RESSALVA Informamos que estão faltando os capítulos 5 e 6, as Considerações finais, Referências, Índice de fotos, Glossário e Anexos, não incluídos no arquivo original. FÁBIO KAZUO OCADA A TECELAGEM DA VIDA COM FIOS PARTIDOS: As motivações invisíveis da emigração dekassegui ao Japão em quatro estações. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Araraquara, para a obtenção do título de Doutor em Sociologia (Área de Concentração: Trabalho, Migração e Memória). Orientadora: Prof.a Dr.a Maria Aparecida de Moraes Silva Araraquara 2006 2 DADOS CURRICULARES FÁBIO KAZUO OCADA NASCIMENTO 19.7.1975 – SÃO PAULO/SP FILIAÇÃO Riuzi Ocada Mitsuko Nakashima Ocada 1994/1999 Curso de Graduação Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara 1999/2002 Curso de Pós-Graduação em Sociologia, nível de Mestrado, na Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – UNESP 2002-2006 Curso de Pós-Graduação em Sociologia, nível de Doutorado, na Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – UNESP 3 Dedico este estudo às mulheres, companheiras, irmãs, mães, avós, professoras, migrantes e operárias, em sua luta histórica por emancipação, justiça e igualdade nas relações sociais. 4 AGRADECIMENTOS A realização deste trabalho de pesquisa não seria possível sem a valiosa colaboração, direta, e/ou indireta, de um número considerável de pessoas. A todas elas, manifesto a minha mais sincera gratidão. Agradeço particularmente: à minha avó, Fumiko, ao meu pai, Riuzi, à minha mãe, Mitsuko e à minha irmã, Sayuri, por todo apoio irrestrito e incondicional, carinho, confiança, paciência e dedicação. à minha querida mestra e amiga, Prof.a Dr.a Maria Aparecida de Moraes Silva, cuja caminhada vem iluminando, com coragem e sabedoria, as vidas de um número considerável de estudantes de sociologia, pesquisadores, trabalhadores e trabalhadoras migrantes. Pela confiança depositada e por todos os ensinamentos transmitidos, ao longo de mais de uma década de convivência, a minha eterna admiração e gratidão. à Prof.ª Jitsuko Babá, pelas narrativas de sua história de vida e pelo dedicado ensino da língua japonesa às novas gerações de nipo-brasileiros, no município de Araraquara: “Sensei, domo arigatou gozaimashita”. à minha amada Stela, companheira e amiga carinhosa, por preencher de alegria a minha vida e o meu coração, pelo diálogo intelectual e pelas contribuições ao longo do desenvolvimento deste trabalho. aos meus entrevistados e entrevistadas – Sumiko Waki, Yae Kami, Marta Miyasaka, Katarina Takako Hashimoto, Maria Takato Suzuki, Tomizo Ishida, Luzia Misao Ishida, Makoto Ishizo, Maria Tanioko Mitsuara, Sigue Kanesiro, Mie Anno, Luciana Mari Tsukada, Cristiane Yamashiro Oliveira, Marcos Hiroyuki Suguiura, Paulo César Alves Nakashima, Ricardo Nukui, Melissa Seto Takeguma, Mari Stela Sakamoto, Gustavo Naka, Rogério Komori, Roger Vinícius Ocada e Wiliam Eiji Itokazu – que, generosamente, concederam-me seus relatos de vida. ao Prof. Dr. Sergio Gertel, do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da UNESP de Araraquara, pela amizade, pelas críticas e pelas sugestões valiosas, dadas no transcorrer deste longo percurso. à Prof.a Dr.a Zeila de Brito Fabri Demartini, Diretora de Pesquisa do Centro de Estudos Rurais e Urbanos/USP, pelas contribuições e sugestões para a condução dos rumos da pesquisa. ao Prof. Dr. Sedi Hirano, Pró-Reitor de Extensão e Cultura da Universidade de São Paulo, pelas críticas e sugestões construtivas, apresentadas em sua argüição, por ocasião da defesa da dissertação de mestrado. ao Prof. Dr. Felipe Gomes, do Departamento de Administração Pública da UNESP de Araraquara, pelo debate intelectual e pelo incentivo, ao longo destes anos. à Prof.a Dr.a Rosa Ester Rossini, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP/São Paulo, pelo estímulo transmitido em nossos encontros esporádicos, em eventos científicos. ao Prof. Dr. Francisco Hashimoto, do Departamento de Psicologia da Unesp/Assis, pela importante contribuição com seu trabalho de pesquisa. ao Prof. Dr. Ricardo Antunes, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, pelo apoio na publicação de artigo científico. à Prof.ª Dr.ª Masako Iyda, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UNESP de Botucatu, pelo estímulo e sugestão de leitura. 5 à Prof.ª Dr.ª Margarida Maria Moura da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP/São Paulo, pelas indicações bibliográficas acerca da “doutrina Zen da não-mente”. à Prof.ª Dr.ª Célia Sakurai, pelas contribuições valiosas oferecidas por meio de seus estudos; e pelas críticas construtivas, apresentadas em sua argüição, durante a realização do exame de qualificação. à Prof.ª Dr.ª Maria Orlanda Pinassi, por todo apoio, diálogo e amizade, estabelecidos nestes últimos anos de convivência, em Araraquara. aos companheiros(as) Marivaldo, Marta, Mary, Romildo, Beto “Cabelo”, Ivan e Rogério “Motoca”, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unesp de Araraquara, pela amizade, pelo diálogo intelectual, pelas críticas e sugestões, apresentadas ao longo deste percurso. a todos os meus queridos amigos e amigas, que um dia passaram pela UNESP de Araraquara, e que acompanharam o desenvolvimento desta trajetória de pesquisa. aos meus companheiros migrólogos, Ricardo Hirata Ferreira, Adriana Capuano de Oliveira e Elisa Masae Sasaki, pela solidariedade e pelo diálogo estabelecido no decorrer destes anos de encontros esporádicos, em eventos acerca da questão migratória. às companheiras, Bia de Medeiros, Carmen Andriolli, Andrea Vetorassi, Andrea Apollinário, Adriana Bogado, Juliana Dourado e Claudirene Brandi; e ao companheiro Rodrigo Martins, por todos os momentos compartilhados. à Cristiana Gobato Lopes Castro e a todas as funcionárias da Secretaria de Pós- Graduação da UNESP de Araraquara, pelo paciente auxílio no trato com os meandros burocráticos da instituição. a todos aqueles funcionários da UNESP de Araraquara, com os quais construí uma relação de respeito e amizade, ao longo destes anos. às funcionárias do posto de atendimento da FAPESP – Marli e Rose – por toda orientação e auxílio. ao Sr. Kyoshi Umeda do Centro de Informação e Apoio ao Trabalhador no Exterior, pelo prestativo fornecimento de dados para a pesquisa. à FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – pelo financiamento e pelo suporte técnico sem o qual não seria possível a realização deste trabalho, em especial à assessoria científica, pelo diálogo estabelecido e pelas críticas e sugestões extremamente construtivas. 6 “Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas.” Walter Benjamin 7 Sumário Resumo/Abstract p.8 Introdução p.9 Capítulo I p.23 1.1. Apresentando a temática da emigração dekassegui ao Japão p.23 1.2. Revisão Bibliográfica p.27 1.3. Os perfis das gerações mais velhas p.54 1.4. Os perfis dos jovens migrantes dekassegui p.57 Capítulo II p.60 2.1. Algumas hipóteses que orientam a pesquisa p.60 2.2. Uma arqueologia da migração dekassegui p.63 2.3. Fronteiras étnicas: os paradoxos da alteridade p.67 2.4. História Oral e Memória: ferramentas para uma escavação do passado p.73 Capítulo III – Primavera p.77 3.1. A longa viagem de chegada p.77 3.2. A dura vida nas fazendas p.87 3.3. Por trás das lembranças encobridoras p.101 Capítulo IV – Verão p.106 4.1. Os tempos da guerra e da política de assimilação p.106 4.2. O silenciamento da memória p.124 4.3. Os valores presentes no interior das famílias nipo-brasileiras p.130 Capítulo V – Outono p.140 5.1. A dispersão da colônia p.140 5.2. A cultura e o habitus japonês p.148 5.3. A construção de um lugar idealizado p.161 Capítulo VI – Inverno p.168 6.1. A revoada invertida ao Japão p.168 6.2. A maldição de uma “tradição” (re) inventada p.184 6.3. A busca da emancipação através da memória p.208 Considerações finais p.244 Referências bibliográficas p.252 Índice de fotografias p.266 Glossário p.267 Anexos p.270 8 Resumo Através da reconstrução dos fios partidos da memória, este estudo busca alargar o entendimento das motivações invisíveis que perpassam a emigração dos chamados trabalhadores dekassegui, ao Japão. Mediante o uso da história oral, foram incorporadas à análise sociológica, além das falas dos trabalhadores em idade produtiva, as percepções e representações de duas gerações (issei e nissei) de mulheres idosas de famílias nipo-brasileiras, além do relato de um único entrevistado idoso. As análises dos relatos orais, ordenadas segundo as estações do ano, permitiram conhecer os condicionantes históricos e a imagem idealizada, que estruturam a partida de trabalhadores nikkeis rumo ao país de seus antepassados. Por trás do mito do “retorno” oculta-se uma realidade de intensa exploração e desenraizamento. Neste contexto, a memória e a identidade articulam-se dialeticamente à formulação de um reenraizamento, um projeto alternativo ao caminho proposto pela ordem neoliberal. Palavras-chave: migração; dekassegui; Japão; memória; trabalho; identidade. Abstract Through the reconstruction of the broken memory wires, this study searches to enlarge the understanding of the invisible motivation that goes beyond the emigration of the so called dekassegui workers to Japan. By the use of oral history, not only the speech of active workers, but also the perceptions and representations of two generations (issei and nissei ) of elderly women from Japanese Brazilian families, apart from the account of a single elderly man who was interviewed, were incorporated to the sociological analysis. The analyses of the oral accounts, ordered according to the seasons, allowed the historical conditions and the idealized image, that structure the departure of nikkei workers to their ancestors' country. Behind the myth of "return" hides a rootless reality of intense exploration. In this context, memory and identity work together dialectically to formulate a new project that allows these people to take root, as an alternative to the way proposed by the neoliberal order. Key-words : migration; dekassegui; Japan; memory; work; identity. 9 Introdução Dentro do contexto das migrações internacionais iniciadas nas últimas duas décadas do século XX, a busca de um entendimento das motivações historicamente constituídas, que norteiam a partida de trabalhadores nipo-brasileiros à terra de seus antepassados, constitui o eixo central do estudo que aqui se apresenta. A natureza desta indagação é intrínseca à própria condição social do pesquisador. As razões que levaram à escolha deste tema de investigação devem-se aos acontecimentos, mais ou menos recentes, que se abateram sobre a trajetória pessoal e familiar do pesquisador. Em um curto espaço de tempo, o advento da emigração dos chamados trabalhadores dekassegui, ao Japão, repercutiu sobre, praticamente, todas as famílias de ascendência japonesa, residentes no Brasil. Portanto, para o entendimento deste trabalho de pesquisa, no transcorrer de sua leitura, é preciso considerar o fato de que o autor deste estudo é neto de imigrantes japoneses; e vivenciou, no início da década de 1990, o momento em que o fenômeno migratório passou a fazer parte de seu contexto familiar, tornando-se uma realidade cotidiana efetiva. Inicialmente, partiram os pais, depois os primos, as primas, os tios, além de outros conhecidos da família. Condicionado por estes acontecimentos, o Japão se apresentava, ao autor deste estudo, como um destino inevitável. Desse modo, a vivência das condições de trabalho – durante cerca de três meses integrado à linha de montagem de automóveis da empresa Suzuki, na cidade de Kosai – constituiu um ponto de partida importante para os rumos desta investigação, pois permitiu constatar, logo de início, a existência de uma enorme distância entre a experiência vivenciada por estes trabalhadores e o debate teórico travado pelos estudiosos, nos espaços 10 acadêmicos. Assim, por meio de um incipiente trabalho de Iniciação Científica,1 foi possível desenvolver – através do uso da observação participante e da história oral, enquanto método e técnica de pesquisa – uma análise das falas dos trabalhadores e das trabalhadoras dekassegui. Privilegiando o conhecimento, da dinâmica das relações de trabalho, dos conflitos, da interiorização de um discurso legitimador do poder e da dominação, bem como das inúmeras formas de resistência existentes nos poros da dominação. A análise da subjetividade exigiu uma mediação entre dados subjetivos e explicações macro-estruturais. As explicações fundadas numa perspectiva macro-estrutural permitiram classificar dois eixos teóricos distintos: os estudos do trabalho2 e da migração3. Na confluência destas duas linhas de investigação, o recurso à subjetividade permitiu incorporar à análise, as vozes dos trabalhadores, evitando a armadilha de uma análise apologética, ou idealizada, da condição social do migrante dekassegui. Nesta conjuntura, os inúmeros casos de doenças psicossomáticas, de suicídios de trabalhadores e de mortes por overdose de trabalho (karoshi), trouxeram à tona o problema da crise de identidade vivenciada por estes trabalhadores,4 pois, não existe processo de descompensação psíquica, que não tenha como pano de fundo uma desestruturação 1 Este foi o início de uma pesquisa de Iniciação Científica (1998), financiada pela FAPESP (processo: 97/11581-0), cujo enfoque privilegiou a análise das relações de trabalho vivenciadas por estes trabalhadores, no interior da fábrica e do alojamento. Por meio do emprego da história oral, foram colhidos, nesta etapa da pesquisa, os depoimentos orais de 6 trabalhadores e 5 trabalhadoras, todos nikkeis, na faixa etária de 17 a 25 anos de idade. 