FABIOLA COLOMBANI LUENGO A VIGILÂNCIA PUNITIVA: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância ASSIS 2009 FABIOLA COLOMBANI LUENGO A VIGILÂNCIA PUNITIVA: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis –UNESP– Universidade Estadual Paulista, para obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade). Orientadora: Drª. Elizabeth Piemonte Constantino. ASSIS 2009 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Luengo, Fabiola Colombani L948v A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância / Fabiola Colom- bani Luengo. Assis, 2009 120 f. : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Elizabeth Piemonte Constantino 1. Psicologia infantil . 2. Disciplina escolar. 3. Educação de crianças. 4. Psicotrópicos. I. Título. CDD 155.4 371.5 615.78 Dedico este trabalho Aos meus pais, Efrain Eduardo Colombani Bolívar (in memorian) e Ivone Lopes de Colombani, pelo amor e pela pessoa que hoje sou. AGRADECIMENTOS A Deus, pela vida concedida, pela luz que me mantêm serena e pela força dada todas as manhãs. À Prof. Dra. Elizabeth Piemonte Constantino, minha querida orientadora, pela confiança depositada em mim, pela orientação tão dedicada e minuciosa, pela paciência, pela humildade, pelo carinho em meus momentos difíceis e pela liberdade teórica que ela me concedeu. Aprendi muito com ela. Aos membros da banca, Prof. Dr. Carlos Rodrigues Ladeia e o Prof. Dr. Manoel Antônio dos Santos, pelas valiosas contribuições dadas no exame de qualificação e por aceitarem acompanhar a concretização deste trabalho. Ao meu pai Efrain (in memorian), que sempre foi um grande amigo e companheiro de todas as horas. Sinto sua presença a todo instante e ainda ouço suas palavras que só me fortalecem. Desde criança tínhamos ricos diálogos e em cada fase da minha vida ele soube me convidar a profundas reflexões... Dedico esta dissertação a ele que foi um médico “higienista”, porém, indignava-se em ver crianças sendo rotuladas, e a cada escola que ia mostrava-se contra os laudos e os diagnósticos médicos que segundo ele, era uma cruel sentença que uma vez dada à criança, a acompanharia por toda sua vida escolar. À minha mãe Ivone, uma mulher guerreira que sempre me apoiou e esteve ao meu lado nos momentos mais difíceis, pessoa de luz, abençoada por Deus que me dá força com sua alegria, sua energia e a sua plena dedicação, sem ela seria impossível este mestrado. Aos meus irmãos: Efrain Dario, Efrén e Franklin e à minha cunhada Rose, que mesmo distantes fisicamente, sempre demonstraram interesse por minhas pesquisas e me apoiaram, contribuindo com várias idéias. Ao meu filho Brunno, por sua presença em minha vida, por compreender as minhas ausências, por me dar a oportunidade de viver outra infância, desta vez ao seu lado. Obrigada meu menino de luz, meu tesouro mais valioso. Ao Alonso, por ser muito mais que um amigo, por compartilhar comigo momentos de profundas reflexões, pelo apoio nos momentos de angústia e pela presença nos muitos momentos de felicidade. Obrigada pela força de todos os dias, pelo incentivo e pelas palavras de carinho. Ao Francisco, pela presença num momento tão especial em que este sonho que hoje é realidade, ainda era uma semente. À minha amiga Viviani, que com a sua amizade tão sincera sempre esteve comigo nas diversas fases desta caminhada. Às primas Marta e Letycia pela torcida e pela presença tão significativa no dia da defesa. Aos queridos professores da pós-graduação, Prof. Dr José Luiz Guimarães (in memoriam), Prof. Dra.Olga Ceciliato Mattioli, Prof. Dra. Elisabeth da Silva Gelli e Prof. Dr. Jose Antônio Castorina, pelas disciplinas oferecidas em que cursei todas como aluna especial. Obrigada pelos ricos momentos de reflexão, fundamentais para o desenvolvimento deste trabalho. Aos amigos Flávia, Tatiane, Carolina, Daniele, Milena, Manoela, Francy, Noemi, Guilherme, José Roberto, Luciana, Sofia, Claudia e André, pelos encontros, pelas trocas e pela amizade que foi construída. Aos funcionários da pós-graduação, pela paciência, pela dedicação aos serviços prestados, pelas inúmeras orientações que foram dadas e por compartilhar comigo bons momentos no ano de 2008 em que fui uma das representantes discente da pós. Aos educadores que participaram da pesquisa, pela colaboração ao fornecer os dados de forma tão cordial. Às crianças da escola em que trabalho, pois a cada dia aprendo algo com elas e sem elas não haveria sentido esta pesquisa. A todos que de uma forma ou de outra participaram desta trajetória tão importante em minha vida... ...OS MEUS SINCEROS AGRADECIMENTOS. [...] Não tenho outra maneira de superar a quotidianeidade alienante senão através de minha práxis histórica em si mesma social e não individual. Somente na medida em que assumo totalmente minha responsabilidade no jogo desta tensão dramática é que me faço uma presença consciente no mundo. Como tal, não posso aceitar ser mero espectador, mas pelo contrário, devo buscar o meu lugar, o mais humilde, o mais mínimo que seja, no processo de transformação do mundo [...] Paulo Freire Ser criança é ser arte sem ser quadro. Um balanço sem criança Um rosto sem sorriso Uma escola sem risada Recreio sem correria É como palco de circo sem palhaçada Assim a vida fica sem graça Parece tudo certinho Os bancos todos enfileiradinhos Mas sem nenhuma criança na praça A escola é como a vida, lugar de encontro... Estudar, aprender, ensinar e respeitar Respeitar as diferenças Pois ser diferente não é ter doenças Os dedos da mão não são iguais E nem os adultos são os únicos normais A infância é curta e passageira Então que seja de liberdade Isso não é tirar os limites É dizer à criança que ela tem capacidade Pra isso não precisa de remédio O que ela precisa mesmo é de uma vida sem tédio Sendo assim... O balanço precisa de criança O rosto precisa de sorriso Como a vida precisa de esperança. Fabiola Colombani Luengo LUENGO, Fabiola Colombani. A VIGILÂNCIA PUNITIVA: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância. 120 f. 2009. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis SP, 2009. RESUMO O transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e a indisciplina são na atualidade assuntos que aparecem com forte incidência no cotidiano escolar. O contexto analisado foi de uma escola municipal de educação infantil e atualmente, algumas condutas apresentadas pelas crianças, são vistas como indicativos de tal transtorno e isso vem contribuindo para que crianças ainda muito pequenas sejam encaminhadas pelos educadores aos profissionais da saúde, por apresentarem na escola comportamentos considerados indisciplinados, agitados e impulsivos. A presente pesquisa tem como principal objetivo, discutir a relação entre indisciplina e o diagnóstico de TDAH, a partir da queixa do professor da educação infantil. Pretende ainda, analisar a postura dos educadores diante do processo de patologização no campo educacional, levando em conta a sociedade eugênica e disciplinar, que foi consolidada com o processo de higienização ocorrido no início do século XX, como também, construir uma reflexão crítica acerca das práticas sociais e educativas que ora se configuram, mediante a análise da educação contemporânea e do resgate histórico da escolarização no Brasil. A pesquisa se caracteriza como um estudo de caso qualitativo e as estratégias metodológicas empregadas para a coleta de dados incluíram a observação participante, entrevistas semi-estruturadas, diário de campo e análise de documentos. Os resultados foram organizados em oito eixos temáticos e indicaram principalmente que a educação infantil, mesmo com os avanços que já foram alcançados, pós Constituição de 1988, vem demonstrando um trabalho centralizador, pelo qual o professor culpabiliza o aluno pelo fracasso, atribuindo-lhe rótulos estigmatizantes, que o apontam como indisciplinado e incapaz, de forma a enquadrá-lo num lugar de exclusão, sem considerar o seu modo de ser. Além disso, exige que os alunos se adaptem a ritmos escolares intensos, submetendo-os às práticas de imposição e aceleramento criando um modelo de aluno normal e disciplinado, ou seja, isso passa a fazer com que esse molde imposto pela escola, venha classificar os comportamentos da criança, havendo previamente um padrão considerado normal e outro desviante, porém, os educadores apresentam dificuldades para estabelecer diferenças entre indisciplina e o TDAH e o que é normal e patológico, o que tem causado o aumento expressivo no número de encaminhamentos de crianças aos profissionais de saúde e a conseqüente patologização e medicalização da infância. Palavras-chave: Indisciplina – TDAH – Patologização - Medicalização Escolar- Educação Infantil LUENGO, Fabiola Colombani. PUNITIVE SURVEILLANCE: the attitude of educators in the process of pathological and medicalization of childhood.120 f. 2009. Dissertação (Mestrado em psicologia) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis SP, 2009. ABSTRACT The Attention deficit hyperactivity disorder (ADHD) and disruptive behaviors are issues that appear with a strong focus on school routine nowadays. A public school´s kindergarten was analyzed as a context and currently certain behaviors presented by children are seen as indicative of this disorder and that has contributed to sending very young children