Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Campus de Marília Programa de Pós-Graduação em Filosofia THIAGO DE SOUZA SALVIO TEORIA DO CONHECIMENTO NO TRATADO SOBRE O PRINCÍPIO DE RAZÃO SUFICIENTE DE SCHOPENHAUER Marília 2021 THIAGO DE SOUZA SALVIO TEORIA DO CONHECIMENTO NO TRATADO SOBRE O PRINCÍPIO DE RAZÃO SUFICIENTE DE SCHOPENHAUER Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP, Campus de Marília – como parte dos requisitos para defesa de mestrado. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 Orientador: Professor Doutor Marcio Benchimol Barros Área de concentração: História da Filosofia, Ética e Filosofia Política Linha de pesquisa: História da Filosofia Marília 2021 THIAGO DE SOUZA SALVIO TEORIA DO CONHECIMENTO NO TRATADO SOBRE O PRINCÍPIO DE RAZÃO SUFICIENTE DE SCHOPENHAUER BANCA EXAMINADORA: Professor Doutor Marcio Benchimol Barros (Orientador) Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Faculdade de Filosofia e Ciências – Câmpus de Marília Professor Doutor Pedro Geraldo Aparecido Novelli Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Faculdade de Filosofia e Ciências – Câmpus de Marília Professor Doutor Flamarion Caldeira Ramos Universidade Federal do ABC Marília, Abril de 2021. [Rotlaust tre fell (“Árvore sem raíz cai” (antigo provérbio escandinavo)]. RESUMO O propósito da presente dissertação é analisar as formas de cognição, tão somente, contidos na segunda edição da obra ‘Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente: um tratado filosófico’ [Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde: Eine philosophische Abhandlung], do filósofo alemão, Arthur Schopenhauer (1788-1860). A partir dessa investigação, será explicitado discursivamente, na economia interna daquela propedêutica inicial, como amiúde é referido, para a compreensão sistêmica da problemática em pauta. Isto é, deslindar os fundamentos necessários contidos nas teses centrais deste contexto. Concernente a respectiva exegese filosófica, vale enfatizar, nosso objetivo mira, apresentar demarcadamente, uma teoria do conhecimento em evidência; sem, por isso, nos atermos aos aspectos de ordem metafísica possivelmente suscetíveis de evocação. Palavras-chave: Filosofia alemã; Teoria do conhecimento; Princípio de razão suficiente; Arthur Schopenhauer. ABSTRACT The purpose of this dissertation is to analyze the forms of cognition, contained only in the second edition of the work 'On the fourfold root of the principle of sufficient reason: a philosophical treatise', by the German philosopher, Arthur Schopenhauer (1788-1860). From this investigation, it will be explained discursively, in the internal economy of that initial propaedeutics, as it is often referred to, for the systemic understanding of the issue at hand. That is, to unravel the necessary foundations contained in the central theses of this context. Regarding the respective philosophical exegesis, it is worth emphasizing, our objective aims, to present clearly, a theory of knowledge in evidence; without, therefore, sticking to aspects of metaphysical order possibly susceptible to evocation. Keywords: German philosophy; Theory of knowledge; Sufficient reason principle; Arthur Schopenhauer. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Primeira demonstração geométrica ...................................................79 Figura 2 - Segunda demonstração geométrica ..................................................80 Figura 3 - Terceira demonstração geométrica ....................................................81 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO....................................................................................................9 2 DA IMPORTÂNCIA DA APLICAÇÃO DA LEI DE HOMOGENEIDADE E ESPECIFICAÇÃO AO PRINCÍPIO DE RAZÃO SUFICIENTE E SUA FÓRMULA GERAL ................................................................................................................13 2.1 Das vicissitudes acerca do princípio de razão suficiente: principais ensinamentos dos filósofos precursores.........................................................14 2.2 Platão e Aristóteles.....................................................................................15 2.3 Descartes e Spinoza.....................................................................................17 2.4 De Leibniz a Kant..........................................................................................20 2.5 Hume.............................................................................................................21 2.6 A escola de Kant...........................................................................................22 2.7 As provas do princípio de razão suficiente................................................22 2.8 A raiz do princípio de razão suficiente........................................................23 3 EXPLICAÇÃO GERAL DA PRIMEIRA CLASSE DE REPRESENTAÇÕES.....25 3.1 A interconexão do espaço, tempo e causalidade.......................................26 3.2 O princípio de razão suficiente do devir: a lei da causalidade...................28 3.3 As três formas de conhecimento da lei da causalidade............................30 3.4 O entendimento: faculdade do conhecimento empírico...........................31 3.5 A intelectualidade da intuição empírica......................................................33 3. 6 Provas do entendimento intuitivo..............................................................37 3.6 A intelecção apriorística da lei da causalidade.........................................40 3.7 A refutação da demonstração acerca da aprioridade do conceito de causalidade dada por Kant................................................................................43 3. 9 Algumas considerações sobre o idealismo transcendental....................46 4 EXPLICAÇÃO GERAL DA SEGUNDA CLASSE DE REPRESENTAÇÕES...59 4.1 A razão: faculdade do conhecimento abstrato...........................................59 4.2 O conhecimento racional e a cognição reflexiva: conceitos e juízos.......60 4.3 O princípio de razão suficiente do conhecer: as modalidades de verdade...............................................................................................................64 5 EXPLICAÇÃO GERAL DA TERCEIRA CLASSE DE REPRESENTAÇÕES....70 5.1 A sensibilidade pura: faculdade do conhecimento formal........................71 5.2 O princípio de razão suficiente do ser: a evidência matemática...............75 6 EXPLICAÇÃO GERAL DA QUARTA CLASSE DE REPRESENTAÇÕES.......83 6.1 O sujeito do querer.......................................................................................84 6.2 A autoconsciência: faculdade do conhecimento volitivo.........................87 6.3 O princípio de razão suficiente do agir: a lei da motivação.......................89 7 RESULTADOS GERAIS DA INVESTIGAÇÃO SOBRE O PRINCÍPIO DE RAZÃO SUFICIENTE..........................................................................................93 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................97 REFERÊNCIAS...................................................................................................99 9 1 INTRODUÇÃO O destino de ‘Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente: um ensaio filosófico’ [Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde: Eine philosophische Abhandlung], se repercute na preocupação tida pelo filósofo de Frankfurt, Arthur Schopenhauer (1788-1860) em publicar consideravelmente, através de uma segunda edição, o tratado referido [Zweite, sehr verbesserte und beträchtlich vermehrte Auflage]: uma tese de doutoramento, defendida in absentia, na universidade de Jena, no ano de 1813, pelo então pensador, de apenas vinte e seis anos de idade; que refugiou-se em Rudolstadt, para escapar da ocupação das tropas napoleônicas, nas demais cidades da antiga Prússia. À essa altura, no ano de 1847, Arthur Schopenhauer já havia publicado há muito tempo, a espinha dorsal de seu sistema filosófico, sua magnum opus ‘O mundo como vontade e representação’ [Die Welt als Wille und Vorstellung] em dois tomos, o primeiro contendo o apêndice, ‘Crítica da Filosofia Kantiana’ [ Anhang: Kritik der Kantischen Philosophie] e o segundo, os ‘Complementos’ [Ergänzungen] de sua doutrina; sendo que o primeiro fora publicado em 1819, ou seja, antecedido há três anos pelo tratado “Sobre a Visão e as Cores” [Über das Sehen und die Farben], 1816 – onde o filósofo aprofunda a teoria das cores de Goethe, em defesa deste – após dezessete anos, em 1836, publica seu notório opúsculo para a divulgação de sua metafísica da natureza, ‘Sobre a Vontade na Natureza: Discussão das confirmações que a filosofia do autor, têm recebido das ciências empíricas, desde o seu surgimento’ [Über die Wille in der Natur: Eröterung der bestätigungen, welche die Philosophie des verfassers, seit ihrem Auftreten, welche die empirischen Wissenschaften erhalten hat]. Por fim, ainda no âmbito da inteireza de suas obras, o autor regozijou da edição de sua Ética (que pode ser compreendido já no primeiro tomo; quarto livro, d´O Mundo), adjunto ao tratado ‘Os dois problemas fundamentais da Ética’ [Die beiden Grundproblem der Ethik] de 1841, onde reúne o escrito premiado [Preißschrift] pela Sociedade Norueguesa de ciências de Drontheim, ‘Sobre a liberdade da vontade humana’ [Über die Freiheit des menschlichen Willens] e o não premiado, ‘Sobre o fundamento da Moral’ [Über das Fundament der Moral, lamentavelmente recusado pela Sociedade dinamarquesa de ciências em 10 Copenhagen, por questões de “decoro acadêmico”. Todavia, foram os dois tomos de ‘Parerga und Paralipomena’ [ornamentos e suplementos], publicados em 1851, os responsáveis pela sua celebridade nos meios eruditos da Europa e que marcou naqueles, com a virada da segunda metade do século oitocentista e, a despeito da malograda primavera dos povos europeus (brutalmente massacrada pela armada dos despotismos estatais da época) uma certa tendência culminada no niilismo e suas diversas vertentes. Sem embargo, aquém do esgotamento da circulação de sua primeira edição, denunciada pelo autor no prólogo da segunda edição do tratado sobre o princípio de razão, cabe ainda ressaltar alguns pontos esmiuçados por ele mesmo, que ensejaram, novamente, o pensador a “tomar a pena e os auspícios editoriais”. Admitidos os fatos históricos, é consequente corroborar as seguintes hipóteses: 1) Retificar sua posição teórica em relação a primeira versão da dissertação: o próprio filósofo é, de certo modo, indulgente consigo mesmo e com o leitor, e procura corrigir a si mesmo, pois, já em idade avançada, tal honestidade filosófico-moral, se manifesta ao retomar sua tese de juventude, que viria a alicerçar a edificação de seu sistema filosófico consolidado, com a publicação simultânea, do ‘Die Welt, em dois tomos (sistematicamente se estruturam como a espinha dorsal de um organismo vertebrado vivo)1; sendo o segundo deles, avantajado pelo filosofar refinadamente amadurecido, consagrado à complementação do primeiro; também, acrescido consideravelmente. Deste modo, se observarmos detida e cronologicamente, o movimento de edição das obras do autor, constatamos que, logo após a publicação dos supramencionados, um curto hiato de três anos é suprimido pela segunda edição do tratado, que almeja através da compreensão correta e inequívoca, o conhecimento substancial de sua filosofia pelo público alvo; 2) A formação cultural [Bildung] da “pseudofilosofia” do “tempo de agora” [Jetztzeit]: ainda no prólogo, a indignação com os rumos que a filosofia alemã de 1 Diga-se de passagem que na metafísica da natureza schopenhaueriana, os animais vertebrados são os mais inteligentes seres, pela observação osteológica das variegadas espécies do planeta Terra, apresentarem uma hierarquia gradativa, ascendente, em direção a um intelecto astuto, senão, afiado pelo fortalecimento sutil do sistema nervo e cerebral. Certamente, podemos endossar esse prospecto, hodiernamente, em relação a capacidade desses organismos realizarem sinapses mais complexas. 