T E M A S LIV R E S FR E E T H E M E S 2271 1 Departamento de Enfermagem, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Campus Universitário de Rubião Júnior s/no, Rubião Júnior. 18618-970 Botucatu SP. weybe@uol.com.br Da percepção de impotência à luta por justiça na assistência à saúde From the perception of powerlessness to the fight for justice in healthcare Resumo A busca por espaços comunicativos para reflexão sobre o exercício e a prática da enferma- gem, usando referenciais bioéticos, teve o objetivo de apreender como os enfermeiros participantes do estudo interpretam a realidade da sua prática perante a observância da justiça. Utilizou-se a técnica de “grupo focal” para coleta de dados e, para análise, a Grounded Theory. Foram identi- ficados três fenômenos: conceituando senso de jus- tiça; sentindo-se impotente em conviver com ini- quidades/injustiças; movendo-se em direção às lu- tas por justiça. Da inter-relação deles, emergiu a categoria central: construindo mecanismos de su- peração de injustiças e iniquidades que minam a qualidade da assistência de enfermagem: a expe- riência de enfermeiros recém-formados em um hospital estadual do interior paulista. A estraté- gia de grupo focal mostrou-se muito adequada à consecução dos objetivos propostos, e a Grounded Theory permitiu a compreensão do movimento empreendido pelos enfermeiros nessa experiência. Palavras-chave Enfermagem, Bioética, Justiça Abstract The search for communicative settings for reflection concerning the exercise and practice of nursing based on bioethical frameworks sought to comprehend how participant nurses interpret the reality of their praxis vis-à-vis the observance of justice. The focal group technique was used for data collection and the latter was analyzed using Grounded Theory. Three phenomena were iden- tified: conceptualizing a sense of justice; feeling powerless in living with inequities/injustice; and moving towards the fight for justice. From the in- ter-relation of such phenomena, the core catego- ries emerged, namely constructing mechanisms to overcome injustice and inequities which under- mine quality in nursing care, and the experience of recently-graduated nurses in a public hospital in the interior of São Paulo State. Focal group strategy proved to be highly adequate for achiev- ing the proposed objectives, and Grounded Theo- ry made it possible to assess the movement under- taken by the nurses in this experience. Key words Nursing, Bioethics, Justice Heloisa Wey Berti 1 2272 B er ti H W Introdução Atualmente, é grande a preocupação com o enfo- que bioético quando se trata de temas interliga- dos à vida das pessoas, particularmente em mo- mentos considerados críticos. Essa preocupação tem abrangido também áreas relacionadas ao tra- balho, à distribuição de recursos para a saúde, à educação em bioética na área da saúde. Os princípios ou referenciais básicos da bioé- tica têm sido bastante abordados na literatura, inclusive com o surgimento de vertentes que en- focam temas de formas diferentes, com distintos olhares. Mas, em geral, são frequentemente abor- dados os princípios da justiça, beneficência e au- tonomia. Neste estudo, será abordado, de forma mais pontual, o referencial bioético de justiça. Diferentes conceitos de justiça têm sido for- mulados ao longo da história da civilização, de acordo com o processo de desenvolvimento e seus reflexos ideológicos, pois, segundo Marx e En- gels, os homens, ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a cons- ciência1. Em 1971, John Rawls publicou a Theory of Justice, procurando estabelecer a justiça como equidade. Desse modo, considerou que todos os valores sociais devem ser distribuídos da mesma maneira em uma sociedade justa, exceto se uma distribuição desigual redundar em benefício para todos ou para os mais necessitados2. No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) adotou a equidade como medida compensató- ria, visando promover a justiça igualitária, ou seja, “tratando desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam”, conforme assinalado por Rui Barbosa3. A realidade da atenção à saúde em nosso país é marcada pelo assistencialismo, pelo corporati- vismo, ineficiência, iniquidade e injustiça. Gran- de contingente da nossa população não tem aces- so aos serviços de saúde e saneamento, educação e demais direitos de cidadania, e as políticas pú- blicas não têm sido capazes de promover a equi- dade4. Dessa forma, é responsabilidade de todos a transformação dessa realidade, mediante