce@rc.unesp.br Leila Maria Ferreira Salles Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista – Campus de Rio Claro, Rio Claro, SP, Brasil leila@rc.unesp.br Educação: teoria e prática, Rio Claro, SP, Brasil - eISSN: 1981-8106 Está licenciada sob Licença Creative Commons Resumo Neste artigo discutimos a questão da violência escolar à luz do referencial teórico do Imaginário. A temática do imaginário a respeito da instituição escolar é analisada diante de algumas características da sociedade atual apontadas por diferentes autores tais como Sennett (2006), Taylor (2006) e Baumann (2005). São apresentados alguns dados da pesquisa realizada com professores de duas escolas do interior do Estado de São Paulo, dando-se destaque para o imaginário sobre a escola e as relações que se estabelecem nesse contexto. Esta pesquisa teve como metodologia de coleta de dados a realização de uma dinâmica de grupo. Concluímos chamando a atenção para a importância de os estudos sobre violência escolar buscarem elucidar os diferentes aspectos institucionais focando não somente os alunos e suas famílias, mas as interações no interior da escola. Uma análise institucional que enfoque os aspectos micro e macrosocial pode contribuir para que a escola consiga enfrentar os problemas em uma perspectiva mais realista, buscando alternativas no próprio grupo para explicitar barreiras que são interpostas pelo imaginário institucional. Palavras-chave: Imaginário. Cultura global. Violência escolar. http://lattes.cnpq.br/3567581285174163 http://lattes.cnpq.br/7864828747687778 http://creativecommons.org/licenses/by/2.5/br/ 46 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. Imaginary, Global Culture, and School Violence Abstract In this paper we reflect on the issue of school violence under the light of the theoretical framework of Imaginary. The theme imaginary with regard to the school as institution is analyzed dealing with some characteristics of the society pointed out by different authors, such as Sennett (2006), Taylor (2006), and Baumann (2005). Some of the data from the research carried out with teachers of two schools of the interior of the state of Sao Paulo are presented, highlighting the imaginary on the school and the relations established in this context. This research adopted as its methodology for data collection a group dynamics. In conclusion, we stress the importance that studies on school violence try to clarify the different institutional aspects focusing not only the students and their families, but the interactions within the school. An institutional analysis focusing the micro and macrosocial aspects may contribute in order to lead the school to begin coping with the problems in a more realistic perspective, looking for alternatives in the group itself to evidence barriers raised by the institutional imaginary. Key words: Imaginary. Global culture. School violence. Introdução Este trabalho apresenta uma proposta de estudo de instituições escolares, com metodologia qualitativa, com um referencial teórico baseado nos estudos sobre o imaginário. O estudo em questão refere-se a uma pesquisa desenvolvida em duas escolas no interior do estado de São Paulo. Neste artigo discutimos os dados da pesquisa realizada com os professores das escolas dando destaque para o imaginário sobre a escola e a relação com os alunos nesse contexto. Esta pesquisa teve como metodologia de coleta de dados dinâmicas de grupo e questionários com questões abertas e a análise dos mesmos foi realizada tendo como metodologia a análise de conteúdo (BARDIN, 2000). 47 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. Sintetizando o panorama em que se desenvolve o sistema educacional brasileiro destaca-se a grande desigualdade social, a expansão da educação básica, assim como a desvalorização dos profissionais da educação, aspectos fundamentais quando se discute a violência de jovens na sociedade e na instituição escolar. A expansão do ensino, sem o devido aporte e valorização dos profissionais que dela fazem parte, as precárias condições de vida das famílias dos alunos que frequentam as escolas publicas, o crescimento do crime organizado e o não reconhecimento da escola como um instituição integradora do indivíduo na sociedade teve consequências para as escolas