11 sua época caminhava, beirou uma invectiva colérica contra seus adversários espirituais, mas sobretudo, deliberadamente, uma conscienciosa reação polêmica, de modo, a auferirmos as imprecações contra a institucionalização universitária da filosofia, e seu desvio em marcha a um “crasso materialismo” que, na visão do autor, é uma errática orientação intelectual “grotesca”. Neste sentido, para Shopenhauer, a consubstanciação entre teoria e empiria, traduzidos em termos correspondentes, a unificação da filosofia subjetiva-conceitual e do método científico-objetivo, em nada se anulam, au contraire, ratifica, em eminência, o verdadeiro idealismo: o transcendental, pois este é quem dá validade necessária e universal para toda experiência possível. 3) Por último, de suma importância, e com veemente démarche, pois este é o ponto de partida objetivo da presente análise; a saber, a melhoria incisiva dos resultados positivos da dissertação inaugural sobre o princípio de razão suficiente, que respaldaram-se fundamentalmente no conhecimento das ciências naturais em vigência naquela época. Portanto, a fecunda extensão teorética da segunda edição do tratado, conta com uma aprimorada ampliação filosófico-científica, devido a ocasião propícia [καιρός] para vir ao lume, isto é, o avanço progressivo de Schopenhauer para lapidar sua cosmovisão [Weltanschauung], aquilatando preciosamente suas descobertas indeléveis sobre a natureza e o espírito (seja dos seres humanos ou dos animais). Assim, a diligência de fornecer ao público especializado ou não, pois, “até mesmo o leitor se torna filósofo”, conforme o próprio autor, “uma teoria compendiosa das faculdades cognitivas completas” [eine kompendiose Theorie des gesammten Erkenntnißvermögens]. Destarte, como Schopenhauer mesmo enuncia no primeiro prólogo d’O mundo (1819), dentre os requisitos solicitados para o aprofundamento filosófico de sua doutrina, é facultado ao leitor estudioso uma exigência imperativa, a rigor, “quase” obrigatória, ou seja, a prévia compreensão da Dissertatio (podemos especular que já naquele momento encontrava-se escassa pela diminuta tiragem de exemplares, cerca de quinhentos, talvez, conjecturemos pois, tenha sido relegado ao descaso arbitrário dos livreiros e do público2. 2 É documentalmente sabido que, a esmo, Johanna Schopenhauer, escritora literata promovia um círculo renomado, que também fazia jus a sua fama. Mãe do autor em contexto e de Adele Schopenhauer, (intentou similar carreira no romantismo literário), jocosamente, Johanna atribuiu o insucesso da estreia de seu filho no mundo filosófico, pelo fato do título de sua tese, exibir um 12 Autodeclarado o “verdadeiro herdeiro” da filosofia de Immanuel Kant (1724-1804), Schopenhauer, apresenta muitas linhas de convergência com a filosofia crítica, mais exatamente, com o idealismo transcendental, de sobremaneira, com o acerto de contas com a dogmática metafísica clássica do ocidente, instaurada pela “revolução copernicana” (inversão do fundamento do conhecimento, numa guinada ao método subjetivo) da Crítica da razão pura [Kritik der reinen Vernunft]. Porém, se de relance parecemos estar lidando com um kantiano ortodoxo, logo, essa certeza é dirimida pelas divergências de Schopenhauer em relação ao próprio mestre, pois ele busca retificá-lo pelo método objetivo, ou seja, a aplicação da fisiologia cerebral ao conhecimento, que afasta as pretensões de um conceito teológico de alma no que concerne a cognição do sujeito. Sendo assim, iniciaremos a explanação, reconstrução e interpretação amparados pela investigação sobre o princípio de razão suficiente, e, ao perscrutar a estrutura da “árvore do conhecimento”, desde o tronco, até as ramificações, galhos, folhas e frutos, encontraremos, junto a constatação schopenhaueriana, os indícios de seus rizomas, e em razão deles, o porquê de se estudá-los. É por isso, que o emblemático mote do ensaio, tirado de um antigo juramento pitagórico nos assalta com um primeiro vislumbre sobre o assunto: “Por quem nos concede a mente o número quatro, fonte e raiz da criação sempre fluente”. certo “pedantismo de tratado farmacêutico (!); ao que o jovem Arthur replica: “O mundo me conhecerá pelo meu nome, e não pelo teu”. 13 2 DA IMPORTÂNCIA DA APLICAÇÃO DA LEI DE HOMOGENEIDADE E ESPECIFICAÇÃO AO PRINCÍPIO DE RAZÃO SUFICIENTE E SUA FÓRMULA GERAL Schopenhauer afirma que Platão e Kant recomendam uma regra para o método de toda atividade filosófica e para todo o saber em geral. Segundo eles devem ser cumpridas duas regras, a saber, da homogeneidade e especificação, de igual modo, nenhuma em detrimento da outra. A lei de homogeneidade nos ensina, mediante a observação da semelhança e concordância das coisas a apreender as variedades para reuni-las em espécies e estas em gêneros até que cheguemos finalmente a um conceito supremo que abarque o todo. Essa é uma lei transcendental, essencial a nossa razão, pressupõe que a natureza lhe seja conforme, suposição expressa na antiga regra: "não se deve multiplicar-se os princípios sem necessidade". Em contrapartida, a lei de especificação se expressa assim por Kant: "a variedade dos entes não deve ser diminuída irrefletidamente". Esta requer bem a distinção das espécies unidas no conceito de gênero que as abarca, e por sua vez, as variedades superiores e inferiores compreendidas em tais espécies, segurando-nos de dar nenhum salto e, sobretudo, de não subsumir as variedades inferiores, e menos ainda, os indivíduos imediatamente sob o conceito de gênero, sendo cada conceito capaz de uma nova divisão em conceitos inferiores, mas sem chegar nenhum destes a mera intuição. Kant ensina que essas duas leis são princípios transcendentais da razão, que postulam a priori o acordo das coisas com eles. Platão, de seu modo, parece dizer o mesmo ao afirmar que toda ciência deve sua origem a estas regras. O princípio de especificação, apesar de sua grande recomendação, é encontrada muito pouco aplicada ao princípio fundamental de todos os conhecimentos, o princípio de razão suficiente. Ainda que pressuposto de maneira geral, por muitas vezes, fora descuidado a separação de suas muitas diversas aplicações, em cada uma das quais obteve uma significação diferente, e que delata sua procedência de diversas faculdades cognitivas. Porém, precisamente no estudo delas, a utilização do princípio de homogeneidade com o descumprimento de seu oposto, conduz a muitos e persistentes erros, ao contrário, a utilização da lei de homogeneidade produziu maiores progressos. Isto 14 se demonstra se comparada a filosofia de Kant com as anteriores, aliás ele mesmo prioriza a aplicação da lei de homogeneidade às fontes de nosso conhecimento. Schopenhauer logra, desde o início que sua investigação não dimana imediatamente de uma só, senão de várias formas cognitivas, fundamentais de nosso espírito [Geist]. Se seguirá disto que, a necessidade [Nothwendigkeit] resulta como princípio de certeza apodítica, e validade universal a priori (tal como enseja o método crítico-transcendental de Kant). É tampouco, único e idêntico em todas as partes, senão, múltiplo, como são as fontes do princípio mesmo. Então, se sucede que tudo fundamentado em uma conclusão sobre o princípio, terá a obrigação de determinar exatamente, sobre qual das diferentes necessidades que servem de base ao princípio de razão suficiente, se apoia; será qualificado com uma nomenclatura própria, clara e precisamente, para garantir maior compreensibilidade possível da significação inequívoca e segura. Pois, justamente, o princípio de razão suficiente é de suma importância posto que podemos denominá-lo fundamento de toda ciência, ou seja, um sistema de conhecimentos unificados. Ademais, quase todas as ciências contêm conhecimentos de causas pelas quais podem se determinar seus efeitos, igualmente, outros conhecimentos das necessidades dos efeitos pelas causas. Pelo fato pressuposto por nós a priori, de que tudo tem um fundamento, que podemos nos perguntar do “por que” de todas as coisas, este “por que” é a mãe de todas as ciências. Conquanto, há de se mostrar que o princípio de razão suficiente é expressão geral de vários conhecimentos dados a priori. A fim de se estabelecer uma fórmula geral, elege-se a de matriz do filósofo dogmático alemão, Christian Wolff (1679-1754): “Nihil est sine ratione cur potius sit, quam non sit” [nada é sem uma razão pela qual é]. 2.1 Das vicissitudes acerca do princípio de razão suficiente: principais ensinamentos dos filósofos precursores Nesta seção, seguiremos os passos de Schopenhauer e, ao perscrutar seus rastros, vamos nos deparar com os vestígios de outrora, ou seja, de outra maneira, ao desemaranhar os fios de nós embolados, para puxar o fio condutor 15 acerca do que, de certa forma, podemos denominar de história do princípio de razão suficiente, ao puxar essa linha diametral pelas extremidades, cujas pontas opostas são o princípio de homogeneidade e o princípio de especificação, verificamos ao longo do histórico filosofar, as mais diversas aplicações dos mesmos, e quase sempre para fins de uma prova ontológica da existência de Deus (viés onto-teológico) ou por Petitio principi (petição de princípio) servindo de meio para argumentos circulares, redundantes, que nada acrescentam ao conhecimento de causa, todavia, contradizem o propósito de uma formulação de juízo sintético a priori. Alguns sofismas dos predecessores inqueridos, recorrem, para não justificar o ônus da prova, tampouco, a demonstração, ao juízo analítico a priori, pois este é sempre independente do objeto empírico, nesse caso, da relação entre sujeito e predicado, detecta-se que este último, por necessária implicação, já está contido naquele. É como o coelho que sempre esteve na cartola sem que sequer fosse preciso a prestidigitação do touche de magie. 2.2 Platão e Aristóteles Inicia-se assim a investigação pelas primeiras expressões abstratas do princípio de razão nos grandes clássicos da história da filosofia ocidental, dos quais se destacam citações de Platão nos diálogos Filebo e Timeu, bem como Aristóteles nos Analíticos Segundos e na Metafísica; logo reconhece que a definição de um princípio originário de todo o conhecimento já se encontra entre os antigos, mas não pressuposto ainda como fundamental, e sem dúvida, Aristóteles, foi o filósofo que melhor distingue a causa da razão do conhecimento e o que mais se aproxima a uma definição do princípio de razão. Nos Analíticos Segundos Aristóteles sustenta que o conhecimento científico está fundado na demonstração, isto é, pelo silogismo, o qual está composto por duas premissas e uma conclusão que mantém entre si uma relação de causa e efeito. As premissas devem ser verdadeiras, anteriores, e melhor conhecidas que a conclusão; e sua veracidade se verifica, porque só o que é verdadeiro pode ser conhecido. Por conseguinte, só temos conhecimento 16 científico quando conhecemos as causas melhor que os efeitos, pois elas devem ser as verdades fundamentais, vale dizer, proposições primárias, imediatas, portanto, indemonstráveis. O conhecimento das premissas imediatas é independente da demonstração, pois é sempre resultado das premissas anteriores; daí que não podemos retroceder mais além das verdades imediatas, porque elas são indemonstráveis. Do anterior, se segue claramente que o silogismo aristotélico é totalmente distinto do infinito e restrito nexo causal imposto pela lei de causalidade. Também nos Analíticos Segundos (Livro I, cap. 13), Aristóteles distingue claramente entre o que uma coisa é e por que é uma coisa. Através da exposição de vários silogismos, demonstra que silogismo só é conhecimento do porquê quando a causa próxima está contida nas premissas, o que só é possível se ambas são imediatas, fundamentais, porque as premissas