MARCELO GAZZI TADDEI O DUMPING E AS NORMAS INTERNAS DE PROTEÇÃO À CONCORRÊNCIA EMPRESARIAL Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca, para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio Soares Hentz Franca 2001 MARCELO GAZZI TADDEI O DUMPING E AS NORMAS INTERNAS DE PROTEÇÃO À CONCORRÊNCIA EMPRESARIAL COMISSÃO JULGADORA DISSERTAÇÃO PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM DIREITO Presidente e Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio Soares Hentz – UNESP / Franca 2º Examinador: Prof. Dr. Marcos Paulo de Almeida Salles – USP / São Paulo 3º Examinador: Prof. Dr. Aclibes Bulgarelli – MACKENZIE / São Paulo Franca, 1° de junho de 2001 A meus pais, Valdir e Edna, a meu irmão Fabiano, e a Fabiana. AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Luiz Antonio Soares Hentz, pela presença nos momentos decisivos e orientação segura ao longo da graduação e pós-graduação, imprescindíveis para as conquistas profissionais alcançadas. Ao Dr. Sérgio Manfredi, sua esposa Alice e seus filhos Serginho, Renato, Fá e Guga, pelo carinho e pela atenção com que me receberam em Franca. Aos amigos que acompanharam o desenvolvimento da pesquisa e contribuíram para a conclusão da dissertação, em especial Ana Cristina Marques Olivieri, Amélia Regina Mussi Gabriel, Clóvis Lima da Silva e Prof. Dr. José Perozim. Aos professores da UNESP que se identificam com a universidade e preocupam-se com a sólida formação jurídica e humana dos acadêmicos, pela busca e manutenção dessa finalidade. Aos funcionários da FHDSS da UNESP de Franca, pela atenção e amizade demonstradas ao longo desses anos, em especial à Maísa, Andréia, Raquel, Alan, Jacimar, Cláudia, Márcio e Fátima. Aos integrantes do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), pela atenção demonstrada na visita à autarquia em Brasília, em especial ao conselheiro Ruy Santacruz, pelas orientações seguras ao direcionamento da pesquisa. Aos integrantes do Departamento de Defesa Comercial (Decom), do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, em especial ao analista de comércio exterior Flávio Martins Pimentel, pelo atendimento na visita realizada ao departamento e constante apoio técnico no desenvolvimento da dissertação. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo apoio financeiro e técnico, em especial ao assessor designado, pelas sugestões indicadas no desenvolvimento da pesquisa. “Não sonhamos com idéias ensinadas. O mundo é belo antes de ser verdadeiro. É admirado antes de ser verificado. A obscuridade do eu sinto deve primar sobre a clareza do eu vejo. Criar é superar uma angústia. O belo não é simples arranjo. Tem necessidade de uma conquista. O homem é um ser que se oferece à vida, deixando-se possuir por ela, para poder possuí-la. Olha o presente como uma promessa do futuro. Uma de suas forças é a ingenuidade, que o faz cantar seu próprio futuro.” Gaston Bachelard (1884 – 1962) SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................11 CAPÍTULO 1 Aspectos atuais da concorrência no Brasil 1. Regime jurídico da concorrência no Brasil.....................................20 2. Amplitude da defesa da livre concorrência.....................................23 3. Espécies de concorrência ilícita: concorrência desleal e infração à ordem econômica............................................................26 4. Repressão legal à concorrência desleal...........................................34 5. Coibição à infração à ordem econômica e o controle preventivo exercido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica......39 CAPÍTULO 2 Dumping: prática desleal no comércio internacional 6. Definição de dumping.....................................................................45 7. Natureza jurídica do dumping.........................................................52 8. A prática de dumping e sua difícil caracterização como infração à ordem econômica...........................................................55 9. Preço predatório e dumping.............................................................59 10. Dumping e subsídios.....................................................................63 CAPÍTULO 3 O dumping no âmbito mundial 11. Desenvolvimento histórico da legislação antidumping no âmbito mundial.........................................................................67 12. A evolução da legislação antidumping norte-americana...............76 13. A evolução da legislação antidumping na União Européia...........82 14.O dumping no mercado comunitário..............................................86 CAPÍTULO 4 Legislação brasileira antidumping 15. O fundamento jurídico da legislação antidumping........................91 16. Surgimento e evolução da legislação brasileira antidumping.......95 17. Organização institucional da defesa comercial no Brasil contra a prática de dumping........................................................104 18. Processo de investigação de dumping.........................................109 19. Informações e provas no processo de investigação antidumping..................................................................................118 CAPÍTULO 5 Elementos essenciais para a caracterização do dumping 20. Elementos essenciais para a caracterização do dumping.............121 21. Valor normal do produto.............................................................123 22. Preço de exportação do produto...................................................127 23. Margem de dumping....................................................................130 24. Dano à indústria do país importador do produto.........................136 CAPÍTULO 6 Mecanismos legais de coibição à prática de dumping 25. Medidas legais de repressão ao dumping....................................142 26. Medidas antidumping provisórias..............................................146 27. Compromissos de preços.............................................................148 28. Imposição e cobrança dos direitos antidumping..........................151 29. Medidas antidumping em nome de terceiro país.........................159 CAPÍTULO 7 A aplicação da legislação antidumping e os efeitos decorrentes 30. Aplicação da legislação antidumping..........................................162 31. A legislação antidumping dos Países-Membros e a Organização Mundial do Comércio (OMC)................................169 32. Solução de controvérsias no âmbito da OMC.............................172 33. O Decreto nº 1.602/95 e o Código Antidumping da OMC..........182 34. Perspectivas para a legislação antidumping................................187 CAPÍTULO 8 Casos concretos de dumping no Brasil 35. Abrangência dos casos de dumping no Brasil e a aplicação de medidas antidumping..............................................................193 36. Investigações antidumping em curso no Brasil...........................201 37. Casos concretos de dumping no mercado brasileiro e a atuação das autoridades responsáveis pela defesa comercial no país..........................................................................................204 38. Julgados sobre dumping no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica.........................................207 CONCLUSÃO...................................................................................213 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................227 TADDEI, M.G. O dumping e as normas internas de proteção à concorrência empresarial. Franca, 2001, 234p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Campus de Franca, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. RESUMO O processo de globalização intensificou as relações comerciais entre os países no final do Século XX, tornando mais freqüentes práticas empresariais desleais como o dumping e a respectiva utilização da legislação pertinente pelos países participantes do comércio internacional. A aplicação de medidas antidumping para neutralizar os efeitos da prática desleal protege a concorrência em benefício dos empresários do país importador, entretanto, se essas medidas forem aplicadas com finalidade protecionista, prejudicam a livre concorrência, impedindo a entrada de produtos estrangeiros em condições de concorrência com os produtos nacionais. As análises realizadas demonstraram que a legislação brasileira antidumping, de forma genérica, encontra-se em consonância com as normas da Organização Mundial do Comércio (OMC), que direcionam a aplicação de medidas antidumping no âmbito mundial. Apesar da evolução verificada na Rodada Uruguai, o estudo demonstrou a necessidade de algumas alterações na legislação antidumping da OMC para impedir a possibilidade de diferentes interpretações às normas antidumping pelos Países-Membros. As alterações devem proporcionar maior precisão a alguns conceitos presentes na legislação, como os referentes ao valor normal e à comprovação de dano, devendo também impor a aplicação de direitos antidumping em valores suficientes apenas para neutralizar os efeitos da prática desleal. A revisão da legislação antidumping mostra-se fundamental para a consolidação das normas antidumping no âmbito mundial e, sobretudo, para assegurar sua finalidade de proteger a concorrência em benefício dos empresários locais, sem causar prejuízos à concorrência internacional. Palavras-chave: dumping; antidumping; defesa comercial; concorrência; prática empresarial desleal; Organização Mundial do Comércio (OMC). TADDEI, M.G. O dumping e as normas internas de proteção à concorrência empresarial. Franca, 2001, 234p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Campus de Franca, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. ABSTRACT The globalization process increased commercial relations among the countries at the end of the twentieth century, making more frequent disloyal enterprise practice like dumping and the respective utilization of apt legislation towards countries of the international trade. The aplication of antidumping measurement to neutralize the effects of disloyal practice protects the competition in the businessmen´s benefit of importer country, howerver, if these measures were applied with protecting goals they would damage the free competition, holding back the entry of foreign products in terms of competition, holding back the entry of foreign products in terms of competition with the national products. The analysis made, show that antidumping brazilian legislation, in general, is along with the rules of the World Trade Organization (WTO), that take control of the aplication of antidumping measures in the world. In spite of the evolution checked in the Uruguay Round, the study showed the necessity of some alteration in the antidumping legislation of the WTO to avoid the possibility of different interpretations at antidumping rules from member countries. The alterations have to bring bigger precision in some concepts that are present in the legislation, like the referent to the normal value and the damage checking that must impose the application of antidumping dues in enough values only to neutralise the disloyal practice effects. The review of antidumping legislation shows itself essential to the antidumping rules consolidation in the world and, above all, to assure its purpose to protect the competition into the benefit of local businessmen, without causing impairments to the international competition. Keywords: dumping; antidumping; commercial protection; competition; disloyal enterprise practice; World Trade Organization (WTO). 