to health professionals by their teachers for presenting behaviors that are considered disruptive, restless and impulsive in the school. It is the main objective of the present research to discuss the relationship between discipline and the diagnosis of ADHD, depending on the complaint of kindergarten´s teacher. It also intends to analyze the attitude of educators about the pathological process in the educational field, taking into account the eugenic society and discipline, which was consolidated with the process of sanitation during the beginning of the twentieth century, and also to build a critical analysis of social and educational practices that are configured nowadays through the analysis of contemporary education and the historical review of schooling in Brazil. The research is characterized as a qualitative case study and the methodological strategies employed for data collection included participant observation, semi-structured field diary and document analysis. The results were organized into eight thematic areas and mostly indicated that early childhood education, even with the advances that have been reached after the 1988 Constitution, has demonstrated a centralized work, in which the teacher blames the students for failure, giving them stigmatizing labels that point them as undisciplined and incapable in order to frame them in a place of exclusion, without caring about their way of being. Besides, the students are required to adapt themselves to an intense school year, being submitted to an accelerated and imposing practice creating a disciplined and normal pupil, in other words that mold imposed by the school is used to classify the children´s behaviors having a previously standard model considered normal and another one which is considered deviant, yet educators have difficulties to distinguish some disruptive behaviors and ADHD and what is normal and abnormal, which has caused the significant increase in the number of children´s referrals to health professionals and the consequent pathological and medicalization of childhood. Keywords: Disruptive behavior - ADHD - pathological - School Medicalization – kindergarten. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.........................................................................................13 CAPÍTULO I - A HISTÓRIA DA HIGIENIZAÇÃO NO BRASIL: O CONTROLE, A EUGENIA E A ORDEM SOCIAL COMO JUSTIFICATIVA...................................................................................................................18 CAPÍTULO II - DISCIPLINA/INDISCIPLINA: EDUCAÇÃO INFANTIL, ESPAÇO DE LIBERDADE OU DE MODELAMENTO?.......................................37 CAPÍTULO III - PATOLOGIZAÇÃO E MEDICALIZAÇÃO INFANTIL: A VIGILÂNCIA PUNITIVA...........................................................................................47 CAPÍTULO IV–ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS E PROCEDIMENTOS..64 CAPÍTULO V – ANÁLISE DOS DADOS E INTERPRETAÇÕES........................70 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................99 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................104 ANEXO A....................................................................................................................112 ANEXO B....................................................................................................................114 ANEXO C....................................................................................................................117 APRESENTAÇÃO APRESENTAÇÃO A relação entre indisciplina e o TDAH (Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade) tem sido muito discutida, atualmente, e se apresenta, corriqueiramente, no âmbito escolar. Porém, ainda gera muitas controvérsias, pois há os profissionais que concordam com sua existência e os que discordam, alegando insuficiência de comprovações científicas. O interesse na escolha do tema deste trabalho surgiu a partir de acontecimentos vividos ainda na infância, em que foi possível convivermos com a medicina higienista na escola, tanto pela sujeição à higienização – na condição de alunas - quanto por compartilhar, de forma bastante próxima com médicos que demonstravam inquietações, críticas e discordâncias com relação a essa prática. Sob influência destas vivências, somadas à atuação profissional, ocorrida em lugar propício, estas interpelações já latentes contribuíram para a consolidação desta prática investigativa. A atuação como psicóloga educacional, teve início após contratação municipal a pedido da Secretaria da Educação, ocorrida em virtude de uma solicitação da escola por um profissional que pudesse desenvolver um trabalho com crianças ditas “indisciplinadas”, pois os educadores tinham a expectativa de que o psicólogo contratado colaboraria, avaliando, diagnosticando e posteriormente tratando toda e qualquer criança que apresentasse comportamentos considerados desviantes. Desde o início, pudemos observar que a instituição tinha como hábito encaminhar crianças ao serviço de saúde quando apresentavam qualquer comportamento considerado pelos educadores como anormal e patológico. Ao tomarmos conhecimento da situação, verificamos que havia um grande número de crianças encaminhadas por queixa escolar naquele ano, inclusive crianças muito pequenas, as quais se encontravam em tratamentos psicoterápicos e medicamentosos, sendo acompanhadas por diversos profissionais, como psicólogos, neurologistas, psiquiatras, neuropsicólogos, psicopedagogos e afins. Nas cartas de encaminhamento, a queixa principal era sempre a mesma, ou seja, essas crianças eram consideradas pelos professores agitadas e indisciplinadas. A partir daquele momento, o assunto se tornou extremamente relevante para nós e embora nesta pesquisa não haja a pretensão de resolver tal problema, temos o dever de lutar por esta causa, pois é visível aos nossos olhos que a problematização de tal tema se faz urgente e necessária e tais discussões devem ser levadas para fora dos muros acadêmicos, a fim de que a sociedade possa se beneficiar de nossas descobertas e constatações científicas. A Patologização escolar, segundo Collares e Moysés (1986, p. 10), “consiste na busca de causas e soluções médicas, a nível organicista e individual, para problemas de origem eminentemente social”. Essa questão sempre esteve muito presente na instituição escola de diversas formas, o que foi determinando o contexto educacional. Atualmente, tal fato se manifesta pelos diversos transtornos que são relacionados à infância, em especial o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) que, em tempos passados, recebia o nome de Disfunção Cerebral Mínima (DCM). O TDAH pelo DSM IV1 ou Transtornos Hipercinéticos é segundo a CID 102 , na atualidade, o transtorno com maior freqüência de encaminhamentos de crianças a centros especializados de neurologia pediátrica. Também é considerado pelos especialistas como um transtorno mental crônico, o qual evolui ao longo da vida e segundo eles, a criança passa a manifestar logo na educação infantil. Com isso, crianças têm sido diagnosticadas e medicadas cada vez mais cedo. Porém, não há, segundo os próprios neurologistas, comprovação por exames, do diagnóstico de tal transtorno. ... podemos afirmar que até hoje, cem anos depois de terem sido aventados pela primeira vez por um oftalmologista inglês, os distúrbios neurológicos não tiveram suas existências comprovadas, é uma longa trajetória de mitos, estórias criadas, fatos reais que são perdidos/omitidos... Trata-se de uma pretensa doença neurológica jamais comprovada; inexistem critérios diagnósticos claros e precisos como exige a própria ciência neurológica; o conceito é vago demais, abrangente demais... (MOYSÉS e COLLARES, 1994, p. 29). No âmbito escolar, o TDAH surge como justificativa para a repetência e o fracasso. Crianças que apresentam comportamentos que não correspondem ao esperado ou desejado pelos professores, são vistos como portadores de tal transtorno. Os pais, influenciados pelas queixas dos educadores, passam a procurar por ajuda médica e 1 DSM IV- American Psychiatric Association - Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais. 2 CID 10- Classificação Internacional de Doenças,Organização Mundial de Saúde (1993). psicológica com o intuito de sanar tais comportamentos considerados anormais, o que acarreta na medicalização, que surge como principal meio de “solucionar” o problema. Este trabalho procura caminhar, a partir de uma visão crítica, desvencilhando-se completamente de uma visão organicista, biologizante e individualista que à luz da teoria foucaultiana, vem tratar o problema sob uma ótica histórica e social refletindo a disciplina e seus mecanismos institucionalizadores de poder. Nesse sentido, temos como objetivos principais discutir a relação entre indisciplina e o diagnóstico de TDAH, a partir da queixa do professor da educação infantil. Pretendemos ainda, analisar a postura dos educadores diante do processo de patologização no campo educacional, levando em conta a sociedade eugênica e disciplinar, que foi consolidada com a higienização no início do século XX, como também, construir uma reflexão crítica das práticas sociais e educativas que ora se configuram, mediante a análise da