e para as relações estabelecidas em seu interior. Uma das consequências principais que apontamos está a questão da violência escolar, que tem se apresentando sob diferentes formas, tanto física como simbólica, e que é objeto de nosso estudo. Algumas questões que têm sido apontadas como estopins da violência escolar por diferentes autores tais como as diferenças culturais, os preconceitos, a desqualificação da escola como instituição integradora do individuo na sociedade, a escola como referencial de valores éticos e morais, segundo nossa compreensão devem ser estudadas à luz dos processos subjetivos que constroem os discursos pedagógicos e as práticas nas instituições educativas. Consideramos que o imaginário sobre a escola constitui-se em um desses elementos subjetivos que constroem a realidade cotidiana. O imaginário que acompanha a instituição escolar reflete o intrincado contexto da mundialização e de uma cultura própria que caracteriza as relações pessoais e institucionais que em nossa avaliação são elementos importantes na análise dos conflitos e violências que se estabelecem no cotidiano da mesma. A partir de tais considerações, é que o estudo comparado aqui apresentado tem como proposta, o desvelamento do imaginário presente nas escolas estudadas à luz das regulações sociais, políticas e culturais mundializadas. Imaginário da escola e violência escolar A contribuição dos estudos sobre imaginário 48 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. O referencial de análise fornecido pela sociologia do imaginário tem uma contribuição fundamental como referencial metodológico no estudo da instituição escolar por considerarmos que o conceito de imaginário vai além das construções intelectuais que podem ser elaboradas pelos sujeitos, manifestando-se concretamente nas imagens, histórias e lendas criadas por estes. Dessa forma o imaginário está presente tanto na estrutura e nas ações cotidianas como nos valores, princípios e cultura de cada grupo social. Assim, consideramos como Legros et al. (2007, p. 95) que: Tudo que se apresenta a nós, no mundo sócio histórico, está indissociavelmente tecido no simbólico. Mesmo que as instituições não se reduzam a esse fenômeno, elas não podem existir sem ele, cada uma delas constituindo sua própria rede simbólica de segundo grau; a justiça, a escola, a empresa, o hospital se caracterizam por operações simbólicas permanentes. Taylor (2006) diferencia imaginário social e teoria social da seguinte maneira: em primeiro lugar por considerar o imaginário como sendo a forma como as pessoas “imaginam” seu entorno social apresentando-o por meio da cultura; em segundo lugar, por considerar que a teoria é limitada a uma pequena minoria, enquanto que o imaginário é uma concepção coletiva de amplos grupos de pessoas senão da sociedade em seu conjunto. Por último considera que o imaginário social é o que faz possíveis as práticas comuns e as legitimações das mesmas, dando sentido a tais ações enquanto grupo. O imaginário social na concepção de Taylor não é apenas ideologia, mas define conceitos e práticas que caracterizam os diferentes contextos históricos econômicos e sociais. Destaca que a modernidade tanto em sua origem como na atualidade, com suas múltiplas modernidades, deve se compreendida a partir dos diferentes imaginários sociais construídos. Outro autor que trabalha com o conceito de imaginário e sua importância para a compreensão das instituições é Castoriadis (1986, p. 159) fala sobre o significado do imaginário na constituição das instituições, juntando imaginário e funcionalidade como elementos complementares nesse processo: A instituição é uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde combinam em proporções e em relações variáveis um componente funcional e um componente imaginário. 