primárias são a causa de nosso conhecimento, de nossa convicção. Aristóteles o assinala ao advertir que "aquilo pelo que cada coisa se dá, sempre se dá na maior medida que ela, por exemplo, aquilo pelo qual amamos algo é mais amado que este último". Na Metafísica (I, 3), Aristóteles estabelece o princípio de razão ao afirmar que "sabemos uma coisa quando cremos conhecer sua causa primeira" e divide as causas em quatro: "uma das quais dizemos que é a substância e a essência; outra é a matéria ou o sujeito; a terceira aquela de onde procede o princípio do movimento, e a quarta, a que se opõe a esta, isto é, a causa final ou o bem". Ademais, no livro V, é dividido em oito as as distintas espécies de razões (princípios) sendo relevante para Schopenhauer. A afirmação segundo a qual, "todos os princípios é comum ser o primeiro, desde o qual algo é, ou se faz conhecer". Aristóteles defende que se afirmem princípios de tantos modos como se afirmam as causas, pois todas as causas são princípios. Intrínseco ou extrínseco, o princípio de uma coisa é sempre o ponto por onde começa ser cognoscível. Portanto, as premissas são o princípio da demonstração, pois são conceitos com os quais inferimos essa demonstração. Também a primeira escolástica cuja filosofia Schopenhauer considera deteriorada pelo conceito de Deus pessoal, mas significativamente, cita as Disputationes metafísicas de Suárez, "verdadeiro compêndio da escolástica", no qual se verifica como aceitaram a divisão aristotélica das causas: "É célebre a divisão da causa em quatro gêneros de causa, a saber: material, formal, eficiente 17 e formal, que dá Aristóteles (...)". Para os escolásticos a lei da causalidade era como um axioma absoluto, disse Suárez: "Não perguntamos se se dá a causa porque não há nada mais evidente por si mesmo". Assim a divisão aristotélica das causas era mantida, mas não se procurava estabelecer sua necessária distinção. 2.3 Descartes e Spinoza Descartes é chamado de "pai da filosofia moderna" porque ensinou a razão a reger-se por si mesma e porque tomou consciência, pela primeira vez, do problema em torno do real e do ideal. De fato, ao questionar-se acerca do que há de objetivo em nossa consciência, o problema cartesiano se converteu no tema característico da filosofia idealista moderna. Porém, não foi resolvido, pois confundiu deliberadamente razão de conhecimento e causa, e não compreendeu o alcance da especificação no princípio de razão, porque introduziu como prova aquilo que anteriormente era apenas argumento, a prova ontológica. Esse tipo de argumento se remonta a Santo Anselmo, se baseia na presença imediata em toda inteligência humana da ideia de um ser perfeito que não é possível pensar em nenhum outro mais perfeito que ele. Portanto, se parte das características do conceito de Deus para chegar a demonstração de sua existência. O que implica que o argumento de Santo Anselmo não utiliza de nenhum modo o conceito de causalidade, um argumento característico da primeira escolástica medieval que toma os conceitos universais como realidades [res ipsa], dentre elas, de modo eminente o conceito de Deus. O empreendimento cartesiano exige corretamente a aplicação do princípio de causalidade, pois qualquer coisa necessita de uma causa para existir (não há coisa alguma existente cuja causa de existir não possa ser indagada); mas quando se aplica o princípio a Deus, a infinidade latente em seu próprio conceito de ser infinito ou ser imenso, mostra que é a razão que não necessita ser provada, ou causa que não necessita ser causada (a imensidão mesma de sua natureza é a causa, razão mesma de que não o necessite). Logo Descartes confunde e mescla deliberadamente causa com razão de conhecimento, pois a imensidão de Deus é uma razão de conhecimento e não uma causa, posto que funda um juízo, enquanto a causa é sempre de um fato real. Todavia, ao incluir ao incluir o predicado imensidão no conceito de Deus, introduz intencionalmente 18 o argumento ontológico como prova que se desenvolve a partir desse momento. Adverte-se que Descartes pôde forjar o conceito de Deus porque predicados como “perfeição” [perfectio] ou “imensidão” [imensitas] não implicam que o conceito abarque também o predicado da realidade ou da existência, e que a confusão estabelecida entre causa e razão de conhecimento, arrastou lamentáveis consequências para a metafísica. Descartes considera que a causa é atemporal, pois a criação e sustentação de uma realidade são inseparáveis para ele. Uma vez que o nada não é causa de qualquer coisa existente, qualquer realidade ou perfeição de uma coisa se encontra em sua causa primeira. Daqui se segue uma primeira conclusão: "A realidade objetiva de nossas ideias requer uma causa que contenha essa mesma realidade, não só objetivamente, senão formalmente, ou eminentemente". Assim, o ato subjetivo do conhecimento carece sempre de uma garantia que não resida no ato direto de conhecer, mas sim na causa real [res] desse ato de pensamento [cogitatio]. Só sabemos que existe uma coisa se supomos que "a realidade objetiva de toda ideia deve ter uma causa que exista realmente". Aceito esse princípio genérico, Descartes passa a analisar a diferença específica entre as ideias de uma realidade finita e infinita, ou seja, entre a ideia de uma realidade cujo conceito implica a existência possível e a ideia de uma realidade cujo conceito implica a existência necessária, ou perfeita. Sua conclusão é clara: "A existência está contida no conceito de qualquer coisa, pois nada podemos conceber se não for sob a forma de algo que existe; porém há essa diferença: que, no conceito de uma coisa limitada, só está contida a existência possível ou contingente, e no de um ser supremamente perfeito, está compreendida a existência perfeita e necessária". A partir daí o caminho está aberto para provar a existência de Deus como algo conhecido, considerada simplesmente sua natureza. Como a existência necessária está contida no conceito de Deus, pode-se sustentar que tais atributos predicam o verdadeiro conteúdo. A fim de rechaçar o argumento ontológico desdobrado por Descartes, Schopenhauer recorre a Aristóteles, que nos Analíticos Segundos prova que a definição não demonstra nem o significado de uma coisa, nem que essa definida, exista. Não é possível provar a existência de uma coisa a partir de uma simples 19 definição: a existência não está contida na essência. Assim o argumento ontológico é rechaçado pela lógica aristotélica. O embate avança claramente frente a filosofia spinozana, conhecida pelo panteísmo, leva consigo amiúde a repetição dos termos razão e causa: "A cada coisa há que assinalar uma causa ou razão, tanto do porque existe como do porque não existe". Spinoza refuta o duplo dualismo instaurado por Descartes, a saber, de Deus e o mundo, e da alma e o corpo; mas a causa panteísta vai além do cartesianismo na confusão e mescla na relação de causa e efeito e razão de conhecimento e consequência. De fato, ele constata uma relação entre Deus e o mundo semelhante a relação que existe entre um conceito e seus predicados essenciais, na qual eles são obtidos através de juízos analíticos que, em seu conjunto, formam a definição do conceito. Assim, os juízos analíticos têm no conceito sua razão de conhecimento porque eles expressam sua essência. Ao identificar Deus com a substância única, chamando-a ao largo de toda sua Ética a causa do mundo, estabelece entre a substância e seus inúmeros acidentes uma relação de conhecimento e de consequência. Daí que Schopenhauer advirta que o teísmo de Spinoza é somente nominal e não real, pois o verdadeiro teísmo é o que estabelece uma relação de causa e efeito na qual a causa aparece separada do efeito, vale dizer, uma relação real e não apenas por reflexão. Mas Spinoza substitui Deus pela substância única, e a chama de causa do mundo Estatui assim uma relação de causa e efeito através da mescla efetuada entre a causa e a razão de conhecimento (igual a Descartes), a partir disto identifica Deus, ou seja, a substância com a causa do mundo. Spinoza realizou o argumento ontológico cartesiano antes utilizado, para provar a existência de Deus e sustentar uma relação real entre este último e o mundo através da substância única como causa de si mesmo [causa sui]. Parece-nos pertinente acrescentar que Spinoza prova a existência de Deus a partir da existência necessária daquilo que não há razão, nem uma causa que o impeça de existir. Como não há razão ou causa alguma que impeça Deus de existir, então, existe necessariamente. Se essa razão ou causa existisse teria que estar ou na própria natureza de Deus ou fora dela, em outra substância distinta. Mas sendo distinta não poderia ter semelhança com Deus, tampouco poderia reter sua existência. Portanto, ela teria que formar parte da própria 20 natureza divina, o que é contraditório, pois se essa razão ou causa prova a existência de Deus, não pode estar contida na natureza divina. Igual Descartes, Spinoza mistura a relação estabelecida por uma razão de conhecimento e a exigência de uma causa para explicar um fato real, só que ele o faz para justificar sua ontologia panteísta. Esta continuidade entre ambos filósofos é clara pela reivindicação da herança cartesiana por Spinoza. Ainda assim, Schopenhauer os compara para mostrar que o panteísmo é o alargamento da prova ontológica de Descartes; denuncia a incompreensão do princípio de razão suficiente sob a acusação de Spinoza prosseguir a confusão infundada a grosso modo, com o argumento ontológico. 2.4 De Leibniz a Kant Schopenhauer não considera relevantes os filósofos a partir de Leibniz, Hume etc. (exceto Kant) para a compreensão do princípio de razão suficiente. Leibniz é citado de forma bastante crítica, irônica e só por haver sido o primeiro pensador até então a formular explicitamente o princípio de razão suficiente. Enquanto a Wolf, este não coloca o princípio de razão suficiente na lógica, senão na ontologia. Apesar de, em sua Ontologia, advertir que não se deve colocar este princípio do conhecimento com o de causa e efeito, todavia, não consegue distinguir claramente estas duas noções e comete algumas confusões. Ele apresenta tantos exemplos de causa e efeito como de motivo e ação para se justificar. Wolf define a causa como princípio pelo qual outra coisa chega a existência, ao revés, Schopenhauer insiste que a causa é o estado completo anterior, isto é, que a causalidade se refere somente as mutações de estados da matéria e que aparição de um estado (efeito) é sempre uma mutação. Por conseguinte, não tem sentido pensar na noção de causa como princípio pelo qual uma coisa chega a existência, ou gera algo, nem numa causa primeira em absoluto. Outros filósofos são citados como quem contribuíram muito pouco em aprofundar o tratamento do princípio de razão, se limitaram a repetir o que Wolf havia dito. Nomeadamente Baumgarten e Reimarus, o qual distingue na “Doutrina da Razão” [Vernunftlehre] distingue entre razão interior (idêntica a ratio essendi 21 wolfiana) e razão exterior (causa). Lambert é referido de forma irônica, pois no Novo-órganon “já não menciona as distinções de Wolf”. Termina com Platner, que confunde assim a razão pela qual sucede qualquer coisa, a razão do acontecer referenciada a cadeia de mutações fenomênicas regidas pela causalidade, com a razão pela qual uma coisa é o que é, que na classe dos conceitos é aquilo no qual se apoia um juízo, e simplesmente inverte os termos de um a outro. Com relação a David Hume, tanto Kant como Schopenhauer o elogiaram por haver sido o primeiro a questionar a validade da lei de causalidade e pedir suas credenciais. Foi o que conduziu Kant a um idealismo mais profundo e fundamental que o de Berkeley. 