2 Leite (1994); Leite (1995); Linhart (1986); Dejours (1992); Dejours (2000); Hirata (1993); Coriat (1993); Castro (1993); Abramo e Abreu (1998); Antunes (1997). 3 Castro (1994); Catanio (2000); Demartini (1997); Demartini (1999); Oliveira (1999); Patarra (1995-1996); Reis e Sales (1999); Sales (1995); Sayad (1997); Sayad (1998); Sayad (2000); Sasaki (1995); Sasaki (1999). 4 A incorporação das análises, da crise identitária, das doenças psicossomáticas vivenciadas por estes migrantes e do mito do retorno, constituíram o enfoque privilegiado no trabalho de Mestrado (2000-2002), também financiada pela FAPESP (processo: 99/04632-2). 11 identitária. Na confluência desta migração e dos efeitos deletérios do trabalho, desdobra-se uma profunda crise de identidade. O esperado “retorno” ao país ancestral revela-se um mito, no qual estes trabalhadores descobrem suas reais condições de existência, frente à lógica da acumulação de capital. No interior das fábricas, a incorporação de um adestramento produtivo submete estes trabalhadores a um processo de despersonalização, de homogeneização dos comportamentos e de supressão dos sentidos, ligados às noções de tempo e espaço. A despersonalização do indivíduo em favor do adestramento produtivo contamina as relações sociais dentro e fora do local de trabalho, causando grandes repercussões sobre a saúde mental dos trabalhadores. Por essa razão, conhecer de um modo mais aprofundado as razões que levam milhares de descendentes de imigrantes japoneses a atravessarem o globo, para assumirem postos de trabalho considerados, sujos, perigosos e pesados, constitui o objetivo desta pesquisa. No entanto, para este fim, na medida em que se encontram demasiadamente presos às contradições do presente, as vozes dos atuais trabalhadores dekassegui são insuficientes para o entendimento destas motivações, exigindo a incorporação de uma outra perspectiva acerca desta mesma questão. Nesse sentido, foram incorporadas neste trabalho as vozes de duas gerações de mulheres idosas (isseis e nisseis) destas famílias de imigrantes japoneses, com o propósito de trazer à luz do conhecimento – através de suas lembranças – as motivações historicamente constituídas que norteiam esta migração atual rumo ao Japão. Motivações, estas, vinculadas a um antigo projeto de retorno, trazido pelos imigrantes japoneses ao Brasil, entre os anos de 1908 e 1941. 12 Como contraponto masculino às vozes destas mulheres foi realizada uma única entrevista com um homem idoso – o Sr. Tomizo Ishida5 – permitindo estabelecer um entendimento das construções das lembranças masculinas e femininas, tendo em vista a dimensão relacional do gênero. Cada qual a seu modo, homens e mulheres tornam-se guardiões da cultura com a chegada da velhice. Para a realização das entrevistas, além das diferenciações de gênero e de geração, foi preciso levar em consideração, as diferenciações étnicas6 e culturais para se visualizar algumas particularidades deste grupo. Logo nas primeiras tentativas de aproximação de possíveis candidatas à entrevista, surgiram algumas desconfianças, recusas e outras formas de resistência em se conceder o relato das histórias de vida. As mulheres que se recusaram a relatar suas histórias de vida, foram aquelas, escolhidas de modo aleatório, cujo vínculo com a família do pesquisador era inexistente. Por essa razão, optou-se por uma outra estratégia de aproximação. As mulheres a serem entrevistadas passaram a ser escolhidas segundo critérios orientados pelos vínculos existentes com a família do pesquisador, ou seja, foram entrevistadas aquelas mulheres, ligadas à família do pesquisador por laços de parentesco e/ou amizade, residentes nas cidades de Ribeirão Preto, Araraquara, Bauru, Mairiporã e São Paulo. Para realizar a entrevista com o Sr. Ishida, devido à inexistência de qualquer vínculo anterior, o procedimento empregado seguiu um protocolo tradicional japonês. Foi-lhe enviada uma carta explicando o propósito do trabalho de pesquisa e da realização da entrevista. Em 5 O nome deste entrevistado não foi mantido no anonimato em razão de se tratar de uma pessoa publicamente conhecida pela atividade artesanal que desempenha – fabricação de espadas samurai – na cidade de Mairiporã (SP). 6 O conceito de etnicidade, ao possibilitar o entendimento relacional das formulações identitárias, dentro de uma perspectiva histórica, permitiu o desenvolvimento de uma análise da crise identitária vivenciada por estes sujeitos. O tema da etnicidade voltará a ser abordado, em diferentes momentos deste estudo, para se entender a maneira como se deu a formulação de uma identidade étnica nipo-brasileira, a partir do contato com diferentes grupos étnicos. 13 resposta, o entrevistado escreveu uma outra carta, dizendo sentir-se feliz em poder ajudar. Outro obstáculo inicial para a realização das entrevistas foi o desconhecimento, por parte do entrevistador, do idioma falado pelas entrevistadas e pelo entrevistado (um dado significativo para esta pesquisa). Estas pessoas carregam na sua maneira de falar as marcas de suas histórias. Suas falas revelam um amálgama dos idiomas da terra ancestral e do país de adoção. Não se trata da língua japonesa – nihongo – em sua forma original, mas de uma língua recriada entre imigrantes de diferentes regiões do Japão, acrescidas de termos e expressões da língua portuguesa. Para a realização destas entrevistas foi preciso, então, aprender minimamente o “japonês” falado por este grupo de idosos. Para se entender as razões que levam muitos destes trabalhadores a percorrerem, nos dias de hoje, a trajetória inversa realizada por seus ancestrais é preciso considerar, além dos aspectos estruturais, os elementos inconscientes, ou irracionais, que estão presentes na sociedade. Uma ciência capaz de abarcar a totalidade da realidade social deve buscar reproduzir uma imagem destes elementos. Segundo Roger Bastide (Queiroz, 1983), para se apreender a riqueza social em toda a sua farta complexidade, é preciso recorrer aos mais variados métodos, inclusive ao método poético.7 De acordo com o sociólogo, a estrutura social é uma organização na qual sempre existe certa medida de atividade estética, neste sentido, existe, em toda sociedade, um elemento de poesia. Sendo assim, a poesia se revela como “a única luz capaz de iluminar o mundo da obscuridade”. Recorrendo à sensibilidade poética, é possível fazer desta forma de expressão, um método sociológico preciso. O sociólogo, segundo Bastide (Queiroz, 1983), pode e deve utilizar a expressão poética que se liga à poesia sociológica. Na análise da 7 “É aquilo... que denominei... princípio dos projetores convergentes que iluminam o objeto estudado, como num teatro a dançarina é aprisionada nos múltiplos fachos luminosos que jorram de todos os cantos da sala...” (Queiroz, 1983, p.84). 14 sociedade, pelo sociólogo, uma linha melódica deve cercar esse conjunto de relações racionais, de conceitos, de leis, de pesquisas causais e de definições objetivas, para deixar transparecer o que existe de “vida criadora” , em toda sociedade. A expressão poética, de acordo com este sociólogo, é mais apropriada do que qualquer outra forma de expressão, pois obriga o leitor do estudo sociológico a compartilhar da experiência comunitária, integrando à sua compreensão lógica, um sentimento direto, “uma compreensão íntima”. Trata-se, por essa razão, de uma expressão poética especial. A expressão da poesia sociológica possibilita obter uma forma de “exatidão científica”, na qual é possível conhecer os “ditames do inconsciente coletivo”. A expressão poética, segundo Bastide, transforma-se, desse modo, num reforço de fidelidade em relação à própria verdade das coisas, pois: “A comunhão se faz na poesia” (Queiroz, 1983, p.85). Através desta abordagem proposta pelo sociólogo, torna-se visível este elemento fundamental para o entendimento da cultura e da sensibilidade nipônica, trazida ao Brasil: o senso estético. Como mostra o estudo de Barros (1988), a poesia está presente entre os japoneses desde os primórdios de sua história de 1.500 anos, ela surge tão logo a cultura japonesa começa a manifestar características próprias e nunca mais a abandonará.8 Os poemas japoneses trazem, desde o início, as marcas inconfundíveis desta cultura. Evoluem sem jamais abandonar suas formas tradicionais: são miniaturas, que reportam 8 “No Kojiki (712 d.C.) e no Nihon-shoki (720 d.C) que, grosseiramente, correspondem ao Antigo Testamento dos ocidentais, como registro da mitologia e dos primórdios históricos do Japão, encontram-se 200 poemas cuja Antigüidade pode remontar ao ano 400. Por volta do ano 760 surge uma antologia com 4.516 poemas recolhidos da tradição oral dos 150 anos anteriores, a qual ainda hoje conserva seu prestígio como o maior repositório da poesia japonesa. A Man´yoshu (Coleção de Miríades de Folhas) reúne poemas de imperadores e de homens de toda as classes. Uma compilação ainda mais antiga se perdeu. Mas, posteriormente, surge Kokinshu (Coleção Antiga e Moderna) com 1.100 poemas curtos (905 d.C) e, nos cinco séculos seguinte, aparecerão, por iniciativa imperial, 20 novas antologias. Praticada por imperadores, nobres, guerreiros e homens do povo, a poesia impregna toda a história e cultura do Japão” (Barros, 1988, p.119). 15 fundamentalmente à natureza, ao intimismo psicológico, à sutileza das coisas, seres e pessoas; sugerem em lugar de descrever e, como a vida se caracteriza pela impermanência, são extremamente voláteis. A brevidade e a alusão, carregadas de sentido, são características centrais desta forma de poesia. A poesia nipônica, segundo este autor, condensa meditação, amor e compreensão do poeta; e só sob essas condições pode ser recuperada pelo leitor. Entendido como uma sensibilidade cognitiva, e condensado na expressão mínima, o haikai 9 é poesia em sua forma mais densa e depurada. Entretanto, como é próprio da linguagem e da comunicação cultural japonesa em geral, sugerem infinitamente mais do que uma leitura inadvertida saberá ou poderá apreender. A transferência do haikai ao Brasil, segundo Mendonça (1999), implicou na necessidade de uma adaptação, na medida em que a referência sazonal (kigo) é essencial para este tipo de poesia. Escrever numa outra latitude e descrever as relações emotivas longe da natureza do país de origem – sem negar as categorias de tempo e espaço, inerentes ao haikai – foi o grande desafio enfrentado por imigrantes-poetas.10 O deslocamento sofrido impôs a necessidade de uma reeducação dos cinco sentidos, para adaptar a percepção à nova terra, criando-se um haikai renovado, um genuíno “haikai brasileiro”. Foi preciso aguçar a percepção para se reconhecer, submerso neste aparente verão, o inverno, a primavera e o outono. Com a imigração, todas as referências de tempo e espaço foram rompidas, instaurando momentaneamente uma profunda desorientação.11 De 9 Formalmente, toda poesia japonesa se estrutura como “poesia breve”, ou seja, tanka (formada de um conjunto de 31 sílabas, em cinco linhas de 5-7-5/7-7 sílabas respectivamente.). Mas a tanka pode abreviar-se, também, no haikai (dispostas em 5-7-5 sílabas), que nada mais é, do que a primeira parte da tanka (Barros, 1988). 