GUILHERME GONZAGA DUARTE PROVIDELLO PROJETO BANDA LOKONABOA: CRIANDO UM ACORDE ENTRE ARTE, LOUCURA E REFORMA PSIQUIÁTRICA ASSIS 2011 GUILHERME GONZAGA DUARTE PROVIDELLO PROJETO BANDA LOKONABOA: CRIANDO UM ACORDE ENTRE ARTE, LOUCURA E REFORMA PSIQUIÁTRICA Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientador: Prof. Dr. Silvio Yasui ASSIS 2011 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Providello, Guilherme Gonzaga Duarte P969p Projeto Banda Lokonaboa: criando um acorde entre arte, loucura e reforma psiquiátrica / Guilherme Gonzaga Duarte Providello. Assis, 2011 104 f. : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Silvio Yasui 1. Arte e doença mental. 2. Saúde mental. 3. Reforma psi- quiátrica. 4. Mudança social. I. Título. CDD 150.195 362.1 Para Priscila, Companheira, amante e musa, E Paulo “Vilela” (in memoriam), Quem não poderá me ver “doutor”. AGRADECIMENTOS Comecei a escrever os agradecimentos calmamente, como se fosse mais uma parte do texto. Estava enganado. Primeiramente porque é impossível enumerar todos que merecem minha gratidão, e me desculpo se não constar o nome de alguém. E em segundo lugar porque, apesar de estar em um lugar do trabalho que poucos lerão, existem muitos nomes que deveriam constar aqui. Tantos que os agradecimentos se tornaram longos, e voltei ao começo do texto para dizer que todos os abaixo listados, assim como os não listados, tornaram possível esta dissertação. Antes de tudo, é necessário agradecer a Maria Angela Gonzaga Duarte (a Tim) por ter dito, lá em 2009, que eu deveria fazer o que quisesse ao fim da graduação, pois ela estaria sempre me apoiando. Felizmente não escolhemos nossa família, pois não teria sido capaz de escolher uma mãe melhor. Agradeço também aos meus dois pais postiços, Paulo Garcia Duarte (meu avô), que faleceu já há alguns anos, e Gabriel Gonzaga Duarte Providello (meu irmão), que apesar de calado e ranzinza – nunca gostamos dos irmãos mais velhos, não? –, se tornou um amigo e socorro nas horas mais complexas. Ambos se tornaram, em minha história, exemplos aos quais seguir e companheiros para nunca se esquecer. Também ao meu pai biológico, Pedro Augusto Providello, que independentemente da distância sempre foi capaz de transparecer o carinho pelos seus rebentos, mesmo que em uma foto de seus “moleques”, amarelada pelo tempo, colada no espelho de seu quarto. A Felipe e a Pedro, por serem promessas de alegrias vindouras, que também me foram presenteadas pelo Gabriel. Os dois acordaram em mim um instinto paterno e esse carinho especial que é o cuidar, apesar de não serem filhos meus. Também agradeço à minha avó Beth, por não me permitir lavar a louça, e ser capaz de cozinhar o melhor bacalhau do planeta Terra. Suas receitas ainda me tornam mais feliz, seja quando ela as executa, ou quando tento fazer a “minha versão” dos pratos, graças ao caderninho verde de receitas que minha mãe e ela me deram. Agradeço-a não só pelas comidas, mas também pelas cervejas compartilhadas, e por me chamar de “o cachorro do meu neto”, com sua voz rouca. À Priscila Constantino Sales, por segurar minha mão por debaixo do cobertor todas as noites, por ter trazido uma cachorra da faculdade numa noite fria, por me acompanhar nos 800 filmes aos quais assistimos nestes quatro anos... E também por me empurrar sempre para frente, forçando-me sempre a ser mais. Ela está marcada, literalmente, na minha pele, graças à tatuagem que me deu de presente em um dos meus aniversários. A Rodrigo Mognilnik, o “maridão”, e a Ivo Meguro Martins, o cozinheiro, por terem tomado umas cervejas comigo no primeiro dia de faculdade, e por me agraciarem com a melhor república da vida. A casa que habitamos foi demolida para se tornar uma igreja, mas a amizade que criamos ali perdura, apesar da distância. Também aos amigos Thiago, Fred, Diego, Piter, Carol, Douglas, Patricia, Marcos, Rafa, Elka, por tornarem a vida mais leve, o tempo mais curto, e as noites mais quentes (ou seria culpa da cerveja?). Ao “Estranho”, Jean, Chicó e Ivão, tão importantes por me acompanharem ainda hoje; e por me fazerem sentir vergonha em ocasiões sociais; e por ligarem às quatro da manhã para conversar. À Hilda e a Luiz, mãe-sogra e pai-sogro, por coisas demais para se enumerar, mas principalmente por serem minha família aqui, tão longe dos que compartilham meus genes. A Silvio Yasui, por me ensinar, entre bilhões de outras coisas, que Ele, com maiúscula, só pode ser usado para se referir a Deus e ao Pelé. Agradeço também por sempre respeitar o meu tempo, apesar deste ser tão lento. A Gustavo Dionísio e à Beth Lima, por me fazerem desejar que bancas de qualificação pudessem acontecer todo mês, graças à simpatia e sabedoria de seus comentários. Obrigado também à Capes, por financiar, por intermédio da PROPG, este trabalho. E à secretaria de pós-graduação, por cuidar tão atenciosamente de mim. Também a todos que responderam os questionários e tornaram a pesquisa possível. Mas agradeço principalmente a Claudenir, Wilson, Zefa, Marcelo, Dirceu, entre tantos outros, por serem companheiros de banda, e mais ainda, por me mostrarem que aprender a tocar baixo foi a escolha mais acertada da minha adolescência. A presença destes foi por demais importantes para tudo o que se segue, e também para a minha vida. Antes de tudo, esta dissertação foi escrita para vocês. Estou vivendo No mundo do hospital Tomando remédios De psiquiatria mental Haldol, Diazepam Rohypnol, Prometazina Meu médico não sabe Como me tornar Um cara normal Me amarram, me aplicam Me sufocam Num quarto trancado Socorro Sou um cara normal Asfixiado Minha mãe, meu irmão Minha tia, minha tia Me encheram de drogas De levomepromazina Ai, ai, ai Que sufoco da vida Sufoco louco Tô cansado De tanta Levomepromazina Harmonia Enlouquece – Sufoco da Vida PROVIDELLO, G. G. D. Projeto banda Lokonaboa: criando um acorde entre arte, loucura e Reforma Psiquiátrica. 2011. 104 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Ciências e Letras - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Assis, 2011. RESUMO A presente dissertação visa analisar e elaborar a história de um projeto de nove anos ligado ao núcleo de estágio em saúde mental, do curso de graduação em psicologia pela UNESP – Assis, intitulado banda Lokonaboa, formada por estagiários e usuários do sistema de saúde mental de Assis. Utilizou-se como fonte de pesquisa, a narrativa de experiências do próprio pesquisador e de vários ex-estagiários que fizeram parte do projeto. Conceitualmente partiu-se de duas perspectivas teóricas: dos conceitos de Michel Foucault sobre a loucura enquanto fato social, enquanto linguagem interdita, ausência de obra, e a diferenciação entre loucura e desrazão; e da Reforma Psiquiátrica como processo social complexo e de sua dimensão sócio-cultural, que visa a uma reestruturação do imaginário social da loucura, com as interfaces entre cultura e saúde mental, arte e loucura. Pretende-se, por fim, tornar público o projeto em questão e evidenciar suas contribuições para as novas práticas de cuidado em saúde mental, demonstrando a possibilidade, tornada real pelo projeto, de reconstruir a experiência da loucura na contemporaneidade. Palavras-chave: Saúde mental. Arte e Doença Mental. Reforma Psiquiátrica. Mudança Social. PROVIDELLO, G. G. D. Projeto banda Lokonaboa: criando um acorde entre arte, loucura e Reforma Psiquiátrica. 2011. 104 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Ciências e Letras - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Assis, 2011. ABSTRACT This dissertation aims to analyze and elaborate the story of a nine-year-old project linked to the mental health internship training program, undergraduate course in psychology at UNESP – Assis, titled banda Lokonaboa: a band made up of interns and users of the Assis mental health system. The narrative of experiences of the researcher himself and several former interns who participated in the project were used as a research resource. Conceptually, two theoretical perspectives were used: the concepts of Michel Foucault on madness as a social fact, as a forbidden language, the absence of work, and the distinction between madness and unreason; and the psychiatric reform as complex social process and its socio-cultural dimension, which aims at restructuring the social imaginary of madness, with the interfaces between culture and mental health, art and madness. It is intended, at last, to make the project in question public and highlight its contributions to the new practices of mental health care, demonstrating the possibility, made real by the project, to reconstruct the experience of madness nowadays. Key-words: Mental Health. Art and Mental Illness. Psychiatric Reform. Social Change. SUMÁRIO INTRODUÇÃO p.12 Digressão sobre o Desespero, o Delírio e o Sonho p.12 Quem escreve – A narrativa de um ex-participante p.13 O que é o projeto da banda Lokonaboa p.15 Objetivo, ou o que se pretende com este texto p.16 Metodologia: colocando-me como Intercessor p.18 Método: aspectos práticos p.20 Fontes p.21 Os capítulos p.22 CAPÍTULO 1: TERÇA MAIOR: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A LOUCURA E A ARTE p.25 Introdução ao capítulo p.25 Há Loucura em Foucault? p.26 1 – Loucura: objeto historicamente constituído p.27 1.1 – Continuidades e descontinuidades na história (da experiência) da loucura p.28 1.2 – Continuando: a loucura como invenção e não descoberta p.29 2 – Loucura: linguagem interdita p.31 3 – Digressão: a experiência trágica da loucura p.33 3.1 – Desrazão p.35 3.2 – O artista louco p.38 3.3 – A obra desobrada p.39 4 – Dar ou não dar voz à loucura p.42 Conclusões do capítulo p.45 CAPÍTULO 2: QUINTA: A REFORMA PSIQUIÁTRICA p.48 1 – A Reforma Psiquiátrica é uma conceituação “forte” p.48 2 – A Reforma Psiquiátrica é um Processo Social Complexo p.50 3 – A Reforma Psiquiátrica é um Processo Civilizatório p.52 4 – A Reforma Psiquiátrica entrelaça-se em quatro dimensões p.53 4.1 – Dimensão jurídico-política p.54 4.2 – Dimensão técnico-assistencial p.56 4.3 – Dimensão epistemológica p.58 5 – Dimensão sócio-cultural p.62 6 – Compondo um acorde: Arte, loucura e desrazão p.65 CAPÍTULO 3: TÔNICA: A EXPERIÊNCIA PELA NARRATIVA DE QUEM A FEZ p.68 1 – O projeto banda Lokonaboa p.69 2 – Por que elaborar uma história do projeto? p.72 3 – Os dados dos relatos p.73 3.1 – Organização ou desierarquização p.75 3.2 – Objetivo p.78 3.3 – Objetivos secundários de cada “gestão” p.81 3.4 – As apresentações e viagens p.84 4 – Operando sobre os objetivos da Reforma Psiquiátrica p.87 CONCLUSÃO – A SONORIDADE DO ACORDE REMETE À NOTA DE SEU NOME p.90 Onde estão os usuários? p.90 Quanto aos efeitos – narrativa de episódios p.92 Batendo novamente na mesma tecla: a dimensão sócio-cultural p.94 A música como meio de operação p.95 Desfecho p.98 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS p.100 12 INTRODUÇÃO Digressão sobre o Desespero, o Delírio e o Sonho O mundo criado por Neil Gaiman, autor da premiada série adulta de quadrinhos de fantasia conhecida pelo nome de Sandman (1989), é habitado por sete personagens insólitos: os Perpétuos, manifestações antropomórficas de certos aspectos da existência. Destino, Morte, Destruição, Sonho (ou Sandman), Desejo, Desespero e Delírio são representados como humanos, mas são corporificações do conceito explícito em seus nomes. Sonho, por exemplo, é o responsável por aqueles que sonham dormindo ou acordados, e é considerado o rei de todas as histórias, mesmo as não contadas ou não escritas. Em suma, é aquele que rege o domínio do fantasioso. “Três setembros e um Janeiro” 1 (GAIMAN, 2006, p. 22-44), uma das histórias contadas por Gaiman, começa com um desafio de Desespero, motivação de Sandman para satisfazer o sonho de um comerciante arruinado, tornando-o o Imperador dos Estados Unidos da América. Não que o resto do mundo aceite o auto proclamado imperador, mas ainda assim seu sonho é levado a cabo, e o comerciante acaba saindo do controle de Desespero, passando a ser guiado por Sonho. Graças a suas convicções o comerciante passa, obviamente, a ser considerado louco. Páginas depois, enquanto o Imperador Joshua Abraham Norton I conversa com Mark Twain em um bar, Delírio fala com Sonho: “ – Ele não é meu... é? Sua Loucura... Sua loucura o mantém são.” Sandman então responde: “ – E você crê que ele é o único, minha irmã?” (GAIMAN, 2006, p. 33). Ao longo do conto, Desejo também tenta tomá-lo de Sonho, sem resultados. Chegamos ao final da história, e o Imperador Norton I falece. Desespero olha para ele, desolada: “Achei que você voltaria para mim, Joshua. Mas não. Parece que fracassei. Você é um maluco, um doido de pedra morrendo na sarjeta debaixo de chuva... mas nunca se desesperou.” (GAIMAN, 2006, p. 43). Quando Sonho reaparece, com um souvenir, Desespero indaga se deve agradecer. Sonho, sempre enigmático, responde: “ – Ao menos pela lição, quem sabe.” (GAIMAN, 2006, p. 43.). Partindo deste fragmento podemos perguntar: mas que lição? A lição, ou se preferir, a moral da história, é simples: um sonho é mais forte que desejos, delírios ou o desespero. No 1 Esta história, inclusive, é baseada em um personagem verídico, que de fato se chamava Joshua Abraham Norton e acreditava ser o imperador dos Estados Unidos. È verídica também sua relação com Mark Twain. 