49 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. Aponta a presença do imaginário nas ideias expressas por Marx quando este se refere ao fetiche da mercadoria como elemento importante para o funcionamento efetivo da economia capitalista, apesar de considerar que para Marx este imaginário tem um papel limitado. Nessa mesma linha de raciocínio cita Lukacs que afirma que na economia capitalista as leis só podem realizar-se utilizando as ilusões dos indivíduos (CASTORIADIS, 1986. Tais afirmações vêm no sentido de reafirmar o papel do imaginário na constituição das estruturas da sociedade, a partir da ação humana. Quando afirmamos, no caso da instituição que o imaginário só representa um papel porque há problemas “reais” que os homens não conseguem resolver, esquecemos pois, por um lado, que os homens só chegam precisamente a resolver esses problemas reais, na medida em que se apresentam, porque são capazes do imaginário; e por outro lado, que esses problemas só podem ser problemas, só se constituem como estes problemas que tal época ou tal sociedade se propõem resolver, em função de uma imaginária central da época ou da sociedade considerada (CASTORIADIS, 1986 p. 162). Tais palavras de Castoriadis (1986 chamam a atenção para o poder do imaginário tanto em relação aos problemas reais criados em cada época como para a resolução dos mesmos a partir do imaginário. Assim, o imaginário não é só constituinte do problema como também está presente nos encaminhamentos dados pela sociedade, encaminhamentos estes que legitimam as ações correspondentes. Sintetizando as ideias dos dois autores citados podemos concluir que estes destacam o papel dos imaginários, criados nos diferentes contextos econômicos e sociais, como orientadores dos desenhos das estruturas sociais, bem como das verdades, valores, e ações que são legitimadas pelos indivíduos.Dessa forma, ao mesmo tempo em que o imaginário orienta o formato das instituições ele é construído pelos sujeitos em seu cotidiano. Adotando este referencial para a análise da escola, consideramos que o imaginário a respeito da escola construído por seus participantes é um elemento importante para a compreensão das ações cotidianas, sua estrutura, relações de poder estabelecidas e os conflitos advindos dessas interações. Assim, as relações que se processam no cotidiano da escola são práticas estabelecidas e legitimadas pelo imaginário minimamente 50 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. compartilhado e negociado entre seus membros, que se manifesta nas ações cotidianas. No entanto, lembramos que os dois autores citados referem-se ao imaginário social como um conceito que possui um componente que não pode ser esquecido que é o dos sentidos dados pelo contexto social, político e econômico de cada época. Portanto as relações na escola precisam ser compreendidas nessa dimensão maior que não somente a do individuo enquanto consciência individual, mas também enquanto ser social que elabora e reelabora os conceitos, impressões e sentimentos a partir das relações com o mundo vivido e experienciado tanto intra como extra-instituição. Imaginário social e escola no contexto atual: subsídios para um Estudo da violência escolar Retomando a ideia do imaginário de cada época como elemento importante na constituição das ações praticadas pelos diferentes setores sociais, trazemos aqui algumas reflexões sobre algumas características que compõem o imaginário do contexto econômico, político e social atual. Taylor (2006) coloca a questão de que o que imaginamos pode ser algo novo, construtivo, algo que abra novas possibilidades, mas também pode ser pura ficção, talvez perigosamente falsa. Coloca a pergunta sobre a possibilidade do falseamento do imaginário no sentido de que este possa esconder ou ocultar certas realidades cruciais; para esta questão responde claramente que sim e como exemplo cita nossa auto-imagem de cidadãos iguais em um Estado democrático que ignora a exclusão e a desigualdade de nossa sociedade. Sua argumentação é a de que se entendemos a “igualdade” como algo mais que um princípio legitimador, quer dizer, se imaginamos isto como uma realidade plenamente efetiva, o que temos feito é falsear a realidade, desviar o olhar para não ver os diversos grupos excluídos ou despossuídos ou imaginar que são os únicos responsáveis por sua situação (TAYLOR, 2006). As consequências da desigualdade social para a produção da violência social e o reflexo na vida dos jovens têm sido estudadas por muitos pesquisadores em todo mundo. No Brasil, Zaluar, em diferentes escritos (ZALUAR, 1994; 1998; 1999; ZALUAR; LEAL, 2001) 51 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. aponta para o fator institucional da desigualdade no Brasil, e a consequência da mesma para a vulnerabilidade