10 Refiro-me aqui ao Mestre Nenpuko Sato e seus cerca de 6 mil discípulos espalhados pelo Brasil, dentre os quais as entrevistadas A. e C. fazem parte. 11 O poeta Nenpuku Sato expressou a desorientação espacial destes imigrantes através do seguinte poema:“Trilha forrada de folhas / Sem saber o leste e o oeste / japonês que chega aqui” (Mendonça, 1999, p.49). 16 acordo com Mendonça (1999), é possível observar através do haikai brasileiro, a formulação de uma imagem idealizada do Japão¸ semelhante a um retrato. A formulação desta imagem fotográfica idealizada foi um dos mecanismos de defesa acionados, no inconsciente destes imigrantes, para sobreviverem a esta dolorosa ruptura com a terra natal. Este retrato idealizado persiste ainda hoje no imaginário das novas gerações, estruturando, consciente e/ou inconscientemente, esta busca das origens no país ancestral. Assim, tendo em vista a formulação de um entendimento mais aprofundado acerca das razões que levam muitos descendentes de imigrantes japoneses a ingressar nesta corrente emigratória ao Japão, o desenvolvimento deste estudo consiste numa tentativa de se compreender – através de um trabalho de reconstrução da memória coletiva – as motivações invisíveis, historicamente constituídas, que norteiam a partida de muitos nikkeis rumo ao país ancestral. Fundamentado, assim, na orientação de Bastide: “trata-se para o sociólogo de não se colocar fora da experiência social”, mas, pelo contrário, de vivê-la em sua totalidade, buscando uma aproximação do objeto de pesquisa por meio de uma espécie de “naturalidade instintiva” (Queiroz, 1983, p.83). Nesta perspectiva, entender as motivações subjetivas que sustentam a emigração dekassegui, através de um trabalho de reconstrução da memória, diz respeito a um problema, não apenas de natureza teórica, mas de uma práxis. No cotidiano do trabalho industrial vivenciado por estes migrantes, relembrando o estudo de Thompson (1998),12 o tempo é precisamente controlado por sistemas informatizados, o que faz com que os sinais soem exatamente nos mesmos segundos dos dias anteriores. Cada segundo da jornada de trabalho é precisamente regulado por um 12 Thompson, E. P. Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial. In: Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 267-304. 17 programa. Esta mesma precisão controla a vida de todos os trabalhadores dentro e fora da fábrica, aprisionando-os em uma rotina de trabalho desumanizante, que acaba por conduzir o indivíduo a uma vivência depressiva. A vida de cada trabalhador é integralmente dominada pelo processo produtivo. A regulação do tempo na esfera do trabalho determina, também, o tempo no espaço privado, representado pelos alojamentos,13 formando um continuum indissociável, no interior do qual todos os dias tornam-se iguais. Por essa razão, depois de vivenciar empiricamente a uniformidade do tempo e a disciplina da produção industrial, a qual estão submetidos os atuais migrantes dekassegui, surgiu a necessidade de se conceber, por meio deste trabalho sociológico, a recriação de uma outra temporalidade, menos acelerada, análoga aos movimentos da natureza. Desse modo, com o propósito de recriar uma temporalidade distinta da disciplina do trabalho fabril, as análises dos depoimentos, inspiradas num trabalho realizado por Hashimoto (1998), foram reordenadas, tendo em vista uma associação entre, as quatro estações do ano – primavera, verão, outono e inverno – e as lembranças da infância, da juventude, da fase adulta e, por fim, da velhice, enfocando os diferentes momentos deste antigo projeto de regresso à terra natal. Circunscrito a uma temporalidade pautada pelas estações do ano, este estudo permite identificar as raízes históricas e acompanhar o desenvolvimento deste intenso desejo de partir rumo ao Japão, de modo que, no transcorrer deste ciclo, torne-se possível visualizar as implicações simbólicas, afetivas e identitárias, envolvidas na experiência do “retorno” de descendentes nikkeis ao Japão. Assim, para situar o leitor a respeito do modo como foi estruturado este trabalho de pesquisa, a exposição do estudo inicia-se, no Capítulo I , apresentando a temática da 13 Assim como dentro da fábrica, nos alojamentos o autoritarismo das normas cumpre a função de manter a disciplina necessária à continuidade da produção intensificada de mercadorias. 18 emigração dekassegui (1.1), revelando, a partir de uma perspectiva macro-estrutural, as características que particularizam este fluxo migratório, dentro de um amplo processo de globalização da economia. Nesta migração, a ascendência japonesa torna-se um critério definidor da partida. O número crescente deste contingente de trabalhadores migrantes, desde os seus primeiros momentos até os dias de hoje, contraria a suposição de que se trate de um fenômeno temporário. Através de uma revisão bibliográfica (1.2.), acerca das publicações e estudos acadêmicos que tratam da migração dekassegui ao Japão, é possível constatar a existência de uma análise predominantemente econômica sobre o tema, na qual as únicas vozes que ganham alguma visibilidade, nos estudos acadêmicos, são as falas dos trabalhadores e trabalhadoras em idade produtiva, evidenciando, assim uma lacuna a ser preenchida pelos relatos das gerações mais velhas. Os perfis das gerações mais velhas (1.3.) apresentam cinco entrevistadas nascidas no Japão, seis entrevistadas nascidas no Brasil e um único entrevistado, nascido no Japão. Todos estes entrevistados estão situados numa faixa etária acima dos setenta anos de idade, compartilhando, assim, de uma mesma comunidade de destino. Os perfis dos jovens migrantes dekassegui (1.4.) contam com sete entrevistados – quatro homens e três mulheres –, cujas entrevistas foram incorporadas ao último capítulo deste estudo. Todos estes entrevistados encontravam-se numa faixa etária situada entre vinte e vinte e cinco anos de idade, na ocasião em que as entrevistas foram realizadas. O Capítulo II inicia-se com a apresentação das hipóteses que orientam a pesquisa (2.1.), as indagações levantadas acerca do retorno às origens empreendido pelos migrantes dekassegui servirão de norte para o desenvolvimento da argumentação deste estudo, orientando o entendimento das motivações subjetivas presentes nesta migração. Escavando o passado através das lembranças das gerações mais velhas, torna-se possível reconstruir a 19 memória coletiva do grupo, trazendo à tona, através de uma arqueologia da migração dekassegui (2.2.), uma história silenciada pelo processo de modernização, pela guerra e pelas divergências internas ao grupo. Para o entendimento da maneira como se deu o contato, a integração e a formulação de uma identidade étnica nipo-brasileira, na sociedade receptora, foi preciso incorporar a etnicidade, enquanto categoria analítica capaz de apreender a dinâmica histórica da emergência das fronteiras étnicas (2.3.) e das formulações identitárias do grupo. Para a análise destes relatos a história oral e a memória (2.4.) foram ferramentas com as quais se buscou realizar este trabalho de escavação e reconstrução do passado, dando, assim, visibilidade às raízes profundas do mito do retorno ao Japão. Os capítulos seguintes, contendo as análises dos relatos foram ordenados tendo em vista os diferentes momentos deste projeto de retorno ao Japão: No Capítulo III , as recordações de infância remetem à primavera da imigração japonesa (3.1.), remontando desde os difíceis tempos nas fazendas de café (3.2.), às fugas das fazendas e aos conflitos étnicos travados a partir do contato com outros grupos. Neste período, como é possível observar através dos relatos, havia entre estas famílias a convicção de que a permanência em solo brasileiro era uma experiência transitória, podendo retornar para casa em um curto período de tempo. A separação da terra natal e a vivência dos primeiros anos no Brasil foram, para estas famílias, uma experiência traumática (3.3.). No Capítulo IV , as lembranças da juventude, que se encerram com a realização do miai (os casamentos arranjados), estão associadas ao verão. As lembranças do período da política de assimilação de estrangeiros (4.1.) mostram, que, diante de uma intensa campanha de abrasileiramento forçado, havia uma silenciosa resistência por parte destas famílias, no sentido de fazer com que os filhos fossem educados segundo os padrões 20 tradicionais da cultura japonesa, pois planejavam retornar ao Japão. Neste momento de confrontamento de interesses, as fronteiras étnicas emergem com grande nitidez. Com o acirramento da Segunda Guerra Mundial, as medidas restritivas impostas contra estes imigrantes, se intensificam, tornando cada vez mais distante a possibilidade de regresso ao Japão. Em razão das perseguições, a memória sofre um processo de silenciamento (4.2.). A derrota japonesa representa um duro golpe sobre os imigrantes japoneses no Brasil, pois assinala, não apenas uma cisão no interior da colônia, mas também, o fim das esperanças de retornar para casa. Neste momento os valores da cultura japonesa (4.3.) ganham visibilidade, a partir do confronto com os ideais da política de abrasileiramento forçado. No Capítulo V, os nascimentos dos filhos e das filhas das entrevistadas representam, por sua vez, a transição para o outono da vida, ou seja, a vivência da maturidade, um período de introspecção. As análises dos relatos acerca deste período retratam, a partir da dispersão da colônia japonesa (5.1.), uma redefinição dos projetos familiares. Saindo das áreas rurais em direção às cidades, as famílias buscam assegurar a inserção dos filhos na sociedade brasileira, através de um projeto fundamentado na máxima valorização do estudo e do trabalho. A integração à sociedade local ocorre com base em valores pertencentes à tradição do país de origem. Longe da homogeneidade étnica/racial e cultural, esperada pela política de abrasileiramento forçado, a cultura e o habitus japonês (5.2.), bem como a identidade étnica nipo-brasileira, se recria permanentemente, entre os integrantes das novas gerações, através do contato com outros grupos. Uma imagem idealizada do Japão (5.3.) sobrevive no imaginário do grupo, mantendo em estado latente o desejo de retornar à terra natal. No interior das casas destas famílias, o sincretismo religioso, a conservação do altar para a prática do culto aos mortos (o Hotokesama, ou 21 Butsudan) e a recriação simbólica de práticas associadas ao país de origem, são indicativos de um processo de desenraizamento e re-enraizamento. No Capítulo VI , em razão de um amplo processo de reestruturação mundial do capitalismo, tem início a migração contrária de trabalhadores nikkei-brasileiros ao Japão. A revoada invertida das novas gerações (6.1.), anuncia, por fim, a chegada do inverno. Percorrendo o caminho inverso traçado pela imigração japonesa, esta nova geração de migrantes reproduz de um modo invertido a experiência de seus ancestrais. Enredados por uma “tradição (re) inventada” (6.2.), a realidade com a qual se deparam, em nada se assemelha à imagem idealizada da terra dos antepassados. Novamente, as circunstâncias deste “retorno” impõem, por meio de um paradoxo identitário, um sério risco à integridade física e mental destes trabalhadores. No interior de um intensificado processo produtivo, estes migrantes sofrem as conseqüências psicopatológicas de suas reais condições de existência. Tornam-se a personificação do desenraizamento. Na busca de uma redefinição identitária, a reconstrução da memória coletiva (6.3.) desempenha um papel fundamental, pois permite, através da reconstrução da experiência do passado, compreender as perdas, formular o luto e reconstruir, enfim, um novo projeto em direção ao futuro. Entre a geração de idosos, o silêncio característico desta fase facilita o recolhimento. Neste período de solidão, criam-se as condições necessárias para se realizar as ligações afetivas entre o passado e o presente. Neste momento as pessoas entrevistadas atingem o ponto máximo de acumulação de experiência e sabedoria, tornando-se aptas a recuperar o passado, aconselhar e restabelecer os vínculos entre passado, presente e futuro. Ao longo deste percurso, que compreende o intervalo entre o nascimento e a velhice, tornar-se-á possível, não apenas visualizar as emoções envolvidas e as implicações históricas e psicológicas da partida de descendentes nikkeis ao Japão, mas, sobretudo, 22 refazer “a tecelagem da vida, com fios partidos”, possibilitando, assim, formular uma análise deste processo migratório, que vá além do entendimento da lógica fria do “cálculo racional”, inerente ao comportamento econômico. Trata-se, considerando a perspectiva simbólica, de um atendimento a um chamado, um sentimento difícil de ser objetivado, uma intuição de buscar algo que se perdeu pelo caminho. Desta constatação, advém a necessidade de uma reconstrução do passado, que possibilite compreender minimamente a situação contraditória à qual se chegou, no presente. 