13 entanto, nosso convívio com a loucura nos faz pensar em outra coisa ao ler a história: nem todos que deliram são loucos; alguns são apenas sonhadores. Por que a digressão sobre desenhos em quadrinhos se esta dissertação é sobre música, loucura, sobre a Reforma Psiquiátrica? Não é o relato de um projeto que liga a música ao cuidado aos portadores de distúrbios mentais? Não fala da prática que acontece em determinado Centro de Atenção Psicossocial do interior do estado de São Paulo? A resposta é “sim” para todas as questões acima. Contudo esta dissertação de mestrado é também sobre sonhos: o sonho de uma sociedade em que a loucura (doença mental) deixou de ser estigma e critério de exclusão – dos corpos, da linguagem e da cidadania; o sonho em que a loucura (desrazão) passou a habitar as ruas e linguagens que não só a doença mental e a arte, em algumas poucas irrupções; o sonho de um regime de verdades em que a racionalidade científica seja posta de lado em prol de outros valores, mais humanos. E esta dissertação de mestrado é escrita por um entre tantos sonhadores que hoje habitam esses sonhos por uma sociedade diferente, pela criação de um processo civilizatório no trato com a loucura. Pessoas que, como o personagem do conto, sentem na pele a força de um sonho a ser seguido. Um sonho não só nosso, enquanto escrevemos e trabalhamos, mas de tantas outras pessoas que não querem mais ser injustiçadas, empurradas para as margens da sociedade na qual vivem graças a uma marca social que lhes foi forçada, seja essa margem física ou social. Quem escreve – A narrativa de um ex-participante Ecléa Bosi (BOSI, 1994) foi muito feliz ao dizer que a memória antes de tudo é uma “re-vivência”, com os olhos de hoje, do que houve em outro momento. Por isso, não seria incorreto dizer que neste texto não se encontrará fatos, mas memórias de uma experiência, narrativas desta, seja por meio de argumentos teóricos, seja por meio de dados retirados de outras experiências. Estabelecida esta posição, é importante salientar algumas referências antes de partimos para o texto em si: a primeira delas diz respeito ao lugar de onde se escreve esta dissertação, de onde vem o pesquisador e o escritor do presente texto. No inicio de 2007, em seu quarto ano de graduação em psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Campus da UNESP, o pesquisador entrou no projeto da banda Lokonaboa, o qual consiste de uma banda organizada e composta por usuários e trabalhadores 14 do sistema de saúde mental de Assis, além de estagiários do Curso de graduação em Psicologia da faculdade supracitada. Fora, contudo, em 2005, que havia tido seu primeiro contato com a banda Lokonaboa, por meio de uma apresentação realizada no campus, com a qual o pesquisador se surpreendeu positivamente devido à energia da performance. Infelizmente não conhecia os estagiários e usuários da banda, e tivera poucas informações sobre o que se tratava o projeto. Um ano depois, em 2006, por meio de um amigo que participava do projeto o pesquisador ouviu um relato a respeito do projeto, como o projeto funcionava e quais eram seus objetivos. Concomitantemente, em seu terceiro ano de graduação no curso de Psicologia, o pesquisador assistia a uma disciplina optativa com o Professor Doutor Silvio Yasui, momento no qual encontrou algo que se encaixava em seu modo de ver a psicologia: afastado de teorias dogmáticas e reducionistas do psiquismo humano, afastado também da prática clínica habitual. Daí nasceu seu interesse pela Reforma Psiquiátrica, a Atenção Psicossocial e as políticas públicas de saúde mental. Nesse momento, ciente do projeto e envolvido com a disciplina, o pesquisador se entregava aos textos e livros relacionados à Reforma Psiquiátrica, e desde o ano anterior sentia certa atração pelos escritos de Michel Foucault, o que acabou por fazer com que ambos os temas se encaixassem tão proximamente em seu modo de ver o funcionamento da banda. No final de 2006, como todos os alunos de sua turma, o pesquisador participou da seleção de estágios para escolher os (ou ser escolhido pelos?) estágios do qual participaria nos dois próximos anos. Pouco tempo antes da seleção, indo ao CAPS com este amigo que fazia parte da banda, observara um pouco do que viria a ser parte integrante de sua vida pelos quatro anos seguintes. De acordo com o pesquisador, a sensação de vertigem ao entrar na construção projetada para servir como hospital psiquiátrico de Assis2 é plenamente memorável: ao lado da recepção seguia-se um corredor longo, com várias portas indistintas, que terminava na farmácia. As janelas eram pequenas e as paredes de um branco impecável. Era possível reparar que as portas eram todas pintadas, cada uma de uma cor, uma fuga da palidez do hospital. Nas paredes, cartazes pintados à mão pelos usuários marcavam os horários de cada oficina terapêutica. 2 Para uma história detalhada de como se formou o CAPS Ruy de Souza Dias, os tramites legais e a interferência da UNESP de Assis no processo de transformação do prédio do hospital psiquiátrico em um CAPS, ver LUZIO, 2003. 15 Antes mesmo da entrevista do estágio, os estagiários que participavam do projeto na época convidaram o pesquisador informalmente a se inscrever no projeto, pois tocava contrabaixo, e a banda não contava com um contrabaixista na época. Na seleção de estágio deixou escapar, empolgado, a frase “a banda precisa de um baixista!”, acabando, assim, sendo admitido. Provavelmente não pelo contrabaixo, pois como salientou o orientador muito tempo depois, “quem sou eu para impedir alguém de fazer algo que quer tanto” Dessa forma o pesquisador passou a fazer parte do projeto. Por alguns momentos, após esse início, o pesquisador pensou o projeto como algo demais para si, pensou não ter jeito para esse lidar com a loucura, que a experiência que tinha até o momento não seria suficiente para se tornar um bom cuidador. No entanto, durante a sua segunda oficina de expressão musical, o pesquisador e os outros membros da banda foram surpreendidos enquanto tocavam percussão e violão, com um dos usuários cantando. Outro usuário, com o qual haviam conversado pouco antes, os fez parar a música: “Estamos tocando errado. O ritmo da chuva está diferente!”. A poesia de tal observação lhe fez ver, pela primeira vez, a face encantadora da loucura: essa capacidade que ela tem de nos tirar o chão, de nos fazer perceber que não há diferenças entre um portador de distúrbios mentais e um “não-portador”, além de um diferente ponto de vista. Ou melhor, que há diferenças sim, umas que atrapalham, outras que encantam. No trato diário com os usuários do sistema de saúde mental, o pesquisador começou a se ver cada vez mais absorvido por essa dimensão poética da loucura. Aparecia-lhe a certeza que as pessoas que ali estavam eram nada mais do que isso, pessoas, como quaisquer outras: ao contrário do que nos faz pensar o imaginário social, segundo o qual, seja na novela ou no noticiário, só existe o louco perigoso, ameaça à vida (que justifica a exclusão), ou o louco infantilizado, incapaz de diálogo (que justifica a desqualificação), enquanto a sociedade faz questão de manter bem preso à suas margens todas as outras facetas da loucura. Prende a essas margens pessoas que são apenas diferentes de nós (quando já somos tão diferentes uns dos outros) por outra forma de ver e habitar o mundo. Foi por esse encanto com a questão da loucura que o pesquisador ingressou na pós- graduação em Psicologia e Sociedade pela mesma universidade, e com o mesmo professor daquela disciplina optativa de 2006 como orientador. O que é o projeto da banda Lokonaboa 16 O projeto da banda Lokonaboa é uma iniciativa do Projeto de Extensão Universitária “Atenção Psicossocial na Saúde Coletiva” do curso de psicologia da UNESP-Assis. Sua forma embrionária, anterior ao nascimento da banda, era uma oficina de música oferecida junto ao CAPS Ruy de Souza Dias da cidade de Assis pelo mesmo núcleo de estágio. A oficina seguiu-se por vários anos até que em 2002 surgiu, por meio de sucessivas apresentações públicas da oficina, a idéia de criar uma banda. Afinal, o grupo já se apresentava esporadicamente em eventos da luta antimanicomial ou da faculdade, e a criação da banda era a evolução óbvia do projeto, dada a qualidade musical que alguns dos usuários participantes apresentavam. Contando com o auxílio de estagiários do referido projeto de extensão, e o apoio do CAPS que sediava os ensaios, foi construído um repertório baseado nos gostos pessoais dos usuários, foram conseguidos os instrumentos necessários e começaram as apresentações em variados locais. Posteriormente, a banda firmou também uma parceria com a PIRASSIS, a associação de trabalhadores, familiares, amigos e usuários da saúde mental de Assis. Em 2009, os ensaios passaram a tomar lugar no Galpão Cultural de Assis, um espaço dividido por várias entidades culturais, ONGs e associações da cidade, que havia se tornado um Ponto de Cultura. Objetivo, ou o que se pretende com este texto Ao longo de seu estágio na graduação, o agora pós-graduando responsável por esta pesquisa sentiu varias vezes a falta de um contato com estagiários que vieram antes dele e de seus colegas, seja pessoalmente, ou por textos escritos em anos anteriores. Ainda durante a graduação, o pesquisador entrou em contato com vários ex-estagiários por e-mail, pedindo- lhes trabalhos, apresentações em congressos e outros materiais escritos que tivessem sido elaborados sobre a banda. Recebeu então alguns trabalhos do gênero, mas todos de caráter bastante descritivo, servindo ao propósito de apresentar o projeto da banda para outros ciclos acadêmicos em congressos, seminários e encontros pelo Brasil. Em 2007, pela ocasião da viagem da banda à Buenos Aires para uma apresentação, foi elaborado por participantes do projeto um texto para ser apresentando no Congreso de Salud Mental e Derechos Humanos. A despeito de participar pouco na redação do texto, o qual foi escrito a quatro mãos, o pesquisador apresentou o trabalho na capital argentina. Surpreendeu- 17 lhe o quanto os companheiros colombianos, uruguaios e argentinos que participaram da apresentação se espantaram com o caráter inovador da