educação contemporânea e do resgate histórico da escolarização no Brasil. Estes objetivos se fazem pertinentes frente à hipótese de que, com o intuito de alfabetizar, a Educação Infantil sempre foi um ambiente disciplinador, pois nasceu de uma educação compensatória que não tinha como principal objetivo, um ambiente que correspondesse ao caráter livre, criativo e comunicativo desejável para a infância; levando os educadores a confundir o que é normal e o que é patológico. Neste impasse, os educadores não possuem uma concepção de criança ativa, produtora de seus desejos, autônoma e com direitos de expressar seus pensamentos. Assim, muitos dos comportamentos manifestos pelas crianças são vistos como indisciplinados e agitados, fazendo com que essas crianças sejam vistas como “hiperativas”. Essa visão, consequentemente, acarreta no encaminhamento aos profissionais da saúde e posteriormente aos longos tratamentos terapêuticos e medicamentosos. Nessa perspectiva, a partir do levantamento das questões na pesquisa de campo, os capítulos foram construídos, segundo a organização seguinte. O primeiro capítulo – “A história da higienização no Brasil: o controle, a eugenia e a ordem social como justificativa”-apresenta de forma breve, a história da infância, no qual procuramos apontar os momentos em que a higienização foi se configurando e ganhando espaço no âmbito escolar. A importância deste capítulo consiste em localizar historicamente, a questão do controle e do disciplinamento, que se fez tão presente nas práticas eugênicas e higienistas, com o objetivo de alcançar a ordem social. O segundo capítulo – “Disciplina/indisciplina: educação infantil, espaço de liberdade ou de modelamento?” - buscou refletir sobre os conceitos de disciplina/ indisciplina e seus mecanismos de poder, sinalizando alguns acontecimentos históricos, transpondo-os para os dias atuais. Este é um tema de suma importância nesta pesquisa, pois o consideramos como um dos pilares que sustentam a medicalização escolar. O terceiro capítulo – “Patologização e medicalização infantil: a vigilância punitiva” - teve o intuito de instigar ainda mais a preocupação com o ato de patologizar e medicalizar a infância, como também, trazer dados sobre o TDAH e a indústria farmacológica no Brasil. O quarto capítulo – “Estratégias metodológicas e procedimentos” – procura evidenciar o caminho percorrido metodologicamente, explicitando os instrumentos que foram utilizados para a construção desta pesquisa. O quinto capítulo – “Análise dos dados e interpretações” – apresenta os dados analisados coletados para análise, divididos em quatro instrumentos de pesquisa: observação participante, análise de documentos, roteiro de entrevista e diário de campo, que foram organizados em 08 (oito) eixos, sendo eles: Rotina, Religiosidade, Patologização e Medicalização, Relação professor-aluno, Apostila, Indisciplina (atitudes tomadas), Controle e disciplinamento e Encaminhamentos de alunos/Diagnósticos. Vemos, por fim, uma forma de trazer à tona questões presentes no cotidiano escolar e que se perpetuam a partir de uma prática estigmatizante, rotulando a criança no crivo da anormalidade, o que pode levar, como conseqüência, à medicalização. CAPÍTULO I A HISTÓRIA DA HIGIENIZAÇÃO NO BRASIL: O CONTROLE, A EUGENIA E A ORDEM SOCIAL COMO JUSTIFICATIVA CAPÍTULO I - A HISTÓRIA DA HIGIENIZAÇÃO NO BRASIL: O CONTROLE, A EUGENIA E A ORDEM SOCIAL COMO JUSTIFICATIVA “Apropriar-se dos conhecimentos produzidos pelos avanços das ciências naturais para justificar a higiene psíquica e moral, como propunham os higienistas, ou a depuração da raça como uma forma de abreviar a seleção dos mais fortes sobre os mais fracos, como propunham os eugenistas, é, a nosso entender, no mínimo um contra senso.” BOARINI, 2003, p. 41 No Brasil, a história da educação começa a delinear contornos próprios e significativos entre o final do século XIX e início do século XX, influenciada ainda pelos resíduos europeus de uma educação voltada aos cuidados médico-assistencialistas que, marcada pelo período pós Primeira Guerra, teve como grande preocupação, iniciar programas que atendessem também aos órfãos, com o objetivo de diminuir a mortalidade infantil. Kuhlmann Júnior (2001) aponta o surgimento das instituições educativas infantis como conseqüência de articulações de interesses jurídicos, empresariais, políticos, médicos, pedagógicos e religiosos, em torno de três influências básicas: a jurídico-policial, a médico-higienista e a religiosa. Porém, para que possamos traçar o cenário em que estas questões foram constituídas no Brasil, é preciso visualizar uma linha do tempo que nos permita refletir sobre elas, procurando compreender o contexto das relações sociais e levando em consideração as influências recebidas por importantes períodos da história. O Brasil Colônia, foi um período muito significativo, que deu origem a diversas questões que serão apontadas neste trabalho. Neste período, os casamentos aconteciam a partir de interesses econômicos e sociais, embora muitas vezes nascessem filhos de relacionamentos indesejados, sem aceitação social como, por exemplo, filhos de escravas com seus senhores ou filhos de casais que mantinham relacionamento escondido da família, o que, inevitavelmente, causava o abandono de crianças indesejadas em portas de igrejas e casas, como também um grande número de infanticídios e maus tratos, o que veio a calhar com a necessidade da implantação das Casas de Roda3, igualmente conhecida por Rodas dos Expostos, Casa dos Enjeitados, Casas de Misericórdia ou Casa dos Expostos, vários nomes para uma única instituição que tinha como objetivo caritativo-assistencial recolher as crianças abandonadas. O nome Roda foi dado à instituição, porque a criança era depositada num cilindro oco de madeira que girava em torno de um grande eixo, construído em muros de igrejas ou hospitais de caridade. Ao ser colocado, o “exposto” era entregue passando para o lado de dentro da instituição, sem nenhuma identificação, o que evitava que o depositário e o recebedor fossem reconhecidos. Kishimoto4 traz um registro histórico, no qual podemos verificar a existência de um regulamento específico destinado a estas casas: (...) O regulamento dos expostos, aprovado em sessão de 13 de setembro de 1874, especifica como obrigação da misericórdia a criação do exposto pelo tempo de um ano e meio de sua amamentação e por mais cinco anos e meio, ou seja, um total de sete anos. Após o que cessa a obrigatoriedade do cuidado com essas crianças que são devolvidas a pais ou parentes, doados a interessados, ou ainda, enviados ao juizado de órfãos. (PARECER DA COMISSÃO ESPECIAL, 1874, apud KISHIMOTO, 1988, p.48). As Casas de Roda tornaram-se então, um grande depósito de crianças enjeitadas. Segundo (COSTA, 1989, p.164), essas casas foram fundadas e se mantiveram com o intuito de proteger a honra da família colonial e a vida da infância. Porém, houve um abuso por parte de homens e mulheres que passaram a ver a Roda como uma alternativa para encobrir suas transgressões sexuais, ou seja, estavam certos de que poderiam esconder os filhos ilegítimos ou rejeitados num local onde seriam bem tratados, sem prejuízo da própria imagem. Com isso, a Roda incitava a libertinagem, o que desembocou numa super população de crianças abandonadas, que chegavam muitas vezes à beira da morte, num lugar no qual obtinham precária atenção. Este foi um marco na história social da criança abandonada, tanto na Europa quanto no Brasil, que sempre recebeu forte influência européia, até mesmo por toda dependência política sofrida. Por conta da necessidade, surgiu um novo tipo de trabalho para as mulheres que buscavam uma forma de sustento, ser ama-de-leite das crianças abandonadas na roda. As amas-de-leite mercenárias, como eram chamadas, amamentavam sem nenhum 3 Esta instituição foi criada em 1738 por Romão Mattos Duarte,com o objetivo caritativo-assistencial de recolher as crianças abandonadas. 4 A obra original não foi utilizada, pois não se sabe o nome do livro, visto que na referência não consta. comprometimento nem higiene e muito menos afeto, o que acarretava morte prematura de muitas crianças. No século XVII e mais intensamente no século XVIII - século das luzes - houve grandes mudanças em relação à criança. Foi o período no qual começou a surgir uma nova visão de infância, até mesmo na forma de vesti-las, que até então era muito semelhante à do adulto. Este período recebeu forte influência de um marcante acontecimento histórico, o surgimento da tipografia5 - no século XV - pois como diz Postman (1999), foi nesse período que a infância passou a ser identificada, embora ainda sem reconhecimento, pois até então poucas pessoas eram alfabetizadas e não havia parâmetro entre a infância e a fase adulta, visto que todos pareciam ter o mesmo nível de absorção e intelectualidade. Com a chegada da imprensa aumentou a necessidade da alfabetização, porém, acreditava-se que somente o adulto era capaz de aprender, pois a criança ainda não era dotada de razão. Desta forma, havia um marco de passagem entre a infância (ser sem razão e sem cultura) e a fase adulta (ser com razão e capaz de aprender). Nesta perspectiva, arriscamos dizer que a noção de infância passou a ser determinada não somente por fatores biológicos, mas também, por fatores histórico-sociais. Se até então a criança não tinha importância social, como descreve Ariès (1981) em sua obra clássica a História Social da Criança e da Família, a partir do século XVII começa a existir por parte da família um interesse pelo desenvolvimento físico- emocional dos filhos, que os começa a tratar de maneira mais individualizada. Essa percepção fez surgir uma preocupação em separar o mundo infantil do mundo adulto, fazendo surgir, assim, a necessidade de escolas com o intuito de alfabetizar, para que a humanidade saísse das “trevas da ignorância”. Desta forma, a escola passou a ser o lugar da infância e a criança deixou de aprender somente com a convivência adulta. Entretanto, a escola ainda era vista como uma espécie de quarentena, na qual a criança permanecia isolada antes de ser solta ao mundo. Começou então, um longo processo de enclausuramento das crianças (assim como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização (ÁRIES, 1981, p.11). 