dos jovens pobres. Citando Dellasoppa et al. (1999), destaca que estes consideram o modelo de desigualdade social do país como o que melhor explicaria as “causas” da violência no Brasil. Nessa linha de raciocínio, quando trazemos para análise a escola imaginada como instituição igualitária e justa, vemos que caímos no mesmo falseamento da realidade apresentada por Taylor( 2006), muito bem colocado por Dubet (2004) e por Martucelli (2001). Esses autores trazem questões que contribuem para a reflexão sobre o papel da escola e o imaginário que a circunda na sociedade atual e que são importantes para a discussão sobre a produção e reprodução da violência em seu interior. Ao discutir o que seria uma escola justa, Dubet (2004, p. 540) apresenta as seguintes questões: A escola deve ser puramente meritocrática, com uma competição escolar justa entre alunos social e individualmente desiguais? Deve preocupar-se principalmente com a integração de todos os alunos na sociedade e com a utilidade de sua formação? Deve tentar fazer com que as desigualdades escolares não tenham demasiado consequências sobre as desigualdades sociais? Tais questões colocam em cheque a ideia do modelo de igualdade de oportunidades meritocrático que pressupõe como sendo justo uma oferta escolar perfeitamente igual e objetiva, ignorando as desigualdades sociais dos alunos. Esta é uma questão presente no mundo todo e como aponta Dubet (2004), nos diferentes países as pesquisas mostram que a escola que é frequentada por alunos menos favorecidos, em geral, apresenta problemas semelhantes tais como: os entraves são mais rígidos para os mais pobres, a estabilidade das equipes docentes é menor nos bairros difíceis, a expectativa dos professores é menos favorável às famílias desfavorecidas, que se mostram mais ausentes e menos informadas nas reuniões de orientação etc. Nesse sentido, a violência que se apresenta nas escolas, ainda tem um diferencial em termos de sua categorização e origem, mas é menos controlada nas escolas frequentada pelos alunos menos favorecidos, que no caso do Brasil são as escolas públicas. 52 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. A criminalização de ações que se enquadram na categoria de incivilidades1 é um elemento importante na discussão da violência escolar, pois como tem sido apontado por autores como Wacquant (2007), o comportamento dos jovens de periferia que muitas vezes aparentam ameaçadores para a sociedade e no caso em particular da escola aos professores, trata-se de uma reação às instituições sociais que segundo eles não possuem legitimidade e não conseguem oferecer aos jovens uma perspectiva de inserção social, mostrando-lhes um horizonte turvo e dentro de um cotidiano de miséria moral e material. Outro aspecto importante na discussão dos padrões de interação que vão se estabelecer na escola e que contribui para a produção e reprodução da violência escolar é o significado do conhecimento e da escola como instituição para seus componentes, aspecto este que a nosso ver se relacionam diretamente com o imaginário sobre a escola. Nesse sentido, Martucelli traz uma reflexão que contribui para esta discussão, que é a expectativa que envolve a escola em termos de sua responsabilidade para com a formação dos conceitos éticos e morais. Afirma que na modernidade, a escola, além de suas funções de transmissão de conhecimentos e de seleção social, tem sido associada à um duplo processo: [...] por um lado, deveria permitir a integração dos indivíduos em sua sociedade, garantindo a continuidade da vida social. Por outro, norteia-se por uma figura ideal de indivíduo, representação coletiva à qual todos aderem de uma maneira ou de outra (Martucelli, p. 258). No entanto, conclui que o que concretamente tem acontecido é o desenvolvimento de um individualismo vazio, cada vez mais voltado para as técnicas e competências individuais e cada vez menos certo de seus ideias. Como consequência de tal processo, Martucelli( 2001) destaca o utilitarismo que permeia a formação oferecida pela instituição escolar, transformando as ações em seu interior como meros processos de preservação da vida organizacional, como podemos ver pela seguinte citação: 1 Esses dois termos parecem ser intercambiáveis na semi-ótica da mídia (MILBURN, 2000). Mas a violência tem uma dimensão qualitativa, no dano causado por ela à integridade social, enquanto a incivilidade enfatiza o aspecto quantitativo, por meio da difusão invisível das várias transgressões que permeiam os poros do corpo social (BODY- GENDROT, 2002). 