experiência da banda. No final de 2008, o pesquisador – juntamente com todos os seus companheiros de estágio – se formou, e novamente voltou-lhe à mente a importância de um relato escrito sobre a história, os objetivos, e o funcionamento da banda Lokonaboa: tal escrito seria importante tanto por facilitar sua inserção no projeto como por ser de grande valia para os estagiários por vir. Paralelamente a motivos de ordem pessoal, o intuito de elaborar esse texto levou o pesquisador a ingressar na pós-graduação. Tal trabalho, em primeiro lugar, facilitaria o intercambio de informações sobre o projeto pelo meio acadêmico, de modo a ajudar os estagiários que ainda estavam por vir, como já mencionado anteriormente; em segundo lugar imprimiria mesmo que parcialmente a história do projeto, história cujas manifestações aconteciam até o momento apenas oralmente; e, principalmente, abriria a possibilidade de discussão das questões teóricas as quais a banda Lokonaboa remete. Acreditamos que, apesar de não ser a única experiência do tipo na área3, a banda Lokonaboa suscita questões de importância no campo da saúde mental. Essas questões são muito mais amplas do que o simples relato do que é, o que faz, e como surgiu a banda; fala também dos objetivos da Reforma Psiquiátrica Brasileira, da definição do que é loucura, cientificamente ou socialmente, e das relações possíveis sobre a loucura e a arte. Por esses motivos, o projeto da banda Lokonaboa é uma experiência inovadora na área da atenção psicossocial, mesmo não sendo única. Ele lida com essa marca muito perceptível na Reforma Psiquiátrica brasileira, a de ligar saúde mental à cultura. Marca esta eminente em várias iniciativas públicas ou privadas que premiam, ou subsidiam, projetos culturais na área da saúde mental: o premio Loucos pela Diversidade do Ministério da Cultura, o prêmio Arthur Bispo do Rosário, organizado pelo Conselho Federal de Psicologia, ou a criação de pontos de cultura pela lei Cultura Viva4, com a qual a banda se beneficia graças à PIRASSIS. Nosso objetivo nesta dissertação é, portanto, elaborar um histórico dos nove anos do projeto banda Lokonaboa, assim como discutir as principais problemáticas que este suscita. Além disso, visamos tornar público este projeto, o qual é desenvolvido na cidade de Assis, no interior paulista. 3 A Banda Harmonia Enlouquece foi criada no mesmo ano, em 2001, no Rio de Janeiro. Para informações detalhadas sobre esta banda, ver CALICCHIO, 2007. 4 Para acessar a minuta da Lei Cultura Viva, ver http://pontoporponto.org.br/ponto-por-ponto/blog/lei-cultura- viva-saiba-mais-sobre-a-lei-dos-pontos-de-cultura acessado em 08/11/2010 18 Metodologia: Colocando-me como intercessor Antes de tudo, cabe ressaltar que esta dissertação é escrita, e como qualquer outro escrito, é feita por alguém dentro de um contexto específico, o qual é a linha guia da escrita desta dissertação: a experiência do pesquisador no Projeto da banda Lokonaboa. Se em algum momento enveredamos por um lado que não o ideal, é por que assim nos ressoaram as ferramentas que tínhamos à disposição; é por que foram estes os argumentos e métodos que convocamos ao texto para permitir a inteligibilidade do que é o projeto, do que foi a experiência do pesquisador. Segundo Rodrigues: há muito temos ressaltado que participamos da produção daquilo que supostamente apenas investigamos – o que não constitui uma falha a eliminar, mas uma problematização a ser acolhida, exposta e debatida naqueles momentos em que nos dispomos, vaidosos, ao que se denomina “produção de conhecimento”. (RODRIGUES, 2010, p. 2) Para, como diz a autora, acolher esta problematização, é necessário levar a luz um conceito encontrado em Deleuze (1992), e apropriado por outros na área de saúde mental (STRINGHETA, 2007; PASSOS, BARROS, 2000): a idéia de intercessor. Comentando sobre as propostas de Santos (2001) sobre um novo paradigma em ciências humanas, Stringheta ressalta em seu estudo contendo o tema dos grupos intercessores que, para a idéia do conhecimento-emancipação do autor supracitado, existe a proposta de que o conhecimento não seja algo separado dos grupos envolvidos, e que “O conhecimento- emancipação tem um caráter autobiográfico plenamente assumido; não há separação entre sujeito e objeto de estudo, de modo que todo conhecimento é ou deve ser, com prioridade, autoconhecimento.” (STRINGHETA, 2007, p.50) Ao acercarmo-nos dessas idéias próximas do que seria um intercessor, todavia, nos resta ainda conceituar exatamente isto: o que é um intercessor? Segundo Passos e Barros o intercessor é uma noção funcionalista cujo sentido não pode ser apreendido senão no interior de uma certa operação - operação de encontro, contágio, cruzamento que desestabiliza e faz diferir. Por isso, trata-se de uma noção refratária às definições abstratas. Não basta pôr os conceitos a se mover, é necessário criá-los. (PASSOS e BARROS, 2000, p. 10) 19 Um intercessor é, portanto, aquele ou aquilo que se acerca dos vários domínios que estão de alguma forma se colocando ao lado de um objeto, e retira destes espaços, desses encontros, possibilidades para problematizar, para questionar-se sobre este objeto. Para agir enquanto intercessor é necessário tomar para si os conceitos vizinhos enquanto conceitos- ferramentas, enquanto possibilidades datadas e localizadas de se operar na realidade. O intercessor não toma uma posição passiva frente ao objeto, mas se aceita enquanto produtor de conhecimento e como parte integrante de um discurso dialógico escrito tanto por ele e sua subjetividade quanto pelo objeto (ainda mais quando este objeto são seres humanos). Não há indiferença no trabalho com os conceitos quando sabemos que são operadores de realidade. Neste sentido, eles nos chegam como ferramentas. Um conceito-ferramenta é aquele que está cheio de força crítica. Ele está, portanto, cheio de força para produzir crise, desestabilizar. É assim que entendemos a idéia de “intercessor”. O conceito é um intercessor quando é capaz de produzir tal tipo de efeito. (PASSOS e BARROS, 2000, p. 9) Acercamos-nos, por exemplo, dos métodos da história oral durante esta dissertação: seu método é facilmente associável a esta idéia de pesquisador intercessor, de conceito intercessor, em discussões como a seguinte, empreendida por Rodrigues: Quem fala com quem em história oral? Em sua perspectiva, nem um esperto a um tolo nem o oposto, mas alguém (o pesquisador) que tem um plano de investigação e indagações transformáveis – via conflitos, alianças e negociações – com alguém (o narrador) que tem expectativas, fantasias e reações ao proposto pelo primeiro. (RODRIGUES, 2010, p. 7) Apesar de facilmente associável, a perspectiva do intercessor remete exatamente a desvinculação dos vários lugares comuns do pensamento, das várias teorias prontas da psicologia, sociologia ou filosofia. Ao nos colocarmos como intercessores permitimos ao pensamento a observação por meio de conceitos diferentes, de diferentes teorias e escolas, de modo a criar um bricolage teórico, um patchwork de conceitos que se referem ao objeto em questão. Por meio deste método aceitamos nosso local enquanto produtor de conhecimento, pois negamos a neutralidade do pesquisador na pesquisa, abraçando a possibilidade de deixar claro que quem escreve é o pesquisador, e por isso o trabalho tem inexoravelmente a marca de seu pensamento. Nessa perspectiva, os conceitos são também intercessores, pois atravessam a discussão pela vontade do pesquisador 20 Em seu movimento de intercessão os conceitos são imediatamente ferramentas, porque se constroem num certo regime de forças. Não são abstratos, não são dados, não são preexistentes. Eles compõem, o tempo todo, um sistema aberto relacionado a circunstâncias, e não mais a essências. É por isso que dizemos que precisamos inventar conceitos, criar conceitos que tenham necessidade. Cada conceito se relaciona a um determinado conjunto de forças, ele é parte de um plano onde fluxos diversos se atravessam. O que se pode fazer em relação a um determinado conceito é percorrer suas linhas de constituição, as relações que foi estabelecendo com as variações dos movimentos. (PASSOS e BARROS, 2000, p. 10) Assim sendo, podemos dizer que o método desta dissertação subentende o pesquisador como um intercessor em relação ao objeto de pesquisa. Método: Aspectos práticos A pesquisa que deu origem a esta dissertação seguiu alguns rumos variados: primeiramente realizamos um levantamento bibliográfico referente à temática da arte e loucura. Esse levantamento bibliográfico nos levou a buscar outros trabalhos que lidassem com essa interface entre arte e loucura na prática, seja na filosofia, na enfermagem, na terapia ocupacional, etc. Alguns exemplos são Corbanezi (2009), Lima (1997), Calicchio (2007), Silva (2007) e Aquino (2009). Em um segundo momento, buscamos as referências de alguns desses textos com os quais tivemos mais afinidade, chegando a Pelbart, Certeau, Foucault, Guatarri, Rolnik e Deleuze. Outrossim, buscamos empreender uma leitura cuidadosa de alguns autores referentes ao funcionamento da Reforma Psiquiátrica e da Atenção Psicossocial, como Amarante, Yasui, Costa-Rosa e Luzio, sendo os três últimos professores dos cursos de graduação e pós-graduação da UNESP-Assis, os quais influenciaram o trabalho muito mais do que com seus escritos, mas também com suas aulas e sua presença. Efetuamos a segunda parte da pesquisa por meio dos relatos dos ex-estagiários do projeto. Para orientar esses relatos, elaboramos um questionário diretivo com as questões que pretendíamos abordar na dissertação, as quais versam sobre temas escolhidos anteriormente e têm por objetivo favorecer a problematização dos tópicos que emergiram da experiência do pesquisador enquanto participante do projeto. Enviamos o questionário a todos os ex-estagiários que conseguimos contatar por meio de correio eletrônico, estagiários estes com os quais mantivemos contato pela internet, e alguns com os quais o pesquisador manteve contato pessoal ao longo dos anos de graduação. A informalidade de sua comunicação com os ex-estagiários deixou marcas, inclusive na forma 21 deles responderem os questionários. Esses questionários serviram menos como base de pesquisa do que como uma forma do pesquisador empreender uma conversa informal com companheiros distantes, e de entrar em contato com as narrativas de suas experiências. Ainda considerando essa parte “prática”, o pesquisador foi convidado pelos estagiários atuais da banda para retornar aos ensaios, retorno que fez na condição de voluntário, com a premissa de elaborar um diário de campo com as informações referentes à nova formação da banda, suas apresentações, conquistas (que não foram poucas) e diferenças em relação às formações anteriores. Finalmente, seguimos com a analise dos dados coletados, realizamos uma nova revisão da bibliografia, e elaboramos o texto final da dissertação. Fontes A fonte principal de nossa pesquisa, como já especificada alhures, foi o relato da experiência no projeto por parte do próprio pesquisador. Esse foi, antes de tudo, o “fio da navalha” pelo qual nos guiamos no que diz respeito a todas as escolhas referentes à pesquisa e à dissertação: o método escolhido para a coleta de dados; a elaboração das questões do questionário; o levantamento bibliográfico; os argumentos teóricos levantados para discutir o projeto; e até mesmo a análise de dados. A própria experiência do orientador desta dissertação, responsável pelo projeto de extensão do qual a banda Lokonaboa faz parte desde seu inicio, serviu como guia dessas análises e apoio às discussões. Do mesmo modo, foi de contribuição considerável os relatos do orientador, colhidos durante as orientações. No que concerne às referências bibliográficas, todos os textos citados ao longo da dissertação foram devidamente lidos, discutidos com o orientador e fichados para a utilização no texto. Primeiramente, chegamos a esses livros, artigos e teses por meio de indicações do orientador. Posteriormente, empreendemos uma busca em bases de dados acadêmicas on-line sobre textos que correlacionavam arte, loucura, saúde mental, Reforma Psiquiátrica, oficinas terapêuticas e novas práticas de cuidado em saúde mental. Esses textos, por sua vez, nos levaram a outros textos por meio de suas citações. Outra fonte da pesquisa foram os relatos dos ex-estagiários, recolhidos pelas respostas aos questionários, conforme descrito anteriormente. 