23 Capítulo I 1.1. Apresentando a temática da emigração dekassegui ao Japão Como resultado de um amplo processo de reestruturação mundial do capitalismo teve início, a partir de meados da década de 1980, a emigração de trabalhadores brasileiros rumo aos países desenvolvidos do globo, como Estados Unidos, Japão e países da Europa. Como mostra um estudo realizado por Sales (1995), o Brasil, que historicamente se constituiu como um país receptor de imigrantes estrangeiros, durante este mesmo período, atravessa uma conjuntura de crise econômica, com altos índices de inflação e crescente taxa de desemprego, tornando-se, a partir de então, um país exportador de mão-de-obra para o mercado de trabalho internacional. Na chamada “década perdida” (1980), um número considerável de brasileiros passa a engrossar as filas de embarque dos aeroportos internacionais, na busca de melhores condições de vida e de ganhos salariais mais elevados. Por essa via, o país se integra ao fenômeno da globalização da economia. Dentre estes diferentes fluxos migratórios, a emigração de trabalhadores brasileiros rumo ao Japão – os chamados dekassegui – apresenta uma peculiaridade que a distingue dos demais casos. Trata-se de uma migração seletiva, aberta apenas aos descendentes de imigrantes japoneses (nikkeis), que no passado chegaram aos países da América Latina. A emigração de não-descendentes ao Japão é permitida somente em casos de adoção por famílias nipo-brasileiras, ou mediante apresentação de um registro de casamento com um(a) descendente nikkei. Neste contexto, o pertencimento étnico-racial tem um peso decisivo, atribuindo ao fenômeno a especificidade de uma migração de “retorno”. Antes da chegada de trabalhadores brasileiros, segundo o estudo de Sasaki (1999), migrantes de 24 outras etnias, provindos de outras regiões da Ásia e do Oriente Médio, dirigiram-se para o Japão. Entretanto, a presença de grupos étnicos diferenciados, segundo a análise de Sasaki (1999) teria constituído um sério incômodo ao governo japonês, pois feriam os padrões de homogeneidade racial, elementos, fundamentalmente valorizados na cultura japonesa. Por essa razão, governo e empresários optaram pela imigração seletiva de uma mão-de-obra, pertencente ao mesmo grupo étnico, mas nascida, no entanto, nos países em crise da América Latina, dentre os quais o Brasil possui a maior colônia. Em virtude de algumas modificações na Lei de Controle de Imigração, votadas no parlamento japonês em junho de 1990, a emigração de brasileiros para o Japão adquiriu grandes proporções (Sasaki, 1999). Desde então, a comunidade brasileira no arquipélago vem constituindo o terceiro maior contingente de imigrantes estrangeiros, atrás apenas dos contingentes de trabalhadores coreanos e chineses, que ocupam respectivamente a primeira e a segunda posição. Um outro estudo de Sasaki (1995), fundamentado em dados coletados pela Fundação Toyota, constatou uma inversão no perfil geral do trabalhador nikkei, à medida que o movimento migratório se massificou. No início do processo migratório, em meados da década de 1980, os dekassegui brasileiros eram homens e chefes de família, cuja faixa etária variava entre 40 e 60 anos de idade. Porém, com a reforma na legislação da imigração, o perfil geral do trabalhador se inverteu. Atualmente, o perfil predominante ajusta-se ao modelo de jovens entre 20 e 30 anos, com proporção equiparada entre homens e mulheres, bem como o pouco domínio da língua japonesa. Os japoneses utilizam o trinômio 3K para designar o tipo de tarefa reservada a estes trabalhadores: Kitanai (sujo), Kiken (perigoso) e Kitsui (pesado). Com o passar do tempo, 25 os próprios brasileiros erradicados no Japão, acrescentaram outros dois Ks: Kibishii (severo) e Kirai (detestável), tornando-se, a partir de então, 5Ks. Segundo os dados fornecidos pela imprensa, em 199114 havia 150 mil brasileiros trabalhando no Japão. Um ano mais tarde, em 1996,15 o número havia se elevado para 170 mil; no ano seguinte, em 1997, dos 220 mil descendentes de japoneses residentes no Japão, 180 mil eram brasileiros16. No ano de 2003,17 o contingente de trabalhadores brasileiros havia atingido a marca de 268 mil. Convém salientar que, estes números não são precisos, uma vez que não incluem os isseis (imigrantes de primeira geração), nem os nisseis (a segunda geração), possuidores de dupla cidadania, pois ambas as categorias entram no país com o passaporte japonês, impossibilitando a quantificação destes imigrantes. Ainda assim, a análise destes dados quantitativos permite acompanhar, desde o início do processo, um desenvolvimento crescente da comunidade brasileira no Japão, contrariando a suposição de que se trata de um fenômeno transitório. Segundo Kawamura (1994), além dos trabalhadores brasileiros, é possível encontrar também, embora em menor proporção, descendentes de japoneses provenientes de países como, Peru, Bolívia e Argentina. Como decorrência deste critério étnico/racial empregado na contratação de trabalhadores latino-americanos, na ótica de muitos destes migrantes, partir rumo ao Japão representa, não apenas a possibilidade de maiores ganhos salariais, 14 “O povo da diáspora”, revista Veja 7/8/1991: 37. 15 “Nossa gente lá fora”, revista Veja 3/4/1996: 27. 16 Dados fornecidos por Mário Mizukami, chairman of board do Instituto de Pesquisa do Long Term Credit Bank of Japan, no Simpósio “10 anos do fenômeno dekassegui e suas perspectivas futuras”, realizado em 1/11/1997 em São Paulo (apud Sasaki, 1999). 17 Dados fornecidos pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), citados pela Associação Brasileira de Dekasseguis (ABD), em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), em sua primeira pesquisa aplicada sobre trabalhadores dekassegui, no Brasil e no Japão. (Jornal Nippo-Brasil, junho de 2004). 26 mas também a possibilidade de se conhecer a terra ancestral. De acordo com o estudo de Sayad (2000), para o migrante, esta tentativa de “retornar” ao ponto inicial da partida, é uma necessidade inerente à condição social do imigrante; e representa uma tentativa de retornar a si próprio, às suas origens, ao tempo anterior à imigração inicial, tratando-se, portanto, de uma temática da memória. A constatação do “mito do retorno”, enquanto elemento estruturante deste processo migratório revela, não apenas a continuidade de uma luta por melhores condições de vida, mas também, o desdobramento de um antigo projeto de retorno, trazido no bojo da imigração japonesa, no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. Através da análise dos relatos obtidos, torna-se possível constatar que, entre os imigrantes que chegaram ao Brasil no período que antecedeu o final da Segunda Guerra Mundial (1908-1941) a imigração para o Brasil era percebida como uma experiência transitória; que somente se tornou definitiva, em razão do desfecho da Segunda Guerra Mundial; ainda que forçados a permanecerem e se integrarem à sociedade de adoção, o desejo de retornar não deixou de existir; encontrando condições favoráveis para vir à tona, dentro de uma determinada conjuntura histórica de reestruturação mundial do capitalismo. 27 1.2. Revisão Bibliográfica A publicação Migrações Internacionais: Contribuições para Políticas (2001) editada pelo CNPD (Comissão Nacional de População e Desenvolvimento), apresenta uma listagem de 140 referências bibliográficas acerca desta temática. A partir da análise deste conjunto de publicações foi possível constatar um leque dos diferentes enfoques sobre o fenômeno da emigração de trabalhadores dekassegui rumo ao Japão. Em 1991, na cidade de São Paulo, foi realizado pela Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa, o Simpósio sobre o fenômeno chamado “Dekassegui”, contando com a presença de autoridades como o Cônsul Geral do Japão, Yasuji Ishigaki; o Chefe do Departamento de Migração Internacional para Emprego, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) Wolf-Rrudger Böning, de Genebra; o, então, Ministro Conselheiro da Embaixada do Brasil em Tóquio, Jadiel Ferreira de Oliveira; o Oficial da Divisão de Política Emigratória do Departamento Consular, do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão, Masanori Toda; o Vice-Prefeito da cidade de Hamamatsu, Ryuzaburo Inoue; o advogado, no Japão, Tadanori Onitsuka; o procurador da Prefeitura Municipal de São Paulo, Kyoshi Harada; o diretor da Nikkei Assistence Overseas Association, Yasuki Suzuki; o pastor responsável pelo Grupo de Convivência com Trabalhadores Estrangeiros de Hamamatsu, Tadao Ogawa; o Diretor-Superintendente da Fundação “Centro de Estabilização do Emprego nas Indústrias”, de Tóquio, Takahiro Kanehira; o Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Nelson Hanada; além de professores universitários e pesquisadores do Brasil e do Japão. A publicação resultante desta semana de discussões (Ninomiya, 1992) foi organizada segundo linhas temáticas que privilegiaram: os aspectos político e jurídico, os aspectos, sociológico, psicológico e cultural, e os aspectos econômicos. No que tange às 28 preocupações de natureza sociológica, psicológica e cultural, os trabalhos apresentados, enfocaram basicamente questões relacionadas: à informação e prestação de serviços de assessoria aos trabalhadores nikkei (Suzuki, 1992); ao problema da situação indefinida da permanência temporária, ou definitiva, destes trabalhadores no Japão (Kitagawa, 1992); dos problemas decorrentes da chegada de trabalhadores brasileiros no Japão e das variações no fluxo de entrada de trabalhadores dekassegui no mercado de trabalho japonês (Mori, 1992); e da definição da condição do migrante dekassegui com base na aplicação de questionários entre trabalhadores no Brasil e no Japão (Fuzii, 1992). De um modo geral, todos os trabalhos apresentados fundamentam-se, essencialmente, em análises de dados quantitativos e estatísticos. As conclusões do Simpósio destacam uma síntese das ponderações realizadas pelo Deputado Federal Diogo Nomura, pelo pastor Tadao Ogawa, pelo economista Paulo Yokota, pelo advogado Tadanori Onitsuka, entre outros: 1- “Seria desejável que o fenômeno dekassegui... não estivesse a ocorrer. Trata-se, porém, de um movimento incontrolável de compatriotas no legítimo exercício do seu direito de locomoção em busca de felicidade