53 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. A exaltação da força de caráter diante das tentações do mundo, a abnegação e o sacrifício individual em favor dos outros estão desaparecendo do universo dos mais jovens. E isso, tanto em suas versões religiosas quanto laicas. Sejamos claros: a moral não está desaparecendo, de modo algum, da escola ou das preocupações dos docentes, mas seu espaço e sua pertinência estão encolhendo. Com o tempo, ela tende a ser reduzida à sua menor funcionalidade organizacional (a disciplina e o respeito do regulamento) e à sua menor abrangência (o bem e o mal são definidos apenas em razão de sua simples utilidade para a preservação da vida organizacional) (Martucelli, 2001, p. 267). Como consequência as ações que se desenvolvem vão se restringir meramente à preservação da escola enquanto organização, levando professores e direção a abdicar de tarefas próprias do educador, pensado como alguém que se ocupa de fornecer, além do conhecimento técnico e científico, os valores universais do ser humano. O imaginário de uma escola nesses moldes é o da escola para um individuo ideal que se encaixa ou que deveria se encaixar perfeitamente tanto ao modelo de organização idealizada quanto de uma sociedade igualitária que parte do principio de que todos têm a mesma oportunidade e a mesma origem econômica e social. Para os professores os alunos não se encaixam nem na organização escolar imaginada, igualitária a princípio nem na imagem de aluno idealizado. Tal imaginário se choca com a realidade concreta provocando conflitos que opõem não somente alunos e escola, mas professores e escola. O enfoque que tem sido dado em grande parte dos trabalhos sobre violência escolar muitas vezes se prende ao bullying, violência entre alunos, focando na questão individual dos alunos, deixando de enfocar a organização escolar como um todo e o imaginário que está por trás das ações cotidianas. Nas considerações de Taylor(2006) sobre o imaginário social ele destaca a inseparabilidade do imaginário social do tempo e do espaço em que ele é criado, nesse sentido chamamos a atenção para aspectos do imaginário social em uma perspectiva que Sennettt (2006), chama de “A nova Cultura do capitalismo”. Essa nova cultura do capitalismo definida por Sennett (2006) nos ajuda a compreender a organização escolar não somente na relação do aluno com a escola, mas também do professor com a escola quando fazemos a reflexão das características do trabalho desse professor no contexto da escola atual. 54 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. Sennett (2006, p. 58) se refere a três déficits sociais nesse contexto do novo capitalismo, que seriam: baixa lealdade institucional; diminuição da confiança informal entre os trabalhadores e enfraquecimento do conhecimento institucional.Estes três déficits estariam ligados por uma ferramenta intelectual que é o “capital social”, que seriam as redes de relacionamento em que as pessoas estariam vinculadas.O déficit de lealdade se relaciona diretamente com o nível de capital social. Organizações de alto capital social têm uma maior lealdade e vice-versa, nas argumentações de Sennett (2006). O outro déficit, que é a diminuição da confiança informal entre os trabalhadores, refere-se à questão de saber com quem se pode contar em uma situação de pressão ou necessidade. Sennett (2006) afirma que a confiança informal necessita tempo para desenvolver-se e em um contexto em que as relações e as instituições são “líquidas”, como afirma Bauman (2004), a dificuldade para o estabelecimento dessa confiança fica prejudicada. O terceiro déficit apontado por Sennett (2006) que é o enfraquecimento do conhecimento institucional refere-se às certezas que acompanhavam a estrutura organizacional burocrática, o emprego e o amparo social que nesse novo contexto da flexibilização e precarização do trabalho2 se enfraqueceram. Além de tais déficits, Sennet (2006) chama a atenção para a ideia do cidadão como consumidor, que tem permeado as relações sociais no