2.5 Hume Segundo Schopenhauer, referindo-se se a David Hume, até este sério pensador, ninguém tinha ainda duvidado do seguinte. Primeiro e antes de todas as coisas no céu e na terra está o princípio de razão suficiente enquanto lei de causalidade. Pois ele é uma veritas aeterna [verdade eterna], isto é, ele próprio é em si, elevado acima dos deuses e do destino; todo o restante, por outro lado, por exemplo, o entendimento que pensa o princípio da razão e não menos o mundo inteiro, e também o que quer possa ser a causa deste mundo, como átomos, movimento, um criador etc., é o que é só em conformidade e em virtude desse princípio. Hume foi o primeiro a quem ocorreu perguntar de onde, então, essa lei da causalidade recebe sua autoridade, e de exigir suas credenciais. O resultado a que chegou é conhecido: a causalidade não seria nada além da sucessão no tempo das coisas e dos estados empiricamente percebida e tornada habitual para nós. Cada um sente de imediato a falsidade nisso, e também não é difícil refutá- lo. Só que o mérito reside na própria pergunta: ela se tornou o estímulo e o ponto de conexão para as profundas investigações de Kant, e, por meio delas, para um idealismo de concepção incomparavelmente mais profunda e mais fundamentada do que o vigente até então, que é principalmente o de Berkeley e para o idealismo transcendental, do que brota para nós a convicção de que o mundo, em seu todo, é tão dependentes dele. Pois ao demonstrar os princípios transcendentais como tais, em virtude dos quais podemos determinar algo a priori, isto é, anteriormente 22 a toda experiência, sobre os objetos e sua possibilidade, ele provou a partir disso que essas coisas não podem existir assim como se apresentam para nós independentemente de nossa cognição. O parentesco de um tal mundo com o sonho salta à vista (SCHOPENHAUER, 2015). 2. 6. A escola de Kant A principal referência de Kant ao princípio de razão suficiente é a do opúsculo ‘Sobre um descobrimento com o qual é supérflua toda crítica da razão pura”, na qual Kant reforça a diferença entre o princípio lógico (formal) do conhecimento: toda proposição deve ter sua razão e o princípio transcendental (material): toda coisa deve ter sua razão, polemiza, deste modo, contra Eberhardt, que teve intenção de identificar ambos princípios. Schopenhauer adverte que depois de todos os predecessores de Kant comentados, os manuais de lógica elaborados pela escola kantiana, especialmente os de Hofbauer, Maass, Jacob e Kiesewetter, distinguem bastante exatamente a causa e razão de conhecimento. Também os adversários de Kant assinalam a diferença entre causa e razão de conhecimento, a despeito da confusão antecedente denunciada, como fez G. E. Schulze em sua Lógica. Solomon Maimon e F. H. Jacobi também são elencados, o último nas Cartas sobre a Doutrina de Spinoza considera que ainda reina no meio dos filósofos a velha confusão entre razão e causa, fonte de muitas especulações, tal como feito precisamente por Spinoza, ao misturar causa com razão de conhecimento teria alterado o verdadeiro significado, reduzindo especulativamente a causa a uma simples entidade lógica (LIMA, 2006). 2.7 As provas do princípio de razão suficiente Conclui-se, pois, que a maioria dos precursores mencionados confundir causa com razão de conhecimento e os pós-kantianos entram em grandes tergiversações para especular nada esclarecer o verdadeiro significado bem como a utilidade do princípio de razão suficiente. Muitas vezes se intentou em vão provar este princípio, mas é impossível demonstrá-lo (como destinaram os supracitados); de sua demonstração, segue-se o dito de Aristóteles: “buscam, com efeito, uma 23 explicação daquelas coisas das quais não há explicação, pois, o princípio de demonstração não é uma demonstração”. Buscar uma demonstração especial para o princípio de razão suficiente, é um absurdo que acusa falta de reflexão. Com efeito: toda demonstração é a exposição da razão de um juízo enunciado, pelo qual por isto se denomina verdadeiro. Assim, a expressão dessa necessidade de uma razão para todo juízo, é o princípio de razão suficiente. Portanto, quem pede uma demonstração, isto é, a enunciação de uma razão, para o princípio mesmo, o pressupõe como verdadeiro e apoia sua necessidade nesta mesma suposição. Destarte, cai nesse círculo: que se necessita uma demonstração do direito a exigir uma demonstração (SCHOPENHAUER, 1977, p. 38/ G §14)3 Ao recorrer mais uma vez ao filósofo grego (Analíticos posteriores, I, 3),Schopenhauer reitera que buscar uma demonstração do princípio de razão suficiente é absurdo, pois é em si mesmo uma verdade irrefutável, consequentemente, indemonstrável. Destarte, resulta que uma demonstração se baseia na exposição da razão de um juízo mediante o qual este é verdadeiro, é precisamente o princípio de razão suficiente que expressa a exigência de um fundamento para todo juízo, pelo que se estaria pedindo uma demonstração do direito a pedir uma demonstração, o que não tem sentido. 2.8 A raiz do princípio de razão suficiente Todos os fenômenos são nossas representações e enquanto tais são condicionados ou fundamentados através de nossas faculdades de representações. Ser um objeto significa ser apresentado e fundamentado. O princípio de razão é, portanto, responsável pela nossa faculdade de representações e coincide com sua constituição e atividade. Nossa faculdade de representações é a raiz do princípio de razão suficiente: esta é tão diversa quanto aquele. 3 Einen Beweis für den Satz vom Grunde insbesondere zu suchen, ist überdies eine specielle Verkehrtheit, welche von Mangel an Besonnenheit zeugt. Jeder Beweis nämlich ist die Darlegung des Grundes zu einem ausgesprochenen Urtheil, welches eben dadurch das Prädikat wahr erhält. Eben von diesem Erforderniß eines Grundes für jedes Urtheil ist der Satz vom Grunde der Ausdruck. Wer nun einen Beweis, d.i. die Darlegung eines Grundes, für ihn fordert, setzt ihn eben hiedurch schon als wahr voraus, ja, stützt seine Forderung eben auf diese Voraussetzung. Er geräth also in diesen Cirkel, daß er einen Beweis der Berechtigung, einen Beweis zu fordern, fordert (Op., cit.). 24 Agora se mostra quádrupla: daí quádrupla raiz do princípio de razão suficiente; a validade deste último alcança até a área de nossa faculdade de representações e se estende também a todos os objetos, mas apenas esses. De modo a apresentar os objetos, nossa faculdade de representações se divide em quatro classes de objetos para o sujeito, a saber: do que é intuitivamente percebido, conceitualmente pensado, puramente sensível, e o consciente de si mesmo, ou seja, o sujeito como objeto da autoconsciência. Essas são as modalidades que o princípio de razão suficiente deve corresponder (o representado ou o ser-fundamentado). Assim é a τετρακτύς [quadrangular] schopenhaueriana. Nossa consciência que conhece, como sensibilidade (receptividade) externa e interna, entendimento e razão, divide-se em sujeito e objeto e nada mais. Ser objeto para o sujeito, e ser nossa representação é o mesmo. Todas as nossas representações são objetos do sujeito, e todos os objetos do sujeito são nossas representações. Acontece que todas as nossas representações permanecem entre si sob uma determinada ligação singular, e a priori segundo a forma; desse modo, nada de permanente e independente por si mesmo, nada de singular e incoerente pode tornar-se objeto para nós (SCHOPENHAUER, p. 41/ G §16). 25 3 EXPLICAÇÃO GERAL DA PRIMEIRA CLASSE DE REPRESENTAÇÕES A primeira classe de objetos possíveis para o sujeito, radica em nossa faculdade de representações intuitivas, completas e empíricas. Elas são empíricas em contraposição às meramente reflexivas, como são os conceitos abstratos. São completas, conquanto, contenham, segundo a diferenciação de Kant, não só o formal, senão também o material dos fenômenos. Em parte, porque não brotam de uma simples “ilação de pensamentos”; elas têm sua origem no nosso intelecto, e, em parte, de acordo com as leis do espaço do tempo e da causalidade estão unidas neste complexo que forma o mundo (real) empírico. E como esta, segundo o resultado da doutrina kantiana, não anula sua idealidade transcendental. Considera-se aqui, o trato dos elementos formais do conhecimento como representação unidas a matéria. As formas destas representações são a do sentido interno (tempo), e do sentido externo (espaço), como condições apriorísticas (possibilidade da experiência) de perceptibilidade [Wahrnehmbarkeit]. Se apenas o tempo fosse a forma geral destas representações, não haveria então nenhum coexistir, e, portanto, nada persistente, nem nenhuma duração. Pois o tempo é percebido unicamente se está preenchido, e sua continuação somente através da mudança que o preenche. A persistência de um objeto só é conhecida mediante o contraste com outros que existam ao mesmo tempo que este. Mas a representação do coexistir não é possível tão somente no tempo, senão, pela sua outra metade condicionada pela representação do 26 espaço; porque no tempo todas as coisas existem uma após a outra, no espaço, não obstante, uma coisa vem junto a outra, sucessão e simultaneidade, respectivamente: a representação não surge até que se dá essa união entre tempo e espaço. Se por outro lado, o espaço fosse a única forma das representações desta classe não haveria nenhuma mudança: pois mudança, ou variação é sucessão dos estados, e a sucessão só é possível no tempo como foi dito, por isto, pode definir-se o tempo como a possibilidade de determinações distintas da mesma coisa. Vemos, pois, que as duas formas das representações intuitivas, ainda que implicam, como já se sabe, infinita divisibilidade e infinita extensão, se diferenciam fundamentalmente no que é essencial à uma carece absolutamente na outra: o existir uma coisa junto a outra não tem sentido no tempo e o existir uma após a outra, não tem sentido no espaço. As representações empíricas, pertencentes ao complexo regular da realidade, se apresentam, entrementes, em ambas as formas, inclusive, sua ligação íntima é a condição de que nasce delas, de certo modo, como um produto nasce de seus fatores. 3.1 A interconexão do espaço, tempo e causalidade Segundo White (1992) argumenta que os objetos da primeira classe perduram através do tempo enquanto se sujeitam à modificação, e isso seria impossível se somente o tempo ou o espaço fossem a única propriedade formal. Isso acontece porque o objeto perdura e mantém sua identidade ao mesmo tempo em que a mudança está ocorrendo ou incidindo no entorno. Mas o pensamento de uma coisa manter sua identidade através da modificação não é inteligível só em termos temporais. Não há coexistência no tempo, porém, apenas sucessão. É necessário, destarte, acrescentar uma dimensão, esta, é suportada pelo espaço; dado o espaço bem como o tempo, algo pode perdurar até a “metade da mudança”. Sem similares fundamentos, os objetos não teriam materialidade se o espaço enquanto tal fosse a propriedade excludente, então não há modificação, por conseguinte, nem mudança. Enquanto para essas razões o espaço e o tempo são necessários para a existência dos objetos materiais, ainda assim, não suficientes. O espaço e o tempo requerem ligação, se há objetos materiais, e é a faculdade do entendimento que 27 emprega sua forma própria para ligá-los. Essa forma, diz Schopenhauer, é a causalidade ou a matéria, e o que ele significa com isto, é o seguinte. O espaço e o tempo por si mesmos, não são suficientes para dar conta dos objetos materiais; a partir de que, não haveria coisas tais como os objetos perceptíveis no mundo se houvesse só tempo e espaço. Os dois precisam estar preenchidos e, deste modo, é a matéria que os preenche. Schopenhauer também pensa a matéria como pura causalidade, ao afirmar que algo é material, e não uma região pura no espaço e tempo, se apenas houver poderes causais. Em resumo, para uma coisa ser um objeto material, é preciso ser localizável no espaço e simultâneo no tempo, e ser capaz de afetar e ser afetado por outros objetos. Outras qualidades primárias tais como as auferidas pelos sentidos (cores, sons, etc.) são de tipo especial em relação aos poderes