1 INTRODUÇÃO O processo de liberalização do comércio internacional verificado no Primeiro Mundo desde meados da década de 1980 e na América Latina, a partir do início dos anos 90, proporcionou a intensificação das relações comerciais entre os países e a evolução dos setores mercantil, de recursos financeiros, de transferência de tecnologia e de investimentos. A generalização dessa tendência envolveu um grande número de países e a mídia passou a utilizar a expressão globalização para denominar o processo de integração econômica. Com a globalização, os critérios de eficiência na produção, na comercialização, nos investimentos e em toda a economia passaram a ser fixados no âmbito mundial e não mais em nível nacional ou local. O comércio internacional diferencia-se do comércio interno, sobretudo, em razão da diversidade de encargos e exações fiscais, além da existência de barreiras aduaneiras, que encarecem o custo final do produto ou impedem a sua livre circulação, podendo prejudicar a livre concorrência se aplicadas indiscriminadamente para a proteção dos empresários nacionais. O processo de integração econômica entre os países tem contribuído para a diminuição dos obstáculos impostos ao desenvolvimento do comércio internacional, praticado com menores restrições na atualidade em razão da 2 equalização gradativa dos tributos e taxas, que tendem a se uniformizarem, juntamente com as legislações internas de defesa comercial dos países. O desenvolvimento do comércio internacional intensificou a concorrência mundial, contribuindo para a proliferação das denominadas práticas comerciais desleais. Para assegurar o desenvolvimento do livre comércio, o Direito passou a regular e coibir essas práticas desleais e oportunistas, deflagradas, muitas vezes, para aniquilar a concorrência e conquistar novos mercados. A exposição do mercado nacional à concorrência internacional e o desenvolvimento das atividades empresariais exigiram dos países, além de instrumentos de defesa comercial contra as práticas comerciais desleais provenientes do comércio internacional, a elaboração de mecanismos destinados à defesa da livre concorrência no âmbito interno. Com o processo de abertura econômica as leis de proteção da livre concorrência e de defesa comercial adquiriram maior importância, mostrando-se fundamentais para assegurarem, respectivamente, a manutenção das estruturas do livre mercado no âmbito interno e a proteção dos empresários locais contra as práticas desleais provenientes da concorrência internacional, entre as quais destaca-se o dumping. O dumping é uma prática desleal de comércio internacional capaz de prejudicar a livre concorrência e os empresários 3 do país importador, correspondendo à introdução de um bem no mercado internacional com preço abaixo do valor normal praticado no mercado interno do país exportador. A prática de dumping que objetiva dominar mercados e eliminar ou desestimular a concorrência, tanto de empresários do país importador como de empresários estrangeiros, é considerada uma forma de concorrência desleal internacionalmente combatida, despertando grande interesse na atualidade. Desde o início do Século XX a prática de dumping preocupa os países participantes do comércio internacional, que elaboraram regras para defender seus empresários contra os efeitos da prática desleal, que nem sempre se mostra condenável. No combate ao dumping, alguns países adotaram diferentes critérios para determinar sua configuração e utilizaram medidas antidumping de forma indevida, desconfigurando a finalidade da legislação, atribuindo-lhe caráter protecionista. Os problemas decorrentes da imprópria aplicação de medidas antidumping e a necessidade da uniformização de procedimentos proporcionaram ao tema tratamento específico no âmbito mundial. A prática de dumping foi disciplinada no General Agreement on Trade and Tariffs (GATT) e atualmente as legislações internas dos Países-Membros são elaboradas de acordo com as normas antidumping da Organização Mundial do Comércio (OMC). Criada em 1994 na Rodada Uruguai, a OMC possui a finalidade de constituir suporte administrativo e jurídico-legal para o 4 comércio mundial por meio de um sistema multilateral de comércio integrado. O Acordo Constitutivo da OMC abrange as principais obrigações contratuais que determinarão a forma pela qual os Países- Membros deverão configurar suas leis e regulamentos comerciais internos, formando um sistema que constitui a base das relações comerciais entre eles com a finalidade de consolidar a uniformização de procedimentos no comércio internacional. Com o desenvolvimento e diversificação das atividades econômicas, o comércio internacional passou a ocupar um lugar de destaque no contexto de cada país, permitindo o aumento da interdependência entre os povos, considerando-se a necessidade crescente de se importar e exportar na busca da satisfação do desejo de consumo e das exigências de mercado. A concorrência empresarial no mundo globalizado intensificou a preocupação com as práticas desleais existentes no mercado interno e decorrentes da concorrência externa, acarretando o desenvolvimento de medidas protetoras de caráter interno e internacional para assegurar a efetiva participação dos empresários nacionais no comércio mundial. Na atual conjuntura, o Brasil se destaca pela evolução verificada em sua estrutura econômica e jurídica. No final dos anos 80 a economia brasileira baseava-se nas grandes empresas estatais e nas estruturas empresariais cartelizadas, que contribuíram para a expansão inflacionária e para a perda do potencial concorrencial da economia. Na superação dessa ultrapassada estrutura econômica destaca-se o 5 surgimento da Constituição Federal de 1988, que fundamenta a disciplina jurídica da atividade econômica na organização neoliberal da economia, objetivando a proteção da livre concorrência e a repressão legal ao abuso do poder econômico. Com o processo de abertura econômica implementado no início dos anos 90 o mercado brasileiro passou a ser abastecido por produtos importados de forma mais acentuada, acarretando a necessidade de elaboração de eficientes mecanismos de proteção aos empresários locais contra as práticas desleais difundidas no comércio internacional. Para a defesa comercial contra a prática de dumping destaca-se o Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994, que promulgou a Ata Final que incorpora os Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Multilaterais do GATT1, seguido pela Lei nº 9.019, de 30 de março de 1995, regulamentada pelo Decreto nº 1.602, de 23 de agosto de 1995, que disciplina os procedimentos administrativos relativos à aplicação de medidas antidumping pelas autoridades brasileiras. Além dos mecanismos de defesa comercial, o país também se destacou pela elaboração de importantes mecanismos legais destinados a assegurar a manutenção das estruturas de livre mercado no âmbito interno. O desenvolvimento das atividades empresariais e a intensificação da concorrência motivaram a elaboração da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, destinada a 1 Entre os resultados da Rodada Uruguai destaca-se o Acordo sobre a Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio 1994, denominado de Código Antidumping da OMC. 6 promover a livre concorrência no país e assegurar aos empresários locais condições adequadas de concorrência no mercado internacional. A lei de proteção da concorrência e as leis de defesa comercial complementam-se, protegendo os empresários locais das práticas desleais provenientes dos concorrentes internos e internacionais, o que resulta em benefícios aos consumidores e trabalhadores brasileiros, contribuindo para a manutenção da ordem econômica e social do país. Estruturada em oito capítulos, a dissertação trata do dumping e das normas internas de proteção à concorrência empresarial, enfocando o tema sob seu aspecto essencial de prática desleal de caráter internacional. Objetivando apresentar a evolução do tema e sua importância na atualidade, são destacados os efeitos do dumping sobre a concorrência empresarial e a utilização da legislação antidumping como instrumento de defesa comercial destinado a proteger os empresários locais dos efeitos danosos da prática desleal, ressaltando-se, entretanto, os prejuízos que a aplicação indevida da legislação antidumping pode causar a livre concorrência e aos consumidores nacionais. Objetivando demonstrar os principais aspectos que norteiam a concorrência no Brasil na atualidade, o Capítulo 1 abrange o regime jurídico brasileiro da concorrência, a amplitude da livre concorrência no país, as espécies de concorrência ilícita identificadas pela doutrina e os mecanismos legais de defesa da concorrência. A delimitação do tema e a apresentação de suas principais características 7 estão presentes no Capítulo 2, destinado a demonstrar que o dumping corresponde a uma prática comercial desleal característica do comércio internacional, não se confundindo com o preço predatório (underselling), conduta empresarial verificada nas relações comerciais internas e combatido pelos mecanismos previstos na lei antitruste brasileira (Lei nº 8.884/94). O Capítulo 2 também trata da definição e da natureza jurídica do dumping, ressalta as razões que dificultam sua caracterização como infração à ordem econômica e apresenta os fatores que diferenciam o dumping do preço predatório e da prática de subsídios. Delimitado o tema, passa-se para a apresentação de sua evolução histórica no âmbito mundial. O Capítulo 3 destaca o surgimento do dumping e das primeiras legislações destinadas a combatê-lo, o papel do GATT na elaboração dos mecanismos de controle do comércio internacional e a importância da Rodada Uruguai, que resultou na criação da Organização Mundial do Comércio. Referido capítulo também trata dos principais aspectos da evolução da legislação antidumping nos Estados Unidos e na União Européia, além de apresentar a análise da prática do dumping no contexto de um mercado comunitário. O tema passa a ser analisado sob o enfoque da legislação brasileira no Capítulo 4, que se refere ao surgimento e à evolução da legislação antidumping no país, à atual estrutura da defesa comercial e ao processo de investigação de dumping. O 8 Capítulo 5 trata dos elementos imprescindíveis para a caracterização do dumping, apresentando seus principais aspectos, de acordo com as definições presentes na legislação nacional. O Capítulo 6 abrange as medidas legais de repressão ao dumping, que correspondem aos compromissos de preços, medidas antidumping provisórias e direitos antidumping. Em razão de sua relevância, os efeitos da aplicação da legislação antidumping são objeto de tratamento específico no Capítulo 7, que apresenta os problemas identificados na aplicação da legislação antidumping, a questão da uniformidade das legislações antidumping internas dos Países-Membros e a solução de controvérsias na OMC. Mencionado capítulo também estabelece uma análise comparativa entre a legislação antidumping brasileira e as normas da OMC, ressaltando as poucas incompatibilidades encontradas. Nesse capítulo também são apresentadas as perspectivas para a legislação antidumping e a necessidade da revisão de alguns aspectos do Código Antidumping da Organização Mundial do Comércio. Objetivando demonstrar a importância e atualidade do tema no Brasil, o Capítulo 8 trata dos casos concretos de dumping no país, apresentando a abrangência desses casos e as medidas antidumping aplicadas em vigor. Também ganham destaque os casos de dumping que se encontram sob investigação no Brasil, a atuação das autoridades competentes pela defesa comercial e o tratamento 9 atribuído ao dumping no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), mediante a apresentação de julgados da autarquia referentes à prática desleal. Na elaboração dos tópicos e no desenvolvimento da dissertação preocupou-se em manter a finalidade principal de analisar a evolução do tema e os efeitos do dumping e das correspondentes medidas para combatê-lo sobre a concorrência empresarial. A evolução do tratamento destinado ao dumping no Brasil e as atuais estruturas legislativa e institucional de defesa comercial existentes no país condicionaram a realização da dissertação sob o enfoque nacional, em atenção às normas antidumping da Organização Mundial do Comércio, que direcionam o tratamento internacional atribuído à prática de dumping. 