pessoal e familiar, gerado pelas conjunturas sócio-econômicas que o País está a atravessar (art. 5º, n. XV, Const. Federal)”; 2- “Recomenda-se a criação no Brasil de centro de informação e orientação... para evitar que compatriotas sejam vítimas de aliciamentos fraudulentos e de promessas falaciosas, e para possibilitar o prévio conhecimento por eles dos direitos assegurados pela Legislação japonesa, das dificuldades decorrentes de diferenças culturais, sociais, de clima, de modo de viver e de pensar...”; 3- “Merece ser ampliado pelo Governo Brasileiro o serviço consular no Japão de modo a propiciar aos dekassegui todo o apoio e orientação de que são eles carecedores e para desenvolver todo o esforço possível no sentido de tornar a presença dos dekassegui um 29 fator cada vez mais positivo no estreitamento dos vínculos culturais, de amizade e cooperação econômica e tecnológica entre o Brasil e o Japão.”; 4- “É desejável... que se multipliquem em todo o Japão os centros de informação, orientação e assistência iguais aos já existentes e que se ampliem os serviços oficiais e comunitários que permitam maior facilidade de integração dos dekassegui à sociedade japonesa, que minorem suas dificuldades e possibilitem efetivo e intenso intercâmbio cultural entre brasileiros e japoneses.” (Ninomiya, 1992, p.245-7). Assim, em meados do ano de 1992, foi fundado o Centro de Informação e Apoio ao Trabalhador no Exterior (CIATE), um órgão criado por iniciativa do Ministério do Trabalho japonês, com o intuito de informar e organizar o fluxo migratório de trabalhadores brasileiros rumo ao Japão. Porém, tem controle apenas sobre uma pequena parcela dos trabalhadores que migram. Em uma entrevista realizada com um representante do CIATE, em outubro de 1998, elementos importantes foram fornecidos acerca das dificuldades reais enfrentadas, tanto pelos trabalhadores que migram, como por seus familiares que ficam. Dificuldades relacionadas: à desagregação dos laços familiares; ao desaparecimento de trabalhadores; aos acidentes de trabalho sem direito a indenizações; e aos casos de karoshi, ou seja, morte por excesso de trabalho (Ocada, 2002). Com a rápida constituição de uma comunidade brasileira no Japão, no ano de 1992, foi lançado o primeiro semanário publicado em língua portuguesa no Japão. O jornal International Press, que no Brasil é publicado com o título Jornal Nippo-Brasil, foi criado com o objetivo de estabelecer um veículo de comunicação que aglutinasse toda esta população. No decorrer de suas edições, como mostra Chigusa (1994), muitos leitores enviaram suas opiniões, experiências e dúvidas à redação do jornal. Por essa razão, após dois anos de existência, o Internacional Press tornou-se uma fonte de informações 30 significativas, pois retrata, através de relatos pessoais, a vida cotidiana dos brasileiros no Japão. Inicialmente, segundo Chigusa (1994), grande parte das correspondências buscava esclarecimentos sobre, questões trabalhistas, seguro-saúde e problemas com documentações. Ao mesmo tempo, havia uma grande busca de informações sobre a situação no Brasil. Aos poucos o perfil do jornal foi adquirindo um novo formato. Alguns leitores solicitaram a inclusão de notícias locais e muitas cartas começaram a abordar aspectos psico-sociais e denúncias, que retratavam as inúmeras situações enfrentadas pelos nikkeis brasileiros, provocadas pelas duras condições de trabalho e, sobretudo, pela diferença cultural e lingüística. Desse modo, a visibilidade adquirida por estes conflitos deu um impulso inicial para a desmistificação criada em torno do mito do retorno ao “eldorado”, chamado Japão. Muitas destas cartas foram publicadas em um livro – A quebra dos Mitos: o fenômeno dekassegui através de relatos pessoais – organizado em seis capítulos temáticos: Trabalho; Preconceito; Saúde Física e Mental; Linguagem, Educação e Família; Choque cultural e Cotidiano; Momentos de Reflexão. As cartas publicadas foram selecionadas e organizadas por Chigusa (1994), buscando englobar os principais aspectos da vida diária no Japão. Para assegurar a privacidade dos leitores do jornal seus nomes foram substituídos pelas iniciais, constando, também, a província onde residiam os autores e a data em que foi publicada. O livro constitui um importante registro da etapa inicial da chegada de trabalhadores dekassegui nipo-brasileiros no Japão, e conta também com as participações de textos produzidos pela Profa. Dra. Lili Katsuko Kawamura (PhD. em Sociologia da Tenri University, Nara – Depto. De Estudos Brasileiros – Universidade de Campinas), por Angelo Akimitsu Ishi (Doutorando em Estudos Latino-Americanos The University of 31 Tokyo – Universidade de São Paulo), por Neusa Emiko Inoue (Pesquisadora do Depto. De Psicologia Clínica de Kyoto University – Universidade de Brasília), pela Dra. Sumiko Nishitani Ikeda (PhD. em Lingüística da Osaka University of Foreing Studies – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), e por Luis Henrique D’Andrea (Doutorando em Relações Internacionais de Sophia University – Tokyo – Universidade de Brasília). Desde que teve início esta emigração de trabalhadores brasileiros ao Japão, um número considerável de estudos acadêmicos foi produzido, visando dar conta do entendimento deste fluxo migratório. O estudo realizado por Yoshioka (1995), sobre a formação de um núcleo colonial, o Bairro das Alianças, no oeste paulista, presencia, durante a elaboração de sua pesquisa, a massificação do fluxo migratório inverso, com a revoada de trabalhadores nipo-brasileiros rumo ao Japão. Segundo o pesquisador, o advento do mesmo fenômeno pôde ser observado, também, no estado do Paraná, por Yamochi (apud YOSHIOKA, 1995), em Uraí; e por Asari (apud YOSHIOKA, 1995), ao pesquisar a formação do núcleo de Assaí. Segundo o trabalho de Yoshioka (1995), os trabalhadores que migram para o Japão levam consigo uma expectativa de enriquecimento rápido, que muito se assemelha às expectativas de seus pais e avós, ao imigrarem para as fazendas de café do estado de São Paulo. Outros, segundo o autor, “... nem sempre estão atrás de dinheiro, mas interessados em rever seus parentes ou conhecer o país de seus ancestrais...” (Yoshioka, 1995). No entanto, é possível que, na realidade, estas duas motivações – salariais e identitárias – não estejam nitidamente separadas, mas encontram-se indissociavelmente emaranhadas. As dificuldades constatadas por Yoshioka (1995), para prosseguir em sua pesquisa, devem-se à falta de dados mais globalizantes e à grande mobilidade deste tipo de mão-de- obra. Com base em informações colhidas no CIATE, em jornais, além de outras fontes 32 confiáveis, o autor, constata modificações no perfil destes trabalhadores. Inicialmente partiam os isseis (os japoneses imigrados no Brasil), sem que tivessem problemas sérios de adaptação; com o decorrer do processo ingressaram os nisseis (os filhos de imigrantes), que já apresentavam comportamento ocidentalizado e pouco domínio da língua e da escrita japonesa, embora carregassem elementos da cultura japonesa do período anterior à II Guerra Mundial; e, por fim os sanseis (os netos), bem mais ocidentalizados e sem nenhum domínio do idioma japonês. Os cônjuges não-nikkeis praticamente desconhecem a cultura japonesa. Durante um estágio como bolsista do governo japonês, o pesquisador visitou uma indústria de auto-peças, deparando-se com trabalhadores brasileiros que, no Brasil, desempenhavam funções como, advogado, professor, dentista, além de outros profissionais e estudantes universitários recém formados, ou que trancaram o curso para trabalhar no Japão. Constata, também a existência de casos de suicídio, alucinações, alterações psíquicas e trabalhadores acometidos de stress. Yoshioka (1995) menciona, também, o trabalho realizado pelos médicos psiquiatras Itiro Shirakawa (apud YOSHIOKA, 1995), da Escola Paulista de Medicina, e Décio Issamu Nakagawa (apud YOSHIOKA, 1995), da Beneficência Nipo-Brasileira, intitulado “Migração e saúde mental no Brasil”, no qual apresentam um estudo inicial realizado com 62 pacientes atendidos no ambulatório da Beneficência Nipo-Brasileira de São Paulo e em consultório particular, no período de janeiro a maio de 1993. Segundo o quadro apresentado pelo pesquisador: “Os pacientes apresentavam o seguinte quadro clínico: 59 pacientes (95,1%) com características sindrômicas de esquizofrenia, ou distúrbio paranóide; dois pacientes (3,2%), distúrbios depressivos; e um paciente (1,6%), quadro epilético. Associados a esse quadro clínico, 44 pacientes (74,5%), 33 apresentavam anorexia; 23 (38,9%), tendências suicidas; oito (13,5%), já haviam tentado o suicídio. Como conclusão do trabalho, os autores afirmam: “Apesar de se tratar de um primeiro estudo meramente descritivo, foi possível verificar que os dekasseguis vêm apresentando crises psiquiátricas em função de fatores estressantes, devido à desadaptação sócio-cultural. Noventa anos após a chegada dos primeiros imigrantes japoneses ao Brasil, seus descendentes voltam a repetir a história de seus antepassados. Vão enfrentar situações de solidão e desamparo num país de costumes e hábitos diferentes. Antes de partir, acreditavam que a mesma feição étnica e conhecimento da língua os protegeriam e favoreceriam na adaptação. Lá chegando, descobrem que a sua língua é arcaica e a discriminação é um fato. É o início para o desenvolvimento de alterações psicológicas (painel apresentado no 1º Simpósio de Psiquiatria Brasil-Japão, que precedeu o Congresso Internacional de Psiquiatria do Rio de Janeiro, e no Simpósio O futuro da comunidade nikkei, realizado em São Paulo no período de 6 a 7 de novembro de 1993)” (apud YOSHIOKA, 1995, p.141-2). Outro sério problema vivenciado pelos brasileiros que partem, são os acidentes de trânsito, segundo dados obtidos pelo pesquisador, no ano de 1992, registrou-se o óbito de 71 brasileiros no Japão, dos quais 11 foram por acidentes de trânsito. Essa é a situação de quem parte. Do outro lado deste mesmo fenômeno, encontram-se as famílias desagregadas. Os filhos, segundo o pesquisador, são as maiores vítimas da ausência do chefe de família, tornando-se apáticos e rebeldes. “A ausência prolongada, não raro, pode ocasionar a desagregação familiar. Tanto o(a) trabalhador(a) no Japão, como o cônjuge, no Brasil, poderá partir para um novo relacionamento, com outro(a) parceiro(a).” (Yoshioka, 1995, p.142). 