ob- servância ao referencial de justiça que objetiva uma prática eficiente e equânime. Entendendo que a enfermagem deve utilizar- se dos referenciais bioéticos nas reflexões sobre sua prática, propomos a sua apropriação por enfermeiros de um hospital estadual com vistas à análise problematizadora da sua prática assis- tencial. Diante do exposto, a finalidade do presente estudo é criar espaços comunicativos e de refle- xão ética sobre o exercício profissional, objetivan- do conduzir a prática assistencial pelo caminho da solidariedade, da competência e da justiça. Objetivos São três os objetivos deste estudo: – Apreender como os enfermeiros recém-for- mados, participantes do estudo, interpretam a realidade da sua prática, seus conhecimentos e experiências. – Identificar e problematizar aspectos da prá- tica assistencial segundo o referencial bioético de justiça. – Sinalizar caminhos para superação dos pro- blemas identificados. Delineando o método Este artigo se constitui num recorte, a partir de uma pesquisa mais abrangente sobre a experiên- cia de enfermeiros, acerca da observância de re- ferenciais bioéticos no cenário prático hospita- lar, a qual se configurou em um modelo teórico denominado: movendo-se para o fortalecimen- to da autonomia profissional e do paciente e a prática da beneficência e justiça. Como o relatório final do trabalho se apre- sentou extenso, e por se tratar de um assunto relevante ao exercício profissional, justifica-se comunicar o conhecimento ora produzido por meio de vários artigos. Neste, nós apresentare- mos três fenômenos que compõem a dimensão justiça. São eles: conceituando o senso de justiça; sentindo-se impotente ao conviver com iniqui- dades/injustiças; movendo-se em direção às lu- tas por justiça. Trata-se de uma investigação qualitativa, rea- lizada em um hospital estadual da rede pública de um município do interior paulista, constituí- do por vários setores de diferentes especialida- des. Foram selecionados enfermeiros desses se- tores, a partir de convite endereçado a todos os que manifestassem interesse em participar deste estudo e que tivessem se graduado em enferma- gem há menos de cinco anos. Antecedendo o início da coleta de dados, o então projeto de estudo foi encaminhado e apro- vado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Insti- 2273 C iência & Saúde C oletiva, 16(4):2271-2278, 2011 tuição em abril de 2005. Cada enfermeiro parti- cipante assinou o Termo de Consentimento Li- vre e Esclarecido. A saturação dos dados se configurou com a análise das experiências dos 15 atores, relatadas em cinco reuniões, segundo a estratégia grupo focal5. Durante esses encontros, os participantes foram estimulados a falar e refletir sobre sua prática assistencial e experiência na instituição. Em diferentes momentos, o tema foi discutido segundo os referenciais de autonomia, beneficên- cia e justiça. Ressaltamos que as falas foram gravadas, transcritas na íntegra e submetidas à análise, se- gundo as etapas do referencial metodológico Grounded Theory: descobrindo categorias, ligan- do categorias, desenvolvimento de memorandos e identificação do processo. Categorias, segundo os autores, são abstra- ções do fenômeno observado nos dados e for- mam a principal unidade de análise da Groun- ded Theory. A teoria se desenvolve por meio do trabalho realizado com as categorias, que faz emergir a categoria central, sendo geralmente um processo, como consequência da análise6. O grupo teve a oportunidade de participar de um último encontro, quando se aproximou da experiência do enfermeiro recém-formado com relação aos referenciais bioéticos, momento em que pôde validar a análise das pesquisadoras, bem como discutir os caminhos para a supera- ção dos problemas evidenciados. Neste artigo, os fenômenos relativos à dimen- são da justiça serão apresentados e posteriormen- te analisados à luz dos referenciais da bioética. Apresentando a experiência Fenômeno A: Conceituando senso de justiça Segundo a experiência do enfermeiro recém- formado, o senso de justiça não se adquire na escola. É formado ao longo da experiência de vida de cada pessoa, o que não garante o mesmo sig- nificado a todos, assim como o discernimento do significado de justiça na prestação de assis- tência ao paciente e nas outras dimensões do pro- cesso de trabalho do enfermeiro. Para tanto, dis- por de um bom senso de justiça é trabalhar em acordo com a competência e a habilidade da cons- ciência que cada um desenvolveu com o tempo, ao acusar o injusto, conduzindo a