10 CAPÍTULO 1 Aspectos atuais da concorrência no Brasil 1. Regime jurídico da concorrência no Brasil 2. Amplitude da defesa da livre concorrência 3. Espécies de concorrência ilícita: concorrência desleal e infração à ordem econômica 4. Repressão legal à concorrência desleal 5. Coibição à infração à ordem econômica e o controle preventivo exercido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica. 1. Regime jurídico da concorrência no Brasil A concorrência é um tema que apresenta grande relevância para o desenvolvimento econômico de um país, especialmente naqueles que prestigiam a existência do livre mercado. Segundo Isabel Vaz2, a noção tradicional de concorrência pressupõe uma ação desenvolvida por um grande número de competidores, atuando livremente no mercado de um mesmo produto, de forma que a oferta e a procura provenham de compradores ou de vendedores cuja igualdade de condições os impeça de influir, de forma permanente, ou duradoura, no preço dos bens ou serviços. Definida por Marcus Elidius de Almeida3 como a possibilidade de competitividade entre os fornecedores de um mesmo bem ou serviço, com o objetivo de trazer 2 VAZ, Isabel. Direito Econômico da Concorrência, Rio de Janeiro: Forense, 1993, p.27. 3 ALMEIDA, Marcus Elidius M. de. Propriedade industrial frente à concorrência desleal. In: SIMÃO FILHO, Adalberto, DE LUCCA, Newton. Direito empresarial contemporâneo, São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p.125. 11 para si o maior número de consumidores, a concorrência é protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro, que nesse aspecto, tutela os interesses de concorrentes e de consumidores. O regime jurídico da concorrência no Brasil é definido pela Constituição Federal. O art. 170 fundamenta a ordem econômica na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, elencando, entre os princípios gerais da atividade econômica, o princípio da livre concorrência. Referido dispositivo constitucional prevê a mínima intervenção do Estado no desenvolvimento das atividades econômicas, mas não importa na plena liberdade do indivíduo para praticar e desenvolver qualquer atividade empresarial, que encontra limites. A intervenção estatal no desenvolvimento da atividade econômica apenas se justifica nas hipóteses de condutas empresariais que afrontem as estruturas do livre mercado e nos casos previstos em lei, como por exemplo, na previsão de prévia autorização governamental para a exploração de atividades de bancos e sociedades de créditos, sociedades de seguros e capitalização, empresas de navegação aérea, empresas de transportes ferroviários, empresas de arrendamento mercantil. De acordo com a previsão constitucional, a concorrência pode ser comparada a uma corrida esportiva, na qual a ninguém se assegura o direito de ganhar, apenas o direito de não ser lesado em suas forças pelos adversários. No regime concorrencial 12 previsto pela Constituição, o Estado apenas monitora o comportamento dos agentes econômicos, intervindo apenas no caso de conduta que tenha por finalidade restringir a livre iniciativa, prejudicar a livre concorrência. Ao supervisionar o desenvolvimento da atividade econômica o Estado deve assegurar a livre concorrência por meio de mecanismos que não afrontem os demais princípios previstos no art. 170 da Constituição Federal, que apresentam importância equivalente a do princípio da livre concorrência. A função social da propriedade, a defesa do consumidor e os demais princípios previstos no art. 170 como informadores da ordem econômica demonstram, como destaca Fábio Ulhoa Coelho4, que a livre concorrência não é mais que um dos elementos estruturais da ordem econômica, devendo compatibilizar-se com os demais. A equiparação da livre concorrência aos demais princípios informadores da ordem econômica apresenta relevância para o equilíbrio entre os interesses do empresário, os interesses de consumidores e os relacionados à preservação do meio ambiente, entre outros, identificados nos princípios presentes no art. 170 da Constituição Federal. A equivalência valorativa prevista no texto constitucional orienta o legislador ordinário, que deve respeitá-la ao dispor sobre a ordem econômica, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade. 4 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, 2 ed.; São Paulo: Saraiva, 1999, v.1, p.180. 13 José Júlio Borges da Fonseca5 destaca que a concorrência estimula o avanço técnico e o aumento da produtividade com a finalidade de ampliar o círculo de consumidores, apresentando função protetiva, já que abre ao consumidor possibilidade de múltiplas escolhas. O regime de concorrência, segundo José Júlio, possui caráter pluralista, levando à melhor divisão de rendas, além de funcionar como regime seletivo, deixando no mercado somente os empresários mais eficientes, o que não significa, necessariamente, empresas no mesmo nível econômico. 2. Amplitude da defesa da livre concorrência De acordo com o regime jurídico da concorrência definido pela Constituição Federal, todos possuem o direito de explorar atividade econômica e o dever de respeitar os limites da liberdade prevista pelo ordenamento jurídico, não praticando atos ilícitos que impeçam o pleno exercício do direito assegurado. Ao Estado cabe somente interferir na ordem econômica nos limites definidos no texto fundamental, ou seja, apenas no caso de conduta empresarial que ofenda as estruturas do livre mercado. Ao tratar da exploração da atividade econômica, a Constituição Federal atribuiu à iniciativa privada o papel primordial, reservando ao Estado apenas uma função supervisora, prevendo a intervenção no domínio 5 FONSECA, José Júlio Borges da. Direito antitruste e regime das concentrações empresariais, São Paulo: Atlas, 1997, p.30. 14 econômico apenas em hipóteses excepcionais, quando, por exemplo, for necessária à segurança nacional e diante de relevante interesse coletivo. A livre concorrência não constitui um valor absoluto, mas um princípio norteador das atividades econômicas, correspondendo a um instrumento de política econômica do governo colocado a serviço do desenvolvimento econômico do país. Assim, práticas anticoncorrenciais, como por exemplo a concentração empresarial, podem ser toleradas quando se verificam benefícios à coletividade. Na defesa do livre mercado, o que se protege é a concorrência livre, a competição isenta de fraudes ou abusos e insuscetível de causar restrições às estruturas do livre mercado. Não basta ao empresário que se entende lesado pela concorrência provar que essa competição lhe vem causando danos econômicos, uma vez que todo o ato de concorrência é, em princípio, suscetível de provocar prejuízo. Na defesa da livre concorrência, o problema não reside no fato da produção de um dano, mas na forma como esse dano foi produzido e nos efeitos causados, ou possíveis de serem causados às estruturas do livre mercado. De acordo com o atual regime jurídico concorrrencial, não se coíbe o ato de concorrência, mas sim a deslealdade dos competidores e os efeitos nocivos que os atos dos agentes econômicos podem acarretar à livre concorrência, quando identificado o abuso do poder econômico. 15 Na defesa da livre concorrência destaca-se o princípio da livre iniciativa. Para uma parte da doutrina, livre concorrência e livre iniciativa abrangem conceitos distintos que se complementam. Luiz Gastão Paes de Barros Leães6 define a livre iniciativa como a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição das riquezas, significando a livre escolha e o livre acesso às atividades econômicas. A livre concorrência apresenta um conceito instrumental da livre iniciativa, sendo o princípio econômico segundo o qual a fixação dos preços dos bens e serviços não devem resultar de atos da autoridade, mas sim do livre jogo das forças em disputa no mercado, ou seja, todos possuem o direito de desenvolver uma atividade econômica, desde que a exerçam de forma competitiva. Paula Forgioni7 destaca que a liberdade de iniciativa implica a liberdade de concorrência e vice-versa. Aos agentes econômicos é assegurada liberdade de desenvolvimento de uma atividade econômica e para garantir a manutenção do sistema e das regras do jogo objetivando assegurar a livre iniciativa ou a livre concorrência, são definidos limites à atuação desses agentes, disciplinando seu comportamento no mercado. Segundo Forgioni, a disciplina da concorrência coloca-se correlata à livre iniciativa e quando a autoridade antitruste autoriza ou coíbe um determinado comportamento do agente econômico, está atuando o princípio da 6 LEÃES, Luiz Gustavo Paes de Barro. O “dumping” como forma de abuso do poder econômico. Revista de direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 91, p.5-15, jul./set. 1993. 7 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.227-230. 16 livre iniciativa e da livre concorrência, tal qual modernamente concebidos, já que no princípio da livre iniciativa (e da livre concorrência) abriga-se também a atuação estatal com a finalidade de disciplinar comportamentos dos agentes econômicos que resultariam em prejuízos à concorrência. Em razão da garantia da liberdade empresarial envolver uma série de fatores o objeto de tutela da concorrência é bastante amplo, envolvendo aspectos individuais e coletivos. A concorrência não constitui objeto imediato de disciplina, sua proteção ocorre por meio de normas da propriedade industrial e pelas limitações à autonomia privada ou pela sanção de práticas unilaterais, conforme se configure concorrência desleal ou infração à ordem econômica. 3. Espécies de concorrência ilícita: concorrência desleal e infração à ordem econômica A concorrência desleal e a concorrência praticada com abuso do poder econômico são as duas espécies (ou modalidades) de concorrência ilícita identificadas atualmente pela doutrina. O direito positivo brasileiro consagra a repressão da concorrência ilícita, não somente no interesse e defesa dos próprios concorrentes, como também no interesse dos consumidores, que podem ser beneficiados com o sucesso da repressão às práticas lesivas à livre concorrência. 