34 Como mostra sua pesquisa, muitas esposas de nikkeis procuram o CIATE, para obter informações sobre o paradeiro de seus maridos desaparecidos no Japão. Há, também, casos de famílias inteiras que migram, nestes casos, a adaptação das crianças no novo ambiente é bastante difícil e traumática, na escola são vítimas potenciais da prática do “ijime” , que se traduz pela discriminação, pelos maus tratos e pelo isolamento, por parte dos colegas. Caso consigam se adaptar, voltar para o Brasil significaria uma repetição deste mesmo drama. Com base nestas experiências, vivenciadas por famílias nipo-brasileiras no Japão e no Brasil, além de outras fontes de dados estatísticos, Yoshioka (1995) buscou determinar as razões, as motivações, que impulsionam o movimento migratório do e para o Japão. No entanto, é possível constatar que o recurso metodológico empregado pelo pesquisador não lhe possibilitou adentrar as camadas profundas das motivações inconscientes desta migração de retorno, limitando-se a explicá-la circunscrita aos determinantes de ordem econômica e estrutural. O estudo realizado por Magalhães (1996) tem por objetivo investigar quais as expectativas e motivações que levam descendentes de japoneses, no Brasil, a migrar temporariamente para o Japão. O recorte definido pela pesquisadora englobou somente os trabalhadores dekassegui, paulistas, com nível de escolaridade superior. Sua preocupação está inserida dentro do debate teórico das migrações internacionais recentes. O método empregado pela pesquisadora foi a história oral, com uso da técnica de entrevistas. A partir das análises destes relatos a pesquisa constatou a existência, nesta migração, de outros motivos, além dos econômicos, que não costumam ser levados em consideração na literatura existente a respeito deste tema. Ao contrário de estudos anteriores, que tendem a centrar as motivações, exclusivamente, nos aspectos financeiros, esta pesquisa mostra que há outros fatores explicativos para esta migração. A inserção na comunidade nikkei e o 35 espírito aventureiro foram elementos extra-econômicos apontados pelas entrevistas realizadas pela pesquisadora. Fundamentada na literatura existente até então, Magalhães (1996) supunha, a princípio, que ir trabalhar no Japão só se justificaria em casos de dificuldade financeira. O trabalho de campo mostrou, porém, que a situação é bem mais complexa do que se imagina. Segundo esta pesquisa, grande parte dos entrevistados migrou com o sonho de conhecer o país dos antepassados, aprender japonês e juntar dinheiro. Depois de vivenciada a estadia no Japão, a avaliação positiva que fazem tem haver com aquilo que eles chamam de “experiência de vida”, elemento traduzido pela pesquisadora como um enfrentamento do desconhecido, em que cada um busca conhecer os seus limites individuais através da inversão do seu cotidiano. Significa não temer o novo e o diferente, saindo do dia-a-dia a que estão acostumados. Nenhum de seus entrevistados afirmou que a experiência não tivesse valido a pena, mesmo os que afirmaram não ter gostado do Japão, afirmaram ter valido a pena como experiência pessoal. Todos procuram mostrar o lado positivo dos anos que passaram no Japão e afirmam que se pudessem fariam novamente. Ir para o Japão significou buscar raízes, conhecer a cultura dos antepassados, aprimorar o conhecimento da língua japonesa, ou ainda, sair da rotina e viver algo diferente na vida. A vontade de conhecer o Japão se confunde em muitos momentos com a vontade de juntar dinheiro. Entre as pessoas entrevistadas por Magalhães (1996), não foram necessidades financeiras mais imediatas que induziram à emigração. Entre seus 17 entrevistados, apenas três mencionaram as dificuldades financeiras como um motivo importante. Tendo entrevistado somente jovens trabalhadores, o estudo de Magalhães (1996) não chega a adentrar o processo histórico 36 responsável pela constituição desta necessidade de se buscar as origens, deixando uma lacuna a ser preenchida. O estudo de Oliveira (1997) busca resgatar a trajetória da formulação da identidade do grupo de imigrantes japoneses e seus descendentes, com o enfoque principal na questão dekassegui, entendida como um momento de reflexão dessa trajetória. De acordo com seu estudo, a emigração de nipo-brasileiros rumo ao Japão está associada a um contexto de ausência de grandes perspectivas no país de origem. Nesta emigração, a pesquisadora identifica, entre os jovens migrantes dekassegui, uma motivação qualificada como um “senso de aventura inerente à juventude”, associada a noção de uma experiência temporária. Estes elementos – “senso de aventura”, “falta de perspectiva” e a noção de uma experiência transitória – articulam-se, impulsionando o migrante rumo a um país, tido como referência cultural. Seu trabalho de campo restringiu-se àqueles trabalhadores que após vivenciarem um período de trabalho no Japão, retornaram ao Brasil. Tendo em vista a heterogeneidade deste fluxo migratório, Oliveira (1997) realizou um total de 34 entrevistas, dentre as quais, 15 pessoas foram entrevistadas em grupo e 19 foram entrevistadas individualmente. A pesquisadora buscou apreender as condições diferenciadas, vivenciadas por cada depoente. Entrevistou imigrantes que trabalharam por um longo período, outros que permaneceram por um período menor, grupos de imigrantes mestiços e aqueles chamados “descendentes puros”. Suas entrevistas também levaram em consideração diferenciações sociais, tais como, nível de renda, grau de escolaridade, posição social que exercia no Brasil, diferenças de faixa etária e de geração de descendência. A pesquisa de campo teve como objetivo estabelecer um diálogo com o material teórico de análise, constituindo a parte empírica da pesquisa. 37 Sem perder de vista o panorama geral no qual se insere este processo migratório atual, Oliveira (1997) desenvolve, inicialmente, um estudo deste contingente populacional específico – os imigrantes japoneses e seus descendentes – e seu desenvolvimento subseqüente no contexto da sociedade brasileira, ao longo do século XX, abordando as posturas de identidade que sofrem implicações diversas de acordo com cada período histórico e chamando atenção para as especificidades às quais esta população esteve sujeita, nos diferentes momentos de sua relação com o país de adoção. Estabelece, assim, um quadro de análise pertinente para a colocação da condição atual, na qual descendentes nipo- brasileiros “retornam” ao Japão. De acordo com a pesquisadora, este “retorno” ao Japão constitui um novo momento para a representação identitária destes descendentes de japoneses. Inserido em um contexto migratório internacional mais amplo, este processo propõe questionamentos nas condições de identidade destes imigrantes, impondo uma situação de reflexão acerca deste problema. Assim, o estudo finaliza com um debate acerca da problemática identitária vivenciada por esta população, refletindo as suas contradições e as mudanças ocorridas em conseqüência do processo migratório atual – ser japonês no Brasil e brasileiro no Japão. O trabalho de Sasaki (1998) propõe um estudo da experiência identitária no movimento dekassegui. Como mostra sua pesquisa, a conotação de dekassegui, para os japoneses, tem uma temporalidade e um contrato muito bem definidos, cumprido este período o migrante retorna a sua região de origem, razão pela qual ele sempre é visto como um forasteiro, que um dia irá embora. Para muitos trabalhadores, esta também era a idéia inicial, mas com o passar do tempo essa clareza foi se dissipando, na medida em que, entre estes, se constituíam as chamadas redes sociais, no interior das quais ocorre uma negociação da identidade social destes migrantes. Segundo a pesquisadora, o dekassegui 38 seria o detentor de vários “elementos identitários”, que seriam acionados de acordo com as situações vivenciadas ao longo da própria experiência migratória e conforme a dependência do “outro”, com o qual se relaciona, em determinadas circunstâncias. Seu estudo preocupa- se em entender como operam as negociações de identidades numa experiência migratória como esta. Em seu percurso Sasaki (1998) constatou uma certa limitação nos recursos teóricos, metodológicos e até mesmo psicológicos, para tratar da temática identitária, razão pela qual buscou abordá-la por outros aspectos, quais sejam, através de uma bibliografia variada, pertinente: ao mercado de trabalho; à migração internacional como parte do processo de globalização; à reestruturação produtiva; à estrutura familiar; entre outros, para, enfim, retornar ao tema inicial da identidade. Em meio a dúvidas, “nebulosidades teóricas” e incerta da direção a ser tomada, a negociação da identidade foi o fio condutor encontrado pela pesquisadora, para o desenvolvimento de sua pesquisa. Com base em números oficiais do Ministério da Justiça do Japão, inicia seu trabalho desenvolvendo uma apresentação da população brasileira no Japão. Consciente da falta de precisão destes dados, a pesquisadora buscou uma aproximação deste contingente populacional, ao lado de outros estrangeiros. Em seguida, procedeu à pesquisa de campo, baseada em entrevistas com trabalhadores retornados do Japão e cônjuges que permaneceram no Brasil, onde buscou apreender os temas por eles abordados, a atuação e a dinâmica das redes sociais, bem como a negociação de identidades que permeiam suas vivências entre o Brasil e o Japão. Antes de tratar da questão identitária propriamente dita, Sasaki (1998) desenvolve um aprofundamento acerca das remessas, pois, segundo a pesquisadora: “Por mais variados que sejam os motivos que levam os descendentes de japoneses a se candidatarem como Dekassegui, a possibilidade de ganhar mais dinheiro em menos tempo veio 39 exercendo uma atratividade muito grande sobre esses migrantes” (Sasaki, 1998, p.17). Por fim, chega à questão da negociação da identidade, eixo central de sua pesquisa. Para Sasaki (1998), a condição de migrante leva estes trabalhadores a empregar valores culturais segundo a situação na qual se vêem inseridos e por meio do contraste com a sociedade de destino. Torna-se possível compreender, a partir de seu estudo, a dinâmica identitária que leva o migrante dekassegui a se posicionar como brasileiro, no Japão, e japonês, no Brasil. A pesquisa desenvolvida por Ribas (1998) privilegia uma análise do ponto de vista das transformações no mundo do trabalho e do processo de acumulação do capital. Sua preocupação consiste em conhecer os pressupostos que informaram o surgimento de um sofisticado sistema de controle da força de trabalho – o toyotismo, ou “modelo japonês” – do qual o trabalhador dekassegui constitui parte periférica e fundamental. Para o entendimento do atual estado de desenvolvimento da economia japonesa, o autor procede a uma retrospectiva da história do Japão, desde seu período feudal, revelando que a transição para o modo de produção capitalista, neste país, possui as mesmas características econômicas e históricas que possibilitaram o surgimento do capitalismo no restante do planeta, com algumas características distintas, entre as quais ressalta o longo período de isolamento da Era Tokugawa. A ocorrência da propriedade privada da terra constitui o critério definidor de sua condição de país feudal, não se enquadrando na definição do modo de produção asiático, cunhado por Marx. Um dos argumentos centrais, sustentado pelo autor, é o de que a construção de uma atitude original dos trabalhadores japoneses em relação ao trabalho possui uma influência decisiva de uma espécie de intelectual do tipo tradicional, segundo a concepção gramsciana de que todo homem é um intelectual. O intelectual tradicional seria aquele que forma uma camada pré-existente de representantes de uma certa continuidade da história e possui uma 40 função decisiva na construção da hegemonia social, como os eclesiásticos e os militares. O raciocínio conduzido pelo pesquisador é de que o toyotismo não poderia ter ocorrido sem a participação de um tipo de intelectual culturalmente específico daquele país – o samurai –, que ao longo do tempo metamorfoseou-se em um intelectual de tipo urbano e orgânico, fundamental para a “construção da obediência”, pedra angular deste modelo de produção e de articulação da sociedade. Segundo o ponto de vista adotado por Ribas (1998), a tradição dos samurais mantém-se preservada com o nascimento do capitalismo japonês, muito embora assuma formas compatíveis com a construção de uma sociedade industrial moderna. Nesta perspectiva, a tradição é preservada e os samurais passam a exercer funções burocráticas no aparelho estatal, ao mesmo tempo em que vão sendo incorporados à produção de mercadorias, na forma de dirigente industrial. Nesse sentido, o argumento sustentado é o de que a tradição samuraica teria significado um aporte cultural poderoso na construção do capitalismo japonês, constituindo-se na raiz de um processo produtivo que elevou em níveis inéditos a extração de mais-valia, pela via de um desenvolvimento acelerado das forças produtivas, sustentadas por uma direção política e cultural que soube combinar força e persuasão, para tornar predominante a ideologia burguesa no imaginário das classes subalternas, consolidando assim a sua hegemonia. De acordo com este autor, o ponto sobre o qual as análises do modelo japonês em geral silenciam refere-se às condições precárias de vida e trabalho dos restantes 70% da população trabalhadora daquele país, no qual estão inseridos de maneira especial os trabalhadores terceirizados – mulheres e imigrantes. Neste ponto, a análise de Ribas (1998) acerca dos trabalhadores brasileiros, com base em dados estatísticos, limita-se a uma abordagem econômica e estrutural da realidade, revelando a necessidade de um aprofundamento qualitativo do conhecimento desta realidade. 