movimentos voltados às ações mais justas. A justiça não é entendida igualmente por todas as pessoas e nem sempre tem o mesmo sentido. O conceito de justiça não se aprende na escola, a vida é que vai ensinando. Falta muito para se poder falar que estamos sendo justos em relação à assistência que presta- mos e saber o que é um bom senso de justiça. Fenômeno B: Sentindo-se impotente em conviver com iniquidades/injustiças Significa o sentimento desperto mediante a falta de poder do enfermeiro em enfrentar as si- tuações de injustiças cometidas no cenário hos- pitalar contra ele mesmo, o paciente e a família deste. Essas situações estão relacionadas a vários processos, como o tipo de cobertura oferecido pelo plano de saúde, estratégias adotadas por familiares de pacientes para garantir atenção di- ferenciada a seu ente, política de recursos huma- nos e estilos gerenciais praticados pela institui- ção que desconsideram o trabalhador no seu processo de trabalho, faltas éticas e morais rela- tivas a outros profissionais que estão em interfa- ce com a prática do enfermeiro e falhas no siste- ma de comunicação entre os serviços da institui- ção. Esse fenômeno agrega cinco categorias. Categoria B1: Considerando a enfermagem envolvida em injustiças na prestação de assistência à saúde no país e na região A experiência dos enfermeiros remete-os ao contexto mais geral da assistência à saúde no Brasil, entendida como uma prestação de assis- tência de enfermagem desigual e injusta, envol- vendo-os em práticas discriminatórias, segundo o tipo de cobertura para tratamento oferecido pelos convênios ao cliente. A saúde no Brasil é injusta porque tem várias formas de assistência: SUS, convênio e particular. Retomando o exemplo dado pela colega de su- pressão da dieta pelo fato do paciente não poder pagar, e considerando que a enfermeira não pode pegar uma dieta e instalar por sua conta, pois terá que pagá-la, ela terá, então, que dar ao paciente algo que não é o mais adequado. Na Central de Vagas, médicos pedem vagas para algum exame a ser feito pelo SUS, porque em cida- des pequenas esses exames são pagos. [...]se pagar, consegue, se não pagar, não con- segue. 2274 B er ti H W Categoria B2: Relacionando a qualidade de atenção e iniquidade à cobertura do convênio Os enfermeiros percebem, por meio de suas vivências, que a qualidade assistencial está relaci- onada à abrangência da cobertura do convênio no setor particular do hospital público. O plano de saúde que o paciente possui é que determina- rá a qualidade da assistência que este irá receber. A contento, não são as reais necessidades da pes- soa que determinarão o tipo de tratamento es- colhido, e sim aquilo que o plano de saúde ofere- ce. A experiência revela que a família não recebe as devidas informações sobre a abrangência de cobertura oferecida pelo plano de saúde no mo- mento de sua aquisição. Ela só vai tomar conhe- cimento dos tipos de procedimentos que o con- vênio cobre quando tem algum de seus entes in- ternados, necessitando de intervenções pelas quais o convênio não se responsabiliza financeiramen- te. As vivências ainda revelam que as injustiças e o tratamento desigual ocorrem não só nos hos- pitais privados, mas também nos públicos. Em decorrência do tipo de cobertura do plano de saúde o paciente já não será mais tratado como vinha sendo; por exemplo, investimentos quanto à medicação e dietas não mais serão feitos. [...] paciente que recebia dieta industrializada passa a receber dieta manipulada ou mesmo fica sem a dieta. Sendo necessária uma cirurgia ou algo que o convênio não cobre, acaba sendo feito algo que não é o mais adequado para o paciente. A família de doentes que precisam de interna- ção em UTI não tem noção de tudo o que envolve essa internação. A internação é feita e, depois de algum tempo, quando a família toma conhecimento dos custos, ela vê que não tem condição para arcá-los. Categoria B3: Despertando sentimentos de impotência perante as práticas injustas Os enfermeiros sentem-se angustiados, des- motivados e impotentes no processo de vir-a- ser envolvidos em práticas injustas e discrimina- tórias, decorrentes das cobranças que sofrem, das represálias às quais ficam sujeitos e da falta de autonomia para tomar decisões sobre aquilo que conhecem, como evidenciado nos relatos de suas experiências. Por exemplo, o estilo gerencial que utiliza estratégias para controlar o movimento empreendido de seus subordinados por meio de atos injustos, pautados em represálias, provoca a paralisação dos enfermeiros em