17 Quando trata das infrações à ordem econômica, o direito concorrencial é denominado pela doutrina de direito antitruste e tem por finalidade assegurar a liberdade no mercado. Já as normas referentes à concorrência desleal presentes na lei de propriedade industrial possuem a função de reprimir as práticas desonestas. A concorrência desleal e a concorrência praticada com abuso do poder econômico, caracterizada como infração à ordem econômica, distinguem-se quanto aos pressupostos de caracterização, formas de repressão e tratamento legislativo, além de divergirem em relação ao âmbito dos interesses envolvidos. Não é rara a existência de confusão entre esses diferentes segmentos do direito concorrencial, sobretudo no que se refere aos interesses diretamente protegidos pelos respectivos diplomas legais, não obstante as distinções que apresentam, conforme exposto na seqüência. A concorrência desleal, disciplinada pela Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, denominada pela doutrina como lei de propriedade industrial, envolve os interesses particulares dos empresários concorrentes envolvidos e as lesões produzidas não alcançam de forma imediata outros interesses além dos referentes ao empresário diretamente vitimado pela prática irregular. Os interesses tutelados pela infração à ordem econômica são mais abrangentes, visto que as normas de coibição à infração à ordem econômica tem por finalidade preservar o livre mercado, alcançando a coletividade. 18 Segundo Paula Forgioni8, as normas de concorrência desleal possuem dupla finalidade: a proteção dos concorrentes contra a concorrência desleal e a proteção da coletividade contra os excessos da concorrência. Na concorrência desleal, o bem imediatamente tutelado é o concorrente (agente econômico), protegendo-se, por via de conseqüência e de forma indireta, a coletividade (consumidores) contra os excessos da concorrência. Assim, no caso da proteção da concorrência leal realizada pela Lei nº 9.279/96, prevalece o interesse particular do agente econômico individualmente considerado e cuida- se da lisura do concorrente no desenvolvimento da atividade econômica. Já nas normas antitruste prevalece a tutela do interesse coletivo ou geral da concorrência, enfocando-se a manutenção e condução da estrutura do livre mercado. O prejuízo causado a um concorrente é bem diferente do prejuízo gerado à concorrência. A concorrência desleal caracteriza-se pelos meios inidôneos utilizados pelo empresário para ampliar sua clientela. Por meio da análise dos recursos utilizados pelo empresário para conquistar fatias do mercado (market share) pode-se identificar a deslealdade competitiva. A utilização indevida do uso do nome empresarial ou de título de estabelecimento (inciso V, art. 195, Lei nº 9.279/96), por exemplo, constitui meio inidôneo de ampliar a clientela, constituindo prática desonesta que produz efeitos que interessam diretamente ao empresário vitimado, configurando crime de concorrência desleal. 8 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.240-44. 19 Cumpre ressaltar que a busca da ampliação da participação do empresário no seu segmento de mercado constitui elemento fundamental da concorrência e o ganho de um corresponde a perda de outros concorrentes no mesmo segmento. Portanto, na concorrência os empresários objetivam imputar perdas a seus concorrentes para conquistarem a porção do mercado correspondente, mediante, por exemplo, recursos de publicidade, melhoria da qualidade do produto ou serviço. Como se constata, a distinção entre a concorrência leal e desleal apresenta dificuldades, já que em ambas o empresário possui o intuito de prejudicar concorrentes, retirando-lhes, total ou parcialmente, fatias do mercado que haviam conquistado. Além disso, as motivações e os efeitos da concorrência leal e desleal são idênticos e a intenção de causar dano a outro empresário é elemento presente tanto na concorrência lícita como na ilícita. A distinção, portanto, encontra-se nos meios empregados para a realização dessa finalidade, já que existem meios idôneos e inidôneos de ganhar consumidores e conquistar a disputada fatia do mercado. A concorrência praticada com abuso do poder econômico, caracterizada como infração à ordem econômica pela Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, alcança um universo muito maior de interesses juridicamente relevantes, já que essa espécie ou modalidade de concorrência ilícita ameaça as estruturas de livre mercado. Na 20 infração à ordem econômica não importam os meios utilizados pelo empresário, mas os efeitos causados ou possíveis de serem causados às estruturas do livre mercado. Objetivando assegurar a livre concorrência, o §4º, art. 173 da Constituição Federal prevê que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à eliminação da concorrência, domínio de mercados e ao aumento arbitrário dos lucros. Em atendimento à respectiva norma constitucional encontra-se atualmente em vigência a Lei nº 8.884/94, chamada de lei antitruste brasileira, que se destaca por transformar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em autarquia federal e por sistematizar as hipóteses caracterizadoras de infração à ordem econômica nos arts. 20 e 21. De acordo com seu art. 1º, a lei antitruste brasileira tem por finalidade a prevenção e a repressão às infrações à ordem econômica, com base na previsão constitucional da liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico. O parágrafo único do referido dispositivo prevê que a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos pela Lei nº 8.884/94. Compete ao Cade a repressão administrativa às infrações à ordem econômica. O Cade possui jurisdição administrativa em todo o território nacional. Trata-se de jurisdição administrativa e não judicial porque o Cade integra o Poder Executivo e não o 21 Judiciário. De acordo com parte da doutrina de direito público, o Cade é uma entidade com caráter de órgão administrativo de função quase judicial, em razão das maiores formalidades na preparação e edição dos respectivos atos9. Além da competência relacionada à coibição das práticas infracionais, o Cade possui atribuições preventivas, destacando-se à relacionada à aprovação dos atos que possam limitar ou prejudicar a livre concorrência ou resultar dominação de mercado, como os atos de concentração empresarial, entre os quais destacam-se o caso AmBev e o caso Kolynos, apreciados e aprovados pela autarquia com uma série de restrições. Portanto, compete ao Cade reprimir os atos que caracterizam infração à ordem econômica (atuação repressora) e analisar os atos de concentração que possam afetar a livre concorrência (atuação preventiva). Quanto à caracterização da infração à ordem econômica, a Lei nº 8.884/94, no art. 20, dispõe que constituem infração à ordem econômica, independentemente de culpa, os atos que produzam ou possam produzir os seguintes efeitos: limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre iniciativa ou a livre concorrência; dominar mercado relevante de bens ou serviços; aumentar arbitrariamente os lucros; exercer de forma abusiva posição dominante. No art. 21, a lei antitruste elenca, em caráter exemplificativo, as condutas empresariais que caracterizam infração à 9 COELHO, Fábio Ulhoa. Direito antitruste brasileiro: comentários à Lei nº 8.884/94, São Paulo: Saraiva, 1995, p.12. 22 ordem econômica, apresentando as práticas mais utilizadas no abuso do poder econômico, sem exaurir todas as possibilidades de condutas empresariais lesivas às estruturas do livre mercado. Importante ressaltar que a caracterização da infração à ordem econômica decorre obrigatoriamente da conjugação dos arts. 20 e 21 da Lei nº 8.884/94, já que se a conduta elencada no art. 21 não apresentar os efeitos, efetivos ou potenciais, previstos no art. 20, não se configura infração à ordem econômica. A conduta empresarial correspondente a qualquer um dos incisos do art. 21 somente é infracional se o seu efeito no mercado, efetivo ou potencial, configurar as hipóteses previstas no art. 20, ou seja, se dessa conduta resultar domínio de mercado, eliminação da concorrência ou aumento arbitrário dos lucros, de acordo com a norma constitucional programadora da lei antitruste (§4º, art. 173, Constituição Federal). A expressão mercado relevante foi introduzida no direito antitruste brasileiro pela Lei nº 8.884/94 e sua delimitação é imprescindível para se determinar a incidência de qualquer das hipóteses contidas nos incisos do art. 20 da lei antitruste. Na definição de Paula Forgioni10, “mercado relevante é aquele em que se travam as relações de concorrência ou atua o agente econômico cujo comportamento está sendo analisado”. 10 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.200. 23 A definição de mercado relevante é feita em dois níveis: o geográfico e o material (mercado do produto). Mercado relevante geográfico é a área na qual se trava a concorrência relacionada à prática que está sendo considerada como restritiva, ou seja, é o espaço físico no qual se desenvolvem as relações de concorrência consideradas. A delimitação geográfica do mercado é importante sobretudo no Brasil, em razão das grandes e variadas diferenças regionais existentes em termos econômicos e culturais. O mercado relevante pode não abranger todo o território nacional, embora isso aconteça em determinadas hipóteses. O mercado relevante pode ser o internacional (ausência de barreiras alfandegárias), fato característico da economia globalizada11. O mercado relevante material (ou mercado do produto) é aquele em que o agente econômico enfrenta a concorrência, considerado o bem ou serviço que oferece. Sua delimitação, como ocorre com o mercado relevante geográfico, parte da identificação das relações de concorrência. Primeiramente deve-se identificar a necessidade do consumidor satisfeita pelo produto que está sendo considerado para verificar se ele está normalmente disposto a substituí-lo por outro. Se a resposta for afirmativa, ambos farão parte do mesmo mercado relevante material. Assim, a fungibilidade dos produtos para o consumidor faz com que integrem mercado relevante 11 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.202. 24 material idêntico e a delimitação do mercado relevante material é feita a partir da perspectiva do consumidor12. A ampliação dos limites do mercado relevante material é estratégia comum nas defesas antitruste. No caso da Ambev o mercado relevante material proposto foi o das bebidas em geral e o Cade, adotando a tendência mundial de cada vez mais limitar a extensão da delimitação dos mercados relevantes, considerou três mercados relevantes materiais, o das águas engarrafadas, dos refrigerantes carbonatados e o mercado relevante das cervejas, em que a concentração empresarial foi superior a 70%. Definido o mercado relevante, deve-se verificar se o agente econômico controla o respectivo segmento da atividade econômica, influenciando de forma considerável o desenvolvimento das atividades dos demais agentes econômicos que atuam na mesma porção do mercado. O §3º, art. 20, da Lei nº 8.884/94 prevê que há a presunção de posição dominante quando o empresário ou grupo de empresários controla 20% do mercado relevante. 4. Repressão legal à concorrência desleal A Lei nº 9.279/96 coíbe a concorrência desleal por meio da repressão penal e civil. O art. 195 da referida lei elenca em 12 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.207. 