5 Um maior aprofundamento dessas idéias pode ser encontrado na obra de POSTMAN, N. O Desaparecimento da Infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999. Ainda no século XVII, a razão passou a ocupar o lugar da emoção e das crenças religiosas, comportamento que fez abrir caminhos para inúmeras descobertas. A criança deixou de ser vista pela família como um adulto em miniatura ou ser incompleto, sem importância no seio familiar - um enfant - que quer dizer ‘não falante’ (sem direito à fala). Mais tarde, no século XVIII a criança começa a ser entendida como ser humano em processo de formação e desenvolvimento, que necessitava de cuidados específicos. Ao olhar a criança de outra forma, a sociedade passou a se preocupar mais com a saúde e o bem-estar infantil, pensando na importância em cuidar dos primeiros anos de vida, de modo a garantir a sua sobrevivência, preparando-a para um bom desenvolvimento físico e moral. Mesmo assim, a mortalidade infantil apresentava elevados índices e a Igreja teve que intensificar ainda mais a assistência caritativa. Influenciada pelas idéias iluministas do século XVIII, a Igreja juntou-se com o Estado e criaram a assistência filantrópica. Com a sociedade cristã e o Estado, mobilizados para contribuir com os cuidados em relação à infância, as famílias passaram a ser culpabilizadas, dando origem à idéia de Eugenia6. Ou seja, era necessário encontrar o “erro” na humanidade e, com isso, procurar aperfeiçoar a espécie humana, corrigindo e eliminando os defeitos. As medidas de restabelecimento da ordem começaram então a ser tomadas. Embora já houvesse novas preocupações sobre os problemas sociais, essas idéias ainda eram orientadas pelas leis de uma sociedade colonial em que a ordem, a justiça e todo o sistema punitivo eram controlados pelas ordenações monárquicas, o que muitas vezes acarretava em punições violentas, que em nada contribuíam para o progresso da sociedade. Pelo contrário, as barbáries fizeram com que a população citadina adentrasse o século XIX sem grandes avanços. Partia-se do pressuposto de que a pobreza e a promiscuidade andavam juntas e que causavam a desordem social, responsável pelo alto índice de abandono infantil e consequentemente da mortalidade precoce, ainda na primeira infância. Frente a esta questão, Costa (1989) nos oferece dados sobre o panorama legal e punitivo da Colônia, relatando as duas instituições que construíram técnicas de controle eficientes para os indivíduos: a Igreja, através da pedagogia jesuíta, e o exército. Porém, a pedagogia jesuíta foi evitada e combatida pela Coroa Portuguesa, pois contrariava a estratégia do Governo ao pressupor o desenvolvimento da instrução e da escolarização. A velha 6 Termo usado por Francis Galton a partir de 1883. Evolucionista, matemático e fisiologista ele se dedicou aos estudos da hereditariedade, com o intuito de melhorar as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente. ordem colonial resistia à inovação, para que o controle partisse somente dos interesses do Governo, uma vez que a educação jesuíta propunha o controle por meio de normas geradas a partir dos interesses da cristandade. Esses obstáculos só foram transpostos no século XIX, com o grande movimento de internação de crianças coordenado pela pedagogia leiga e a higiene médica. Com esse movimento, o Estado começou a entender que a força da lei não era suficiente para produzir indivíduos submissos. Era necessário estatizá-los para que tivessem a convicção da importância que o Estado tinha na preservação da saúde, bem-estar e progresso da população. Neste momento, as técnicas disciplinares saem do ostracismo colonial e começam a ocupar o primeiro plano da cena político-urbana (COSTA, 1989, p.57). Resulta desse processo a necessidade da intervenção da escola para combater a desordem social. A instituição foi criada para receber o povo, mestiços e os degenerados socialmente, o que a princípio afastou as crianças das classes mais abastadas, pois além de contarem com uma educação domiciliar, ainda seus pais temiam que sofressem influências negativas das crianças consideradas moralmente afetadas, por pertencerem às classes e raças “inferiores”. Costa (ibid.) também aponta que neste período, os jesuítas passaram a interatuar no sistema educacional, o que fez com que a educação se transformasse num aparelho disciplinar eficiente. Analisando a história, podemos perceber claramente que o aparelho disciplinar jesuítico foi para os colégios e que o dispositivo militar foi para as cidades. As técnicas de adestramento eram as mesmas, como também o culto ao corpo, que demonstrava a sanidade mental do indivíduo demonstrando, assim que o ser capaz era o ser sadio, que dispunha de cuidados extremamente rigorosos com o corpo, inclusive na alimentação. O pensamento higienista seria então, uma das formas disciplinares que surgiram com o objetivo de reestruturar o núcleo familiar, mas isso só ocorre através do poder médico que se insere na política de transformação do coletivo, para compensar as deficiências da lei e entrar no espaço da norma. No casamento higienista deveriam existir três princípios básicos: o status social, uma boa saúde física e uma boa formação moral. Estes “pré-requisitos” para uma boa união atenderiam o objetivo principal da ordem higienista-médica, para possibilitar condições de produzir uma norma familiar capaz de formar cidadãos domesticados, higienizados e individualizados, que se tornariam aptos a colaborar com o progresso da cidade, do Estado. Enfim, da Pátria. Pensou-se a escola como o local apropriado que pudesse dar continuidade à ordem social. A ética e os valores ordenavam às condutas no convívio social, modelando o indivíduo para que sua vida privada e familiar seguisse atrelada aos anseios políticos de uma determinada classe social, a burguesia. É mais fácil visualizar este processo, quando se analisam os resultados alcançados pela educação higiênica, que embora tenha sido focalizada em um corpo individualizado, influenciou e manipulou tanto política como economicamente a vida social. Mas estes resultados foram obtidos por meio do controle moral, mediante o qual se ensinava que a boa educação estaria nas condutas civilizadas e no autocontrole. Essas condutas seriam conquistadas através da violência punitiva dos castigos físicos, o que produziu uma crescente tendência à culpa, fazendo com que o sujeito tivesse um autocontrole opressivo sobre si. Para Boarini (2003), a educação higiênica veio disposta a refinar e a racionalizar a primitiva sociedade colonial, gerando um processo de hierarquização social da inteligência e das boas maneiras. Instalou-se a idéia de que ser culto era superior ao ser inculto. Estabeleceu-se a razão como principio fundamental para orientar a vida das pessoas, a fim de que se pudesse alcançar o progresso. Aos poucos, houve uma evolução higiênica da família, aumentando a disciplina, a vigilância e a repressão, que se estenderam também ao âmbito da educação. Os higienistas acreditavam que se o controle do corpo fosse feito desde a infância, as condutas na fase adulta já estariam condizentes com o ideal desejado, segundo as normas higiênicas, isto é, uma criança bem fiscalizada seria o perfeito adulto higiênico. Porém, essas condutas não propiciavam o desenvolvimento da conscientização no sentido de levar os indivíduos a mudarem suas visões de mundo. A ação das normas educativo-terapêuticas sempre emanou de forma despolitizada, individualizante, reduzindo o indivíduo a um mero produto de seu intimismo psicológico, sem levar em consideração às próprias necessidades socioemocionais. Esse quadro passou por uma grande modificação, quando as epidemias, as febres, os focos de infecção e a contaminação da água passaram a ser o infortúnio da administração colonial, que até então não se preocupava com saneamento básico. A população era destruída por ocasião dos surtos epidêmicos que causavam, nos períodos mais críticos, grande taxa de mortalidade. Tal administração culpava a sociedade, pois sem um planejamento e uma burocracia adequada, transmitiam a responsabilidade à população, ou seja, o povo deveria dar conta de controlar as epidemias através de suas práticas higiênicas. Segundo Costa (ibid.), em 1808, com a chegada da Corte ao