22 Finalmente, nos serviu como fonte de pesquisa o trabalho do pesquisador enquanto voluntário junto à banda nos anos de 2009 e 2010, pois a banda “continuava precisando de um baixista”. Durante esta participação podemos acompanhar as mudanças, evoluções e diferenças entre diferentes “gestões” da banda, e elaborar um diário de bordo, que também nos serviu de informação para esta dissertação. Os capítulos A dissertação está dividida em introdução, três capítulos e conclusão. Vemos a seguir um breve resumo do que trata cada capítulo, sendo que todos tratam de questões teóricas ou práticas referentes à banda, ou suscitadas pela experiência no projeto. Contudo, todos os capítulos são consideravelmente independentes uns dos outros, por tratarem de questões diversas: no primeiro, fazemos uma incursão teórica nas obras de Michel Foucault, em busca de sua conceituação sobre a loucura; no segundo, situamos o projeto da banda no espaço da Reforma Psiquiátrica; no terceiro, demarcamos a experiência da banda por meio descritivo, baseando-nos nos dados dos questionários e de nossas próprias experiências com o projeto. Existe a possibilidade de ler qualquer dos três capítulos primeiro, seguindo qualquer ordem, apesar de não ser recomendável, já que existem muitas referências cruzadas entre os capítulos da dissertação. De qualquer forma, a conclusão deverá criar a maior parte das conexões entre os três capítulos, e levar adiante uma discussão mais profunda em relação às “pontas soltas” deixadas nos capítulos anteriores. Para facilitar a compreensão e mapear a dissertação de uma forma sucinta, apresentamos agora os três capítulos: No primeiro, intitulado Terça maior: problematizações sobre a Loucura e a Arte, tentamos levar a cabo outra análise possível sobre A História da loucura na idade Clássica (1972) de Michel Foucault: Conforme nos atestam vários autores (CORBANEZI, 2009; PELBART, 1989), essa obra trabalha em duas vertentes: uma que lida com a historiografia da d a loucura (doença mental) de hoje em dia, a partir do que ela foi criada, quais os regimes de sensibilidade que possibilitaram a interdição do louco e de sua linguagem pela sociedade; e outro, que trata das mudanças históricas da experiência trágica da loucura, como diz Foucault – ou da desrazão, como diz Pelbart – e de sua progressiva ocultação pela racionalidade cientifica, ocultação esta que só foi ultrapassada em momentos específicos pela Arte (Sade, 23 Mallarmé, Bacon, Goya, Artaud, Van Gogh, Arthur Bispo do Rosário, o Profeta Gentileza, etc.) ou pela Filosofia (Nietzsche, Blanchot). Diferentemente de outros acadêmicos da área, priorizamos uma análise do conceito de loucura e suas problematizações, como a linguagem interdita da loucura, a desnaturalização do objeto do conhecimento “loucura”, a proximidade da loucura e da arte, ou a questão da “loucura, ausência de obra”, explicitadas por Foucault não só no livro História da loucura, mas também em outros escritos. Nesse capítulo, enfatizamos também a concepção de Foucault e Deleuze sobre qual é o papel dos intelectuais, questão que demonstra a compatibilidade dos escritos destes dois autores com as premissas da Reforma Psiquiátrica; No segundo capítulo, intitulado Quinta: A Reforma Psiquiátrica, analisamos as varias contribuições de Amarante, Yasui, Costa-Rosa e Luzio para se pensar a possibilidade de uma sociedade sem manicômios. As questões abordadas por nós são variadas: primeiramente, buscamos realizar uma reflexão acerca do que vem a ser Reforma, o que significa o termo, e a desconstrução de seu sentido “mudar para não mudar”; em seguida empreendemos uma análise da Reforma Psiquiátrica enquanto um processo social complexo, pois se trata de uma mudança ainda em andamento, que lida com a sociedade como um todo – não só com o sub- setor da Saúde – e compreende várias frentes de batalha; analisamos também a possibilidade de pensá-la como um processo civilizatório, buscando uma compreensão maior do que seria esse processo assim como daquilo que entendemos por “civilizado”. Ainda nesse capítulo, analisamos as quatro dimensões da Reforma Psiquiátrica, conforme propostas por Amarante (1999, 2003), especificando-as e observando dentro delas as problematizações que tornam a Reforma Psiquiátrica algo tão complexo, tão amplo. Uma das dimensões – a dimensão sócio-cultural – receberá certa ênfase, pois nela vislumbramos mais claramente o objetivo do projeto da banda Lokonaboa. Além de esmiuçar essa dimensão em seus objetivos e seus pormenores com o intuito de facilitar a compreensão do que é a banda, conectamos essa dimensão com algumas conceituações feitas no capítulo anterior, e relatamos a forte conexão no Brasil entre as políticas públicas de saúde e o Ministério da Cultura. No terceiro Capítulo, intitulado Tônica: A experiência pela narrativa de quem a fez, versamos sobre a banda em si. É um capítulo que toma por base a análise de dados obtidos pelas narrativas dos participantes do projeto, incluindo nestes o autor e o orientador da dissertação. Nele discutimos alguns aspectos da banda, baseados nas respostas dos questionários: primeiramente, o porquê da importância da criação de tal histórico, baseados 24 nos relatos dos estagiários; em segundo lugar, a desierarquização da relação entre cuidador e usuário, presente no trato diário dos estagiários desde a formação da banda; depois, os objetivos “menores” da banda ao longo de suas várias formações, e como eles foram cumpridos ou não; em seguida, as questões que a apresentação da banda suscita, como a possibilidade de uma reflexão dos espectadores sobre qual é o papel social da loucura no imaginário popular e qual é a real posição desta; e por fim, discutimos a banda enquanto projeto que opera sob os objetivos da Reforma Psiquiátrica. Na Conclusão desta dissertação, buscaremos articular os capítulos anteriores, de forma a possibilitar a melhor compreensão do projeto da banda e colaborar com a construção de bases teóricas para a Reforma Psiquiátrica. Nela também se encontrarão mais observações para mostrar a cartografia do projeto, não enquanto mapa a ser seguido, mas enquanto informação a ser utilizada em cartografias por vir, seja para observar outros projetos práticos que lidam com a interface entre loucura e arte, seja para servir de base para argumentos mais amplos do que a banda. 25 CAPÍTULO 1: TERÇA MAIOR: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A LOUCURA E A ARTE5 “Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem se outras.” Gilles Deleuze (FOUCAULT, 1979, p.71) Introdução ao capítulo Em busca de uma problematização mais teórica sobre estes temas que tangem decisivamente ao projeto da banda, seguimos pelo caminho que poderia ser de maior contribuição, considerando o nosso horizonte teórico. Além de justificar a utilização dos escritos de Foucault e Pelbart entre outros que aparecem à frente pelas suas contribuições ao paradigma da Reforma Psiquiátrica Brasileira, há ainda algo mais que, possivelmente, é um motivo: a preferência do autor por esees escritos. Considerando que ao autor, quando escreve um livro (ou uma dissertação) em ciências humanas, não cabe a escolha de uma teoria que diz a verdade do objeto, resta à ele apenas escolher aquela que mais lhe agrada ou mais lhe oferece enquanto caixa de ferramentas, de modo fazer do texto autoral, no sentido em que ele se torna profundamente relacionado àquele que o escreve e ao que este pensa sobre o assunto. O autor intercede por meio do texto e de suas escolhas na análise do objeto. A partir das considerações sobre a loucura que se seguem pretendemos apontar para uma visão mais clara das implicações que a loucura como é vista hoje têm sobre os usuários do sistema de saúde mental e sobre a sociedade. Por meio de uma “passada de olhos” sobre a teoria de Foucault, acreditamos que muito se ganhará nas análises dos capítulos subseqüentes, e que visam outros aspectos que 5Os acordes mais simples são formados basicamente por três notas: a Tônica (a nota que dá nome ao acorde), a Terça (a nota um tom e meio ou dois tons mais aguda que a Tônica) e a Quinta (três tons e meio mais aguda que a Tônica). Estas duas notas complementam a Tônica, pois ressoam em freqüências de onda compatíveis com a sonoridade desta. Por ser formada por três capítulos que ressoam com o objeto da pesquisa, pensei nesta denominação: a Terça, no acorde, dá seu tom, seja uma Terça Maior e por isso mais vibrante, ou uma Terça Menor, mais soturna. Na loucura, pode-se, assim como em um acorde, escolher a aproximação do pensar sobre o tema destas duas formas: vibrante, alegre, otimista; ou soturna, melancólica. 26 não a própria loucura. A própria conceituação da dimensão sócio-cultural da loucura, conforme definida por Amarante (1999), poderá ser ampliada, haja vista a cerrada relação que Foucault explicita entre a loucura e a sociedade. Tal relação íntima pode ser encontrada também nas argumentações teóricas da Reforma Psiquiátrica, e em textos que explicitam as possibilidades a se seguir no novo modelo de cuidado em saúde mental. Um exemplo pode ser encontrado no seguinte parágrafo de Costa-Rosa, acerca da necessidade de considerar o cuidado com a loucura uma questão social: Da consideração de que não é o indivíduo o único problemático, decorre que se inclua no tratamento também a família e, eventualmente, um grupo mais ampliado – ainda que, no entanto, não seja apenas em referência a um indivíduo particular que se preconize a participação do grupo social mais amplo. Na realidade, e em razão da consideração de que a loucura não é um fenômeno exclusivamente individual, mas social e como tal deverá ser metabolizada. (COSTA-ROSA, 2000, p.154) Além de ver o que Foucault e outros comentaristas dizem sobre o tema, seguiremos Peter Pál Pelbart em sua incursão para explorar melhor temas que primeiramente apareceram em Foucault: a desrazão e o pensamento do Fora. Essa mesma análise da desrazão e do pensamento do Fora nos levará, enfim, a uma conceituação muito cara à dissertação que se apresenta: a partir delas se problematizará a proximidade entre a loucura e a arte, a familiaridade entre ambas que hoje se vê no senso comum e que, conforme acreditamos, tem parte no projeto da banda Lokonaboa. Há Loucura em Foucault? O objeto de Foucault jamais foi a loucura, mesmo em História da Loucura na Idade Clássica. O objeto de Foucault, neste e em outros livros, era outro. Para dizer claramente, correndo o risco de ser reducionista demais, devemos esclarecer duas coisas: primeiro, que Foucault estava estudando a loucura em busca de uma analítica da exclusão dos corpos; segundo, que seu objeto era na verdade as tecnologias dessa exclusão que se operou sobre o louco, a lógica dessa exclusão. Como ele mesmo diz: -tal como Dumézil o faz para os mitos, tentei descobrir formas estruturadas de experiência cujo esquema pudesse ser encontrado, com modificações, em níveis diversos... -E qual é essa estrutura? -A da segregação social, a da exclusão. Na idade média, a exclusão atinge o leproso, o herético. A cultura