25 quatorze incisos condutas que tipificam crime de concorrência desleal, prevendo pena de detenção de três meses a um ano, ou multa. No art. 209, a lei de propriedade industrial ressalva ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de concorrência desleal não previstos na Lei nº 9.279/96, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos empresariais ou entre os produtos e serviços colocados no mercado. Fábio Ulhoa Coelho13 classifica a concorrência desleal em duas categorias: específica e genérica. A concorrência desleal específica, segundo Ulhoa, é a sancionada civil e penalmente, ao passo que a concorrência desleal genérica é sancionada apenas no âmbito civil, como por exemplo, o ato do empresário que cria confusão em face do layout do estabelecimento concorrente, copiando as cores com o objetivo de atrair a clientela por engano. Rubens Requião14 destaca três grandes categorias de concorrência desleal: atos que criam confusão; desvio de clientela; atos contrários à moralidade. A classificação apresentada por Requião, embora não apresente importância prática, já que as conseqüências jurídicas para todas as categorias são rigorosamente idênticas, mostra- se útil para a apresentação das principais condutas tipificadas como crime de concorrência desleal pelo art. 195 da Lei nº 9.279/96. 13 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, 2 ed., São Paulo: Saraiva, 1999, v.1, p.184. 14 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, 23 ed., São Paulo: Saraiva, 1998, v.1, p.316- 17. 26 De acordo com o jurista paranaense, atos que criam confusão são aqueles que induzem a clientela em erro, correspondendo aos atos mais freqüentemente praticados para causar intencionalmente confusão entre os produtos ou serviços fornecidos por um empresário com os produtos ou serviços fornecidos por um concorrente. Pertencem a essa categoria o uso ou imitação de sinal ou expressão de publicidade alheios, o uso indevido do nome empresarial ou do título de estabelecimento de um concorrente. Os atos classificados doutrinariamente como desvio de clientela objetivam produzir o descrédito do concorrente ou de seus produtos ou serviços. São dessa categoria os atos que divulgam falsa afirmação em detrimento ou sobre o concorrente com o fim de obter vantagem e aqueles que empregam meio fraudulento para desviar em proveito próprio ou alheio clientela de outro concorrente. Os atos contrários à moralidade objetivam obter vantagem por meio de práticas imorais e desonestas condenadas no meio empresarial, como a atribuição como meio de publicidade de recompensa ou distinção que não obteve, a violação de segredo de empresa, que pode ter como agente ativo os hackers (espionagem a distância), infiltração de empregados ou colaboradores do agente ativo no corpo funcional da concorrente (espionagem econômica), ou aliciamento de membros do agente econômico (compra de informações privilegiadas). Também é condenado no meio 27 empresarial o ato de vender, expor, oferecer à venda ou mencionar em anúncio ou papel comercial, produto, declarando ser objeto de patente depositada ou concedida, ou de desenho industrial registrado, que não o seja. A repressão civil à concorrência desleal assegura ao empresário vítima a devida composição dos danos sofridos. No caso da concorrência desleal específica, segundo a classificação destacada por Fábio Ulhoa Coelho15, a caracterização da conduta como ilícita não enfrenta maiores problemas. Quando o ato é tipificado como crime pelo art. 195 da Lei nº 9.279/96 inexistem dúvidas quanto à natureza desleal da prática de concorrência, já que no caso aplica-se o disposto no art. 1.525 do Código Civil. Na hipótese da concorrência desleal genérica, não tipificada como crime segundo a classificação de Fábio Ulhoa, a questão da caracterização da conduta do demandado na esfera civil apresenta-se mais complexa diante da dificuldade de diferenciação da concorrência lícita da ilícita quanto à finalidade e aos resultados, ou seja, a imputação de perdas aos concorrentes para conquistar fatias do mercado. Assim, será a idoneidade do meio utilizado que possibilitará a distinção entre o que se permite e o que se condena na concorrência. O art. 209 da lei de propriedade industrial prevê o direito a indenização civil por atos de concorrência desleal não 15 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, 2 ed., São Paulo: Saraiva, 1999, v.1, p.184. 28 tipificados como crime, quando “tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviços, ou entre os produtos e serviços postos no comércio”. Segundo Fábio Ulhoa Coelho16, qualquer meio inidôneo gera a responsabilidade civil por concorrência desleal, esteja ou não previsto como crime específico, sendo a dificuldade de apontar de maneira exaustiva a lista de meios desleais a mesma enfrentada para distinguir a concorrência desleal genérica das formas lícitas de competição. O valor da indenização paga ao empresário vítima de concorrência desleal encontra-se previsto nos arts. 208 e 210 da Lei nº 9.279/96, que, de forma genérica adota o mesmo critério previsto no art. 1.059 do Código Civil, definindo o montante da indenização pelo que efetivamente se perdeu mais o que razoavelmente se deixou de ganhar. Quanto aos lucros cessantes, de acordo com o art. 210, o valor do ressarcimento será o mais favorável ao prejudicado dentre três possíveis: os benefícios que ele teria se não tivesse existido a deslealdade competitiva; os benefícios que o concorrente condenado auferiu; a remuneração que o prejudicado teria recebido se, por meio da licença, houvesse legitimado a ação do concorrente. 16 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, 2 ed., São Paulo: Saraiva, 1999, v.1, p.189. 29 5. Coibição à infração à ordem econômica e o controle preventivo exercido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica Condutas empresariais que configuram infração à ordem econômica, como a formação de cartel (organização de produtores dentro de um setor empresarial que determina as políticas de preço para todos os empresários desse setor, causando, ou podendo causar, danos ao livre mercado)17 e a prática de underselling (venda de bens abaixo do preço de custo que causa, ou possa causar, restrições às estruturas do livre mercado) são objeto de repressão administrativa pelo Estado, que intervém nesses casos para defender a livre concorrência por intermédio do Cade. Essas condutas infracionais, além de serem coibidas no âmbito administrativo, também podem ensejar a repressão civil (art. 29, Lei nº 8.884/94 e art. 159, Código Civil) e penal (arts. 4, 5 e 6, Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990). A responsabilização administrativa do empresário por infração à ordem econômica é totalmente independente das responsabilidades civil e penal em razão da mesma conduta. O Cade não possui competência para julgar conflitos entre partes privadas, não tendo legitimidade para defender interesses individuais, ainda que se trate de causas de concorrência desleal. O art. 29 da Lei nº 8.884/94 permite ao particular que se sentir lesado por uma prática anticoncorrencial requerer em juízo a determinação de sua cessação, 17 MALARD, Neide Teresinha. O cartel. Revista de direito econômico, n.21, p.31-49, out./dez. 1995. 30 cumulada com o pedido de indenização pelas perdas e danos decorrentes com base no art. 159 do Código Civil. No caso, trata-se de responsabilidade civil do empresário em razão de conduta empresarial ilícita que possibilita o curso simultâneo de processo civil e administrativo relativos à mesma matéria, não existindo incompatibilidade entre as duas instâncias e, como adverte José Inácio Gonzaga Franceschini18, litispendência, já que os processos e as respectivas decisões são independentes entre si. No âmbito administrativo, a legislação antitruste prevê sanções administrativas de natureza pecuniária e de natureza não pecuniária para coibir condutas dos agentes econômicos que configurem infração à ordem econômica. As sanções de natureza pecuniária são previstas no art. 23 da Lei nº 8.884/94. No caso de pessoa jurídica empresarial é prevista multa de 1% a 30% do valor do faturamento bruto em seu último exercício, excluídos os impostos. Para o administrador, responsável direto ou indireto pela infração à ordem econômica, é prevista multa de 10% a 50% do valor da multa que seria aplicável ao empresário. Como o abuso do poder econômico pode ser perpetrado por pessoa física, pessoa jurídica não empresarial (associação profissional ou pessoa jurídica de direito público) ou ainda por ente despersonalizado, a lei também trata de multa em valor fixo, independentemente do faturamento. Assim, não sendo possível utilizar-se do valor do faturamento bruto, a multa será de seis mil a seis milhões de Unidades Fiscais de Referência (UFIR), ou padrão 18 FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga. Introdução ao direito da concorrência, Revista de Direito Econômico, n. 21, p.75-120, out./dez. 1995. 31 superveniente. Havendo reincidência a multa será aplicada em dobro e poderá ser aplicada cumulativamente ou isoladamente ao administrador e ao empresário. Quanto às sanções não pecuniárias, previstas no art. 24 da Lei nº 8.884/94, elas envolvem medidas como a publicação de notícia sobre a ocorrência de prática anticoncorrencial durante dois dias seguidos, de uma a três semanas consecutivas, em meia página e por conta do infrator em jornal indicado na decisão; a inscrição do infrator no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor; a proibição de participar de licitação durante 5 anos consecutivos e de celebrar contratos com instituições financeiras; recomendação aos órgãos públicos para que seja concedida licença compulsória de patentes de titularidade do infrator, entre outras penalidades previstas no referido art. 24 da lei antitruste. Fábio Ulhoa Coelho19 destaca a possibilidade da mesma conduta empresarial caracterizar infração à ordem econômica e também crime contra a ordem econômica previsto na Lei nº 8.137/90. Segundo Ulhoa, a hipótese verifica-se quando a conduta é descrita ao mesmo tempo pelos arts. 20 e 21 da Lei n° 8.884/94 e pelos arts. 4° a 6° da Lei n° 8137/90, que ensejam ação penal pública incondicionada. Nessa hipótese sobrepõem-se as sanções administrativa e penal, não existindo similitude entre uma e outra 19 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, 2 ed., São Paulo: Saraiva, 1999, v.1, p. 231. 32 categoria de ilícitos, ou seja, o empresário pode ser sancionado por infração à ordem econômica e não cometer crime algum, e vice-versa. No campo da responsabilidade civil, uma vez caracterizada a conduta infracional do empresário, estará ele sujeito à sanção administrativa imposta pelo Cade e também à responsabilização civil em juízo. A possibilidade do lesado por infração à ordem econômica demandar perdas e danos do empresário infrator está especificamente prevista no art. 29 da lei antitruste, que assegura os mesmos direitos aos legitimados para a tutela de interesses individuais homogêneos, difusos e coletivos20. A imposição de penalidade administrativa contra o empresário demandado não é condição para o exercício da ação judicial de indenização, mas apenas um consistente elemento de prova que deve ser considerado pelo demandante, como bem ressalta Fábio Ulhoa21. Como guardião da livre concorrência no país, o Cade, além da atuação repressiva às infrações à ordem econômica, destaca- se também pela atuação preventiva. Embora na atual lei antitruste há o predomínio de dispositivos reguladores da repressão à infração à ordem econômica (arts. 15 a 53) em relação às normas de caráter preventivo (arts. 54 a 58), o Cade tem se destacado mais pela apreciação dos atos de concentração do que pelo julgamento dos processos administrativos sobre condutas infracionais. 20 No caso de ofensa a interesse individual tem legitimidade ativa apenas o sujeito lesado. Atingindo interesses transindividuais, possuem legitimidade ativa os órgãos ou entidades do art. 82 do Código de Defesa do Consumidor. 21 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, 2 ed., São Paulo: Saraiva, 1999, v.1, p.231. 