causais. Porque a única coisa efetivamente empírica dada na intuição é a ocorrência de uma sensação nos órgãos dos sentidos [Sinnesorgane]. A admissão de que esta sensação, ainda que genericamente, precisa ter uma causa, baseia-se em uma lei que está enraizada na forma de nosso conhecimento, em outras palavras, na função de nosso cérebro. Sua origem é tão subjetiva quanto a sensação em si mesma. A causa da sensação dada é assumida como resultado da lei, que imediatamente se manifesta em nossa concepção como objeto, tendo o espaço e o tempo como formas pelas quais aparece. Mas, também essas em si mesmas têm origem inteiramente subjetiva: elas são modo e maneira de nossa faculdade de intuição. Aquela passagem da sensação para a causa (...) constitui o fundamento da intuição sensível [Sinnesanschauung], é certamente suficiente para indicar a presença de um objeto empírico no espaço e tempo (SCHOPENHAUER, 2014, p. 55/ W II, C. 1). Schopenhauer distingue a causalidade do ponto de vista da idealidade transcendental como estofo [Stoff] do conhecimento intelectual (de entendimento) em contraste, a pura matéria [Materie] que só pode ser abstraída pelo pensamento racional (que forma uma classe distinta de representações que veremos adiante), por sua vez, em termos intercambiáveis, é pura atividade, ou mais precisamente, efetividade [Wirklichkeit];etimologicamente, segundo Barboza (2005), o idioma alemão possui, isso se vê, dois termos para realidade, o de uso corrente ‘Wirklichkeit’ (efetividade ou realidade efetiva) e o de origem latina ‘Realität’. O germânico é mais apropriado justamente porque deriva de ‘wirken’, “fazer-efeito”. Sendo assim, a realidade efetiva é um perpétuo fazer-efeito do sujeito 28 cognoscente. Como a realidade efetiva que nos cerca é obra do intelecto, Schopenhauer prefere designá-la como um produto originado a partir de um efetivar do sujeito. Efetivar significa a causalidade em atividade. O mundo exterior é uma ação efetiva do sujeito sobre os dados por ele auferidos. De modo que a realidade seria mais adequadamente chamada de efetividade. Na verdade, a matéria, cujo maior símbolo é o reino mineral, já é fundamentalmente efetividade, ou pura causalidade. A concretude do mundo, por mais paradoxal que seja, está em nosso cérebro, é um epifenômeno cerebral [Gehirnphänomen]. Por isso podemos afirmar que a teoria do conhecimento de Schopenhauaer é idealista, mas do tipo fisiológico (Idem, 1999). 3.2 O princípio de razão suficiente do devir: a lei da causalidade Nessa classe de objetos para o sujeito o princípio de razão suficiente se apresenta como a lei da causalidade e é denominada enquanto tal: princípio de razão suficiente do devir [principium rationis sufficientis fiendi (Satz von zureichenden Grunde des Werdens)]. Todos os objetos que se oferecem na representação, que constitui o complexo da realidade efetiva [Wirklichkeit], estão vinculados uns com os outros na relação com o começo e o término de seus estados e na direção do curso do tempo, isso se dá pelo seguinte. Se entra um novo estado de um ou vários objetos reais, há de ter-lhes precedido outro, do qual se deriva o novo regularmente, isto é, tantas vezes como existia o primeiro. Mas tal derivação se chama sucessão, e o primeiro estado, a causa, e o segundo, efeito. O princípio de razão suficiente em geral é a expressão dessa forma fundamental enunciada por juízos hipotéticos4, mas situada no mais íntimo de nossa força intuitiva, de um vínculo necessário entre todos os nossos objetos, ou representações. É a forma comum de todas as representações e origina o 4 (...) das Gesetz der Kausalität uns a priori bewußt und daher ein transscendentales, für alle irgend mögliche Erfahrung gültiges, mithin ausnahmsloses ist; da ferner dasselbe feststellt, daß auf einen bestimmt gegebenen, relativ ersten Zustand ein zweiter, ebenfalls bestimmter, nach einer Regel, d.h. jederzeit, folgen muß; so ist das Verhältniß der Ursache zur Wirkung ein nothwendiges: daher berechtigt das Gesetz der Kausalität zu hypothetischen Urtheilen und bewährt sich hiedurch als eine Gestaltung des Satzes vom zureichenden Grunde, auf welchen alle hypothetischen Urtheile sich stützen müssen, und auf welchem, wie weiterhin gezeigt werden soll, alle Nothwendigkeit beruht (Id., ibid., p. 56/ G§ 20). 29 conceito de necessidade, que como tal, não tem outro conteúdo verdadeiro nem justificante como a entrada da sucessão e simultaneidade, podemos alocar a sincronia de eventos como intermédio. Que nesta classe de representações que agora consideramos, donde esse princípio aparece como lei da causalidade, cabe ao mesmo determinar a sucessão temporal como forma especial destas representações. Nas espécies posteriores do princípio, o tempo nos apresentará relação necessária que exige em todas as partes, sob formas muito distintas desse caráter do tempo e, por conseguinte, não parecerão apenas como sucessão, conservando sempre a necessidade de uma vinculação com a identidade. Se por exemplo, um corpo se incendeia, a este estado de ignição deve haver precedido um estado de 1) afinidade com o oxigênio; 2) contato com o oxigênio e 3) uma temperatura determinada. Como no momento em que este estado existia, teve que suceder imediatamente a ignição, e esta não sucedeu até agora, então aquele estado não existiu sempre, senão que teve de entrar em cena neste instante. Esta entrada se chama mudança, por isso, a lei de causalidade se encontra em relação exclusiva com as mudanças, e sempre com elas. Todo efeito, em sua entrada em ação, é uma mudança, precisamente porque não teve lugar antes, supõe um indício infalível de outra mudança precedente que, em relação com esta, se chama causa, e em relação com uma terceira mudança necessariamente precedente a ela, efeito. Esta é a cadeia da causalidade: carece necessariamente de começo. Neste sentido, é absurdo dizer que um objeto é causa de outro; em primeiro lugar porque os objetos não contêm somente a forma e a causalidade, mas também a matéria, e sob o aspecto considerado, não nasce do nada nem desaparece, é sempiterna. Assim, a lei da causalidade se refere única e exclusivamente às alterações de estados sucessivos no tempo, numa terminologia aristotélica, à “geração” e “corrupção”. A lei da causalidade regula a relação a respeito da qual, dado um primeiro estado, se chama causa, o posterior, se chama efeito, que é seu vínculo necessário para o sucesso eventual. É de suma importância, registrarmos firmemente o verdadeiro significado que enunciamos, próprio da lei da causalidade, assim como do campo de sua vigência, reconhecendo com clareza, sobretudo, que esta se refere às mudanças de estados materiais e nada mais. Por conseguinte, ao subministrar as mudanças ocorridas no tempo, dos objetos da 30 experiência exterior, todas essas são materiais, mais exatamente, o estofo, inerente aos fenômenos naturais: toda mudança só pode ter lugar tendo produzida outra que a desloca, por assim dizer, determinada segundo uma regra para o caso, e pela qual é produzida, em seguida, com estrita necessidade. 3.3 As três formas de conhecimento da lei da causalidade Assim, pois, a lei da causalidade, condutora de todas e cada mudança, se apresenta na natureza sob três formas distintas: como causa em sentido estrito, como estímulo e como motivo. Precisamente nesta diversidade se baseia a diferença verdadeira e essencial entre os corpos inorgânicos e orgânicos (vegetais e animais); mas não nas características externas e anatômicas ou inclusive químicas. 1) A causa [Ursache] em sentido estrito, é aquela pela qual exclusivamente ocorrem mudanças no reino inorgânico, isto é, aqueles efeitos que são tema da mecânica física e da química. Nela unicamente tem vigência a terceira lei fundamental de Newton, “ação e reação são iguais entre si”. Significa que o estado primeiro (a causa) experimenta uma mudança, igual em magnitude ao que provocou (efeito). Ademais só nesta forma da causalidade o grau do efeito está sempre exatamente adaptado ao grau da causa, de tal sorte que desta se pode calcular aquela e vice-versa. 2) A segunda forma de causalidade é o estímulo [Reiz]: domina a vida orgânica com tal, vale dizer, da parte vegetativa, inconsciente, da vida animal, que por sua vez, equivale a vida vegetal; se caracteriza pela ausência de traços da primeira forma. Portanto, ação e reação, aqui não são iguais, e de modo algum segue a intensidade do efeito, através de todos os graus, a intensidade da causa, mediante o incremento da causa pode converter-se o efeito inclusive em seu contrário. 3) A terceira forma da causalidade é o motivo [Motiv]: sob essa forma, se dirige a vida do reino animal, das ações extrínsecas, executadas conscientemente pelos seres animais. Os s motivos são meios do conhecimento, para cuja receptividade, se requer um intelecto para se representar. O animal enquanto tal, se move sempre de acordo com um objetivo, para um fim; por conseguinte, algo externo a este. Deve ser apresentado como algo 31 distinto de si mesmo, ainda que o animal não seja cônscio do que lhe impele. Deste modo, com esse conhecimento vem também a necessariamente o móbile propulsor [Triebfedern] dos motivos. Assim, se dirige o movimento por impulsos, a vida vegetal: daqui são inseparáveis a irritabilidade e a sensibilidade. Mas a forma de ação motivada, difere claramente do impulso, sua influência pode ser muito curta, só precisa ser momentânea: pois sua efetividade não guarda, como a do impulso, nenhuma relação com sua duração com a proximidade do objeto, o motivo só precisa ser percebido para se fazer atuar, enquanto que o impulso ou excitação necessita sempre do contato. A diferença entre causa, motivo e estímulo, evidentemente não é a consequência do grau de sensibilidade do ser: quanto maior esta for, tanto mais fácil pode ser o tipo do influxo. Por exemplo, a pedra tem que sofrer algum tipo de choque para se deslocar; o homem obedece ao que lhe chama a atenção, mas ambos são movidos por uma causa suficiente, isto é, com a mesma necessidade; pois a motivação é a causalidade passada pelo crivo do conhecimento, e o intelecto é esse mediador dos motivos, está acima da sensibilidade. Mas por isso, a lei da causalidade não perde nada de sua segurança e rigor: o motivo é uma causa, e atua com a necessidade que todas as outras causas implicam. No animal, cujo intelecto é simples, unicamente transmite o conhecimento do presente, salta aos olhos, facilmente essa necessidade constante que o prende. 