iniciar ou con- tinuar qualquer processo de mudança no cená- rio hospitalar. Nessa situação, os sujeitos são tomados por sentimentos desprazerosos com o exercício profissional, perdendo a motivação e o encantamento que os mantinham ativos, inicial- mente, no sistema. Os atores que mantiverem compromissos com as mudanças necessárias passarão a ser conhecidos como pessoas em quem não se pode confiar. Vejo tudo isso, mas não posso fazer diferente. A gente também é impossibilitada de interferir na conduta médica e fica angustiada diante de uma situação que não beneficia o paciente, por ser in- justa. Também a gente se sente impotente quando di- ante de ordens emanadas de instâncias superiores. Sinto-me desmotivada por saber que se falar ou não falar nada vai mudar. Quando comecei a trabalhar neste hospital era encantada com tudo, com todos e com suas atitu- des, mas com o passar do tempo, percebo que não posso mais contar com certas pessoas. [...] me sinto muito triste, chego a chorar diante de certas situações. Muitas vezes não sei a quem devo obedecer, fico confusa... Estou desgostoso não pelo SUS ou pelo traba- lho, mas pelo que se está vivendo aqui, no hospital. Categoria B4: Envolvendo-se em estratégias adotadas por familiares de pacientes para garantir atenção diferenciada Percebe-se que, por meio das interações com os atores no cenário hospitalar, a família vai bus- cando caminhos para garantir tratamento dife- renciado ao seu ente, sendo uma das estratégias o pagamento de gorjetas e oferecimento de pre- sentes para componentes da equipe de enferma- gem. Os subornos são frequentes, e enfermeiros, esperando por recompensas, dão maior atenção a pacientes que as oferecem. A família de certos doentes oferece dinheiro ou presentes para o enfermeiro tratar de modo dife- renciado o paciente. O enfermeiro é mais pressionado pelos pacien- tes particulares porque todos querem o melhor atendimento para si. E os enfermeiros, com frequência, acabam dando maior atenção ao paciente na esperança de recom- pensa. Em outro hospital em que trabalhei eu percebi que os funcionários brigavam para atuar em de- terminado setor, pois era onde se obtinha mais gor- jetas, e enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfer- magem, todos brigavam pela gorjeta, que era boa; lá predominavam pacientes particulares. 2275 C iência & Saúde C oletiva, 16(4):2271-2278, 2011 Categoria B5: Considerando outras situações geradoras de injustiça na prática assistencial Durante suas experiências, os enfermeiros in- teragem com várias situações injustas, advindas da política de recursos humanos e do estilo ge- rencial, induzindo à perda da motivação ao tra- balho, com repercussões no quadro de pessoal e/ ou comprometimento da qualidade da assistên- cia oferecida ao paciente. Essas situações são: sa- lários baixos, falta de apoio da instituição para participar de cursos e realizar trabalhos científi- cos, desigualdades nas escalas de folgas, mudan- ças repentinas na jornada de trabalho, transfe- rências de setores sem ser consultado, não parti- cipação nos processos de tomada de decisão. Re- percute, esta última, num cenário de contraste composto pela falta de material básico necessário para o cuidado de enfermagem e a disponibilida- de de equipamentos sofisticados. Somam-se ain- da as questões éticas e morais relativas aos pró- prios profissionais, exemplificadas na decisão médica de reter vagas na UTI, para garantir um plantão tranquilo, e por aquele funcionário des- provido de senso de responsabilidade que sobre- carrega seus companheiros mediante faltas su- cessivas. Ademais, as falhas na comunicação en- tre serviços da instituição, como suspensão ou mesmo atrasos no início de exames, acabam re- percutindo, por exemplo, no prolongamento do jejum do doente ou da espera. As próprias nor- mas e rotinas propostas pela instituição acabam promovendo injustiças ao beneficiarem certos grupos etários em detrimento de outros. Outra situação injusta é o número limitado de funcionários e as faltas ao serviço de funcionários sem responsabilidade, acarretando prejuízos aos pacientes. Isso acarretará prejuízos ao paciente e, por- tanto, é injusto. A situação salarial é injusta e acaba por refletir no paciente. Até nisso a gente vê injustiça; o hospital tem equi- pamentos caríssimos, mas o básico às vezes não tem. O hospital deseja a evolução e crescimento dos enfermeiros, mas não oferece apoio para que pos- sam fazer cursos. Algumas pessoas neste hospital recebem prio- ridades, são liberadas, têm seus