Brasil, houve várias modificações, pois além da família Real, várias figuras estrangeiras importantes como também a “nata” da sociedade brasileira e dos profissionais da área diplomática se concentraram, aumentando a população do Rio de Janeiro. A pressão da população e as exigências higiênicas da elite movimentaram a necessidade de mudança, o que fez com que os profissionais da área médica fossem mais solicitados. Entre as grandes conquistas da superioridade médica, está a técnica de higienização das populações. Na Colônia, a conduta anti-higiênica da população impedia o progresso. Com o aumento de habitantes nas cidades, foi necessário pensar numa forma eficiente de bloqueio higiênico para que as epidemias fossem aos poucos substituídas por uma melhor qualidade de vida. É obvio que controlar as doenças, traria como conseqüência a diminuição de mortes o que em qualquer aspecto significaria avanços positivos para a população. Entretanto, economicamente e burocraticamente a administração imperial ainda não contava com uma organização capaz de conseguir tal controle sem a ajuda de fiscais, o que acabou por delegar poderes às pessoas que viriam a atuar como auxiliares dos profissionais da área médica. Esses auxiliares recebiam o nome de Almotacés. Eles operavam e fiscalizavam essa área, como diz Costa (ibid.), com caráter vigilante de ação ligada à justiça, a qual atuava no universo de punição que caracterizava todos como se fossem marginais. Essa fiscalização era descontínua, fragmentar. Não prevenia nem conscientizava - no âmbito social -, o que a tornava uma vigilância constantemente punitiva, que estigmatizava e reprimia por meio de procedimentos institucionalmente legais, propiciando o que chamamos hoje de abuso de poder, o qual se dava através de tais condutas e de um olhar hierárquico. Se antes os cuidados infantis se reduziam à assistência caritativa, a partir daquele momento passou a ter outro valor. Com a necessidade da alfabetização e da entrada do homem no mundo da razão, a escola passou a ser espaço primordial da infância e seria lá o lugar mais apropriado para a medicina influenciar o comportamento de cada aluno, imprimindo ali o seu poder, visto que a família estaria distante daquelas ações e ainda seria diretamente “beneficiada” com a modificação das condutas infantis. Desta forma, os higienistas passaram a pensar que, ao invés de castigar os cidadãos, deveriam prevenir pensando no adulto de amanhã, construindo seres sujeitáveis e submissos. A família passou a ser abordada, com a justificativa de que a submissão às novas leis de conduta possibilitaria a sobrevivência da prole, o prolongamento da saúde e a felicidade do corpo. Deixá-los vulneráveis os tornaria aliados, o que facilitaria numa maior influência sobre suas crianças. Dessa forma, fica evidenciada a preocupação em estabelecer parâmetros, que pudessem orientar as práticas higiênicas com o apoio da família. Entretanto aqueles que não tinham família não contavam com a supervisão médica, mas sim com a vigilância policial, por intermédio da qual muitas vezes eram encaminhados às prisões e aos asilos. Nesse intenso desejo de progresso, a higienização da família foi uma das propostas pensadas para contribuir com o desenvolvimento urbano, tanto é que foi mais perceptível à ação higiênica nos grandes centros. A medicina se voltou para esse fim, embora devamos deixar bem claro que nem todos os médicos se interessaram por essa prática médica higienista, mas os que abraçaram a causa se propuseram a modificar os hábitos através do disciplinamento, partindo de um ideal de comportamento, onde todo e qualquer indivíduo que não obedecesse às normas era considerado fora do padrão desejado. A família, mesmo dentro de uma posição senhorial, estava sendo dominada lentamente, tomada por pequenos poderes que eram representados por agentes do Estado, responsáveis pela divisão dos padrões de comportamento social em legais e normativos, buscando a universalização de novos valores, principalmente o de acreditar na supervalorização do Estado em relação à família, regulando os indivíduos para que se adaptassem à ordem imposta pelo poder, não apenas para abolir as condutas inaceitáveis, mas também para incorporar as novas práticas e sentimentos. A medicina começou a atuar mais próxima das pessoas, segundo uma prática filantrópico-assistencialista que invadia a vida privada sem que configurasse um ato de desrespeito. Com isso, os indivíduos acabaram permanecendo cegos, inertes e envolvidos pelo domínio estatal. Em 1829-1830 houve uma ascensão significativa desse poder, pela qual a higiene médica obteve o seu reconhecimento público, impondo-se junto ao poder central como elemento essencial à proteção da saúde pública. Desenvolvendo uma nova moral da vida e do corpo, a medicina contornou as vicissitudes da lei, classificando as condutas lesa-Estado como antinaturais e anormais. Todo trabalho de persuasão higiênica desenvolvido no século XIX vai ser montado sobre a idéia de que a saúde e a prosperidade da família dependem de sua sujeição ao Estado (COSTA, 1989, p.63). Segundo o autor, podemos dizer que a higiene, a princípio, parece cuidar da moral e dos bons costumes da vida privada e pública dos indivíduos, mas na verdade o maior alvo da higiene sempre foi a família, ao passar a idéia de que era necessário um cuidado científico para que ela pudesse se adaptar à urbanização e cuidar dos filhos, pois os pais eram vistos como incapazes visto que erravam por ignorância e a família acabava por descobrir no saber higiênico a prova de sua incompetência que os higienistas faziam questão de apontar. Desta forma, a medicina passou a ser recebida e internalizada pela família que pode reconhecê-la como padrão regulador dos comportamentos, brecando toda e qualquer conduta que se desviasse do padrão desejado pelos higienistas. Se o objetivo principal do Estado era combater os maus hábitos entre os adultos, isso só ocorria com a intenção de que a criança fosse influenciada com hábitos saudáveis, pensando sempre no adulto do amanhã que contribuiria para o progresso. A família passou então a ser moldada segundo o código médico e a casa converteu-se em local constante de vigilância de saúde, controle de doenças e de militância moral. Um modelo de regulação disciplinar foi sendo desenhado e construído progressivamente, invadindo a forma de funcionamento familiar e pouco a pouco foi se configurando o conceito de família “perfeita”, a família nuclear, na qual o filho era sadio e respeitador, a mãe amorosa e dedicada ao lar e o pai responsável pelo sustento da casa. Ao estabelecer um parâmetro de sociedade e família organizada, a disciplina idealizada pelo Estado pode passar a agir de forma mais significativa e constante, combatendo a imoralidade, os corpos insanos e as atitudes corrompidas. Embora os pensamentos teológicos ainda se encontrassem fortes, lentamente a ciência foi conquistando território e sendo assimilada pela sociedade como uma forma de progresso e solução à saída da sociedade de várias situações de caos. Foucault em sua obra Vigiar e Punir (2008) faz uma discussão singular sobre a ação da disciplina como reguladora dos instrumentos normalizadores, a qual favoreceu a docilidade com que a família se sujeitou à higiene, o que acabou desencadeando uma nova constituição social. A higiene, representada por cientistas da área médica, chegou exercendo um papel de suposto saber que, tomado de pleno poder, recebeu licença para adentrar o seio familiar e consequentemente influenciar o funcionamento de outras áreas que até então não faziam parte da competência médica, como por exemplo, a educação. A disciplina para Foucault tem ligação direta com o poder, pois segundo ele o poder é a ação das forças em detrimento de algo ou de alguém que exerce fragilidade ou submissão em relação ao outro. O olhar hierárquico, que estigmatiza e reprime o que não é aceitável, tem como objetivo disciplinar o corpo dócil - termo usado por Foucault - que está adjacente a uma época clássica em que houve a descoberta do corpo como um alvo de poder. Os higienistas se utilizaram, em suas investidas, de um corpo que pode ser manipulado, modelado, treinado, que obedece e corresponde aos desejos dos detentores do poder que neste caso, está caracterizado na figura médica. (...) O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”,está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros,não simplesmente para que façam o que se quer,mas para que operem como se quer,com as técnicas,segundo a rapidez e a eficácia que se determina.A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,corpos “dóceis”.A disciplina aumenta as forças do corpo(em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência).(FOUCAULT,2008,p.119). O autor então elucida que o disciplinamento veio não só para moldar a forma de organização familiar, como também, para cobrir de domínio através da norma, todo o corpo social que ao ser vigiado e manipulado “lubrificava” toda engrenagem, tornando- se a vigilância um operador econômico determinante, na medida em que o poder disciplinar influencia na produtividade social. Com o Iluminismo, as preocupações com a infância se intensificaram e se centraram na idéia de transformar a criança em “homem dotado de razão”, sempre com o objetivo de torná-la produtiva. Mas é no século XIX que a escola passa a ser o local por excelência da educação e da aprendizagem das crianças, havendo os disciplinamentos impostos pela instituição, com o intuito de constituir sujeitos eugênicos e capazes, que dêem conta de uma nova forma econômica que surgia naquele momento - a industrialização. Já durante todo o século XIX e início do século XX, percebe-se todos os resíduos cristalizados de uma sociedade eugênica e higiênica, que passa a ter como suporte social, verdades construídas ainda no Brasil Colônia. Várias iniciativas, nesta época demonstram uma concepção assistencial que proveniente de inúmeras leis, acaba por influenciar as condutas jurídicas, sanitárias e educacionais, tendo sido denominada de período assistencial científico. Assim, As primeiras décadas do século XX, no Brasil, foram marcadas por um amplo debate em torno da reconstrução da identidade nacional, em meio à constatação de um quadro sanitário-educacional extremamente precário, tanto em zonas urbanas quanto em zonas rurais. Desencadeou-se um verdadeiro movimento pela saúde e saneamento do Brasil, marcado pela presença da doença como o grande obstáculo a ser superado, articulada fortemente com os temas da natureza, do clima, da raça, dentre outros (in BOARINI, 2003, p. 45). Desta forma, a infância passou a ser mais valorizada, sendo alvo de cuidados específicos por meio de um controle assíduo. Se esse “controle” do corpo tinha como principal objetivo obter uma infância protegida e higienizada, para que houvesse a defesa da sociedade, pensando a criança como o “adulto do amanhã”, só o tinha para que esse “adulto do amanhã” viesse a ser um aparelho social eficiente, isto é, um cidadão que viesse a contribuir para o avanço de sua nação com suas práticas progressistas e salubres. A escola se tornou o lugar apropriado para cultivar os bons hábitos na infância, cujo objetivo seria buscar a harmonização do corpo e do espírito com o alcance da disciplina. Surge no ano de 1846, a primeira escola infantil pública do Brasil, denominada Caetano de Campos, freqüentada por crianças pertencentes às classes mais abastadas. Isso significa afirmar que se a escola primeiramente veio a surgir com o intuito de “cuidar” das crianças pobres, consideradas cidadãos em estado de risco, mais tarde veio a atender outra clientela, desta vez sem o intuito de proclamar a ordem e modelar para o progresso, mas para manter e cultivar a disciplina que já havia sido adquirida no seio familiar. Kuhlmann (2001) relata a principal preocupação da educação infantil naquela época: A preocupação com a formação dos bons hábitos, do cultivo da docilidade, estava presente no jardim. As crianças eram alvos da constante intervenção e vigilância dos adultos; a educação moral, voltada para a disciplina, a obediência, a polidez, era o núcleo da formação, mesmo que no interior de um ambiente pedagógico bastante rico e diversificado. Para ensinar a moral não se valia da coerção, mas de modelos normativos, da aprendizagem de rituais para inserção social e dos exemplos de atitudes que são passados no próprio momento do ensino como, por exemplo, no momento de escolher e contar uma história (p.159). Além da preocupação com a saúde e a higiene, que visava o controle das normas pelo disciplinamento do indivíduo, houve também todo um discurso eugênico que se criou na ciência médica, com o intuito de dar uma efetiva atenção à raça. Esta era uma questão de suma importância para os médicos, que tinham a raça como responsável pelo progresso ou detrimento social. A eugenia funcionou como um princípio de racionalidade e em todo o processo de transição que o Brasil colônia sofria. Entendia-se que as raças menos abastadas deveriam ser afastadas das outras para que pudesse ocorrer o crescimento sociointelectual da nação. Enfim, a eugenia infiltrou-se como um dispositivo que contribuía tanto com o disciplinamento da máquina7 quanto com a depuração da raça. A idéia do branqueamento da raça acompanhou a justificativa de que o negro estava intimamente ligado à pobreza e à ignorância, o que seria um perigo para o controle das doenças e da ordem social. Os higienistas, tomados por uma visão extremamente biologizante e organicista, tinham como certeza absoluta que a depuração de sangues inferiores tornaria a população mais homogênea racialmente o que facilitaria no trabalho de alcance da civilização. A eugenia modelando os corpos físicos (re)modelaria o corpo social, pelo “revigoramento” orgânico e pela “construção” da consciência do cidadão.Estabeleceria o lugar dos diferentes grupos na sociedade acenando-lhes porém com a possibilidade de outras posições assim que atingissem o branqueamento,a disciplina e a normalização (MARQUES, 1994, p. 44). Sendo assim, além da família, a raça também se tornou alvo de controle e modelamento dos intelectuais, que tinham como exemplo a nobreza lusa e a sociedade burguesa européia. A princípio, os higienistas acreditavam que o meio dominaria os indivíduos. Porém, após um tempo, com o aprofundamento dos seus estudos científicos, os higienistas perceberam que somente cuidar da higiene, modificando o meio, os costumes e os hábitos, não era o suficiente para fazer nascer o progresso, além de organizar as cidades, controlar as doenças e reformular todo o contexto político- cultural. Era preciso cuidar de algo que independia da higiene - a genética, a semente hereditária enfim, a eugenia. Os higienistas procuravam o branqueamento da raça, por associar o branco a um corpo saudável, sexualmente forte e moralmente regrado. Já o negro era coligado ao descontrole social, a um intelecto empobrecido e a uma moral e uma constituição física e mental desagregadas. A constituição familiar deveria então também ser “monitorada” isto é, se uma família era formada por pessoas de raças mescladas como poderia ser feito o 7 Termo usado por Foucault para representar o corpo, composto por várias “peças” elementares que se combinam. melhoramento da raça brasileira? Uma raça branca para os eugenistas jamais deveria se unir a uma raça inferior. Mas como evitar essa união? Como fazer essa prevenção social? A década de 1870 possui como marco a entrada significativa da influência médico-higienista nas questões educacionais. A escola foi vista como um local onde a criança passaria a refletir sobre a importância da virtude física e moral, como também, a ter uma conscientização racial, que possibilitasse associar o progresso à raça branca, recriminando o ócio e aceitando o valor do trabalho como dignificação do homem. Se os vícios, os maus hábitos, as crenças e a ignorância cultural poderiam ser transmitidos à criança pela família, era preciso, segundo os higienistas, apartar a criança de seus progenitores para que o futuro fosse pensado e mudado, embutindo-lhes bons hábitos ainda na primeira infância, com o intuito de haver uma superação do modo de vida dos pais, fazendo dessa criança um soldado disseminador das idéias higienistas. O discurso médico apontava para a importância de uma intervenção precoce, pois a criança era vista como “cera a modelar”, na qual facilmente se imprimia a forma que se desejava. Já modificar os hábitos dos adultos seria mais difícil, visto que, como dizia Júlio Pires Porto - Carrero8 “é de pequenino que se torce o pepino”. Ver a criança como entidade física-moral ainda sem forma, justificava todas as investidas de instalações de hábitos, tão defendida pela sociedade médica-sanitarista que acreditava na importância da domistificação9 disciplinar. Essa idéia se intensificou cada vez mais no final do século XIX e início do século XX, porém, é na primeira metade do século XX, mais especificamente na década de 1920 que a higienização tomou força maior, havendo o processo de desenvolvimento de uma vida regulada pelos discursos e práticas médicas, sendo inclusive apoiada pelo Estado, cujo projeto era construir um movimento civilizatório rumo a uma nação próspera pelo modelamento social, pois era uma população composta, em sua maioria, por analfabetos que não correspondiam aos interesses das elites governantes e dos intelectuais da época. O interesse pela infância seria então a preparação para o adulto do amanhã. Vem daí o fato de as ações preventivas e educativas a ela dirigidas resultarem na criação de um homem melhorado e sadio, que viria propagar as idéias higienistas servindo à 8 Médico psiquiatra, participou do movimento higienista e teve uma importante atuação como educador no movimento da “Escola Nova”. Nome de peso dentro da prática eugênica, foi um dos introdutores das idéias de Freud no Brasil, na década de 1920. 