3.4 O entendimento: faculdade do conhecimento empírico O entendimento é responsável, por meio de uma função peculiar, por sintetizar essas formas heterogêneas da sensibilidade, de tal sorte que de sua mútua compenetração, e ainda, e ainda, que fique bem compreendido que só para o entendimento, surge a realidade empírica como uma representação “geral” que constitui um complexo, ainda que com limites problemáticos, mantendo unido, mediante as figuras do princípio de razão suficiente, das quais são partes todas as representações individuais pertencentes a esta classe, e no qual ocupam seus lugares determinados, segundo leis estabelecidas por nós a priori; portanto, no que existam ao mesmo tempo incomensuráveis objetos, porque nesse complexo, apesar da impossibilidade do tempo ser detido, persiste a substância, isto é, a matéria, e apesar da rígida imobilidade do espaço, mudam seus estados, enfim, 32 em algumas palavras, concerne ao que existe para nós em todo o mundo real e objetivo. O intelecto do homem é duplo: a parte do conhecimento intuitivo possui o abstrato que não está atado ao presente, tem a razão para intermediar passado e futuro. Por isso o sujeito tem a decisão de escolher com clara consciência, a saber, pode ponderar como tais motivos que mutuamente se excluem, provam sua força de vontade, depois do qual aquele motivo mais forte prepondera e determina sua ação, isso se segue com aquela mesma necessidade que o rolar da bola que recebeu um impulso. Liberdade da vontade significa “um dado homem, em uma dada situação, dispõe-se da possibilidade de duas ações”. Ao nos voltarmos à natureza da faculdade do entendimento [Verstand], Schopenhauer nos diz que o intelecto [Intellekt] (que é sinônimo) através de sua forma única, da causalidade, e daquela subordinada a este, a forma da pura sensibilidade (tempo e espaço), constitui a matéria-prima de algumas sensações dos nossos órgãos sensoriais. Produz o mundo exterior, pois a sensação é, e permanece um processo orgânico, mas limitado em sua qualidade, nesse âmbito que perpassa a superfície da pele. Por isso, nada contém, que não esteja em nós mesmos. Essa relação, é tão sútil que a impressão nos órgãos sensoriais é um influxo, acrescido pela confluência das terminações nervosas, facilmente excitável desde fora, devido às suas finas espessuras. Pode excitar prazer [Lust] como desprazer [Unlust], os quais, expressam uma ligação íntima com a nossa vontade. Assim, apesar desta união das formas do sentido interno e externo, o sujeito, mediante o entendimento, para elaborar a representação da matéria dele, em relação ao mundo exterior persistente, só conhece diretamente através do sentido interior. Quando passa para o sentido exterior, de novo, o objeto volta ao interior e, percebemos nesse, mais uma vez, as percepções daquele; isto é, como o sujeito na relação com a presença imediata das representações em sua consciência, subordina unicamente as condições do tempo, como forma do sentido interno, então só se pode ter presente, por vez, uma representação completa por mais composta que possa ser. Que as representações, nesta medida, sejam diretamente presentes para o entendimento, significando, portanto, que não só são conhecidas pela união do tempo e do espaço, mas, como representação completa da realidade intuitiva, sendo reconhecidas como representações do sentido interno, bem como pelas 33 relações de duas direções separadas deste (passado e futuro) chamado presente. A condição mencionada, exige a presença direta de uma representação desta classe e sua influência causal sobre nossos sentidos, também sobre nosso corpo, que pertence assim mesmo aos objetos desta classe, sobre o qual predomina, sobre sua subordinação, a lei da causalidade. Desta relação contrastante, com sua presença imediata na consciência do sujeito, ao corpo, resta (embora seja representação de um todo da realidade perceptível), em virtude da função do intelecto, algo muito distinto, conquanto, é diretamente presente para a consciência, e podemos chamá-lo de objeto real [reale Objekte]. Observemos que se compreende por isso, a representações intuitiva, vinculada ao complexo da realidade empírica que, em si mesma, permanecerá entendida como ideal, ou seja, como representação do sujeito cognoscente. 3.5 A intelectualidade da intuição empírica A intelectualidade da intuição empírica [Inteleiktualität der empirische Anschauung] ou, simplesmente, entendimento intuitivo, não se serve, em verdade, mais do que de dois sentidos: o tato e a visão. Estes somente subordinam os dados cuja base o intelecto, mediante o processo indicado, faz surgir o mundo objetivo. Os outros três sentidos são principalmente subjetivos, pois são sensações que indicam, em verdade, uma causa externa, mas não recebem quaisquer dados para a determinação de sua relação espacial: trata-se de esmiuçar a construção do espaço. Tato e visão, portanto, têm cada qual sua vantagem, daí que mutuamente se apoiam. A visão não necessita de nenhum contato, nem nenhuma proximidade, seu campo é incomensurável, vai até as estrelas; logo percebe as mais finas matizes da luz, a sombra, as cores, a transparência, provê, pois, ao entendimento uma quantidade de dados sutilmente determinados, dos quais após exercício contínuo, constrói o tamanho, a distância dos corpos e os representa, ato seguido intuitivamente. O tato, pelo contrário, só é suscetível a pressão do contato, mas proporciona dados tão infalíveis e variados que é um sentido fundamental. A visão se refere em última instância ao tato; sim, a visão pode ser considerada com um tato imperfeito, que vai longe, se serve dos raios luminosos 34 como largos tentáculos. Por isto está exposto a muitos enganos, porque está limitado às propriedades transmitidas pela luz de maneira unilateral, enquanto que o tato provê diretamente os dados para o conhecimento do tamanho, da forma, da dureza, brandura, sequidade, umidade, temperatura, etc., e é ajudado em parte pela forma e mobilidade dos braços, mãos e dedos, de cuja posição ao tocar, o entendimento toma para a construção dos corpos; e em parte pela força muscular, mediante a qual conhece o peso, a solidez, a dureza e fragilidade dos corpos, tudo isso, sem a mínima possibilidade de engano. Da resistência sentida o entendimento saca sua conclusão direta e intuitiva de uma causa, que agora, justamente assim, se apresenta como um corpo sólido; e dos movimentos que executam os membros; braços, por exemplo, ao tocar enquanto a sensação das mãos permanece a mesma, constrói a forma cúbica no espaço que conhece a priori. Se não se leva já consigo a representação de uma causa e de um espaço, junto com as leis do mesmo, jamais poderia surgir a imagem de um cubo por esta sensação sucessiva de sua mão. Se se faz correr uma corda pela sua mão fechada, se construirá como causa da fricção, e de sua duração com essa posição da mão, um corpo largo, cilíndrico, que se move uniformemente em sua direção. Mas jamais poderia brotar neste, por essa mera sensação de sua mão, a representação do movimento, isto é, da mudança de lugar no espaço através do tempo, pois algo assim, não pode estar dentro desta, nem jamais pode sozinha produzi-la. É o intelecto antes de toda experiência que tem de levar em si as intuições do espaço, do tempo, portanto, da possibilidade do movimento, e não menos a representação de causalidade, para passar da sensação empiricamente dada a uma causa da mesma e construí-la logo como um corpo em movimento, da forma indicada. A sensação da mão também em posição e contato diferente, é algo demasiado uniforme e pobre de dados como para poder construir desta, a representação do espaço, com suas três dimensões, e da influência de uns corpos sobre outros, junto com as propriedades da extensão, impenetrabilidade, coesão, elasticidade, repouso, movimento, etc., em poucas palavras, a base do mundo objetivo. Tudo isso só é possível ao ser prefigurados no mesmo intelecto, o espaço como forma da intuição, o tempo como forma da mudança, e a lei da causalidade como regulador da entrada das mudanças. 35 Mas se resta na mera sensação o mesmo que qualquer outra no interior do nosso corpo, algo essencialmente subjetivo, cujas mudanças chegam à consciência unicamente na forma do sentido interno, tem relação no tempo, diga- se, sucessivamente. O entendimento é que concebe em virtude de sua função a priori, antes de toda a experiência (pois até então esta não é possível), a sensação dada do corpo como um efeito que, enquanto tal, tem necessariamente uma causa. Em concomitância, é auxiliado pela forma do sentido externo, o espaço, radicado igualmente no intelecto, isto é no cérebro, para trasladar essa causa fora do organismo, é então quando surge precisamente do exterior, de tal sorte que a intuição pura tem que dar a base da empírica. Neste processo o entendimento se ajuda com todos os dados, até com os pormenores da sensação dada, para de acordo com ela, construir sua causa no espaço. Apenas para a operação intuitiva do entendimento por si mesmo, se representa os corpos intuitivos e reais que preenchem o espaço em suas três dimensões, e que logo no tempo, de acordo com a mesma lei da causalidade, se muda e move no espaço. Por conseguinte, é o responsável por nossa diária intuição empírica, portanto, é intelectual. Enfatizamos mais uma vez, para que fique fixado definitivamente, o seguinte: o trabalho do entendimento consiste na compreensão imediata da relação causal. Primeiro como dissemos, entre o próprio corpo e os outros corpos, donde surge a intuição objetiva. Logo o nexo causal entre estes corpos entre si aparece sob as três formas distintas supramencionadas, causa, estímulo e motivo, de acordo com as quais todo o movimento no mundo é pura e simplesmente apreendida pelo intelecto. Se destas três formas as causas são aplicadas no sentido estrito, cria-se a mecânica, a astronomia, a física, a química; se inventa máquinas para o bem e para o mal, mas todas as descobertas se baseiam, em última instância, em uma concepção intuitiva direta da causalidade, pois esta é a função exclusiva da intelectualidade da intuição e não a complicada engrenagem das doze categorias kantianas do entendimento puro. Daqui precisamente que a matéria pura não se possa intuir, senão, somente pensar, é algo pensado e acrescentado a cada realidade como base sua, posto que a lei da causalidade é o puro operar sem uma forma determinada de atuação, não pode dar-se intuitivamente, e por isso não pode ter lugar em nenhuma experiência. Enfim, a matéria não é mais que a correlação do entendimento puro, a saber, a causalidade em geral e nada mais que o 36 conhecimento de causa e efeito. Por sua vez, justo por isso, a causalidade não pode ter nenhuma aplicação na matéria mesma, ou seja, pois esta não surge nem perece, apenas subsiste; pois todas as mudanças acidentais, bem como suas propriedades qualitativas momentâneas, têm origem, duração e término, só possuem aparência em virtude da causalidade, e a matéria em si é a pura causalidade com tal, objetivamente concebida, não pode exercer seu poder em si mesma. Como, ademais, “substância” é idêntica a “matéria”, podemos dizer que a primeira é o influir, o produzir efeito, concebido em abstrato, e que “acidente” é a forma particular de operar, produz o efeito em concreto, esses resultados são auferidos em verdade, pela doutrina do idealismo transcendental. Assim, pois, as sensações do corpo são as que subordinam os dados da experiência para a primeira aplicação da lei causal, da qual nasce a intuição desta classe de objetos, que por conseguinte, tem sua essência e existência somente em virtude da nossa elaboração intelectiva da efetividade real. Portanto, o corpo orgânico é o ponto de partida para a intuição dos demais objetos, isto é, seu mediador, pois ainda que a percepção de suas sensações seja direta, a mesma não se representa, todavia, a si mesma como objeto, senão que tudo se segue sendo subjetivo. Destarte, surge então a intuição dos demais objetos como causas de tais sensações, depois da qual se representa como objetos, mas não este mesmo, pois subordinam a consciência a representações sensoriais. Objetivamente, ressaltamos que o objeto só se conhece indiretamente, ao representar-se como todos os demais objetos, no entendimento ou no cérebro, que é o mesmo, como causa desconhecida de um efeito subjetivamente dado e, por isso, de maneira objetiva. Coisa que só pode ocorrer, atuando as partes sobre os próprios sentidos, isto é, que o olho veja o corpo, que a mão o toque, são dados com os quais o cérebro constrói no espaço, igual a outros objetos segundo sua forma e constituição. A presença direta das representações desta classe na consciência depende, portanto, da posição que recebem na concatenação total das causas e efeitos referentes ao sujeito que conhece cada corpo individual do todo. 37 3. 