clássica exclui mediante o hospital geral, a 27 Zuchthaus, a Work-house, todas as instituições derivadas do leprosário. Eu quis descrever a modificação de uma estrutura exclusiva. (FOUCAULT, 2006, p.162 - 163) Em momento algum Foucault pretende dizer algo do louco, assim como não pretende dizer algo pelo louco. Então, ele não fala o que é a loucura em toda esta extensa obra? A resposta para esta pergunta seria sim e não. Esclarecendo: Foucault se nega a criar um novo conceito de loucura. Na verdade, para ele importa o que é entendido como “o louco”, o que podem as diferentes sensibilidades em relação à loucura fazer para alterar a situação dessa exclusão. Em sua análise das tecnologias de exclusão da loucura, o pensador se concentra em uma questão muito importante: para ele a loucura se caracteriza estritamente pela forma como a sociedade experimenta e vivencia essa relação com a loucura. Ele recusa qualquer ação do saber sobre a loucura, qualquer patologização ou conceituação, se preocupando principalmente com a lógica da exclusão do louco, com as tecnologias que o retiram da sociedade. Ou seja, ele não fala o que é a loucura. Entretanto, ele fala da loucura, pois relata o que é a loucura a partir dos discursos de saberes sobre esse objeto vindos de determinadas épocas (no caso, a Idade Média, o Renascimento e a Idade Clássica), de determinados momentos históricos, de um determinado saber, específico ou geral. Foucault constrói uma história do presente. Visa expor a história da loucura “a fim de compreender, por meio das rupturas e das continuidades, o solo que abre as condições de possibilidade da moderna ciência psiquiátrica.” (CORBANEZI, 2009, p. 17) Foucault busca nos mostrar o que era a loucura para a Idade Clássica, não enquanto objeto natural do saber, mas enquanto estratégia que se operava sobre os corpos. Objetivando esta idéia com as palavras do próprio Foucault: A loucura não pode ser encontrada no estado selvagem. A loucura só existe em uma sociedade, ela não existe fora das normas da sensibilidade que a isolam e das formas de repulsa que a excluem ou capturam. (FOUCAULT, 2006, p.163) 1 - Loucura: Objeto historicamente constituído A loucura em seu estado selvagem seria sua própria inexistência. Pois a loucura nada mais é que um investimento sobre o corpo de significações exteriores a este. Foucault deixa claro ao longo de História da Loucura na Idade Clássica que a loucura não é um objeto natural, existente desde a aurora dos tempos e esperando para ser entendido pelo homem, mas 28 uma criação do próprio homem. Não foi “encontrado” um portador de distúrbios mentais e descoberto como tal, mas sim foram criados a loucura e o louco. Isso se deu a partir de tecnologias dos saberes sobre este corpo específico, a partir de múltiplas transformações no modo de se ver tal personagem, como exemplificado abaixo: Na idade média, e depois no renascimento, a loucura está presente no horizonte social como um fato estético ou cotidiano; depois, no século XVII – a partir da internação – a loucura atravessa um período de silencio, de exclusão. Ela perdeu essa função de manifestação, de revelação que ela tinha na época de Shakespeare e de Cervantes. (FOUCAULT, 2006, p. 163) Nesta passagem, cuja pertinência condiz com muito do que trataremos aqui, é mostrado que ao conceito de loucura foi-se subtraindo significações, numa construção da loucura. Do mesmo modo significações somaram-se e constituíram-se continuidades e rupturas, como se mostra em varias partes do livro, e que será exemplificado abaixo. 1.1 - Continuidades e descontinuidades na história (da experiência) da loucura Considerando a loucura como criação e não objeto a priori, podemos analisar algumas passagens do texto de Foucault de modo a exemplificar esse processo de ‘criação permanente’ da loucura, de construção histórica desta. Segundo Foucault, os loucos na Idade Média, de certa forma, pertenciam ao horizonte social, pois havia uma experiência trágica da loucura que os conectavam ao mundo enquanto aqueles que dizem a verdade de forma extravagante, uma experiência que dava a eles o lugar da revelação, ou seja, a loucura tinha uma linguagem aceita socialmente, mesmo com suas particularidades. Não era ainda uma exclusão da linguagem e da sociedade, pois aos loucos cabia um discurso específico e um lugar específico (as estradas, as naus dos loucos) em relação aos dos outros. No entanto uma modificação se processou com a Renascença: [...] presente na vida cotidiana da idade média, e familiar a seu horizonte social, o louco, na Renascença, é reconhecido de outro modo; reagrupado, de certa forma, segundo uma nova unidade específica, delimitado por uma prática sem dúvida ambígua que o isola do mundo sem lhe atribuir um estatuto exatamente médico. (FOUCAULT, 2008, p.121) Aqui se mostra uma primeira ruptura, que marca a diferença entre o saber da Idade Média e o da Renascença acerca da loucura. Porém a idéia de avanço – desenvolvimento 29 histórico – é estranha a Foucault, e é possível procurar na história da loucura uma linha que leva a um ápice, ou seja, a racionalidade médica. Ora, o que caracteriza o século XVII não é o fato de haver ele avançado, menos ou mais rapidamente, pelo caminho que conduz ao reconhecimento do louco, e com isso ao conhecimento científico que se pode ter dele; é pelo contrário, o fato de te-lo distinguido com menos clareza; de certo modo, o louco foi absorvido numa massa indiferenciada. Esse século misturou as linhas de um rosto que já se havia individualizado há séculos. (FOUCAULT, 2008, p.121) Nesse momento, na Idade Clássica, se interna devassos, baderneiros, portadores de doenças venéreas, libertinos, blasfemadores, suicidas, etc. A loucura se perde por entre um numero variado de outras experiências que tem em comum com a loucura a desrazão, o desatino. Esse desatino se vê ligado a todo um reajustamento ético onde o que está em jogo é o sentido da sexualidade, a divisão do amor, a profanação e os limites do sagrado, da pertinência da verdade à moral. Todas essas experiências, de horizontes tão diversos, compõem em sua profundidade o gesto bastante simples do internamento. (FOUCAULT, 2008, p. 106) Ou seja, podemos dizer que a loucura, nesse curtíssimo exemplo de descontinuidade histórica, passou de um papel específico para outro papel, indistinto. Não se “aprimorou” o conhecimento sobre a loucura em direção ao moderno saber médico; houve, na verdade, uma descontinuidade. Aqui se mostra que: quis o destino, infelizmente, que as coisas fossem mais complicadas. E, de um modo geral, que a história da loucura não pudesse servir, em caso algum, como justificativa e ciência auxiliar na patologia das doenças mentais. A loucura, no devir de sua realidade histórica, torna possível, em dado momento, um conhecimento da alienação num estilo de positividade que a delimita como doença mental; mas não é este conhecimento que forma a verdade desta história, animando-a desde sua origem. (FOUCAULT, 2008, p 119) 1.2 - Continuando: a loucura como invenção e não descoberta Vimos até então não uma comprovação de que a loucura é uma criação em vez de algo natural, mas uma demonstração de como ela se modifica ao longo do tempo. Considerar a 30 loucura como objeto criado e não natural se torna mais simples considerando o que diz Paul Veyne: Para Foucault, como para Duns Scot, a matéria de loucura (behaviour, microbiologia nervosa) existe realmente, mas não como loucura; só ser louco materialmente é, precisamente, não o ser ainda. É preciso que um homem seja objetivado como louco para que o referente pré-discursivo apareça, retrospectivamente, como matéria de loucura; pois, por que o behaviour e as células nervosas de preferência às impressões digitais? (VEYNE, 2008, p.266) Segue um exemplo insólito: Se um homem vivendo em uma ilha deserta desde sua infância um belo dia manifestasse qualquer sintoma de psicose, tal qual uma alucinação, seria ele um louco? Talvez sim, quando piratas o encontrassem e observassem seu comportamento. Mas e se a ilha fosse o único lugar habitado na terra, e ele o único ser humano? A alucinação não seria algo tão real quanto a audição, a visão ou o olfato? Seria então ele um louco, sem outros seres para objetivá-lo como tal, rotulá-lo como tal ou mesmo vê-lo como tal? A alucinação não passaria a ser algo constitutivo da própria conceituação do que é ser humano? Segue um segundo exemplo insólito, agora de Veyne: É verbal representar-se uma loucura que “existe materialmente” fora de uma forma que a informa como loucura; no máximo, existem moléculas nervosas dispostas de uma determinada maneira, frases ou gestos que um observador vindo de Sirius constataria serem diferentes dos outros humanos, eles próprios diferentes entre si. (VEYNE, 2008, p. 265) Eis então a primeira consideração à qual Foucault nos leva em relação à loucura: a desnaturalização do objeto, ou seja, a não consideração desse objeto como algo que porta sua própria verdade, verdade que está e sempre esteve esperando para ser descoberta. Foucault mostra a idéia de constituição histórica desse objeto; como essa constituição ocorreu através de rupturas e continuidades históricas; como o objeto foi construído a partir dos regimes de saber sobre ele. A loucura é uma invenção humana. Não só na loucura Foucault considera essa desnaturalização, mas até mesmo nos conceitos mais primordiais da racionalidade: Retornemos ao exemplo acima, e, em face do que se discutiu, praticamente invalidando-o: seria aquele homem, único sobrevivente da espécie, verdadeiramente um homem? 31 2- Loucura: linguagem interdita Há também outra consideração para pensarmos a loucura, enquanto fato social concreto: O que é então a loucura, em sua forma mais geral, porém mais concreta, para quem recusa desde o inicio todas as possibilidades de ação do saber sobre ela? Nada mais, sem duvida, do que a ausência de obra. (FOUCAULT, 2006, P. 156) Ausência de obra! Qual seria o significado dessa afirmação? Sobre essa afirmação de Foucault, cabe fazermos duas considerações: uma que exploraremos neste tópico, e que remete ao porque a loucura carrega consigo o crivo da ausência de obra; a outra, a qual exploraremos alhures em face das considerações de Pelbart, identifica uma questão mais constitutiva dessa formulação, se tornará mais clara considerando as conceituações feitas pelo autor supracitado. Para nos atermos somente à primeira consideração, pensemos, primeiramente, que a loucura, destituída das condições de doença mental, distúrbio psicológico e sofrimento psíquico, condições estas atribuídas pelo saber instituído sobre ela atualmente (ou seja, o saber psiquiátrico), tem ainda outra significação que independe da ciência para sua formulação: a loucura é uma codificação que leva ao silêncio. Que peso tem, em face de algumas palavras decisivas que tramaram o devir da razão ocidental, todas essas formulações vãs, todos esses dossiês de delírio indecifrável que o acaso das prisões e das bibliotecas lhe justapuseram? (FOUCAULT, 2006, p.156). E segue-se: “tudo isso não passa de tempo decaído, pobre presunção de uma passagem que o futuro recusa, alguma coisa no devir que é irreparavelmente menos que a história.” (FOUCAULT, 2006, p. 156). Ou seja, não existiu a possibilidade de que os internos dos manicômios, work houses e hospitais gerais escrevessem sua própria história. Mais que isso, não ouve a possibilidade destes serem ouvidos, ou deixarem obras para a posteridade. Como consideramos anteriormente neste capítulo, a loucura tinha um papel social específico e um dizer próprio na idade média, e essa experiência da loucura foi se dissolvendo por entre os rostos de todos os outros sujeitos internados na renascença, tenham sido eles devassos, vagabundos ou bruxos. 