9 Termo usado por Foucault em sua obra Vigiar e Punir (2008), para se referir ao disciplinamento do homem. nação, colaborando com isso para a ordem social. Se antes a criança era manipulada pela igreja e pela família, agora passa a ser objeto de manipulação da ciência e o seu corpo torna-se alvo de mais um mecanismo de poder. A escola passou a ser vista como o meio e a criança como o fim dos alvos das ações de prevenção e saneamento, onde educação e saúde se uniram para normalizá-la, enquanto o educador passou a representar um “identificador de anormalidades”. Guiados pelas idéias eugenistas de Galton, Morel e Lombroso, a medicina passou a ver o professor como aliado e necessitava treiná-lo, desenvolvendo-lhe o “olho clínico” e assim torná-lo coadjuvante dos diagnósticos, partindo de um modelo positivista de normalidade que vinha escudado por um discurso científico. Pato(1991), localiza a entrada dessas idéias no Brasil ,no início do século XX, por Franco da Rocha, Lourenço Filho e Durval Marcondes em São Paulo e por Arthur Ramos que desempenhou papel semelhante no Rio de Janeiro. A primeira experiência brasileira de instalação de clínicas de higiene mental nas escolas foi o “Serviço de Higiene Mental da Seção de Ortofrenia e Higiene do Instituto de Pesquisas Educacionais, fundada quando da reforma do Ensino Municipal do Distrito Federal instalada em 1934”, mostrando claramente uma operacionalização da influência do modelo médico nas escolas brasileiras, originado do movimento higienista norte-americano, que Ramos ajudou a introduzir no Brasil. A partir daí surgiram clínicas de higiene mental nas escolas e diversos dispositivos normalizadores, que acabaram se instituindo: a inspeção médica, a ficha sanitária do aluno e a figura do professor soldado, cujo currículo de formação passou a ter disciplinas de conteúdo das áreas médica e biológica. Fazendo desfilar a classe diante de si, o professor deveria esquadrinhar o corpo de cada aluno, examinando-lhe mão, unhas, cabelos, orelhas e, ainda, as roupas e os sapatos. Marcar a importância do asseio, explicar minuciosamente em que consiste, incentivar a repetição das noções, examinar acuradamente, chamando a atenção para as falhas e louvando os acertos são os elementos que compõem essa prática, por meio da qual se buscava conformar os corpos e gestos infantis, produzindo comportamentos considerados civilizados. (ROCHA, 2003,p. 49) A instituição escola seria então um dos lugares de ação desse poder científico, que viria para “reformar” os cidadãos deste país e afastar do caminho do progresso as “enfermidades” morais. Tentaria construir na criança higienizada um corpo apto, constituído com vigor resultante do cultivo da educação física e dos hábitos sadios. A escola torna-se o lugar de ação de várias disciplinas e formas de disciplinamento e, como diz Foucault (2008), a disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado, impondo uma relação de docilidade-utilidade. As normas, que vieram para diferenciar as boas condutas das más e enquadrar os comportamentos considerados adequados, tinham como parâmetro a idéia de anormal ou patológico. O Normal vem se estabelecer como uma forma de aprisionar o aluno, que através de uma educação padronizada, universaliza e iguala os desiguais, sem levar em consideração as singularidades de cada indivíduo. Detectados os desvios conforme as normas, o corpo que não se comportasse de forma dócil e submissa, passaria então a sofrer sanções normalizadoras que vinham para combater a suposta “rebeldia”. Quais seriam estas sanções normalizadoras? A princípio, o castigo físico era o principal instrumento. A punição existia como forma de fazer o aluno obedecer a partir da dor e da humilhação e, posteriormente, vinha o exame médico-psicológico do escolar, com o objetivo de sanar os “casos-problemas”. Cada vez mais a educação, foi se desenhando nas idéias geneticistas, para a qual a hereditariedade já trazia de antemão informações estigmatizantes sobre a criança. A eugenia, cada vez mais forte, tratava a genética como um bio-poder, pensando o indivíduo como homem-máquina e corpo espécie, que vinha carregado de inúmeras expectativas sobre os processos biológicos, como os aspectos orgânicos próprios da raça. Sendo assim, os eugenistas viam a escola como um local que possibilitava à união harmônica do corpo e do espírito, podendo, pela cultura, melhorar o indivíduo e, consequentemente, a espécie. Essa visão de uma escola capaz de cuidar do corpo e da mente fazia ver como indispensável a presença de novos saberes a compor a equipe escolar, como os profissionais da saúde. Assim, a escola passou a ser uma rede de saberes e poderes que como uma teia, entrelaçavam as concepções dos detentores do saber: higienistas e educadores. A nova palavra de ordem é a higiene mental escolar. Com intenções preventivas, as clínicas de higene mental e de orientação infantil disseminaram-se no mundo a partir da década de vinte e se propõe a estudar e corrigir os desajustamentos infantis. Sob o nome de psico-clínicas, clínicas ortofrênicas, clínicas de orientação ou clínicas de higiene mental infantil, elas servem à rede escolar através do diagnóstico, o mais precocemente possível de destúrbios da aprendizagem. A obsessão preventiva tem como lema “keep the normal child normal”(mantenha normal a criança normal) e em seu nome são criadas as “clínicas de hábitos” para crianças em idade pré-escolar. (PATTO, 1991,p.44) Toda essa forma de ver a educação surgiu no desejo de alcançar uma sociedade organizada e civilizada, que preparasse o indivíduo para o trabalho, disciplinando-o para que ele pudesse aceitar passivamente uma jornada laboral, pois afinal, as instituições educacionais acabaram desempenhando segundo Sarup (1978) - grande estudioso das idéias marxistas - um papel crucial na reprodução socioeconômica, pois com seu caráter hierárquico a educação sempre fez uma seleção social através da estratificação, que delineava comportamentos disciplinados e produtivos, o que tornaria os alunos futuramente aptos a produzir o que o capital engendrava, garantindo com isso a força de trabalho necessária para o desenvolvimento capitalista do país.De acordo com Constantino e Caruso (2003), p. 30, “trabalho e não-trabalho estabeleciam a cisão entre normal e o anormal”. A baixa produção ou desvios na forma de produzir implicava uma intervenção de autoridade, que fiscalizava e punia, tendo como objetivo manter o alunado sob controle. A fiscalização era feita por inspeções que tinham um caráter de polícia médica e ao mesmo tempo formas de atuação de uma medicina social, própria da época. A vigilância dos alunos, realizada por meio dos exames médicos, constituía-se no espaço da revista, espaço esse em que os alunos são observados por um poder que só se manifesta pelo olhar e no qual são levantados conhecimentos sobre o aluno, conhecimentos esses que são anotados, documentadas as aptidões, os vícios, as degenerescências, permitindo comparações, classificações, categorizações que servirão para a fixação de norma - de códigos médicos escolares - cujo objetivo será mantê-los sob controle por um lado, estabelecendo os gestos,os comportamentos normais; e, por outro,inserindo e distribuindo-os numa população, sem tirá-los da especificação de ser um “caso” que poderá ser normalizado ou excluído (MARQUES,1994, p.113). Esses dados, analisados conforme a citação acima, era uma ficha sanitária individual dos alunos na qual eram anotados aspectos sociológicos, antropológicos, psíquicos e pedagógicos, com a participação dos profissionais da saúde e dos professores, que relatavam dados sobre a atenção, inteligência, memória, comportamentos enfim, toda e qualquer manifestação do aluno no cotidiano escolar. Esses registros eram utilizados como uma operação de exame, nos quais havia uma comparação das crianças entre si e com outras de outro meio social. Pode-se dizer que a criança passava por um processo de esquadrinhamento, em que o sistema fragmentava seu corpo e mente dividindo-a em si mesma, num modo de funcionamento Panóptico, termo usado por Foucault, definido como um método de vigilância, máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder. Essa ficha era analisada pelos médicos, que em caso de suspeita de anormalidade iniciavam um tratamento médico específico ao aluno. A escola tornava-se então, usando novamente um termo Foucaultiano, “espécie de aparelho de exame ininterrupto”, local onde se faria cada vez mais um trabalho profilático. Nesse sentido, o exame antropo- pedagógico delegou ao professor a tarefa de supervisionar, para junto com a área médica diagnosticar, excluir ou tratar os que se desviavam da “normalidade”. Assim, a pedagogia e a medicina se articularam para fazer do universo escolar objeto do saber científico, construindo o novo homem e a nova sociedade, dando continuidade à medicina sanitarista, que surgira com o intuito de fiscalizar os domicílios, higienizando a população e desestimulando o ócio. O ócio foi outra questão que a escola tomou como importante, pois na sociedade colonial o tempo não era algo tão valorizado, coisa que numa sociedade capitalista em processo de industrialização não poderia ocorrer. Havia uma irresponsabilidade em relação ao trabalho e à diversão e isso, segundo os progressistas, precisaria ser mudado e a escola deveria contribuir para essa mudança, modificando também os hábitos de lazer. Essas idéias influenciaram os educadores no trabalho pedagógico com crianças, pois passaram a tolher o ato de brincar e as brincadeiras no cotidiano escolar, não pensando estas atividades como instrumento fundamental para o desenvolvimento infantil, mas como um desgaste de energia inútil que só estimulava o descompromisso com a educação. Desta forma, o lazer na escola passou a ser um lazer proposital, direcionado a um sentido formativo, o qual só existiria com o intuito de ilustrar algum conhecimento proposto