41 Nesse sentido, outro importante trabalho acerca da situação dos imigrantes brasileiros no Japão foi realizado por Kawamura (1999). A partir de pesquisas sobre trabalho, tecnologia e educação, a pesquisadora chegou ao tema da realidade dos trabalhadores brasileiros no Japão. A convite da Faculdade de Educação da Universidade de Nagoya, visitou o Japão por um período de um mês, momento em que aguçou seu interesse pelo tema. No entanto, a perspectiva de poder estudar esse universo veio com a oportunidade de desenvolver um projeto de pesquisa, com uma bolsa de pós-doutorado, na referida universidade. Em seu estudo, a autora busca desvendar, através de uma análise etnográfica, as vivências contraditórias dos trabalhadores brasileiros, em suas relações mútuas e com a população local, em diferentes instâncias da realidade social japonesa. Como mostra a autora, os nikkei-brasileiros têm uma trajetória ao mesmo tempo semelhante e específica, em relação ao conjunto da população brasileira. A especificidade está na vivência cotidiana e na formação cultural influenciadas por valores tradicionais da cultura japonesa, devido à convivência comunitária que caracterizou a trajetória histórica dos imigrantes japoneses no Brasil. Atualmente, a dispersão dessa população pelas áreas metropolitanas, a inserção nos mais variados ramos de atividades e a situação sócio- econômica das camadas intermediárias da sociedade, vem diluindo as características culturais nipônicas, na sua formação. Embora uma considerável proporção de jovens não apresente familiaridade com a cultura dos ancestrais, ainda é grande a parcela com influência cultural nipônica, em sua formação (Kawamura, 1999). Segundo o trabalho de Kawamura (1999), no Brasil, as práticas solidárias, trazidas pelos imigrantes japoneses, não se encontram difundidas na cultura brasileira, pois sucumbiram em face das idéias liberais vindas da Europa e dos Estados Unidos. Os atuais trabalhadores dekassegui, mostra a pesquisadora, constituem um grupo heterogêneo e 42 quando chegam no Japão, enfrentam uma vivência num contexto cultural totalmente diferente, no qual a racionalidade nas relações sociais, o controle emocional e a moral confuciana constituem a norma. Para os japoneses, em todas as situações de necessidade de esforço e em todos os lugares, a persistência constitui um aspecto de grande importância moral. Vinculada à ideologia do trabalho, “... a palavra de ordem freqüentemente utilizada é “gambarê!” (lute! persista!). Na cultura brasileira... a persistência está relacionada com a auto-crítica dos limites individuais, diferente para cada pessoa, e a mudança pode ser encarada como a saída desses limites, principalmente em relação ao trabalho e à escola.” (Kawamura, 1999, p.120). Segundo Kawamura (1999) os brasileiros em geral desenvolveram a improvisação, como norma de conduta, principalmente na resolução de problemas cotidianos; o “dar um jeitinho” faz parte da cultura brasileira. Essa prática foi levada pelos brasileiros ao Japão, os quais procuravam, muitas vezes, resolver problemas no trabalho com improvisações que, a seu ver eram mais eficientes do que algumas propostas e métodos de operação do trabalho planejados pela empresa, colocando-se em situação conflitiva. Os operários japoneses, sobretudo no chão de fábrica, seguem rigorosamente as instruções e as operações previamente definidas pelos escalões superiores. Todas as alterações são consensualmente estabelecidas, com a participação ativa dos superiores. Esta atitude é vista pelos brasileiros como submissão exagerada. Na ótica dos japoneses, o cumprimento das obrigações, em consonância com os demais membros do grupo visa não criar conflitos na empresa. Apesar das diferenças culturais e comportamentais mencionadas, a pesquisadora mostra que, para os descendentes de japoneses, a oportunidade de trabalhar no Japão está associada à possibilidade de busca de suas raízes e ao conhecimento da língua e de aspectos da atual cultura japonesa. 43 Em um estudo acerca da repercussão da migração e do trabalho sobre a saúde mental de trabalhadores recém retornados do Japão, Catanio (2000) atentou para o fato de que a procura por ajuda psiquiátrica sempre foi pequena entre descendentes de povos asiáticos. Entretanto, este quadro passou a se reverter a partir do momento em que trabalhadores dekassegui começaram a retornar para o Brasil. Com formação em psiquiatria, seu objeto de estudo restringiu-se àqueles pacientes nikkeis que, excepcionalmente, tomaram a iniciativa de procurar ajuda psiquiátrica. Todos eles atravessavam momentos de intenso sofrimento psíquico no momento em que procuraram auxílio profissional. Em sua pesquisa, Catanio constatou que os “nikkeis brasileiros... trabalham muito, conquistando a preferência dos empregadores, em relação aos imigrantes de outras etnias e nacionalidades” (Catanio, 2000, p. 93). Entretanto, o autor também constata que estes mesmos trabalhadores não têm sido “obrigados” a migrar, têm ido porque “desejam”. Reconhece então a necessidade de compreender o que antecede esta “vontade”. O estudo de Catanio (2000) retoma a história do Japão, desde o período Tokugawa, buscando melhor compreender a formação do pensamento japonês e seus arraigados valores éticos, para em seguida tratar da chegada dos imigrantes japoneses no Brasil e a maneira como enfrentaram as desventuras nas fazendas de café. Posteriormente, o pesquisador estuda as relações existentes entre o processo migratório atual, rumo ao Japão, e o surgimento de sintomas de sofrimento emocional intenso. Através de entrevistas não estruturadas, histórias de vida, desenhos de genealogias, além de questionários aplicados entre famílias nikkeis residentes na cidade de Londrina, Catanio (2000), chega à constatação de que, além das motivações econômicas, existem evidências concretas de outras motivações, de caráter identitário e cultural. Estes migrantes, 44 segundo o autor, partem como se estivessem buscando algo que se perdeu pelo caminho e, ao retornarem, já não se reconhecem mais como os mesmos. Retornam trazendo consigo uma estranha impressão de que algo mudou radicalmente no interior de suas consciências. Através dos relatos das histórias de vida o pesquisador mostra a existência de uma relação direta entre a experiência dekassegui e o momento de “adoecer”, entendido pelo autor como um momento de intenso desconforto emocional. Catanio (2000), ao final de seu estudo, aponta uma tendência de mudanças no movimento dekassegui, transitando, de migração “temporária”, para uma permanência definitiva, com todas as implicações nos níveis, individual, familiar, social e subjetivo. “Isto pode ser um indicativo de uma virada no padrão migratório dekassegui, pois, as famílias que vão, com seus filhos pequenos, acrescidos de outros que nascem no Japão, passarão a ter uma maior possibilidade de desenvolver uma tendência a permanecer por lá. Se for assim, estaria acontecendo, de fato um retorno às origens, uma reintegração ou um resgate. Não somente de questões subjetivas, e valores étnicos e culturais, mas também uma reconquista de espaço físico, de território.” (Catanio, 2000, p.124-5). O que o pesquisador não leva em consideração ao tecer sua afirmação, é que este “retorno” tem características que mais se assemelham a um desencontro temporal, na medida em que o background cultural levado por estes imigrantes encontram-se amalgamados com elementos da cultura brasileira e de uma cultura japonesa, que diz respeito a um período anterior à II Guerra Mundial. Estes migrantes, embora possam retroceder no espaço, jamais retornarão ao momento inicial da partida, jamais encontrarão nas mesmas condições as pessoas e os lugares que foram deixados para trás. O trabalho de Toma (2000) propõe desvendar a subjetividade das mulheres que se inserem nesta experiência migratória atual. Sua análise traz uma compreensão do fenômeno 45 da globalização da economia e do surgimento do trabalhador transnacional, que atravessa as fronteiras nacionais em busca de trabalho em países como Estados Unidos, Japão e Europa. Para analisar os aspectos inerentes ao trabalhador desterritorializado recorre a uma bibliografia geral sobre o fenômeno da globalização. Aprofundando sua análise num plano mais específico, a pesquisadora historiciza a trajetória dos imigrantes japoneses que chegaram ao Brasil nas primeiras décadas do século XX, os quais trouxeram um sonho comum que não se realizou, qual seja, o de retornar ao Japão. A pesquisa realizada por Toma (2000) buscou ir além da explicação econômica deste processo, procurando outras motivações, igualmente decisivas, que levaram algumas mulheres a deixarem maridos e filhos para se aventurarem e tornarem-se trabalhadoras dekassegui, no Japão. O recorte privilegiado pela pesquisadora, em seu trabalho de campo, foi a experiência das mulheres nikkeis, bem como seu lugar na estrutura familiar e seu universo de representações. O estudo das trajetórias das mulheres nikkeis brasileiras, analisadas pela autora, leva em consideração uma abordagem que contempla, tanto a compreensão do fenômeno geral da globalização da economia e da constituição de trabalhadores transnacionais, quanto uma análise do mercado de trabalho japonês em suas especificidades. Desse modo, seu estudo oferece uma compreensão dos aspectos objetivos e subjetivos do fenômeno migratório em questão. A vivência do trabalho, na condição de migrante dekassegui, foi a motivação que levou a pesquisadora e desenvolver seu estudo. Segundo a perspectiva adotada em seu trabalho, os “... imigrantes dos novos tempos não podem... ser considerados “desenraizados”, pois a mudança de... país, não significa ruptura com o país de origem, mas sim a vida se constituindo em dois (ou muitos) lugares.” (Toma, 2000, p.3) No entanto a transição em curso de uma migração temporária para uma situação de permanência 46 definitiva, leva esta afirmação a uma revisão crítica. Os inúmeros casos de famílias desagregadas, de crianças abandonadas, de trabalhadores desaparecidos e de suicídios, revelam a impossibilidade de se criar raízes em dois, ou mais, lugares, simultaneamente. É preciso levar em consideração que o processo de desenraizamento não diz respeito exclusivamente a um deslocamento espacial, mas refere-se também a um processo de individualização, em favor da interiorização de novos valores e novos símbolos, associados ao consumo. Onde quer que seja, o desenraizamento é um fenômeno intrínseco à sociedade capitalista e resulta da prevalência do valor de troca sobre todas as relações sociais. O estudo de Ferreira (2001) tem como enfoque a compreensão do “confronto dos lugares” vivenciado pelo migrante dekassegui, que vive e trabalha no Japão, mas sonha com o retorno ao Brasil. A definição do lugar na migração dekassegui, enquanto um lugar do capital, constitui o ponto de partida de seu estudo. Segundo o pesquisador, tanto em seu lugar de destino, como em seu lugar de origem, o migrante assume a condição simultânea de consumidor e de mercadoria. Neste contexto, o estudo mostra como a atuação do Estado e do mercado de trabalho, determinam a migração dekassegui, fazendo do migrante uma peça dentro do jogo de interesses que constitui a migração internacional. Nesta perspectiva, a degradação social, o descaso do governo, a instabilidade econômica, o desemprego, os baixos salários, a violência, a corrupção e a limitação do poder aquisitivo, são os fatores estruturais determinantes da ida e da permanência de trabalhadores dekassegui, no Japão. Para o desenvolvimento deste trabalho de pesquisa, Ferreira (2001) realizou 15 entrevistas qualitativas, com migrantes dekassegui dos mais variados perfis. Através da análise destes depoimentos, seu estudo mostra o dilema vivenciado por este tipo de trabalhador migrante, dividido entre o Brasil