6 Provas do entendimento intuitivo As três formas inatas do conhecimento, o tempo, o espaço e a causalidade, formam, como acabamos de ver, o princípio da razão. Como o próprio nome diz, esse princípio procura nos acontecimentos a sua razão de ser. Diante de um fenômeno, de um objeto da experiência, é-se levado, mesmo secretamente, a procurar seu fundamento, a sua causa. Nada vem do nada, tudo vem de alguma coisa. Essa procura, depois de sistematizada, dará origens às diversas ciências, como a física, a química, a biologia, a geologia etc. Ora, o ponto de partida para se investigar o fundamento, as etapas que o cérebro percorre antes de possuir as suas imagens é exatamente o corpo humano. Não somos cabeças de anjo aladas, espíritos vaporosos destituídos do corpo, mas possuímos intricadas ramificações nervosas e uma central no crânio que as coordena. Essa central está encarregada de recolher os dados dos sentidos, as diversas sensações e sintetizá-las para a percepção. O entendimento, portanto, ou cérebro (usando o princípio da razão) juntamente com os sentidos (principalmente o tato e a visão – esta como uma espécie de tato para a distância) são imprescindíveis para a finitude humana, porque só por meio deles é que se tem acesso ao conhecimento. “De que adianta um cérebro sem olhos, braços e pernas, ou braços e pernas e olhos sem um cérebro?” O mundo de nada serve para alguém em estado de coma. E mesmo uma pessoa com cérebro, mas sem braços, pernas e visão, possui apenas uma noção confusa do mundo. É preciso, portanto (no caso dos seres humanos, pelo menos), 38 uma cabeça acoplada ao corpo, em constante colaboração com este, para então se ter de fato um mundo, isto é, objetos, representações do sujeito. Segundo Schopenhauer, o nosso corpo é um objeto imediato [unmittelbare Objekt], vale dizer, é um conjunto de sensações. Ele é o ponto de partida para todo conhecimento porque fornece, pela causalidade, os primeiros dados para o entendimento, que, igual a um artesão com os seus materiais, trabalha e constrói os objetos, pois as sensações nuas e cruas, sem as formas inatas do conhecimento para lhes aplicar, são cegas, nada significam. Uma mera sensação dos sentidos nada diz de si, é uma mensagem pobre enviada pela experiência, mensagem vazia se abandonada a si mesma. É o “artesão entendimento” que, com suas antenas, os sentidos, recebe os sinais externos e os decodifica. Ao fim, a consciência, funcionando igual a uma tela de televisão, é preenchida por imagens. De fato, para Schopenhauer, uma mera sensação dos sentidos, anterior ao complexo trabalho intelectual, é apenas uma alteração abaixo da pele, um simples sentimento destituído de objetividade. Se fôssemos trazidos ao mundo só com a capacidade de receber sensações, porém sem o entendimento para transformá-las em imagens, então com certeza não conseguiríamos ver nada. Seríamos como uma televisão sem antena. O trabalho de confecção das representações, das aparências é automático, inconsciente, sem intervenção calculada do indivíduo. É um processo tão natural quanto a secreção biliar ou a digestão estomacal. Um trabalho que chega a bom tempo quando percebemos nitidamente o objeto. Ora, a percepção nítida significa a obtenção do resultado final selado de todo aquele processo de construção das coisas, quando o entendimento se serve da causalidade, considera a sensação que lhe foi fornecida como um efeito e, a partir dela, auxiliado pelo tempo, sai à procura da sua causa e, ao chegar nela, serve-se do espaço e situa: mas agora a causa é um objeto, ou seja, uma imagem construída e presente na consciência. Eis por que se pode dizer que o objeto, para Schopenhauer, é uma “conclusão do entendimento”, vale dizer, é aquela complexa atividade no cérebro de um animal -ao fim da qual se tem uma imagem. O mundo externo, numa palavra, é minha representação, não passa de uma atividade no interior da cabeça; se esta fosse cortada, o mundo desapareceria. A realidade exterior é intelectual. Parecido ao personagem mítico Atlas, que sustentava o mundo nas costas, assim é cada homem, que carrega 39 sozinho em sua cabeça o mundo inteiro. Bastaria um único sujeito para construir o universo. Se Robinson Crusoé tivesse nascido e desaparecido solitário em sua ilha, esta teria nascido e desaparecido com ele, pois não há sujeito (Robinson Crusoé) sem objeto (sua ilha) e vice-versa. Essa é a lei maior da representação, que, para Schopenhauer, deve ser o marco inaugural conceitual de qualquer concepção filosófica genuína. Não há objeto sem sujeito nem sujeito sem objeto. Ser-objeto significa ser conhecido por um sujeito. Ser-sujeito significa ter um objeto. Mais concretamente: ser cérebro significa ter objetos para conhecer; e ser-objeto significa ser conhecido por um cérebro. Schopenhauer recolhe uma série de exemplos para ilustrar como as três formas do princípio da razão de fato estão destinadas aos objetos, fazendo o entendimento trabalhar com sensações que lhe são fornecidas via corpo humano, para em seguida obter toda a diversidade das representações da realidade. Eis algumas provas, segundo o filósofo: A) A visão endireita os objetos, embora os recebemos de modo invertido. Caso a visão se restringisse ao sentir, os objetos ficariam de ponta-cabeça, porque foi assim que os sentimos num primeiro instante. Só que, imediatamente após os sentirmos, o entendimento aplica a sua lei causal, e refere, por intermédio do tempo, o efeito à sua causa e, quando lá chega, aplica mais uma de suas formas a priori, o espaço, quando então a causa, ao ser condicionada, exterioriza-se como um objeto específico, uma figura corretamente situada em determinado lugar – embora, em princípio, ela tenha sido sentida de ponta-cabeça; B) Se colocarmos a cabeça por entre as pernas, o mundo não fica invertido, porque o entendimento trabalha automaticamente as sensações que originariam as intuições invertidas e as coloca corretamente posicionais, e; C) Possuímos dois olhos, cada um recebendo por si mesmo diversas sensações. Ora, nós não vemos dois mundos paralelos, e sim um mundo único, porque o entendimento unifica as duas orientações diferentes dos olhos, impedindo a sua duplicação. Há ainda um curioso caso citado pelo filósofo, sempre com o propósito de provar a intelectualidade da intuição empírica, ou seja, o mundo que nos cerca é 40 uma “conclusão do entendimento” a partir das premissas (dados prévios) fornecidas pela sensibilidade. Relata o caso de um indivíduo cego que recobrou a visão. Quando, pela primeira vez, olhou para o seu quarto, não conseguiu diferenciar nada, tendo uma impressão total compactada, como se fosse uma única coisa. Tomou- como uma superfície multicolorida, sem conseguir separar os objetos que lá estavam, nem situá-los um ao lado do outro, ou acima, ou abaixo, atrás e a frente, à direita e à esquerda. O tato, que no período da cegueira fora um sentido imprescindível, auxiliando-o a posicionar as coisas, depois de recobrada a visão, era curiosamente usado para tentar tocá-las a distância. Os objetos pareciam-lhe estar bem perto, tentava apalpar tudo com a mão. Quer dizer, isso provaria que o mundo não é dado de fora já feito, mas há a necessidade, para o percebermos, de toda uma prévia engenharia intelectual de construção das coisas. Por outras palavras, o entendimento daquele individuo, antes cego, mas que agora vê, num primeiro instante trabalhou com os novos dados que lhe chegavam, tirou conclusões, para então surgir-lhe um mundo situado no espaço, no tempo e na causalidade. Apenas com a passagem dos instantes, com o trabalho por etapas do cérebro é que esse indivíduo pôde ver, corretamente as coisas que o cercavam. Numa palavra, as representações, as aparências, os fenômenos não se dão prontamente para os olhos, mas só após o princípio de razão executar a tarefa de conferir figuração aos dados sensórios. Por isso a intuição empírica pode ser dita intelectual e o mundo está contido na cabeça do sujeito. Em outro caso, de curtos anedótico, Schopenhauer relata que um cego, ao recobrar a visão pensou num primeiro instante que os homens fossem cabras. Depois, com a experiência da construção das representações, percebeu que eram seus semelhantes (BARBOZA, 1999). 3. 7 A intelecção apriorística da lei da causalidade 41 A lei da causalidade nos é conhecida a priori, e por isso é transcendental, no sentido atribuído por Kant, é válida para toda experiência possível, sem exceção; e posto que, ademais, afirma que a um estado concretamente dado, relativamente primeiro, tem que seguir outro segundo, também concreto, segundo uma regra, isto é, fazendo da relação de causa e efeito, universalmente, sempre necessária. Por isso a lei de causalidade dá direito aos juízos hipotéticos, e se confirma assim como uma forma do princípio de razão suficiente, no qual tem de apoiar-se todos os juízos hipotéticos e também toda necessidade. A forma especial do nosso princípio de razão suficiente do devir, se dá porque sua aplicação pressupõe sempre uma mudança, a entrada da modificação de um novo estado substancial da matéria, isto é, o devir: a seu caráter essencial pertence que a causa precede o efeito sempre no tempo, e só assim se conhecerá qual dos dois estados unificados pelo nexo causal é a causa, e qual é o efeito. Da lei de causalidade resultam dois corolários importantes, recebem assim sua confirmação como cognição apriorística acima de qualquer dúvida e sem exceção. São as leis da inércia e da persistência da substância. A primeira diz que todo estado tanto o repouso de um corpo como seu movimento têm que permanecer invariável, sem redução nem aumento, continuamente e inclusive através do tempo infinito, se não intervêm uma causa que o mude ou anule. A outra, todavia, que anuncia a eternidade da matéria, vem do postulado que lei da causalidade só se refere aos estados dos corpos, isto é, seu repouso, movimento, forma e qualidade, ao preceder o nascimento e a desaparição temporal dos mesmos. Mas de nenhum modo concerne a existência do portador destes estados, o qual se tem denominado, enquanto tal, precisamente para expressar sua extensão imutável de toda a origem e desaparecimento o nome de substância, (ou seja, a substância é sempre necessária, enquanto as mudanças, são acidentais), pois justamente por ela não nascer nem perecer, não pode aumentar nem diminuir. A lei de causalidade é a única forma sob a qual podem pensar-se em geral, sempre as mudanças dos corpos, e de modo algum ao portador de todos os estados, a matéria. Por isso, apenas por consideração foi estabelecido a lei da persistência da substância como corolário da causalidade, também, podemos a posteriori (isto é, pela experiência) ganhar esta convicção, da persistência da substância. Em parte, porque na maioria dos casos, é impossível comprovar 42 empiricamente o estado de coisas, parcialmente, porque todo o conhecimento empírico adquirido só pela indução tem tão somente uma certeza aproximada, precária. Por isso também a seguridade de nossa convicção. Isso se deve ao fato que esse princípio expressa um conhecimento transcendental, isso é, um que determina e fixa antes de toda experiência, rebaixando o mundo empírico a um mero fenômeno cerebral. Inclusive a lei mais geral e precisa de todas, a da gravidade, é de origem empírica e, portanto, sem garantia para sua generalidade. Dois entes ficam excluídos da cadeia infinita de causas e efeitos que introduz todas as mudanças, mas que nunca se estende mais além deles: por um lado como já dissemos, a matéria, e pelo outro, as forças originárias da natureza. Aquela porque é portadora de todas as mudanças, ou é aquilo em que ocorrem; estas porque que fazem ocorrer as mudanças, em virtude das quais são possíveis os efeitos, aquilo que dá pela primeira vez às causas a causalidade, isto é, a capacidade de atuar efetivamente. Causa e efeito, são assim as modificações vinculadas em sucessão necessária no tempo; as forças naturais, todavia, estão excluídas de toda mudança, por isso, existem em todas as partes, são onipresentes e inesgotáveis, estão sempre dispostas a manifestar-se tão pronto como o fio condutor do nexo causal quando se apresenta a ocasião. A causa é sempre, como igualmente seu efeito, algo individual, a força natural, pelo contrário, é algo geral, invariável, portanto, a força natural deve seu aparecimento no encadeamento de causas, mas não se sujeita a elas, não se confunde ambas. 43 3. 