contexto do que chama de novo capitalismo. Considera que quando os cidadãos atuam como consumidores modernos deixam de pensar como artesãos, e por consequência deixam de ter compromisso com o conhecimento e com o que faz, para ser simplesmente consumidor: En el trabajo, el buen artesano es más que un técnico mecánico. El artesano quiere entender por qué una pieza de madera o un código de ordenador no funciona; el problema se vuelve atractivo y, en consecuencia, engendra adhésion objetiva (Sennet, 2006, p. 145). [...] Por todo esto, el espíritu artesanal tiene una virtude fundamental que brilla por su ausencia en el trabajador, estudioso o ciudadano idealizados por la nueva cultura: el compromiso (Sennet, 2006, p. 166). 2 Sennett (2006) chama de precarização do trabalho a algo mais que usos de trabalhadores temporários externos ou subcontratados. Refere-se também à estrutura da empresa. 55 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. Utilizando-se das reflexões apresentadas por Sennett (2006), que destacamos anteriormente, para analisarmos o que acontece no cotidiano da organização escolar podemos observar que estas características descritas por Sennett (2006) têm íntima relação com o imaginário sobre a escola e os conflitos e violência presentes em seu interior. O imaginário de uma escola igualitária, segura e que propicia a integração dos indivíduos à sociedade se choca com a ausência da lealdade, da confiança informal e com o conhecimento organizacional em diferentes aspectos. Uma das marcas da escola pública no Brasil é a rotatividade de seu pessoal docente, mostrada em inúmeras pesquisas da área. Em média 55% do pessoal docente da escola se renova a cada ano e durante o ano letivo. A perspectiva de que a escola e o conhecimento já não propicia ao aluno ou, não garante o emprego que o permitirá ter um “lugar ao sol” em um mundo incerto promove a ausência de vínculo do aluno com a instituição escola. Para que serve a escola afinal? O imaginário que a escola ─ professores e direção ─ tem da família é que esta deve promover a formação dos conceitos éticos, morais e de padrões comportamentais adequados ao contexto social, o que se choca com a realidade concreta da maioria dos alunos da escola pública e dos valores de uma sociedade individualista e com uma imensa desigualdade social e econômica. A ideia do cidadão como mero consumidor é outro elemento que desvaloriza o conhecimento e a escola, pois ela trabalho com um “objeto”, desnecessário pois é o capital social que importa mais do que o conhecimento em si.A imagem de uma sociedade em que o “tráfico” de influências tem mais valor do que o conhecimento coloca a escola em uma dificuldade imensa. Esta é outra característica do imaginário da instituição escolar, além das já pontadas, a ausência do compromisso com o conhecimento, definindo padrões de interação que se relacionam à construção da violência em seu interior. Todas as questões aqui destacadas apontam para aspectos importantes para a discussão do clima organizacional da escola e para a questão da violência escolar por 56 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. apresentarem um panorama do imaginário da instituição escolar nos dias atuais. Lembrando as ideias de Taylor (2006) e Castoriadis (1986) que afirmam a importância do imaginário no estabelecimento das práticas comuns e as legitimações das mesmas, e e que a instituição é uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde combinam em proporções e em relações variáveis um componente funcional e um componente imaginário. Como criar um vínculo de lealdade entre professores e entre esses e a instituição escolar, bem como a confiança informal nesse contexto. As falas dos professores em nossa pesquisa deixam esse aspecto claro. Diferentes respostas à questão “Como você vê sua escola” ilustram esse fato, como mostramos a seguir: Vejo a escola como um ambiente de conflitos, onde existe disputa, falta de entendimento, de coleguismo, enfim um lugar de pouco ou nenhuma solidariedade. A equipe de professores e a direção parece que não falam a mesma língua. Vejo a direção omissa e parte dos professores que nem sequer falam com os demais. Essa divisão torna difícil a tomada de atitudes que realmente resolvam ou aliviem a situação de invasões, muito