cursos pagos. Perdemos colegas, excelentes profissionais, que não desejam voltar mais. A gente não consegue mudar nada... Existem represálias, porque a maioria dos en- fermeiros que abriu a boca teve seus horários de trabalho alterados. Uum paciente está, neste momento, há 32 dias internado esperando por um exame. Há vinte dias, ficou das 24 horas até a uma hora da tarde em jejum para realização do exame. Liguei para saber sobre o exame e fui informado de que foi suspenso devido a testes no gerador. Há situações em que paciente tem alta mas o médico não libera, mesmo sabendo do grande nú- mero de pessoas necessitadas de internação nos municípios vizinho, e no pronto-socorro mantém o paciente na UTI sem necessidade, e as condições dos boxes da UTI são estressantes... As pessoas cho- ram [...] Acho uma injustiça segurar leito que po- deria ser disponibilizado a uma população neces- sitada, por falta de vontade de algumas pessoas. Fenômeno C: Movendo-se em direção às lutas por justiça Para enfrentar as situações de injustiças, os enfermeiros esperam se fortalecerem, mediante a implementação da sistematização da assistên- cia de enfermagem, considerada um movimento do grupo, norteado por ações fundamentadas no conhecimento científico. Essa experiência aju- dará a superar as injustiças cometidas contra si mesmo, mediante o reconhecimento e o respeito já conquistados dos pacientes, visando, em lon- go prazo, conquistar outras dimensões. Com- põem esse fenômeno duas categorias. Categoria C1: Sendo necessário um movimento coletivo, fundamentado em conhecimento científico no enfrentamento da submissão A experiência revela que as situações de sub- missões vivenciadas pelo enfermeiro estão asso- ciadas a três fatos: falta de união da categoria na defesa de seus direitos, à não apropriação de co- nhecimentos científicos, bem como ao mito de que o enfermeiro mais novo não conseguirá mudar aquilo que o antigo não foi capaz. Para sair dessa condição é preciso que a categoria empreenda um movimento como um corpo co- letivo, norteado por ações fundamentadas no conhecimento científico já produzido e não em opiniões e atitudes isoladas e pessoais, pautadas apenas no senso comum. Só assim far-se-á ou- vida, mediante questionamentos apropriados que, certamente, contribuirão para a mudança da postura, muitas vezes injusta, de alguns pro- fissionais em relação ao enfermeiro. Isto propi- ciará fortalecimento para enfrentar represálias. Enquanto esse processo não se estabelece, a cate- goria profissional vem se apoiando no reconhe- 2276 B er ti H W cimento do paciente e de pessoas que conseguem compreender que ela procura adotar os princí- pios da justiça para subsidiar suas ações. Decidi ficar quieta porque estava falando sozi- nha; fiquei desmotivada. Percebo que, algumas vezes, quando alguém toma uma atitude, ele se sente um pouco melhor. Se os enfermeiros fossem mais unidos, isso não ocorreria. Concordo com o colega e acrescento que, junto com o conhecimento científico, é necessário que o enfermeiro se imponha um pouco também. Às vezes o enfermeiro sabe, mas tem medo de se manifestar. As represálias existem, mas as pessoas precisam reagir. O que não pode é o enfermeiro ser negligente [...] ele tem que ter conhecimento sobre o que faz; só assim adquire respeito. No final a gente fica contente pelo sorriso do paciente, pelo cartão de Natal que nos enviou. É gratificante o reconhecimento de pessoas que entenderam quando eu agi com justiça. Categoria C2: Elegendo a sistematização da assistência de enfermagem como estratégia coletiva na superação de injustiças A experiência denota que a enfermagem vem implementando a sistematização de sua assistên- cia, um processo que poderá ajudá-la a superar as injustiças cometidas consigo mesma, median- te o reconhecimento e o respeito já conquistados na relação com os pacientes. Espera-se que esse processo possa mudar, também, a concepção de outros atores, visto que a própria enfermagem se vê representada como o eixo de equilíbrio no hospital e o elo entre os profissionais de outras áreas, como médicos, nutricionistas e o paciente. A enfermagem está em um bom momento, es- pecialmente com a sistematização da assistência. A enfermagem é o elo de harmonia entre o pa- ciente e as outras áreas. Está sendo feito um trabalho de formiguinha; a gente espera fazer bem mais no futuro e conse- guir mais justiça. Inter-relacionando os fenômenos para descobrir a categoria central A estratégia utilizada para descobrir a cate- goria central foi inter-relacionar