33 No caso AmBev, o Cade exerceu o controle preventivo porque a fusão ocorrida enquadra-se na hipótese prevista no §3º, art. 54, da Lei n° 8.884/94. De acordo com mencionado dispositivo, devem ser submetidos a apreciação do Cade os atos que visem a qualquer forma de concentração econômica por meio de fusão ou incorporação de empresas ou qualquer agrupamento societário que envolva participação de empresário ou grupo de empresários resultante em 20% de um mercado relevante, ou em que qualquer um dos participantes tenha registrado faturamento bruto anual no último balanço equivalente a 400 milhões de reais. A união da Brahma e da Artarctica representava cerca de 72% do mercado de cerveja no Brasil e 40% do mercado de bebidas em geral, justificando a atuação da autarquia. Quando presentes os requisitos previstos na lei, torna- se obrigatório o exame dos efeitos do ato pelo Cade, cuja aprovação é condição para o seu aperfeiçoamento. Conforme previsto na lei antitruste (§4º, art. 54), não é necessário que o ato seja submetido à análise da autarquia previamente à assinatura dos respectivos instrumentos, as partes possuem o prazo de quinze dias úteis seguintes à realização da operação para submeterem o ato à apreciação do Cade, podendo, assim, concretizarem o negócio jurídico antes do pronunciamento da autarquia. Se o ato for rejeitado pelo órgão governamental, o §9° do art. 54 determina a sua desconstituição, total ou parcial. 34 Na hipótese do Cade aprovar o ato submetido à sua apreciação na forma do art. 54, definirá os termos do compromisso de desempenho a ser firmado pelos interessados, de forma a assegurar o cumprimento das condições estabelecidas no §1° do art. 54. Assim, se a autarquia aprova determinado ato de concentração em decorrência da perspectiva de elevação do nível de emprego em determinada região, conforme projetado pelas partes, pela Secretaria de Política Industrial ou pela Secretaria de Direito Econômico, é necessário verificar se tal fato realmente ocorrerá. O controle é realizado por meio do cumprimento das metas estabelecidas no compromisso de desempenho. 35 CAPÍTULO 2 Dumping: prática desleal no comércio internacional 6. Definição de dumping 7. Natureza jurídica do dumping 8. A prática de dumping e sua difícil caracterização como infração à ordem econômica 9. Preço predatório e dumping 10. Dumping e subsídios 6. Definição de dumping Dumping é uma palavra de origem inglesa que não encontra tradução nas línguas latinas, estando incorporada em sua grafia original ao vocabulário de inúmeros idiomas, dentre eles o português. Na definição do Black´s Law Dictionary22, dumping é o ato de vender grandes quantidades a um preço muito abaixo ou praticamente sem considerar o seu preço, correspondendo também à venda de mercadorias no exterior por preço inferior ao do mercado doméstico23. Atualmente, o termo dumping ganha destaque no âmbito jurídico sob o aspecto de prática empresarial de caráter internacional. A doutrina moderna considera apenas a parte final da definição presente no Black´s Law Dictionary para delimitar o dumping, distinguindo-o do preço predatório (underselling). No 22 Black´s Law Dictionary. Fifth edition, St. Paul: West Publishing Co., 1979, p.451. 23 Texto original: “The act of selling in quantity at a very low price or pratically regardless of the price; also, selling goods abroad at less than the market price at home”. 36 direito norte-americano e no direito alemão, por exemplo, limita-se o uso do vocábulo dumping ao fenômeno na área das transações internacionais24. No âmbito mundial, a Organização Mundial do Comércio adota o mesmo entendimento, disciplinando o dumping como prática empresarial de caráter internacional. José Roberto Pernomiam Rodrigues25 destaca que a questão central do dumping é a venda de produtos em outro mercado, que não o do país exportador, a um preço menor que o praticado no mercado interno do exportador. Bruno Ratti26, ao definir dumping, destaca seus efeitos prejudiciais à concorrência, entendendo que a prática de dumping vem a ser “o lançamento, no mercado estrangeiro, de mercadorias a preços baixos, na maioria das vezes inferiores ao próprio custo de produção, com o objetivo de eliminar a concorrência, tanto de produtores do país importador como de outros produtores estrangeiros”. Para Fábio Ulhoa Coelho27, a prática comercial conhecida por dumping corresponde “à venda de mercadorias em país onde não são produzidas, por preço inferior àquele praticado no país 24 LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. O “dumping” como forma de abuso do poder econômico. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 91, p.5-15, jul./set. 1993. 25 RODRIGUES, José Roberto Pernomian. Os efeitos do dumping sobre a competição. Revista de Direito Econômico, n. 22, p.29-43, 1996. 26 RATTI, Bruno. Vade-Mécum de Comércio Internacional e Câmbio, São Paulo: Aduaneiras, 1991, p. 8 apud MARQUES, Frederico do Valle Magalhães, O “dumping” na Organização Mundial do Comércio e no Direito Brasileiro - Decreto nº 1.602/95. In: CASELLA, Paulo Borba, MERCADANTE, Araminta de Azevedo. Guerra Comercial ou Integração Mundial pelo Comércio?: A OMC e o Brasil, Paulo Borba Casella, Araminta de Azevedo Mercadante coordenadores, São Paulo: Ltr, 1998, p.299. 27 COELHO, Fábio Ulhoa. Direito Antitruste Brasileiro: comentários à Lei nº 8.884/94, São Paulo: Saraiva, 1995, p.82. 37 onde são produzidas”. Em sua obra específica sobre o tema, Guilherme Johannpeter28 assevera que “um produto é objeto de dumping se o seu preço de exportação para o Brasil for inferior ao valor normal de produto similar no mercado de origem”, tratando-se “da configuração da discriminação de preços, que para ser questionada, deverá também causar dano à indústria doméstica do país importador”. Na definição do General Agreement on Tarifs and Trade (GATT), vigente no Código Antidumping da Organização Mundial do Comércio (OMC), a prática de dumping corresponde a “oferta de um produto no comércio de outro país a preço inferior ao seu valor normal, no caso de o preço de exportação do produto ser inferior àquele praticado, no curso normal das atividades comerciais, para o mesmo produto quando destinado ao consumo no país exportador”. Entretanto, de acordo com as normas presentes no Código Antidumping, a mera exportação de produtos a preços mais baixos que aqueles praticados no mercado interno do país exportador não justifica a aplicação de direitos antidumping, sendo imprescindível a prova do prejuízo ou de uma ameaça de prejuízo para autorizar a aplicação desses direitos, além da comprovação do nexo causal entre o alegado dumping e o prejuízo. Essa relação existente entre as importações a preços de dumping e o dano causado à indústria nacional, conforme será analisado oportunamente, é de extrema importância, uma vez que a constatação do dano determina todo o 28 JOHANNPETER, Guilherme. Antidumping - Prática desleal no comércio internacional, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p.106. 38 processo que decidirá sobre a aplicação ou não de um direito antidumping. No Brasil, o art. 4º do Decreto nº 1.602, de 23 de agosto de 1995, prevê que a prática de dumping corresponde “a introdução de um bem no mercado doméstico, inclusive sob as modalidades de drawback, a preço de exportação inferior ao valor normal”. A legislação brasileira inova ao incluir como prática de dumping o drawback, que constitui uma modalidade de incentivo fiscal à exportação, permitindo aos empresários fabricantes exportadores importarem, sem incidência de tributos, produtos, mercadorias ou insumos destinados à fabricação, beneficiamento ou composição de um outro produto que será objeto de posterior exportação29. O drawback objetiva proporcionar ao fabricante possibilidade de redução de custos dos produtos que serão exportados, beneficiando o fabricante nacional na competição com outros países exportadores dos mesmos produtos. Como mecanismo de incentivo às exportações, por sua complexidade e gama de benefícios, o drawback pode provocar conflitos no relacionamento comercial no âmbito internacional. A análise dos conceitos apresentados permite concluir que o dumping corresponde a introdução de um bem no mercado internacional com preço de exportação inferior ao valor normal praticado no mercado interno do país exportador, sendo condenável se 29 CASSONE, Vittorio. Direito tributário, 9 ed., São Paulo: Atlas, 1996, p.201. 39 causa, ou ameaça causar, prejuízo a indústria nacional do país importador, ou retarda, sensivelmente, o estabelecimento de um novo concorrente nesse mercado. A simples ocorrência da prática de dumping não configura, necessariamente, prática desleal suscetível de aplicação de medidas restritivas, que se justificam apenas na hipótese do dumping ser condenável. Assim, mostra-se de extrema relevância a relação causal entre o preço do produto objeto de dumping e o dano à indústria nacional do país importador, visto que a importação de pequena quantidade de um produto, pelo seu inexpressivo valor e quantidade, não chega a causar dano ao concorrente instalado ou em vias de instalação, razão que afasta a aplicação de medidas antidumping. Uma das razões de caráter intrínseco da prática de dumping é a eliminação do concorrente. O princípio é o mesmo da competição predadora no âmbito do mercado doméstico. Um empresário com práticas comerciais agressivas, objetivando conquistar aquele segmento de mercado, vende seus produtos por preços extremamente baixos, pretendendo em restrito espaço de tempo aniquilar os concorrentes, ficando em última instância sozinho no mercado. Posteriormente, já gozando de situação privilegiada, sobe os preços e atinge lucros decorrentes de uma atividade com poucos concorrentes, lembrando-se das dificuldades práticas de, além de reduzir ou expulsar a concorrência do mercado, mantê-la reduzida ou fora, já que a manutenção de preços altos no mercado é uma das melhores formas de atrair novos concorrentes. 40 A doutrina dominante entende que a ocorrência de dumping somente é possível no mercado internacional, caracterizando-se a prática apenas nas relações comerciais transnacionais. A introdução de um bem no mercado interno do concorrente com preço inferior àquele normalmente praticado em circunstâncias normais de competição, ou seja, a venda injustificada de bem abaixo do preço de custo, não corresponde a prática de dumping, configura a conduta empresarial condenável denominada preço predatório ou underselling30. Muita confusão já se fez entre o dumping e o preço predatório. No império da Lei nº 4.137, de 10 de setembro de 1962, em várias oportunidades o Cade definiu o dumping como “a temporária e artificial redução de preços para oferta de bens e serviços por preços abaixo daqueles vigentes no mercado (eventualmente abaixo do custo), provocando oscilação em detrimento de concorrente, e subsequente elevação no exercício de especulação abusiva, objetivando provocar condições monopolísticas” 31. Em razão disso, parte da doutrina entendia ser possível sanção de natureza penal à prática de dumping, quando na verdade a legislação referia-se ao preço predatório. Considerando o disposto no inciso VI, art. 4º, da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, que define como crime contra a 30 O preço predatório ou underselling será objeto de análise específica no item 9, infra. 31 LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. O “dumping” como forma de abuso do poder econômico. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 91, p.5-15, jul./set. 1993. 41 ordem econômica “vender mercadorias abaixo do preço de custo, com o fim de impedir a concorrência”, Luiz Gastão Paes de Barros Leães32 considerou o dumping como uma “figura de infração penal econômica”. O caráter penal atribuído ao dumping mostra-se inadequado, visto que o dispositivo não se refere ao dumping, mas ao preço predatório. No caso, não se identifica no dispositivo legal qualquer elemento característico de uma prática empresarial de caráter internacional, não se aplicando, portanto, ao dumping. Atualmente, prevalece na doutrina brasileira o entendimento que o dumping verifica-se apenas nas relações de comércio internacional, não se confundindo com o preço predatório, restrito às práticas empresariais internas. Portanto, com a finalidade de consolidar a delimitação do tema no país, deve-se evitar a utilização da expressão “dumping interno” como referência ao preço predatório, da mesma forma que se mostra ambíguo referir-se à prática de dumping, em seu sentido específico, como “dumping externo”. O aspecto essencial do dumping é a venda de bens em outro mercado, que não o do país exportador, a um preço menor (não necessariamente inferior ao preço de custo) que o praticado no mercado interno do país do empresário exportador. A prática de dumping é combatida por meio das leis de defesa comercial, destinadas a proteger os empresários locais contra as práticas desleais provenientes da concorrência externa. O preço predatório 32 LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. O “dumping” como forma de abuso do poder econômico. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 91, p.5-15, jul./set. 1993. 42 (underselling) é coibido por meio de leis de proteção da concorrência, destinadas a proteger as estruturas de livre mercado, assegurando a livre concorrência em benefício dos consumidores. No Brasil, o dumping se destaca no âmbito do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e o preço predatório recebe tratamento específico no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autarquia responsável pela defesa da livre concorrência no país. 7. Natureza jurídica do dumping O dumping é identificado geralmente como uma prática desleal no comércio internacional ofensivo à concorrência. Considerando a definição presente no Código Antidumping da Organização Mundial do Comércio, atribui-se ao dumping a natureza de um ilícito jurídico-econômico. De acordo com Frederico do Valle Magalhães Marques33, o dumping corresponde a um ilícito jurídico porque é um fato regulado por leis e tratados que impõem sanções, claras e objetivas, no caso de configurar-se esta prática abusiva no comércio. Além de jurídico, o dumping configura ilícito econômico porque a ação objetiva a obtenção de vantagens de cunho meramente econômico (ganhos de capital pela ampliação da margem de lucro ou pela conquista e domínio de mercados consumidores), materializando- se por meio do oferecimento de determinado produto no mercado 33 MARQUES, Frederico do V. Magalhães, O “dumping” na Organização Mundial do Comércio e no Direito Brasileiro - Decreto nº 1.602/95. In: CASELLA, Paulo Borba, MERCADANTE, Araminta de A. Guerra Comercial ou Integração Mundial pelo Comércio?: A OMC e o Brasil, Paulo Borba Casella, Araminta de Azevedo Mercadante coord., São Paulo: Ltr, 1998, p.299-300. 43 internacional a preço inferior ao valor normal praticado no mercado de origem, podendo objetivar a conquista de certo mercado e a conseqüente preponderância em relação aos produtos similares com o intuito de aniquilar a concorrência. A OMC, ao condenar o dumping sem proibi-lo, prevendo normas que tem por finalidade principal a coibição da prática desleal e não sua efetiva vedação, demonstra clara preocupação em não transformar a regulamentação antidumping em um mecanismo protecionista de entrave ao comércio internacional. Os fatores econômicos e políticos relacionados ao dumping, perceptíveis nas normas da Organização Mundial do Comércio, confirmam a natureza ilícita jurídico-econômica do dumping. A discricionariedade atribuída pelas normas da OMC às autoridades responsáveis pela aplicação de medidas antidumping não afasta o caráter ilícito do dumping. O fato das autoridades responsáveis pela defesa comercial de um país estarem autorizadas a aplicarem ou não medidas antidumping na ocorrência da prática desleal, de acordo com seus entendimentos (baseados em critérios de conveniência e oportunidade), não se mostra suficiente para descaracterizar o caráter ilícito do dumping. Correspondendo a um ilícito jurídico-econômico que afronta a concorrência, pode-se dizer que o dumping constitui uma forma de concorrência ilícita restrita às relações empresariais 44 internacionais. No capítulo 1, supra, foram apresentadas as duas modalidades de concorrência ilícita identificadas atualmente pela doutrina: a concorrência desleal e a concorrência praticada com abuso do poder econômico (infração à ordem econômica). De acordo com as características das modalidades de concorrência ilícita apresentadas, constata-se que a prática de dumping pode configurar tanto uma forma de concorrência desleal como infração à ordem econômica. Em relação à concorrência desleal, deve-se considerar a classificação de Fábio Ulhoa Coelho34, que divide a concorrência desleal em genérica (sancionada apenas no âmbito civil) e específica (sancionada civil e penalmente). As práticas empresariais tipificadas como crime de concorrência desleal no art. 195 da Lei nº 9.279/96 são formas de concorrência desleal específica e as não tipificadas como crime, mas geradoras do direito à indenização por perdas e danos (art. 209, Lei nº 9.279/96), são de concorrência desleal genérica. Entre as práticas empresariais tipificadas como crime de concorrência desleal no art. 195 da Lei nº 9.279/96 não se encontra qualquer referência específica à prática de dumping, dificultando sua classificação como uma forma de concorrência desleal específica. Mesmo a redação de caráter bastante genérico presente no inciso III do art. 195, que prevê que comete crime de concorrência desleal quem “emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem”, não fornece elementos seguros e precisos 34 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, 2 ed., São Paulo: Saraiva, 1999, v.1, p.185. 45 para classificar a prática de dumping como uma forma de concorrência desleal específica. De acordo com os pressupostos doutrinários e legais, o dumping pode ser classificado como uma forma de concorrência desleal genérica, já que corresponde a uma prática empresarial internacionalmente condenada e que tem por ilicitude a venda de bens no país importador por preços inferiores aos praticados no mercado do país exportador, o que configura a utilização de meios inidôneos para a conquista de fatias de mercado. Portanto, a prática de dumping pode perfeitamente configurar uma forma de concorrência desleal genérica, já que envolve meios inidôneos, condenados no meio empresarial. Quanto a configuração da prática de dumping como concorrência praticada com abuso do poder econômico, destaca-se o inciso XIX, art. 21, da Lei nº 8.884/94, que insere a prática de dumping entre as condutas empresariais capazes de configurar infração à ordem econômica. Entretanto, conforme apresentado no item seguinte, a caracterização de dumping como ilícito previsto na lei antitruste brasileira é de difícil ocorrência prática. 8. A prática de dumping e sua difícil caracterização como infração à ordem econômica A Lei nº 8.884/94 faz apenas uma breve referência à prática de dumping, inserindo-a entre as outras hipóteses 46 caracterizadoras de infração à ordem econômica exemplificadas no art. 21. De acordo com o inciso XIX do referido dispositivo, a intervenção do Cade ou da Secretaria de Direito Econômico (SDE) justifica-se somente no caso da ocorrência de importação de bens abaixo do custo, de um país não signatário do Código Antidumping e do Código de Subsídios do GATT, que tenha a finalidade ou o efeito de eliminar ou prejudicar a concorrência, dominar mercados ou aumentar arbitrariamente os lucros. A análise do dispositivo legal permite concluir que o tratamento atribuído ao dumping pela legislação antitruste brasileira dificulta sua caracterização como infração à ordem econômica, já que para caracterizar o tipo legal da infração, além dos requisitos previstos no art. 2035, o inciso XIX do art. 21, descreve a conduta de importar bens abaixo do preço de custo praticado no mercado interno do país exportador, que não pode ser signatário do Código Antidumping do GATT. O requisito da importação do bem abaixo do preço de custo praticado no mercado interno do país exportador não se encontra em consonância com o tratamento atribuído ao tema no âmbito mundial. As normas antidumping da OMC, da mesma forma que as normas brasileiras de coibição à prática desleal, não exigem para a 35 Art. 20. “Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não alcançados: I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; III – aumentar arbitrariamente os lucros; IV – exercer de forma abusiva posição dominante.” 47 configuração do dumping a venda abaixo do preço de custo, mas apenas a venda do bem no mercado do país importador a preço inferior ao valor normal do bem praticado no mercado do país exportador, que eventualmente pode ser realizada abaixo do preço de custo, mas não necessariamente. A princípio, os requisitos previstos no inciso XIX não constituiriam obstáculos indeléveis à configuração da prática de dumping, já que o art. 21 possui apenas caráter exemplificativo. Entretanto, o art. 91 da Lei nº 8.884/94 exclui do alcance da lei antitruste os casos de dumping envolvendo os países signatários do Código Antidumping do GATT, ao prever que “O disposto nesta Lei não se aplica aos casos de dumping e subsídios de que tratam os Acordos Relativos à Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio, promulgados pelos Decretos nº 93.941 e nº 93.962, de 16 e 22 de janeiro de 1987, respectivamente.” No âmbito do Cade prevalece o entendimento que o art. 91 da lei antitruste exclui da competência da autarquia os casos de dumping envolvendo países signatários do GATT. Entre as decisões do Cade envolvendo a prática de dumping, ressalta-se o voto proferido em 1º de outubro de 1997, referente a Representação nº 72/93, em que se decidiu que “o Cade carece de competência para conhecer de processos que tenham o dumping por objeto”. Em seu voto, o conselheiro do Cade destaca que “Embora nos autos não haja clara identificação do país exportador, registra-se às fls. (...) que a Cougar 48 Electronic Organization, Inc. possui matriz nos Estados Unidos e filiais no Canadá, Bélgica, Hong-Kong e Oriente Médio, países signatários do GATT, o que resulta na aplicação do art. 91 da Lei nº 8.884/94. Assim, opino pelo conhecimento do recurso de ofício da Secretaria de Direito Econômico para negar-lhe provimento e manter a decisão de arquivamento do feito”.36 Nesse contexto, a prática de dumping não apresenta relevância no âmbito de atuação do Cade, estando o tema praticamente restrito à atuação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, onde a prática desleal recebe tratamento específico na Secretaria de Comércio Exterior (Secex), que possui um departamento especializado em defesa comercial, o Departamento de Defesa Comercial (Decom). Cumpre ressaltar que o combate à prática de dumping exige procedimentos extremamente técnicos e complexos, que devem estar em consonância com as normas antidumping da OMC, a fim de evitar que as controvérsias oriundas da aplicação inadequada de medidas antidumping pelo Brasil repercutem negativamente entre os países participantes do comércio internacional. Por essas razões, mostra-se adequado o tratamento atribuído ao dumping no Brasil, submetendo-o aos limites do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que conta com uma organização institucional própria e especializada para tratar de um tema que se configura apenas nas relações empresariais 36 FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga. Lei da concorrência conforme interpretada pelo Cade. São Paulo: Singular, 1998, p.720. 