32 O corpo do louco é vitimado com a exclusão tais quais os corpos dos leprosos e dos heréticos o foram em outras épocas, mas esta não é a vitimização única que se abate sobre a loucura: Foucault demonstra com clareza que a loucura, após o Renascimento, foi capturada por um discurso amplo que a desqualificava enquanto linguagem, pois a enredava em um jogo de forças com a razão, razão esta que se tornava o ponto alto do regime de verdades ocidental. Enquanto isso, a loucura se tornava uma linguagem falsa, incapaz de falar a verdade. A loucura tornou-se, ao longo da Idade Clássica, linguagem interdita. Entretanto, não só ela foi excluída nessa grande internação ocorrida a partir do Século XVII: toda outra miríade de linguagens foi fechada pela sociedade em hospitais gerais, e todas elas acabaram por ser excluídas do domínio da verdade, e ligadas à desrazão. A internação clássica enreda, com a loucura, a libertinagem de pensamento e de fala, a obstinação na impiedade ou na heterodoxia, a blasfêmia, a bruxaria, a alquimia – em suma, tudo o que caracteriza o mundo falado e interditado da desrazão; a loucura é a linguagem excluída. (FOUCAULT, 2006, p. 215) No século XIX, os psiquiatras resolvem “libertar” os loucos do convívio confinado com libertinos, hereges, usurários, homossexuais, etc. para dar a eles um tratamento médico. É aqui, e somente aqui, que a loucura passa para o domínio da ciência, deixando de ser uma questão social, moral e jurídica de exclusão para ser uma questão médica de exclusão. Entretanto a reforma de Pinel não se configurou como uma modificação dessa questão de interdição da fala: a loucura continuou silenciosa, agora sob os “cuidados” da medicina, que exerceu um arremate dessa repressão da loucura. Apenas no século XX, com Freud, que a situação se modificou realmente, e se modificou deslocando o interdito da linguagem para uma forma ainda mais complexa (FOUCAULT, 2006, p.215). Esta última forma de interdito de linguagem seria a criação de um “quebra-cabeça” com a linguagem da loucura. Segue-se: ela [a loucura] cessou, então, de ser falta de linguagem, blasfêmia proferida, ou significação intolerável (e, nesse sentido, a psicanálise é, de fato, o grande levantamento dos interditos, definidos pelo próprio Freud); ela apareceu como uma palavra que envolve a si própria, dizendo por baixo daquilo que diz outra coisa, da qual ela é, ao mesmo tempo, o código único possível. (FOUCAULT, 2006 p. 216) 33 Ou seja, ao longo de toda a Idade Clássica, e até mesmo no início do século XX, a loucura passa por um movimento que acaba por torná-la linguagem muda, sendo excluída mesmo no registro da linguagem. Enquanto várias outras linguagens que faziam parte do desatino, da desrazão e do internamento (como a libertinagem, por exemplo), começam a ser evidenciadas com o passar do tempo, principalmente pelo viés da arte, a loucura passa a ser linguagem que diz, mas não diz; que fala apenas através dela mesma; linguagem muda de verdades. Depois de Freud, a loucura ocidental tornou-se uma não linguagem, porque ela se tornou uma linguagem dupla (língua que não existe senão dentro dessa fala, fala que não diz senão sua língua) – quer dizer, uma matriz de linguagem que em sentido estrito, não diz nada. Dobra do falado que é uma ausência de obra.” (FOUCAULT, 2006, p. 216) Como já dissemos anteriormente, a linguagem da loucura se tornou quase que um quebra-cabeça: tudo o que ela diz não passa de peças deste quebra-cabeça, cuja chave de resolução é ela mesma e que, ao resolvido não diz nada além de suas próprias significações delirantes. no meio do mundo sereno da doença mental, o homem moderno não se comunica mais com o louco; há, de um lado, o homem de razão que delega para a loucura o médico, não autorizando, assim, relacionamento senão através da universalidade abstrata da doença; há, de outro lado, o homem de loucura que não se comunica com o outro senão pelo intermediário de uma razão igualmente abstrata, que é ordem, coação física e moral, pressão anônima do grupo, exigência de conformidade. Linguagem comum não há; ou melhor, não há mais; a constituição da loucura como doença mental, no final do século XVIII, estabelece a constatação de um diálogo rompido, dá a separação como já adquirida, e enterra no esquecimento todas essas palavras imperfeitas, sem sintaxe fixa, um tanto balbuciantes, nas quais se fazia a troca entre a loucura e a razão. (FOUCAULT, 2006, p. 154) 3 - Digressão: a experiência trágica da loucura Retomemos a questão da ausência de obra, explicitada no tópico anterior, agora levando em frente seu viés de análise constitutivo. Como referido no segundo tópico, na análise que se segue visamos compreender a própria constituição de tal enunciado – segundo o qual a loucura é ausência de obra – e para isso seguimos os passos de Peter Pál Pelbart em uma conceituação que tem como ponto de partida Foucault, mas não segue estritamente o 34 pensamento do acadêmico francês, abrindo novos conceitos de modo a tornar possível a exploração do tema. A loucura é linguagem não dita. Linguagem que não diz nada. Linguagem interdita. Há, entretanto, um apontamento a se fazer, um que é mais bem enunciado na forma de uma questão, muito pertinente a este trabalho: Mas não há a arte? Dentro desse domínio não existe vazão para a linguagem louca, para a loucura? Não há o caso de artistas que enlouqueceram, ou foram considerados loucos (pois, considerando nossas análises anteriores, enlouquecer e ser considerado louco é o mesmo)? Sade, Van Gogh, Artaud, apenas para ater- nos aos mais famosos? O artista louco não produz, também, sua obra? Em algum outro local do presente capítulo, citamos Foucault afirmando que a loucura na Idade Média cabia no horizonte social enquanto linguagem estética, de revelação, que diz a verdade em meio a seus delírios, diferentemente do que ocorre hoje. Segundo sua análise, existia, desde essa época, outra experiência da loucura que a ligava ao mundo por meio de um viés trágico. O viés trágico ao qual o pensador francês se refere foi soterrado pelo pensamento da Idade Clássica, sobreposto pela experiência crítica da loucura que culminou no pensamento psiquiátrico sobre ela. Nas palavras de Foucault: “em suma, a consciência critica da loucura viu-se cada vez mais posta sob uma luz mais forte enquanto penetravam progressivamente na penumbra suas figuras trágicas.” (FOUCAULT, 2008, p.28). Segue-se o seguinte trecho: Obscuramente, essa experiência trágica subsiste nas noites do pensamento e dos sonhos, e aquilo que se teve no século XVI foi não uma destruição radical, mas apenas uma ocultação. A experiência trágica e cósmica da loucura viu-se mascarada pelos privilégios exclusivos de uma consciência critica. (FOUCAULT, 2008, p.28-29) Essa experiência trágica da loucura era estabelecida de forma tal que fosse a ela permitido deixar passar a verdade através da linguagem da loucura. A experiência trágica jamais é totalmente apagada do imaginário sobre a loucura, e a loucura enquanto discurso de verdade ainda assombra o pensamento ocidental, mesmo no período em que a experiência crítica reina. [...] o louco, na literatura da idade média, do renascimento ou da época barroca, é um personagem que conta a verdade sem saber que conta a verdade; em outros termos, é um discurso de verdade que, na realidade, não tem a vontade da verdade e não a possui nele próprio. Ora, não é este o tema 35 que pesa tão intensamente, e há muito tempo, sobre o pensamento ocidental? Pois, no final das contas, o que Freud buscava em seus pacientes, o que era a não ser fazer aparecer a verdade através deles? (FOUCAULT, 2006, p.241) Entretanto, durante o período em que essa ocultação prevaleceu, a experiência trágica da loucura é quase que estritamente do domínio da arte (vale chamar a atenção para uma exceção: Nietzsche – o filósofo que cedeu a loucura). Talvez daí venha a familiaridade que muitos ainda vêem entre loucura e arte, familiaridade que liga estes dois domínios no imaginário social. De qualquer forma, as artes acabaram por levantar o interdito sobre a linguagem da loucura. É justamente isso que me atraí em Hölderlin, Sade, Mallarmé ou, ainda, Raymond Roussel, Artaud: o mundo da loucura que havia sido afastado a partir do século XVII, esse mundo festivo da loucura, de repente fez irrupção na literatura. (FOUCAULT, 2006, p.238) Ora, não há aí uma enunciação da loucura? Por entre as obras de todos os autores acima citados não há a loucura animando-os direta ou indiretamente? Acredito que a essa questão responderemos de melhor forma mais adiante; por enquanto vale salientarmos que a loucura, de certa forma, é aparentada da arte, e ambas seguem sob um domínio comum que é do Fora, da desrazão, o qual subentende a experiência trágica da loucura: tanto a loucura como a arte partem da dimensão que é o não pensável, o caos, a ruína, o transgressor da racionalidade, a ininteligibilidade da natureza, o exterior ao homem... E esse domínio, sob o qual seguem loucura e arte, ao longo do tempo tornou-se constitutivo de ambas, e a esse domínio, a partir de certo momento, não foi cedido nenhum outro meio para se fazer sentir que não a loucura, a arte e a escrita. Para melhor explorarmos a idéia do louco artista, será importante discutirmos um outro conceito: a desrazão. 3.1 - Desrazão O Fora e a desrazão permeiam o pensamento dos autores supracitados, mas a relação que eles têm com esse exterior é diferente da que os loucos mantêm. Primeiramente, vale observar que: 36 A esse Exterior, em outro contexto, o ensaísta francês Maurice Blanchot deu o nome de o Fora. Foucault retomou esse termo e forjou a expressão de o Pensamento do Fora 6 , para designar toda uma linhagem de pensadores que preservaram a muito custo — em geral às custas da própria sanidade — no seio da linguagem, da poesia, da filosofia e da arte, uma relação com esse Exterior. (PELBART, 1996, p.95) Esse pensamento do Exterior, como já dito, se aparenta com a loucura. Entretanto, o pensamento em si não é a própria loucura. Segundo Pelbart, esse outro domínio, o da desrazão, foi soterrado na Idade Clássica por uma racionalidade crescente. Para mais um exemplo estranho, pensemos em um fazendeiro arando terra virgem: ele vai, calmamente, com a ajuda de seu animal de carga, revolvendo a terra não arada e a transformando em terra arada. A terra arada é de utilidade ao fazendeiro, e a toda a espécie humana, pois nela pode-se plantar. A terra não arada é o selvagem, e enquanto o fazendeiro não passar por ali, mal podemos dizer que esse lugar é de alguma forma inteligível: enquanto terra virgem é um a-histórico, um ininteligível. Trocando em miúdos, enquanto a terra arada é o domínio da razão, o domínio da utilidade e da funcionalidade, a terra não arada seria o Fora, a desrazão, o local que ainda não se subjugou à vontade humana. O fazendeiro seria o ser humano, e talvez se possa pensar que a besta de carga que puxa o arado seria a racionalidade, o saber humano. Para Pelbart, então: O Pensamento do Fora é aquele que se expõe às forças do Fora, mas que mantém com ele uma relação de vaivém, de troca, de trânsito, de aventura. É o pensamento que não burocratiza o Acaso com cálculos de probabilidade, que faz da Ruína uma linha de fuga micropolítica, que transforma a Força em intensidade e que não recorta o Desconhecido com o bisturi da racionalidade explicativa. O Pensamento do Fora arrisca-se num jogo com a Desrazão do qual ele nunca sai ileso, na medida em que não saem ilesos o Ser, a Identidade, o Sujeito, a Memória, a História e nem mesmo a Obra. (PELBART, 1996, p. 96) É como no ditado que diz: “o louco se afoga no mar em que o poeta nada”. Enquanto o pensador do Fora se relaciona com a desrazão em um vaivém, o louco é preso ao Fora, expõe-se totalmente e sem volta. No exemplo topográfico acima, o pensador do Fora seria alguém que vai às terras virgens em busca de inspiração, para voltar em posse de uma 6 O texto citado aparece na coleção Michel Foucault: Ditos & Escritos, volume III, publicada em 2006. Entretanto, o termo pensamento do fora que Pelbart mostra aqui é traduzido como pensamento do exterior neste livro. Vale salientar que o livro de Pelbart foi escrita antes da tradução para o português deste texto. 