os três fenôme- nos, buscando compará-los e analisá-los para compreender como se dava a interação entre seus componentes. Esta estratégia permitiu-nos iden- tificar o movimento do enfermeiro recém-for- mado diante de sua experiência com situações de injustiça/justiça. Com o passar do tempo, o enfermeiro obser- va que está convivendo com injustiças e iniquida- des na assistência à saúde da pessoa hospitaliza- da, nas quais pode se envolver ou ser envolvido. Dentre as injustiças e iniquidades, o próprio plano de saúde tem essa característica, ao deter- minar a qualidade da assistência que o paciente irá receber, em face da abrangência do tipo de cobertura de procedimentos. Esse fato faz com que o enfermeiro sinta-se envolvido, ao se res- ponsabilizar por executar determinado procedi- mento, que nem sempre se configura como o melhor para o paciente. Outro tipo de situação é o envolvimento do enfermeiro ao aceitar subornos da família, para garantir uma atenção diferenciada ao seu ente. Ao mesmo tempo, está sendo alvo de injustiças, no que se refere à política de recursos humanos e de estilos gerenciais, que não valorizam o ser humano, como: salário baixo, falta de apoio ins- titucional para participar de cursos e realizar tra- balhos científicos, não participação nos proces- sos de tomada de decisão, como também vítima de atitudes de represálias (desigualdades nas es- calas de folga, mudanças repentinas na jornada de trabalho, transferências de setores sem ser consultado). A própria falha de comunicação entre setores da instituição acaba promovendo situações in- justas ao paciente, como o prolongamento do jejum ou a espera por exames, assim como as normas e rotinas propostas beneficiando gru- pos etários específicos. Ao se deparar com o contexto descrito, o en- fermeiro vai perdendo a motivação, mediante sentimentos de impotência diante de iniquidades e injustiças, despertando desprazer pelo traba- lho e paralisação para iniciar ou continuar pro- cessos de mudanças, podendo até optar pela de- missão. Essa é uma fase denominada pelos ato- res como o momento em que se perde o encanta- mento pelo exercício profissional. Por fim, esse processo descrito acaba reper- cutindo negativamente na qualidade assistencial, proporcionada à pessoa hospitalizada. No sentido de ganhar potência, o enfermeiro empreende um movimento de luta por justiça na assistência de saúde, por meio de um processo designado “construindo sua própria superação”. Reconhecendo o movimento coletivo, funda- mentado em conhecimento científico como re- curso para o enfrentamento de sua submissão, elege a sistematização da assistência de enferma- 2277 C iência & Saúde C oletiva, 16(4):2271-2278, 2011 gem como estratégia na superação de injustiças, esperando com o tempo conquistar reconheci- mento e respeito para superar as injustiças. Nes- se processo, acaba se revitalizando no reconheci- mento já exteriorizado pelo paciente. Para abarcar todo o processo delineado, no- meamos a categoria central: “Construindo me- canismos de superação de injustiças e iniquida- des que minam a qualidade da assistência de en- fermagem: a experiência de enfermeiros recém- formados em um hospital estadual do interior paulista”. Discussão Neste estudo verificamos que os enfermeiros, ao refletirem sobre sua prática, usando o referencial bioético de justiça, este se apresenta ora como uma preocupação com a “equidade”, ora como preocupação com a “autonomia”. “Equidade” significa uma distribuição igual para os iguais – Equidade Horizontal – e uma distribuição desigual quando isto resultar em benefício para os mais necessitados – Equidade Vertical2. Ou seja, o estabelecimento de priorida- de do justo sobre o bem – atenção à saúde – visando à sobrevivência. Portanto, a justiça se dá pela observância da equidade7. “Autonomia”, no sentido do pensamento gre- go – mundo da liberdade, reino da ética, no qual são estabelecidas as relações dos homens entre si e onde se desenvolve sua humanidade. Aqui a justiça se faz pela observância da autonomia7. Assim, analisam as injustiças na atenção à saúde, reportando-se ao acesso desigual e às ini- quidades de tratamento e acolhimento observa- das no cotidiano. Sentem-se envolvidos em prá- ticas ilícitas e injustas, desrespeitando valores humanos de justiça e equidade, ao mesmo tem- po que se percebem vítimas de atos injustos, pra- ticados pela instituição. Diante da necessidade de justificativa para suas ações, repudiam a injustiça, mas conside- ram-se impotentes para o enfrentamento e a