vandalismo e indisciplina, notas ruins, descaso total com a escola e a educação. Vejo minha escola como um cabo de guerra, dividida. Enquanto um lado luta para melhorar, o outro cruza os braços. A dificuldade do trabalho coletivo na escola, e o estabelecimento de um diálogo verdadeiro sobre o trabalho desenvolvido na escola, as regras de convivência e os parâmetros a serem estabelecidos entre os diferentes atores da instituição escolar, depende da criação de espaços e tempo que possibilitem essas atividades. A imagem do cabo de guerra onde se colocam os grupos que “querem melhorar” e de outro os que “cruzam os braços” é bastante significativo da dificuldade da realização de um trabalho coletivo, mostrando um aspecto a ser trabalhado. O imaginário construído pelos professores a respeito aos alunos foi outro dado significativo com respeito às dificuldades de interação nas escolas estudadas. Observa-se que os conflitos e os medos presentes são construídos a partir do imaginário criado, que dificulta a aproximação e aceitação das reais condições dos alunos e a partir daí a elaboração de um processo educacional adequado aos mesmos. 57 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. A fala dos professores em resposta à questão da pesquisa que pedia que descrevessem os alunos reais que têm em sala e os alunos que gostariam de ter caminhou nesse sentido. As expressões usadas pelos professores para descrever os alunos reais foram: pouco interesse em aprender; distraídos; indisciplinados; falta de perspectiva para vida futura; a maioria necessita ser direcionados para produzir, pois perguntam o que vão ganhar caso executem a tarefa; influenciados por pessoas de má índole; descompromissados; completamente sem limites; indisciplinados; trazendo problemas familiares para dentro da escola; revoltados e agressivos talvez pela falta de atenção dos pais; vítimas do sistema. Tomando as falas que se referiram às características do aluno ideal temos: alunos participativos, com vontade de aprender, questionador do assunto abordado; valoriza o aprendizado; educado, disciplinado, um aluno que viesse para a escola sem trazer de casa problemas graves; alunos que tivessem a família apoiando e participando da vida escolar; obedientes às regras da escola, aos pedidos dos professores, fazendo as tarefas propostas; bem vestidos, bem alimentados, aceitos em suas famílias, felizes; conhecedor do mundo do qual faz parte e com capacidade crítica suficiente para querer e tentar modificá-lo; alunos com uma perspectiva trabalham melhor, exigem mais dos professores e ficam mais motivados. O confronto entre as duas caracterizações mostra concretamente o imaginário de escola e dos alunos que os professores têm que é o da escola igualitária, integradora do individuo na sociedade e afinado com uma instituição que a principio garante a inserção social. Uma característica marcante na fala da escola é a constante cobrança e atribuição de culpa às famílias pelos problemas que as escolas enfrentam com os alunos parte de um imaginário da família que não corresponde à realidade. O imaginário que a escola - professores e direção - tem da família é que esta deve promover a formação dos conceitos éticos, morais e de padrões comportamentais adequados ao contexto social, o que se 58 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. choca com a realidade concreta da maioria dos alunos da escola pública e dos valores de uma sociedade individualista e com uma imensa desigualdade social e econômica. A tônica dos depoimentos dos professores e direção foi no sentido de que cabe às famílias a solução do comportamento violento na escola. Os professores apontaram o tempo todo para isso, inclusive eximindo a escola de qualquer responsabilidade, como ilustra a seguinte fala de um professor: Eu acho que a fraternidade tem que começar na família mesmo, não adianta a gente aqui na escola querer resolver um problema que vem lá de fora, tem começar a trabalhar lá na casa. Às vezes eles (alunos) fazem aqui um reflexo de lá. Tem que começar a trabalhar lá no espaço tem que começar a mostrar pra eles o valor de uma família, de respeito de companheirismo. Conclusão Procuramos trazer nesse artigo uma discussão a respeito de como o imaginário institucional e o contexto cultural mais amplo