37 experiência diferenciada do que é o “dentro”. O louco seria o menino-lobo, ou o homem exilado, forçado a viver fora da sociedade: um eremita, talvez. Vale lembrarmos que, para Foucault, a loucura é historicamente constituída e aqui precisamos salientar algo: a desrazão não é uma entidade metafísica, não é algo transcendente, mas sim algo construído historicamente, ou ao menos são suas formas de se relacionar com esse Fora: anteriormente o Fora era o exterior ao homem, a estranheza da natureza, a transcendência do sagrado, a fúria da morte, o caos do mundo... Ou seja, tudo o que hoje remete ao ininteligível, ao irracional, à desrazão, ao caos. As formas de se relacionar com o Fora são datadas historicamente, mas vale salientar que esse Fora é a própria ausência do saber, ausência de metafísica, ausência de história (ora, antes do fazendeiro chegar às terras virgens e criar para elas uma significação, uma história, ela não possuía história alguma, não havia conhecimento algum projetado sobre si). Quando do levante da racionalidade ocidental, da valorização da ciência, essas experiências se tornaram mudas, e esse Fora ficou limitado ao personagem excluso do louco, e em parte à arte, ambos sob o domínio da desrazão. O próprio nome desrazão já mostra que esse conceito se refere a uma “não-razão”, etimologia que a liga a sua origem enquanto fora da razão, esta também historicamente datada. Seguindo esse raciocínio, Pelbart, conceitua a diferenciação entre o pensamento do Fora e a loucura da seguinte forma:7 seria possível pensar a loucura como exposição total e sem mediação da zona de subjetivação ao Fora. Para Deleuze, a característica maior desse Fora é a de consistir no Jogo de Forças, do Acaso e do Indeterminado, ao qual temos acesso sempre historicamente, isto é, segundo estratificações de Saber, diagramas de Poder e modalidades de subjetivação determinadas. Na loucura, o sujeito ficaria exposto sem proteção alguma à violência desse Fora, e sem condições de estabelecer com ele um vaivém ou uma relação. Abertura máxima ao Fora, e ao mesmo tempo extravio no temporal abstrato, que é sua marca. (PELBART, 1996, p. 97) A loucura seria então essa entrega ao Fora, em vez de uma relação de ida e volta. Aqui se encaixa a irmandade entre o louco e o artista. Nesta distinção mostra-se o caminho que a questão “não há artistas loucos?” exige traçar. 7 Aqui Pelbart propõe um conceito sobre a loucura, ligada a toda essa idéia de desrazão, utilizando-se de Deleuze. Apesar de nos utilizarmos de citações de Nau do tempo Rei: 7 ensaios sobre o tempo da loucura (PELBART,1996) até aqui, essa conceituação é minuciosamente explicada em outro texto do mesmo autor: Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão (PELBART, 1989), que será abordado de agora em diante. 38 No entanto, devemos diferenciar um artista louco de uma obra desobrada. Faremos isso nos próximos tópicos. 3.2 – O artista louco Quando indagado sobre a mesma questão em uma entrevista, ou seja, do caso dos “gênios loucos”, dos pensadores do Fora, Deleuze disse: Naquilo que é chamado, grosso modo, loucura, há duas coisas: há um furo, um rasgo, como uma luz repentina, um muro que é atravessado; e há, em seguida, uma dimensão muito diferente, que poderíamos chamar de desabamento. Um furo e um desabamento. Lembro-me de uma carta de Van Gogh. “devemos – escrevia ele – minar o muro.” Salvo que romper o muro é dificílimo e se o fazemos de forma muito bruta nos machucamos, caímos desabamos. Van Gogh acrescenta ainda que “devemos atravessá-lo com uma lima, lentamente e com paciência”. Temos então o furo e depois esse desabamento possível. (DELEUZE & GUATTARI, 2005, p. 333-334) Em outras palavras, enquanto uns fazem um furo no muro que separa a razão da não- razão, e disso retiram inspiração para a arte (seja literatura, pintura, música, ou até mesmo a filosofia), outros fazem com que o muro seja destruído completamente e são entregues ao lado de fora. Entretanto, vale salientarmos algumas outras questões: primeiramente, que a irmandade entre a loucura e o fazer arte, ou seja, essa empreitada rumo ao exterior da racionalidade, é ao mesmo tempo a semelhança que as aproxima e a diferença que as separa. Mais claramente, poderíamos dizer que ao mesmo tempo em que ambos se relacionam com o Fora, com a desrazão, a forma de se relacionar é extremamente diferente de um caso ao outro. No caso da arte, subentende-se que o artista observa o outro lado em busca de inspiração. A palavra Breakthrough (traduzida como avanço, descoberta) relata de forma acurada essa relação: uma relação de vaivém entre o Fora e a razão. Na citação de Deleuze, um furo construído cuidadosamente no muro da racionalidade. Embora haja sim aqueles artistas que cederam à loucura, segundo Deleuze, estes passaram a outro momento do relacionamento com o Fora, abriram um buraco muito grande e encontraram-se com a loucura. Na loucura, a relação é outra: é um Breakdown (colapso) desse mesmo muro que o artista observa. O vaivém não pode ser mais empreendido a partir do momento em que a 39 subjetividade se expõe totalmente ao Fora. Entretanto, como todos aqueles que têm contato com a saúde mental hoje em dia sabem, o “louco” não está o tempo todo fora de si: as “crises” e “surtos” são os momentos em que a loucura toma conta efetivamente daquele considerado louco. É a este movimento que gostaríamos de chegar: não se é louco o tempo todo, quando se considera os sintomas mais excessivos da psicose, por exemplo. É possível muito bem delirar com a voz das árvores ao se passar por um bosque, mas não existem apenas bosques, existem também momentos de “sanidade” em qualquer esquizofrênico. E é essa a questão que nos faz pensar sobre o portador de distúrbio mental se relacionando com a arte, pois o fazer arte, por mais que se relacione com uma dimensão desarrazoada, é um trabalho de razão. Existem relatos de Van Gogh, por exemplo, dizendo que quando estava pintando tinha certeza de sua sanidade, ou de Arthur Bispo do Rosário, que quando sentia “o muro desabando” pedia que o trancassem em seu quarto com muitos materiais para que pudesse produzir (e assim evitar o surto). É por meio desse jogo (o artista que vai e vem da desrazão, o louco que vai e vem da razão) que Rompendo o silêncio secular a que foi condenada, a loucura encontrou nas linguagens da arte possibilidades para se expressar. Porém, o grito e a dor que com elas imprime na superfície do visível podem não ser percebidas pelo espectador enquanto tais. Introduzido nos espaços socialmente destinados aos ritos de celebração da “arte cultural”, o louco ganha uma nova sacralidade: torna-se artista e, aos olhos do espectador, gênio. Porém, se dessa maneira perde o estigma que há séculos o acompanha, sua Obra rompe com a loucura. Na moldura de uma exposição legitimada pela cultura, a expressão selvagem ganha o selo de obra de arte. E isto significa, como bem sabia Foucault que na sociedade contemporânea o confronto entre loucura e obra é bem mais perigoso que outrora: “o jogo delas é de vida ou de morte.” (FRAYZE-PEREIRA, 1995, p. 141)8 Ou seja, em se tratando da loucura enquanto fato social, tecnologia de exclusão, em determinado momento, ou há obra (devidamente aceita como tal, como hoje ocorre com muitos artistas loucos) ou há loucura (pois esta é indissociável, na sociedade de hoje, da exclusão que se abate sobre este estigma). 3.3 – A obra desobrada 8 O texto referido, de Frayze-Pereira (1995), é uma analise acurada de um acontecimento que vem se tornando costumeiro: a exposição de obras criadas por portadores de sofrimento psiquico em grandes galerias. Acerca desses eventos, o autor se propõe a analisar a repercussão das obras no público da exposição arte Incomum, em uma bienal. O trabalho é de uma beleza incrível, principalmente pela possibilidade de ver claramente o que pensa o publico sobre essa conexão entre arte e loucura. 40 Para retomarmos a questão sobre a ausência de obra por outro viés, vejamos outro argumento de Pelbart, além do já explicitado alhures, que questiona a ausência de obra com o artista louco: hoje em dia basta visitar uma bienal qualquer para se certificar de que grande parte das obras parecem sugerir uma desmontagem da estrutura, da forma, da comunicação, de seu caráter de produto finalizado; atentando contra a consistência, essas obras lembram mais a ruína do que propriamente um movimento de construção, como vimos na segunda parte desse trabalho. Nada similar à noção vulgar de obra. A elas melhor se aplicaria o termo feliz de Blanchot – Desobramento. Se há ali trabalho, visa a demolição da própria noção de trabalho, de obra, de linguagem, de palavra, do enquadre, da inteligibilidade etc. (PELBART, 1989, p. 174) Aqui se passa o questionamento: a obra, em algumas vertentes da arte atual, não se tornou também, de alguma forma, uma ausência de obra? Continuando o raciocínio: anteriormente neste capítulo, retiramos de Foucault toda uma análise do soterramento da experiência trágica da loucura. Vimos também, no segundo tópico, a exclusão da linguagem da loucura. Ambas aconteceram ao mesmo tempo, momento em que a própria invenção da loucura como a vemos hoje aparecia em forma embrionária. Atentando ao conceito da desrazão, vemos que ela se expressa quase que exclusivamente através dessas duas formas, loucura e arte. Partamos então do primeiro argumento – acerca do soterramento da experiência trágica da loucura – para nos opormos ao enunciado “loucura é ausência de obra”. Depois de historiar o nascimento do asilo, Michel Foucault se pergunta o que sobreveio à desrazão com a medicalização da loucura operada pela nascente psiquiatria. O desatino clássico, diz ele, que era silêncio e nada diante da Razão, foi transformado no final do século XVIII, através de Goya e Sade, em grito e furor. O não-ser da desrazão tornou-se com eles poder de aniquilação, violência, possibilidade de abolição do homem e do mundo. O nada e a noite da desrazão adquiriram direito de expressão na forma de obra, mas apenas na medida em que essas obras que o expressassem fossem mortíferas e lancinantes, capazes, na sua força, de contestarem o mundo, a razão e a dialética que as ligavam. (PELBART, 1989, p. 175) Ora, Pelbart parece se referir aqui ao mesmo argumento de Foucault sobre a arte e a loucura: entretanto, Foucault se refere à loucura, enquanto Pelbart à desrazão. Mas retomemos a questão em mãos: 41 Paradoxo: enquanto loucura e obra se excluem mutuamente (segundo a formula Foucaultiana: loucura é ausência de obra), a forma maior de expressão da loucura, numa época em que ela foi seqüestrada por inteiro pela “ciência” psiquiátrica, é precisamente a obra – que ela, no entanto arruína. Por que a Loucura, para expressar a ruína, precisaria justamente da obra, que é seu contrário? Por que a loucura, que implica a ausência de obra, necessita da obra para manifestar-se? Mero jogo de contrastes? (PELBART, 1989, p.175) Havemos, então, de colocar a seguinte questão: a experiência trágica da loucura, explorada por Foucault, seria o domínio da desrazão conforme dito por Pelbart? Nossa análise até agora nos faz acreditar que a linguagem trágica da loucura, com todos os significantes sociais que ela carregava (papel social possível para o louco, possibilidade