transformação das práticas e das situações in- justas. Desse modo, não se sentem sujeitos autô- nomos, mas submetidos ou submissos a um determinismo (institucional) que os imobiliza. A representação dos enfermeiros sobre suas condições reais de existência e de trabalho sugere assujeitamento ideológico do seu papel perante o sistema de saúde e a instituição onde atuam. Percebem as contradições entre os princípios doutrinários do SUS e sua aplicação, mas não se sentem livres para fazerem suas escolhas em muitas das situações vividas na prática profissio- nal, pois as entendem como algo que não pode ser transformado, como algo que já está posto e ao qual a vontade precisa se submeter. Sabe-se que isso que “já está posto” foi cons- truído historicamente nas relações que se estabe- leceram ao longo do tempo, especialmente nas relações entre profissionais da área da saúde den- tro das instituições, ou seja, entre administrado- res, médicos e enfermeiros. A enfermagem, tida como profissão feminina e subalterna, durante muito tempo aceitou e, por vezes, continua a acei- tar passivamente e a reproduzir a ideologia na qual se encontra inserida. Mesmo que imersos em determinada con- cepção ideológica, a tomada de consciência das condições em que se vive e/ou trabalha e de sua ideologia pode indicar aos enfermeiros a saída do nível ingênuo e do assujeitamento ideológico para uma visão ampliada da realidade. As circunstâncias nas quais as ações humanas se fazem pertencem também ao domínio ético, as quais podem prescrever, impor e/ou limitar a con- duta humana. Porém, como indivíduos detento- res de deveres e também de direitos, suas atitudes devem ser autodeterminadas com liberdade. Quando cientes da necessidade do uso da sua liberdade e autodeterminação, os enfermeiros passam a resistir às situações injustas que per- meiam sua prática. Ao tomar condutas de resistência às injusti- ças cometidas contra si e contra o outro (com- panheiros de trabalho e pacientes), surgem di- versos conflitos, em diferentes instâncias, cuja análise remete a reflexões e questionamentos so- bre justiça e seus diversos significados e sobre o trabalho em enfermagem. Isto promove a sínte- se de que uma ação justa está no agir em acordo com a própria consciência. Ou seja, “justo é cum- prir o que é próprio de cada um”8. Na sua rela- ção com o trabalho, vão transformando seu pen- sar e desenvolvendo ou transformando sua cons- ciência. Nesse momento, os enfermeiros assu- mem o querer ético como “dever autoimposto livremente”7. Avaliam seus sentimentos e angús- tias e são movidos para reflexões sobre perspec- tivas no trabalho e superação das injustiças. Considerações finais A estratégia de grupo focal mostrou-se muito pertinente à consecução dos objetivos propos- tos, pois tornou possível a criação de um espaço 2278 B er ti H W comunicativo e de reflexão, necessário para en- corajar os enfermeiros a falarem, refletirem e in- terpretarem a realidade de sua prática. Isto pos- sibilitou a problematização da atividade de tra- balho com base no referencial da justiça, viabili- zando a busca de caminhos para a superação das dificuldades existentes. A Grounded Theory permitiu a compreen- são do movimento empreendido pelos enfermei- ros na experiência da prática da justiça na ativi- dade profissional. Foi possível perceber que os enfermeiros não têm um conceito unívoco de justiça, mas o adotam relacionando-o à equidade e à autonomia, enten- dendo que é a consciência que aponta o que é justo e o que é injusto no exercício do seu trabalho. O desenvolvimento da consciência ética, en- fatizado durante a graduação dos enfermeiros, deve ter sua permanência assegurada por estra- tégias que possibilitem espaços comunicativos, podendo as Comissões de Ética em Enfermagem assumir esse papel coordenador/facilitador nas instituições de saúde. Referências Marx K, Engels F. A consciência revolucionária da história: trabalho alienado e superação positiva da auto-alienação humana. 2ª ed. São Paulo: Ática; 1984. Rawls J. Uma teoria da justiça. Brasília: Editora da Universidade de Brasília; 1981. Barbosa R. Oração aos moços. Módolo M, organi- zador. São Paulo: Hedra; 2009. Magalhães R, Burlandy L, Senna MCM. Desigual- dades sociais, saúde e bem-estar: oportunidades e problemas no horizonte de políticas públicas trans- versais. Cien Saude Colet 2007; 12(6):1415-1421. Fern EF. Advanced focus group research. Thousand Oaks, California: Sage Publications; 2001. Straus A, Corbin J. 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