podem contribuir para a análise da escola e dos processos de conflito e violência em seu cotidiano. Defendemos que a análise das instituições escolares e o processo de produção e reprodução da violência escolar pode ser feita sob diferentes enfoques e que o imaginário que os participantes da escola influencia significativamente as ações e a estrutura das interações que são estabelecidas. Consideramos ainda, que o imaginário construído pelos participantes sofre influência do contexto macro social, delineado por uma cultura global. Assim, o imaginário construído por professores e direção da escola constrói uma realidade fictícia que se choca com o contexto real, produzindo conflitos e dificultando que os reais problemas sejam enfrentados. A discussão sobre a escola igualitária nos coloca o sentido da igualdade. Tratar diferentes como iguais por considerar que assim estamos promovendo oportunidade a todos pode não ser o caminho mais adequado. Partir do principio que a escola ainda é a instituição que vai fazer a diferença para que os jovens das classes menos favorecidas superem a condição de miséria pela inserção profissional, parece que também não é um caminho duvidoso pra os jovens. Ter a expectativa de um aluno que chegue à escola sem 59 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. problemas econômicos e sociais, educado moral e eticamente dificulta a busca de ações que possam enfrentar a situações do cotidiano dentro da realidade concreta. Outra questão importante que destacamos é a relação instituição escola e professor e as imagens correspondentes. A desconfiança dos professores em relação às políticas governamentais provoca o que Sennett (2006) descreve como uma das características da cultura do novo capitalismo que é a baixa lealdade institucional. Pudemos observar outras características, no caso do Brasil a diminuição da confiança informal entre os professores devido a uma prática de não favorecimento da permanência e vinculo do professor com uma única escola. Este último aspecto dificulta a discussão e a tomada de decisões coletivas na escola o que favorece a desagregação da escola enquanto grupo favorecendo as ações de incivilidades dos alunos e a não discussão do preconceito e das medidas autoritárias de alguns professores que favorece a violência simbólica. A criminalização de ações de incivilidade, muito difundida no meio educacional é um sintoma da dificuldade de a escola assumir seu papel de educadora da moral e da ética, por considerar que essa não é função da escola, o que demonstra a imagem de uma escola que se preocupa somente com a difusão do conhecimento útil e como diz Martucelli (2001) com a reprodução burocrática da instituição. Finalizando, chamamos a atenção para a importância de que os estudos sobre violência escolar busquem elucidar os diferentes aspectos institucionais focando não somente os alunos e a família dos mesmos, mas as interações que se processam no interior da escola. A análise institucional que enfoque os aspectos micro e macro social pode contribuir para que a escola consiga enfrentar os problemas em uma perspectiva mais realista, buscando caminhos no próprio grupo em interação explicitando barreiras que são interpostas pelo imaginário institucional. Com isso não estamos afirmando, no entanto, que os entraves criados pela realidade externa, tais como a ausência de vontade política de distribuição de riquezas e a democratização do acesso à educação e de melhoria da condição de vida serão resolvidos na escola, mas que a análise das interações 60 Educação: Teoria e Prática – Vol. 21, n. 36, Período jan/jun-2011. na escola e da subjetividade presente nas mesmas contribui para o enfrentamento dos problemas e em especial da violência escolar. Referências ASTOR, R. A.;MEYER,H.A.; BEHRE,W.J. Unowed places and times: maps and interviews about violence in High Schools. American Educational Research Journal, 36, 1, 1999, pág. 3-42. BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2000. BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BODY-GENDROT, S. Violência escolar: um olhar comparativo sobre políticas de governança. In: DEBARBIEUX, E.; BLAYA, C. (Org.). Violência nas escolas e políticas públicas. Brasília: Unesco, 2002. 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