e o Japão, num eterno confrontamento dos lugares, travado e vivido por todos aqueles que se tornam migrantes. Na migração 47 internacional dekassegui, segundo o pesquisador, ocorre uma reafirmação do Brasil, enquanto lugar de origem, a terra natal, o “lar” do migrante dekassegui, ao passo que o Japão, terra dos antepassados, torna-se a “casa emprestada”, o lugar do trabalho, do dinheiro e das possibilidades de se alcançar uma vida melhor nos moldes de uma sociedade capitalista. Segundo Ferreira (2001), o migrante dekassegui, que vive e trabalha no Japão, tem sempre em mente o desejo de retornar ao seu lugar de origem. Por essa razão, a vivência destes trabalhadores, na ótica do pesquisador, estaria permanentemente dividida entre o lugar de destino e o lugar de origem. A respeito desta situação, o pesquisador comenta que a impressão que se tem, em alguns casos, é que o migrante que parte rumo ao Japão, interrompe sua vida limitando-se apenas a “trabalhar e ganhar dinheiro”, ao passo que o “viver” torna-se um projeto para o futuro. “Quando eles voltarem ao seu verdadeiro lugar, o Brasil, é que eles voltarão a viver novamente” (Ferreira, 2001, p. 135). Desse modo, imbuídos deste sentimento de não pertencimento, e da noção de uma estadia provisória, as relações sociais e os próprios vínculos com o novo lugar acabam ficando impedidos de acontecer. Nesse sentido, considerando o fato de que a migração dekassegui vem transitando rapidamente de uma condição provisória para uma situação permanente, é possível afirmar que este sentimento de não pertencimento ao lugar de destino, apontado pelo pesquisador, está fortemente vinculado ao fenômeno do desenraizamento destes trabalhadores migrantes. O trabalho realizado por Carignato (2002) propõe um estudo psicanalítico sobre as migrações entre o Brasil e o Japão. Para o desenvolvimento de seu estudo a autora partiu do pressuposto da impossibilidade de distanciamento do autor em relação ao seu objeto de estudo. “O pesquisador que se propõe a utilizar fundamentos psicanalíticos para 48 investigar problemas individuais ou coletivos deve ter clareza de que também está lidando com a articulação inconsciente do seu próprio desejo. Dessa forma ele até poderá se envolver na análise dos fenômenos sem correr o risco de perder-se no fio condutor do estudo nem desperdiçar energias, impedindo que seu desejo se manifeste na realização da pesquisa” (Carignato, 2002, p. 25). De acordo com esta autora, quando um descendente de imigrantes investiga problemas relativos à migração da qual ele próprio faz parte, utilizando conceitos psicanalíticos, não pode deixar de considerar que, na raiz de seus questionamentos, existe uma história pessoal e familiar. A evocação do passado, segundo Carignato (2002), tem motivos inconscientes, cujos conteúdos não podem ser desprezados pelo pesquisador que estuda as histórias de migração. Tendo claro estes pressupostos, a autora selecionou e analisou tanto histórias gerais de migração, que envolvem a coletividade, quanto as singularidades das pequenas narrativas. A opção da pesquisadora pela retomada do movimento migratório dos japoneses para o Brasil surgiu em uma sessão de análise. Por essa razão, em seu trabalho, o reconhecimento e o resgate da filiação foi o eixo que conduziu suas preocupações. Embora tivesse interesse na experiência dos brasileiros dekassegui, no Japão, Carignato (2002) optou por empreender a sua própria tentativa de regresso às origens. A partir de uma viagem à Okinawa, província de seus pais, deu início a sua própria experiência de “retorno”. Assim, seu estudo inicia-se com o relato de sua viagem à terra ancestral, para em seguida tratar de duas experiências coletivas: a imigração dos japoneses ao Brasil e a dos brasileiros rumo ao Japão. A conclusão de seu estudo desdobrou-se na análise dos movimentos migratórios e na abordagem do tempo e do futuro, perpassados por observações de caráter pessoal. Com base em depoimentos de pessoas conhecidas e de uma 49 trabalhadora dekassegui, orientou suas reflexões de cunho psicanalítico, em torno da metáfora paterna, na qual a batalha contra a figura pai antecede uma reconciliação posterior. Através de obras escritas por outros nikkeis – José Yamashiro, Masao Daigo, Matinas Suzuki, Agenor Kakazu – procurou reconstituir o passado. A partir das histórias de imigrantes e de emigrantes a pesquisadora empreendeu a construção de sua própria história. O trabalho de pesquisa de Ocada (2002) inicia-se a partir de uma experiência de trabalho temporário integrado à linha de produção de automóveis da empresa Suzuki-Kosai, retratada a partir do uso da observação participante e do emprego da história oral, com base na técnica de gravação de depoimentos orais, de outros trabalhadores da mesma fábrica. O estudo em questão, privilegiando o enfoque da dimensão subjetiva das relações sociais, desenvolve inicialmente uma análise das relações de trabalho no chão de fábrica, levando em consideração as percepções e representações dos próprios trabalhadores. Desse modo torna-se possível apreender a maneira como se desenvolve uma sofisticada estratégia de dominação dos trabalhadores, com vistas ao controle individual. A fragmentação do coletivo operário, por meio das diferenciações dos salários, dos estatutos, das jornadas de trabalho, dos alojamentos, dos uniformes, da alimentação e dos privilégios, no interior do coletivo operário, tendo em vista critérios de gênero e de nacionalidade/etnia, tem por fim a obtenção de uma postura subserviente dos trabalhadores em relação ao capital. As bonificações por assiduidade, a hierarquização das relações sociais entre grupos de trabalhadores de mesma nacionalidade, o estímulo à competitividade através da possibilidade de ascensão hierárquica, a vigilância e o controle, não apenas fazem das relações entre os trabalhadores uma realidade tensa e conflituosa, mas revela também todo um processo de individualização do sujeito. 50 Inseridos no contexto desta sociabilidade – moldada pela lógica da produção – muitos trabalhadores internalizam um discurso ideológico legitimador das condições sociais, impostas, tanto pelas empreiteiras, quanto pela fábrica. Esta internalização da dominação, no entanto, não exclui a existência de uma grande variedade de práticas de resistência entre os trabalhadores. Os absenteísmos, as sabotagens, as burlas, além dos casos de fugas e de quebras de “contrato”, ilustram a resistência dos trabalhadores, nos poros da dominação. A intensidade do trabalho e a cadência repetitiva de uma seqüência de operações mecânicas, durante longas jornadas de trabalho acrescidas de horas-extras, exigem de cada trabalhador a incorporação de um adestramento produtivo. A despersonalização do indivíduo em favor da internalização deste condicionamento produtivo e a ausência de qualquer conteúdo significativo neste tipo de trabalho fabril, interferem diretamente na estruturação psíquica do sujeito, abalando os alicerces constitutivos de sua identidade. A imposição das jornadas de trabalho, em turnos alternados semanalmente – aplicada somente sobre a parcela masculina da força de trabalho – provoca um completo desajuste das noções temporais do indivíduo, agravando ainda mais o quadro psíquico destes trabalhadores. Desse modo, a experiência cotidiana destes trabalhadores revela o mito por trás da idéia de “retorno”. A partir desta constatação, ocorre uma inversão, onde o Brasil assume a forma de um lugar idealizado18 no imaginário destes trabalhadores migrantes. Ao retornar ao Brasil, porém, depois de incorporado o adestramento produtivo da fábrica, um choque temporal e espacial torna-se inevitável, os estudiosos denominam este fenômeno como “Síndrome do Regresso”. Por conta deste desajuste, em muitos casos, a permanência no 18 A mesma frase pôde ser ouvida de muitos trabalhadores dekassegui:“No Brasil a gente vive! Aqui [no Japão], a gente trabalha!”; ou ainda: “O Brasil, se não tivesse violência e pobreza, seria o melhor lugar do mundo!”. 51 Brasil torna-se inviável, fazendo do trabalhador dekassegui a personificação do migrante desenraizado. A partir desta experiência, algumas indagações vieram à tona, acerca das razões que levam muitos destes migrantes a se submeterem a estas condições. No discurso de muitos trabalhadores, a necessidade de ganhos financeiros não constitui a única justificativa para a vivência desta experiência. Existem, além dos fatores econômicos e estruturais, elementos invisíveis que imprimem outros significados a esta migração. O desejo de conhecer a terra dos antepassados, viver novas experiências e aprender a língua japonesa, são outras justificativas dadas pelos trabalhadores, que não excluem a pretensão de ganhos financeiros, mas são indicativas de uma outra busca, de natureza existencial e identitária. Nesse sentido, indaga-se onde estariam as raízes históricas deste comportamento, ou seja, deste “desejo” de conhecer o país ancestral, que em alguns casos chega a se assemelhar a um atendimento inconsciente a um “chamado”? Outros estudos também constataram a existência deste elemento presente no discurso de alguns destes migrantes, no entanto, as metodologias empregadas não permitiram um aprofundamento desta questão. Todos os estudos, até o presente momento, enfocaram somente a perspectiva dos trabalhadores e trabalhadoras em idade produtiva. Para se chegar a este entendimento, no entanto, é preciso levar em consideração os acontecimentos do passado guardados silenciosamente nas lembranças das gerações mais velhas. Acontecimentos, estes, sobre os quais os imigrantes japoneses mais velhos não gostam de falar, pois trazem à tona momentos sofridos de opressão, conflito e frustração, que foram silenciados nas memórias destes sujeitos. Por essa razão, sem perder de vista os aspectos estruturais que determinam os fenômenos migratórios, um entendimento aprofundado acerca da atual migração dekassegui deve levar em consideração a influência 52 destes elementos invisíveis na estruturação do processo migratório atual. As motivações subjetivas que perpassam esta migração encontram-se inscritas em camadas profundas do inconsciente destes migrantes e dizem respeito ao passado. Assim, para se aprofundar o conhecimento destas motivações, uma retrospectiva se faz necessária, exigindo a incorporação de outras vozes (mais experientes) para a análise deste fenômeno. Nesse sentido, – com o propósito de se aprofundar o conhecimento destes elementos invisíveis que perpassam todo o processo migratório, condicionando as decisões individuais e familiares de emigrar ao Japão – as vozes de duas gerações de mulheres idosas de algumas destas famílias migrantes, juntamente com o relato de um único homem idoso, foram ferramentas com as quais se buscou realizar uma reconstrução do passado. A opção pela realização de entrevistas com pessoas idosas, sobretudo do sexo feminino, deve-se à peculiaridade que caracteriza a memória feminina em relação a memória masculina. Segundo o estudo de Perrot: “os modos de registro das mulheres estão ligados à sua condição, ao seu lugar na família e na sociedade”, a memória feminina, de acordo com a autora, é a memória do “privado, voltado para a família e o íntimo” (Perrot, 1989, p.15). Às mulheres foram delegadas funções como, a transmissão das histórias de família, feita freqüentemente de mãe para filha, a realização do culto aos mortos e o cuidado com as sepulturas. As suas memórias estão ligadas à oralidade das sociedades tradicionais que lhes confiavam a missão de narradoras da comunidade aldeã. Por todas essas razões, conclui a autora, a memória – forma de relação com o tempo e com o espaço – , como a existência da qual ela é prolongamento, é profundamente sexuada. Para se compreender o papel da mulher no interior da família japonesa, segundo Sakurai (1993), é preciso se reportar às tradições desse povo, no qual a figura ocidental da “dona de casa” cabe à sogra, ou seja, à mãe do chefe da família. À esposa do chefe da casa, 53 cabe exercer um papel d