8 A refutação da demonstração acerca da aprioridade do conceito de causalidade dada por Kant De acordo com a apresentação dos argumentos contidos no §23, Schopenhauer se dedica a refutar a demonstração kantiana da aprioridade da lei de causalidade, permitindo-nos compreender significativamente a diferença específica entre ambas concepções. A exposição da validade universal da lei de causalidade para toda a experiência possível, sua limitação e, portanto, sua aprioridade necessária, é um objeto capital da Crítica da razão pura. Sendo no essencial, assim como o próprio filósofo cita (Kant apud SCHOPENHAUER, p. 101/ G §23)5. 5 »Die zu aller empirischen Kenntniß nöthige Synthesis des Mannigfaltigen durch die Einbildungskraft giebt Succession, aber noch keine bestimmte: d.h. sie läßt unbestimmt, welcher von zwei wahrgenommenen Zuständen, nicht nur in meiner Einbildungskraft, sondern im Objekt, vorausgehe. Bestimmte Ordnung aber dieser Succession, durch welche allein das Wahrgenommene Erfahrung wird, d.h. zu objektiv gültigen Urtheilen berechtigt, kommt erst hinein durch den reinen Verstandesbegriff von Ursache und Wirkung. Also ist der Grundsatz des Kausalverhältnisses Bedingung der Möglichkeit der Erfahrung, und als solche uns a priori gegeben«. No texto original de Schopenhauer, a remissão nos leva a primeira edição da KrV, onde se encontra a passagem exata da referida prova fornecida por Kant, nela lemos: “A prova deste princípio assenta unicamente nos momentos seguintes: todo o conhecimento empírico requer a síntese do diverso pela imaginação, a qual é sempre sucessiva; isto é, as representações sempre nela se sucedem umas às outras. A seqüência, porém, não é de modo algum determinada na imaginação, quanto à ordem (quanto ao que deva preceder e quanto ao que deva seguir) e a série das representações sucessivas tanto pode ser considerada de trás para diante como de diante para trás. Sendo, porém, esta síntese uma síntese da apreensão (do diverso de um fenômeno dado), então a ordem é determinada no objeto ou, falando mais exatamente, há aí uma ordem da síntese sucessiva, que determina um objeto, segundo a qual algo deve necessariamente preceder e, uma vez posto este algo, outra coisa seguir-se necessariamente. Portanto, para que a minha percepção contenha o conhecimento de um sucesso, ou seja, quando algo acontece realmente, tem de ser um juízo empírico, no qual se pensa que a sucessão seja determinada, isto é, que pressuponha I no tempo outro fenômeno, a que sucede, necessariamente ou segundo uma regra. Caso contrário, se, posto o antecedente, o sucesso se lhe não seguisse necessariamente, teria que considerá-lo apenas como um jogo subjetivo da minha imaginação e se, no entanto, o representasse como algo de objetivo, teria que lhe chamar mero sonho. A relação dos fenômenos (enquanto percepções possíveis), segundo a qual o conseqüente (o que acontece) é determinado no tempo, quanto à existência, necessariamente, por qualquer antecedente, e segundo uma regra, por conseguinte, a relação de causa e efeito, é a condição da validade objetiva dos nossos juízos empíricos, no referente à série das percepções, portanto, da verdade empírica das mesmas e, consequentemente, é condição da experiência. O princípio da relação causal na sucessão dos fenômenos é também válido, portanto, anteriormente a todos os objetos da experiência (submetidos às condições da sucessão), porque ele próprio é o fundamento da possibilidade dessa experiência [Der Beweisgrund dieses Satzes aber beruht lediglich auf folgenden Momenten. Zu aller empirischen Erkentniß gehört die Synthesis des Mannigfaltigen durch die Einbildungskraft, die iederzeit successiv ist, d. i. die Vorstellungen folgen in ihr iederzeit auf einander. Die Folge aber ist in der Einbildungskraft der Ordnung nach (was vorgehen und was folgen müsse) gar nicht bestimt, und die Reihe der einen der folgenden Vorstellungen kan eben sowol rückwerts als vorwerts genommen werden. Ist aber diese Synthesis eine Synthesis der Apprehension (des Mannigfaltigen einer gegebenen Erscheinung), so ist die Ordnung im Obiect bestimt, oder, genauer zu reden, es ist darin eine Ordnung der successiven Synthesis, die ein Obiect bestimt, nach welcher etwas 44 Na segunda analogia da experiência, Kant defende que é pela lei da causalidade que conhecemos a objetividade da sucessão das representações, dado que é por isso que a sucessão das representações é conforme a sucessão dos objetos reais. Porém, minha percepção da sucessão de dos fenômenos não é objetiva, e por isso permanece indeterminada, pois posso arbitrariamente inverter a ordem de dita sucessão dos fenômenos. Assim Kant apresenta uma casa cujas partes ele pode apreender na ordem e sucessão de seu arbítrio, por exemplo, de cima a baixo ou vice-versa, sendo por isso, a sucessão de sua determinação, meramente subjetiva. Em contrapartida, é narrada episodicamente a percepção de um barco descendo pelo rio, e que ele o percebe descendo sucessivamente pelo rio, primeiro mais acima, e depois mais abaixo e, então, a determinação da sucessão é objetiva, pois ele não pode alterar essa sucessão. Entretanto, ele determina a série subjetiva de sua apreensão da série do fenômeno, a qual chama de acontecimentos (LIMA, 2006). Em uma posição contrária a de Kant, Schopenhauer considera que ambos os casos são acontecimentos, pois são idênticos. O que existe é uma mudança da posição dos objetos reais, isto é, uma mutação dos corpos entre si. Mas o conhecimento é tão objetivo é tão objetivo em um caso como o é no outro. No caso da casa, o corpo do observador, mais especificamente, seu olho, varia sucessivamente em relação às partes do outro corpo, que é a casa. E no segundo caso, um corpo (o barco) varia de posição em relação a outro corpo (o rio). A única diferença em ambos os casos é que um deles a modificação se dá no corpo do próprio observador. As sensações deste corpo são a origem de suas percepções, sendo ele um objeto semelhante aos outros objetos que coexistem no espaço e nothwendig vorausgehen, und wenn dieses gesezt ist, das andre nothwendig folgen müsse. Soll also meine Wahrnehmung die Erkentniß einer Begebenheit enthalten, da nemlich etwas wirklich geschieht, so muß sie ein empirisch Urtheil seyn, in welchem man sich denkt, daß die Folge bestimt sey, d. i. daß sie eine andere Erscheinung der Zeit nach voraussetze, worauf sie nothwendig, oder nach einer Regel folgt. Widrigenfals, wenn ich das vorhergehende setze, und die Begebenheit folgte nicht darauf nothwendig, so würde ich sie nur für ein subiectives Spiel meiner Einbildungen halten müssen, und stellete ich mir darunter doch etwas obiectives vor, sie einen blossen Traum nennen. Also ist das Verhältniß der Erscheinungen, (als möglicher Wahrnehmungen) nach welchem das Nachfolgende (was geschieht) durch etwas vorhergehendes seinem Daseyn nach nothwendig, und nach einer Regel in der Zeit bestimt ist, mithin das Verhältniß der Ursache zur Wirkung die Bedingung der obiectiven Gültigkeit unserer empirischen Urtheile, in Ansehung der Reihe der Wahrnehmungen, mithin der empirischen Wahrheit derselben, und also der Erfahrung. Der Grundsatz des Caussalverhältnisses in der Folge der Erscheinungen gilt daher auch vor allen Gegenständen der Erfahrung, (unter den Bedingungen der Succeßion) weil er selbst der Grund der Möglichkeit einer solchen Erfahrung ist (A 201-202/ B246-247). . 45 no tempo e, por conseguinte, sujeito às formas apriorísticas que residem no interior do intelecto. Nos dois casos referidos o conhecimento do sujeito cognoscente (o observador) é objetivo, pois concerne às modificações dos objetos reais. Em ambos os casos a ordem de sucessão das modificações poderia inverter-se, se o sujeito (por exemplo) tivesse força assaz para empurrar o barco no sentido contrário. Vemos então como Schopenhauer rejeita completamente a demonstração dada por Kant da aprioridade da lei da causalidade, segundo a qual, é isso que determina a ordem da sucessão de objetos reais; deixa indeterminada a objetividade da ordem da sucessão de representações, porque é subjetiva e deve ser determinada em concordância com a causalidade estabelecida. Pelo contrário, para Schopenhauer, o observador conhece as mutações da posição dos corpos entrepostos, e segundo ele, é um evento tanto o caso da casa, em que a relação está na mira do observador e nas partes da casa, como no caso do barco, em que a relação está entre o barco e o rio. Nos mencionados casos, é um estado (efeito) que aparece e o observador passa do efeito para sua causa devido a operação processada pelo entendimento e, portanto, uma modificação de uma sensação subjetiva em uma intuição objetiva. No caso da casa, é tanto um acontecimento o movimento do olhar na direção do telhado ao sótão, como é o movimento do olhar na direção do sótão ao telhado, assim como também é o rumo que o barco segue. Não há diferença quanto a isso. O que Kant não deu conta, e aqui reside seu equívoco, é que seu corpo é um objeto entre os objetos, e que por isso a sucessão das impressões produzidas em seu corpo por outros objetos é a que determina a sucessão de suas intuições empíricas, e não a causalidade ou o seu arbítrio. A sucessão de suas intuições empíricas é consequência objetiva, dá entre os objetos e independente do arbítrio subjetivo, e sem que estes tenham que possuir um enlace causal entre si. Por exemplo, um sujeito sai de casa e logo na sequência lhe cai um galho de árvore sobre a cabeça. Entre a saída da casa e a queda do galho, não há nenhuma relação causal, apesar de podermos apreender e determinar objetivamente essa sucessão, ainda que não subjetivamente pelo arbítrio, porque se assim fosse, poderíamos inverter a sucessão. A sucessão de acontecimentos que não tem nenhuma relação entre si se chama contingência 46 [Zufall], por sua vez, nos remete a coincidência [Zusammentreffen, Zusammenfallen], "ir de encontro" a causas desconexas 6. Com efeito, na apreensão determino as sucessões dos fenômenos de forma objetiva, sem que entre eles tenha de existir necessariamente nexo causal, porque essa sucessão pode ser simplesmente consequência de uma causalidade. Para Schopenhauer, Kant foi errôneo ao ter afirmado que a objetividade da sucessão dos fenômenos deve ser mediada pela causalidade, para ele é um erro tão saliente que qualquer um teria dado conta, e só pôde tê-lo asseverado por sua imersão na parte apriorística do conhecimento. Finalmente, Schopenhauer defende que a única demonstração correta da aprioridade da lei de causalidade é, em suma, a seguinte: os objetos reais que constituem em seu conjunto a realidade empírica estão intimamente ligados entre si pela causalidade, e são por isso, determináveis a priori enquanto a forma, dado que é esta a que muda sucessivamente através do tempo, e isso carece de um começo. Por sua vez, a matéria permanece em si mesma imutável, sendo a portadora de todas as modificações aparentes. Sua essência é puramente fazer- efeito [Wirken]; disso se desdobra que ela se refere exclusivamente aos objetos, mas jamais aos objetos em si mesmos. 3. 9 Algumas considerações sobre o idealismo transcendental Remetendo-nos à ‘Crítica da filosofia kantiana’ [Kritik der kantischen Philosophie] (apêndice d’O mundo como vontade representação) em circunscrições fulcrais ao longo da segunda edição do tratado sobre o princípio de razão suficiente (desde a versão primeira, ou seja, a dissertação inaugural), surgem as primeiras objeções, e que, da primeira para a segunda edição, o âmago da crítica de Schopenhauer, permanece, em sua essência, inalterada, principalmente no que diz respeito às concentradas investidas contra a categoria kantiana de causalidade. Todavia, não pretendemos nos fixarmos ou ir a fundo no que está exposto na seção acima. Procurar-se-á então, deslindar três momentos, a saber, o primeiro, de adesão aos princípios fundamentais, admitindo os méritos e a 6 Id., ibid., p. 53. 47 importância das descobertas de Kant para com a Meta