de enunciação por meio da loucura) fazem parte integrante do domínio da desrazão. Pelbart parte da proposição de que A História da loucura na Idade Clássica é na verdade uma arqueologia dupla: por um lado Foucault buscou elaborar a história da loucura, e por outro observar a desrazão. Ora, as mudanças de título do livro apontam para o mesmo sentido9. Em se tratando do livro História da loucura: o pensador da arqueologia mostrou, ao longo desse livro, como o hiato entre desrazão e loucura foi se diluindo ao longo do tempo, desaguando numa coincidência à qual ainda estamos submetidos. Se a desrazão foi ‘capturada’ pela loucura, não é de surpreender que a única forma de manifestação da desrazão seja a loucura, uma loucura que será, então, marcada pelo índice do grito, da vigília e da desforra. (PELBART, 1989, p. 176) Como já dissemos anteriormente, à desrazão, a partir da Idade Clássica, foi permitido tomar lugar apenas na loucura, e algumas vezes na arte. Mesmo a arte tem algumas poucas figuras que deram voz à desrazão, sempre num trabalho que culminou com a loucura (Nietzsche enlouqueceu, Artaud e Sade escreveram dentro dos manicômios e hospitais gerais de suas respectivas épocas). É então explicado porque a desrazão e o Fora têm como expressão específica a loucura, sua linguagem quase que única. Mas existe outra linguagem da desrazão: 9 Foi em Corbanezi (CORBANEZI, 2009, p. 18) que nos foi atentado que o livro A História da loucura tinha originalmente o titulo de “A outra face da Loucura”, o qual depois foi mudado para “Loucura e Desrazão: a história da loucura na idade clássica”. Por fim, em 1972, os termos Loucura e desrazão foram suprimidos oficialmente do título. O autor também salienta que esta última supressão foi questionável: “História da Loucura não trata apenas da separação entre a razão e a loucura, mas também da separação de uma experiência da loucura em relação a uma outra experiência, a da desrazão.” (Idem) 42 O desobramento, já o vimos, é o que, como o neutro, anula o tempo, dissolve a história, desbarata a dialética e a verdade, abole o sujeito e faz soçobrar uma ordem. Se quisermos ver aí um ‘trabalho’ da desrazão, no sentido de uma demolição, nada mais justo. (PELBART, 1989, p.177) Já que a confusão entre loucura e desrazão foi instaurada, façamos como Pelbart e deturpemos a sentença de Foucault: desrazão, ausência de obra. Ora, porque se a desrazão só pode se expressar através do desobramento da arte, através do grito “mortífero e lancinante” da loucura, a ausência de obra é característica dessa desrazão, e não da loucura, uma das únicas máscaras através da qual nossa consciência moderna ainda a vê. Assim como em certos momentos uma sociedade pode confinar o acesso ao Fora apenas à loucura (obrigando com isso poetas, artistas e pensadores do Fora a enlouquecerem) em outros momentos outros espaços podem estar abertos a uma relação com o fora (espaços proféticos, xamânicos, místicos, políticos, poéticos, literários etc.) (´PELBART, 1989, p. 180) 4 - Dar ou não dar voz à loucura Retornemos então da longa digressão sobre a desrazão e continuemos andando sobre o caminho posto a frente pela questão da loucura enquanto linguagem interdita. Vale repetir a constatação citada no começo do texto, ou seja, que Foucault busca uma arqueologia do silêncio da loucura, entendida como: reconstrução das práticas, saberes, regras e normas que determinam a percepção social do louco, o imaginário que nele se investe, o medo que dele se tem, a proteção que dele se necessita, o espaço peculiar onde é enclausurado (pela família, pelo Estado, pelos juízes, pelos médicos), o olhar que o objetiva. Mas Foucault não visa dar voz à loucura, no sentido da construção de um repertório de enunciados dos loucos. Não visa dar voz à loucura, mas descrever o dispositivo racional que concretamente a constitui enquanto objeto. (BRUNI, 1989, p.2) Em posse destes elementos de análise, destas idéias originais sobre a loucura, havemos de indagar algumas outras coisas que Foucault pode nos ensinar: Primeiramente, por que é de tamanha indignidade falar pelos loucos? Qual o significado dessa repulsa ao ato de falar por esse personagem por definição exilado da linguagem? 43 Em segundo lugar, qual seria então o viés pelo qual se abordar a questão, qual seria o papel que resta a nós, agentes e intercessores da área da saúde mental, acerca desse silêncio? Ora, sob o pretexto de se colocar à escuta e de deixar falar os próprios loucos, aceita-se a partilha como já feita. É preciso colocar-se melhor no ponto em que funciona a maquinaria que opera qualificações e desqualificações, colocando uns em face dos outros, os loucos e os não- loucos. (FOUCAULT, 2006, p. 322) Existe então uma separação, ao ver de Foucault, do que seria falar pelos loucos, deixá- los falar, e colocá-los face aos não-loucos. Falar pelos loucos incluí algumas questões que concernem ao problema político por excelência, o problema da representação. Tomemos emprestado de José Carlos Bruni o argumento que explicita esta questão: Ora, é do ponto de vista da exclusão que a questão tradicional da representação política é radicalmente renovada. Pois como conciliar a produção ininterrupta de inúmeros mecanismos de exclusão gerados pela sociedade disciplinar com a representação enquanto modo de “participação” política? Como dar voz aos sujeitos silenciados pela exclusão a não ser fingindo cinicamente que ela é inexistente, desconhecendo a alteridade radical para onde foram empurrados os excluídos?(BRUNI, 1989, p.3) [grifos nossos] O que nos diz o autor é o seguinte: como podemos ser representativos da fala dos excluídos (dos loucos, no caso), falar por eles, sendo que eles continuam excluídos? Sendo que os regimes científicos, culturais e jurídicos continuam incidindo sobre eles uma desqualificação? Como podemos acreditar ouvi-los, se após sua fala, voltam ao lugar do excluso, se a interdição da sua linguagem continua pesando sobre seus ombros? Continuando o argumento de Bruni: Creio que é Deleuze que chega ao fundo da questão levantada por Foucault quando afirma: Foucault “foi o primeiro a nos ensinar — tanto em seus livros quanto no domínio da prática — algo de fundamental: a indignidade de falar pelos outros. Quero dizer que se ridicularizava a representação, dizia-se que ela tinha acabado, mas não se tirava a conseqüência desta conversão ‘teórica’, isto é, que a teoria exigia que as pessoas a quem ela concerne falassem por elas próprias. 10(BRUNI, 1989, p. 3) 10 A fala de Deleuze supracitada encontra-se em uma conversa com Michel Foucault, publicada sob o título de os intelectuais e o poder no livro Microfísica do poder (FOUCAULT, 1979, p.72), assim como a citação que abre o capítulo. 44 Portanto, partindo do pressuposto que deixar o excluído falar não apaga o problema com o qual nos dispomos a trabalhar, devemos indagar – retomando a segunda pergunta feita no começo deste tópico – acerca do papel dos intercessores envolvidos na luta anti- manicomial. Afinal, se tanto permitir ao excluído falar como falar por ele são propostas que passam tão longe do problema real, a saber, a própria desqualificação social, jurídica e discursiva da loucura, devemos indagar sobre qual seria, também, o papel dos intelectuais da área. O papel do intelectual não seria exatamente esse, o de falar sobre seu objeto de pesquisa, analisar seus discursos, suas verdades, e dar então um veredicto, partindo de sua posição privilegiada de pensador? O curto parágrafo acima nada mais é do que uma provocação, questão a se pensar: antes mesmo de pensar qual o nosso papel nesta luta, devemos pensar qual a nossa situação nessa luta. Os intelectuais – aqui usamos a palavra no sentido atribuído por Foucault, muito mais amplo do que “aqueles que sabem”, e mais próximo de “aqueles que têm sob sua manga a qualificação do discurso que é a ciência” – estão ligados em um domínio diferenciado: o domínio dos regimes de verdade. O papel do intelectual era aquele acima citado, na forma de provocação, mas Foucault mostra qual seria um novo papel possível para ele: o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber, elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores de censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a idéia de que eles são agentes da ‘consciência’ e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco de lado’ para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do discurso. (FOUCAULT, 1979, p.70-71) O autor nos esclarece um possível objetivo do intelectual neste contexto teórico: o intelectual deve trabalhar sobre os próprios regimes que invalidam o discurso, que tornam a loucura uma linguagem interdita. O intelectual deve fazer com que seja válido enunciar a linguagem da loucura. A teoria e a prática deixam de ser domínios separados, visto que 45 trabalhando a teoria o intelectual poderá tomar em suas mãos a luta que se propõe a auxiliar. Sua prática será criar a teoria que possibilitará, no caso da loucura, a melhor visualização daquilo que cria o interdito sobreposto a ela, daquilo que coage a loucura a um lugar de silêncio. é por isso que a teoria não expressará, não traduzira, não aplicará uma prática: ela é uma prática. Mas local e regional, como você diz: não totalizadora. Luta contra o poder, luta para fazê-lo aparecer e feri-lo onde ele é mais visível e mais insidioso. (FOUCAULT, 1979, p. 71) Conclusões do capítulo Vimos então, que a loucura tem varias faces segundo os escritos de Foucault. Apenas algumas foram salientadas aqui, por utilidade aos argumentos que se seguirão, por pertinência à análise proposta e (principalmente) para manter o texto sucinto. Há ainda outras questões sobre a loucura mostradas por Foucault que não cabem ser levantadas, das quais uma das mais emblemáticas é a subjugação do louco sob a forma do exílio da cidadania, apenas para dar um exemplo. Podemos retirar algumas questões importantes a se pensar: primeiro, que pensar loucura fora de um paradigma psiquiátrico não é só possível, como a Reforma Psiquiátrica vem nos dizer, mas é também o modo mais sensato de pensá-la, pois assim torna-se teoricamente viável abordar a questão de um projeto de mudança da sociedade que visa retirar os loucos do manicômio: não só eles foram injustiçados por estarem trancafiados lá, como eles o foram trancados lá por causa de uma série de modificações da sociedade que projetaram sobre ele, como um projetor sobre a tela do cinema, algo que cabe dar crédito apenas à sociedade (ou ao projetor); Segundo: pelo viés dos regimes de verdade, vemos agora com clareza que a loucura é desqualificação de linguagem. A essa proposição, que é facilmente imaginável a qualquer pessoa que tenha contato com usuários da rede de saúde mental11, adicionamos o que Foucault elaborou como o papel do intelectual: trabalhar com a teoria enquanto prática, e trabalhá-la de forma a alterar os regimes de verdade que impossibilitam essa linguagem de ser ouvida enquanto verdade. Trabalho de certa forma hercúleo, mas que está sendo empreendido por muitos intercessores na área, sejam trabalhadores, intelectuais, pesquisadores ou estagiários. No capítulo seguinte, veremos esse trabalho em progresso; 11 Vide o argumento eterno de desqualificação da loucura: “não liga não, ele não bate bem da cabeça”. 46 Terceiro: por meio da digressão que ocupa praticamente metade do capítulo, acreditamos que fomos capazes de levar à vista a questão do Fora, da desrazão, e por meio dela explicitar essa outra face do estudo de Foucault em A História da loucura na idade clássica que foi deixado inconcluso, mas que foi abordada por Peter Pál Pelbart. Essa explicitação serviu apenas de base para algumas outras conclusões que apareceram depois dessa apresentação, s