49 de caráter internacional. Ao Cade cabe tratar as condutas empresariais de caráter interno que causam, ou possam causar, os efeitos previstos no §4º, art. 173, da Constituição Federal, reproduzidos no art. 20 da Lei nº 8.884/94. Por fim, deve-se destacar que a Lei nº 8.884/94 não se refere ao exportador brasileiro que pratica dumping, vendendo produtos brasileiros no exterior a preços inferiores aos praticados no mercado nacional. A repressão ao dumping praticado pelo exportador brasileiro é realizada pelos países importadores prejudicados e na hipótese da aplicação de medidas antidumping que desrespeitem as normas da OMC, cabe às autoridades brasileiras a defesa dos direitos violados perante o Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio. 9. Preço predatório e dumping Ao se tratar do dumping mostra-se imprescindível diferenciá-lo de uma prática conhecida por preço predatório ou underselling, conduta empresarial condenável correspondente à venda injustificada de bens abaixo do preço de custo. Conforme já exposto, o preço predatório e o dumping são geralmente confundidos, mas as diferenças existem e não se admite, atualmente, a confusão entre esses ilícitos concorrenciais. O preço predatório corresponde a uma conduta empresarial que se verifica no âmbito interno de um país, ao passo que 50 o dumping caracteriza-se como uma prática empresarial de caráter internacional, típica de comércio exterior. O preço predatório afronta a concorrência, podendo configurar infração à ordem econômica e uma forma de concorrência desleal genérica, em que o meio inidôneo utilizado pelo empresário é a venda do bem abaixo do preço de custo. Da mesma forma que o dumping, o underselling não configura concorrência desleal específica porque o art. 195 da Lei nº 9.279/96 não prevê entre os crimes de concorrência desleal, especificamente, a venda de bem abaixo do preço de custo. Entretanto, essa conduta empresarial pode implicar sanção de natureza penal, já que o inciso VI, art. 4º, da Lei nº 8.137/90, prevê que constitui crime contra a ordem econômica “vender mercadorias abaixo do preço de custo, com o fim de impedir a concorrência”, prevendo pena de detenção de dois a cinco anos e multa. No âmbito da repressão administrativa, a conduta empresarial correspondente ao preço predatório apresenta grande repercussão, existindo várias decisões do Cade referentes ao tema37, já que a lei antitruste brasileira elenca entre as hipóteses caracterizadoras de infração à ordem econômica o preço predatório. O inciso XVIII do art. 21 determina constituir conduta caracterizadora de infração à ordem econômica, na medida em que configure hipótese prevista no 37 FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga. Lei da concorrência conforme interpretada pelo Cade. São Paulo: Singular, 1998, p.712-721. 51 art. 20 e seus incisos, “vender injustificadamente mercadoria abaixo do preço de custo”. O preço predatório é condenado no meio empresarial porque se um concorrente pratica preços de certas mercadorias inferiores ao correspondente custo, os concorrentes, consequentemente, são forçados a reduzir seus preços também para impedir significativa perda na procura de seus bens no mercado, do contrário perderão importantes fatias de mercado. O que ocorre é que muitos concorrentes não apresentam condições e nem se encontram preparados para suportar por certo tempo os prejuízos decorrentes da redução dos preços. No underselling, a venda de mercadoria abaixo do preço de custo sempre representa prejuízo em termos marginais, entretanto, não é comumente praticada se oferecer risco de comprometimento da lucratividade da empresa no âmbito global, o que faz com que o empresário apenas venda seus produtos a preço inferior ao respectivo custo como meio de alcançar posições no mercado que lhe garantam, futuramente, a reposição de perdas temporárias e localizadas. Os concorrentes despreparados e mais fracos, nesse período, perdem significativas fatias de mercado, acumulam perdas e dificilmente conseguem manter a atividade econômica desenvolvida. 52 Fábio Ulhoa Coelho38 ressalta que o preço predatório tem por finalidade, normalmente, aumentar os custos da competição no mercado e desencorajar competidores, além de eliminar uma parte dos existentes. Essa conduta empresarial condenável acarreta problemas na concorrência porque aqueles que ainda não amortizaram o investimento para ingressar no mercado alvo dessa prática, terão maiores dificuldades em competir. Além disso, os interessados em explorar a mesma atividade são desestimulados em razão da ampliação do prazo de amortização do investimento inicial. Segundo Francesco Denozza39, a simples ameaça de drástica redução de preços, por vezes, já se torna suficiente para afastar outros empresários da competição. De acordo com o contexto da disciplina constitucional da repressão ao abuso do poder econômico, apenas não é justificável a prática de preços abaixo do custo se esta tem o efeito, pretendido ou não, de eliminar a concorrência, dominar mercado ou aumentar arbitrariamente os lucros. Na hipótese de não existirem tais situações, a fixação do preço inferior ao custo do produto ou serviço não configura infração à ordem econômica. Por outro lado, deve-se lembrar que o art. 21 da lei antitruste elenca as infrações em caráter exemplificativo, demonstrando a necessidade de se analisar a conduta empresarial desempenhada, que se for capaz de produzir os efeitos 38 COELHO, Fábio Ulhoa. Direito Antitruste Brasileiro: comentários à Lei nº 8.884/94, São Paulo: Saraiva, 1995, p.81. 39 DENOZZA, Francesco. Antitrust – leggi antimonopolistiche e tutela dei consumatori nella CEE e negli USA, Bologna: Mulino, 1988 apud COELHO, Fábio Ulhoa. Direito Antitruste Brasileiro: comentários à Lei nº 8.884/94, São Paulo: Saraiva, 1995, p.81. 53 previstos no art. 20 enseja a repressão administrativa, embora aludida lei não mencione como infração a prática de preço que, mesmo muito baixo, situa-se acima do custo, Portanto, se o preço é reduzido com o propósito de eliminar a concorrência, dominar mercados ou aumentar arbitrariamente os lucros, ou se produz esses efeitos, configura-se a conduta infracional, apesar do elenco do art. 21 referir-se apenas ao preço abaixo do custo. 10. Dumping e subsídios A exportação de bens subsidiados, assim como o dumping, constitui uma prática desleal condenada no âmbito internacional. A prática de subsídios, de forma genérica, refere-se a contribuições financeiras de governo ou órgão público que implique em transferência direta de fundos, receitas públicas devidas que sejam perdoadas ou deixem de ser recolhidas e, finalmente, fornecimento de bens e serviços, além daqueles destinados à infra-estrutura geral40. Os subsídios são uma forma de comércio desleal (unfair trade) pelo fato dos bens subsidiados serem negociados a preços mais baixos em razão dos benefícios recebidos do governo do país exportador. 40 Conforme previsto no art. 1º do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias da OMC e no art. 4º do Decreto nº 1.751, de 19 de dezembro de 1995, que regulamenta as normas que disciplinam os procedimentos administrativos relativos à aplicação de medidas compensatórias. 54 José Roberto Pernomian Rodrigues41 estabelece uma rápida diferenciação, destacando que o dumping representa uma atuação de empresários sobre seus próprios preços, caracterizando-se como uma prática tipicamente privada. O subsídio é um benefício concedido pelo governo do produtor/exportador e tem por finalidade reduzir o preço de exportação do produto, caracterizando-se como uma atividade do poder público. O dumping é sempre uma prática de empresários que prescinde de atuação das autoridades do país exportador. O subsídio é um benefício concedido pelo governo no qual se localizam os empresários exportadores e tem por objetivo diminuir o preço final para exportação. A prática de subsídios refere-se a atuação estatal, ao passo que o dumping corresponde a uma prática comercial privada, perdendo importância a distinção feita por Huysser42 entre dumping de subvenção e dumping de preços. Referida distinção estabelecia-se segundo o agente da prática de dumping, distinguindo-se de um lado o dumping que praticam as autoridades de países exportadores (dumping de subvenção), e de outro aquele que era organizado e praticado pelos produtores-exportadores (dumping de preços). Atualmente encontra-se superada referida distinção, dumping e subsídios são conceitos distintos diante de seus agentes, forma de implementação e legislação pertinente. 41 RODRIGUES, José Roberto Pernomian. Os efeitos do “dumping” sobre a competição. Revista de Direito Econômico, n.22, p.29-43, jan./jun.1996. 42 HUYSSER, Edmond. Théorie et pratique du dumping, Neuchatel: Éditions Ides el Calendes, 1971, p.16. apud RODRIGUES, José Roberto Pernomian. Os efeitos do “dumping” sobre a competição. Revista de Direito Econômico, n.22, p.29-43, jan./jun.1996. 55 A proteção contra a prática de subsídios é feita por meio de medidas compensatórias, que tem por finalidade anular os efeitos negativos decorrentes dos produtos subsidiados no país importador. Vera Thorstensen43 ressalta que por envolver governos e não empresários nas investigações, os processos referentes aos subsídios são menos freqüentes, o número de investigações no Brasil de 1990 até 1998 é de cem casos, destacando-se os Estados Unidos como os maiores usuários desse instrumento de defesa comercial. A Ata Final da Rodada Uruguai, assinada em 15 de abril de 1994 em Marraqueche, Marrocos, após o longo período de sete anos de negociação iniciado em Punta del Este, Uruguai, resultou no estabelecimento de quatro Anexos, apresentados no item 16, infra.. A prática de dumping é disciplinada no Acordo sobre a implementação do Artigo VI do GATT-1994 e o subsídio é tratado no Acordo sobre subsídios e medidas compensatórias. Referidos Acordos encontram-se presentes no Anexo 1, referente aos Acordos multilaterais sobre o comércio de bens. O Brasil promulgou a Ata Final da Rodada Uruguai por meio do Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994, estando as normas que disciplinam os procedimentos administrativos relativos à aplicação de medidas antidumping e de medidas compensatórias regulamentadas, respectivamente, no Decreto nº 1.602, de 23 de 43 THORSTENSEN, Vera. OMC: As regras do comércio internacional e a rodada do milênio, São Paulo: Aduaneiras, 1999, p.124. 56 agosto de 1995, e no Decreto nº 1.751, de 19 de dezembro de 1995, não existindo razões técnicas para que os termos dumping e subsídios sejam confundidos. 57 CAPÍTULO 3 O dumping no âmbito mundial 11. Desenvolvimento histórico da legislação antidumping no âmbito mundial 12. A evolução da legislação antidumping norte-americana 13. A evolução da legislação antidumping na União Européia 14. O dumping no mercado comunitário