pela prática pedagógica. O tempo passa então, a ser instrumento disciplinar significativo, que por ser “precioso” e não condizer com momentos de ociosidade. Pelo contrário, deveria ser valorizado para preservar o corpo dos vícios e dos maus hábitos, que acarretariam em prejuízo do desenvolvimento físico e moral do indivíduo. Se a vigilância estava presente nos diversos setores sociais, havia também todo um aparato punitivo, que cada vez mais passou a ser elaborado por normas médicas. Um instrumento punitivo significativo foi o uso das medicações psicotrópicas, que passaram a ser utilizadas frente às más condutas, tidas como “crimes higiênicos”. Estes medicamentos eram prescritos, sem saber qual efeito de fato causaria no indivíduo, fosse ele adulto ou criança. O castigo através da violência física foi lentamente cedendo lugar ao castigo simbólico e, se antes a psiquiatria se limitava a atuar no espaço hospitalar, mais tarde começou a se incorporar às idéias higienistas, deixando de atuar somente nos manicômios para lançar seus tentáculos em outras direções, como por exemplo, na escola. A medicalização da infância veio como conseqüência da higienização e, neste sentido, educação e saúde se uniram como elementos inseparáveis na implantação de um programa de normalização e moralização, que visava a manter um forte pilar social - a ordem - pelos bons hábitos. Desde então, a educação passou a ser alvo do poder médico, conseqüência de toda uma história envolta nos preceitos higienistas e eugenistas. Ao escrever este capítulo, objetivou-se trazer brevemente a história da infância no Brasil com o intuito de correlacionar o surgimento da instituição escola, o desejo burguês da moral e da ordem e a influência médica tanto na família quanto na educação, com o recurso das práticas medicalizantes e biologizantes do processo de aprendizagem, maciçamente presentes no cotidiano escolar atual. Orientados por esta preocupação e convictos de que é importante conhecer o cenário em que a medicalização surgiu, pensando na matriz principal que foi a eugenia e a higienização, propõe-se a discussão dos vestígios desses princípios higienistas na educação contemporânea, ou seja, podemos encontrar na realidade escolar atual condutas que ainda guardam os princípios de uma sociedade eugênica, higienista e disciplinar? Esta é uma questão que será abordada no capítulo seguinte, devido à sua complexidade. CAPÍTULO II DISCIPLINA/INDISCIPLINA: EDUCAÇÃO INFANTIL, ESPAÇO DE LIBERDADE OU DE MODELAMENTO? CAPÍTULO II - DISCIPLINA/INDISCIPLINA: EDUCAÇÃO INFANTIL, ESPAÇO DE LIBERDADE OU DE MODELAMENTO? “A crença de que para o aluno aprender precisa de normas e regras precisas impede e destrói um espaço e um tempo de troca de experiências e vivências entre as próprias crianças e com os adultos também. Com práticas autoritárias e escolarizantes, a escola desumaniza, dociliza e uniformiza. Em outras palavras, com permanentes coerções e controles, as instituições escolares modernas criam e moldam o homem moderno” MESOMO, 2004, p. 105 O tema da disciplina é para este trabalho, um assunto de suma importância, pois é visto como um dos pilares que sustentam a medicalização nos dias atuais, pois os seus mecanismos de poder estão fortemente presentes no cotidiano escolar, configurados em instrumentos disciplinadores e controladores que à luz dos dados obtidos podem ser analisados de forma concreta e atual. No capítulo anterior, ao refletir brevemente sobre a história da infância, pode-se perceber que ela foi constituída como um objeto passível de intervenção higiênica e disciplinar dentro de um processo histórico, no qual várias formas de disciplinarização foram se estabelecendo no decorrer do tempo. Na década de 1920, com a redefinição de uma política sanitária, foi incumbida à escola primária, a tarefa de disciplinar a natureza infantil, dando à escola um poder modelador dos hábitos, da saúde e da educação da infância. A obediência da criança conforme as normas sanitárias impostas pela medicina, configurava-se na melhor medida contra a ameaça que pairava sobre a sociedade, devido ao crescimento desenfreado e desregrado das grandes cidades. Com essa disposição, procurava-se caracterizar a medicina como uma verdadeira e efetiva ciência do social e, para fazer valer tal vontade, a higiene também se instalou no coração da formação médica, na forma de uma disciplina. (GONDRA, 2003, p. 28) A higienização como um modo de disciplina, foi se infiltrando e enraizou-se nas instituições da infância, de tal modo que a criança passou a ser pensada somente numa perspectiva moral, individual e patológica. A instituição escola tornou-se intrinsecamente disciplinar e a escolarização passou a ser a mola propulsora da ordem e do progresso científico e social, com o intuito de eliminar atitudes viciosas e de inculcar hábitos salutares. Para se alcançar o avanço científico, era necessário, segundo os higienistas, saber diferenciar a personalidade normal e anormal da criança e, para isso, o professor deveria estar apto a colaborar nessa diferenciação que se instalou na pedagogia científica com o intuito de tornar a prática pedagógica mais humanitária, ou seja, os anormais deveriam ser isolados numa escola própria, para que fossem corrigidos, modificados e disciplinados por métodos próprios, sendo segundo Mendes (2006, p. 1) “uma fase de segregação, justificada pela crença de que a pessoa diferente seria mais bem cuidada e protegida se confinada em ambiente separado, também para proteger à sociedade dos anormais”. Para que houvesse a diferenciação correta, os professores, juntamente com o diretor e o médico escolar, tinham que elaborar e assinar a Carteira Biográfica Escolar10. Nesta carteira, deveriam constar os dados de observação que mostravam as características de normalidade, anormalidade ou degenerescência, como também, aspectos físicos, raça, traços morais, marcas de hereditariedade e detalhes do ambiente familiar. Através desses registros, os dados eram cruzados e o futuro escolar do aluno era decidido, então, como sendo apto ou não apto para estar entre as crianças normais, o que se pode chamar de processo de normalização que para Silva (Apud Dornelles11, 2005, p. 22): ...é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa eleger –arbitrariamente- uma identidade específica como parâmetro em relação à qual outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é “natural”, desejável, única. A força da identidade normal é tal, que ele nem se quer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade. Estando a educação nessa constituição normalizante, a pedagogia científica determinista teve que configurar a formação dos professores, que deveriam estudar, como diz Carvalho (1997, p. 298), “as quarenta e seis “lições teórico-práticas” que foram organizadas em torno de cinco tópicos: exame anamnéstico, físico, antropológico, 10 Criada em 1914 pelo médico-pedagogo italiano Ugo Pizzoli, criador da pedagogia científica e da Escola Normal em São Paulo. 11 SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. A obra original não foi utilizada, pois o livro não foi encontrado. fisiológico e psicológico”. Desta forma, o educador passou a ser visto como um forte colaborador higienista passando não só a educar, mas também a detectar anomalias, selecionando e compondo a clientela escolar, aplicando a técnica ortopédica – de prevenção e correção do que se encontrava fora dos padrões de normalidade. Ao distinguir o normal do patológico, fazia-se uma aposta no poder disciplinador do progresso, ditado por um modelo industrial que influenciou a idéia de que só os normais teriam condições de produzir de forma disciplinada, incorporando hábitos de trabalho. Desta forma, juntamente com os hábitos de educação e trabalho, dever-se-ia inculcar os hábitos de saúde, pois tais hábitos eram os pilares capazes de sustentar o progresso. Carvalho (1997) reafirma a questão dizendo que: A “educação integral” – assentada no tripé: saúde, moral e trabalho – era uma das respostas políticas ensaiadas por setores da intelectualidade brasileira na redefinição dos esquemas de dominação vigentes. Tratava-se, fundamentalmente, de estruturar dispositivos mais modernos de disciplinarização social, que viabilizassem o que era proposto como progresso. Nesse projeto, a educação era especialmente valorizada enquanto dispositivo capaz de garantir a “ordem sem necessidade do emprego da força e de medidas restritivas ou supressivas da liberdade” e a “disciplina consciente e voluntária e não apenas automática e apavorada”. A disciplina, ao enraizar-se na escola de forma ortopédica, passou a ser sinônimo de eficiência, moldagem e adaptação, sempre com o intuito de desenvolver e racionalizar a criança para discipliná-la, não apenas fisicamente, mas também num modo de regulação moral, pois a disciplina como versa (Foucault, 2008, p. 119), “fabrica corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)”. Ainda seguindo o raciocínio de Foucault, essa “docilidade” faz com que a disciplina transforme o homem em “homem máquina”, ser analisável e produtivo, corpo manipulável, “[...] é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (ibid.p.118). O disciplinamento penetrou e se cristalizou nas principais instituições sociais desde o século XVIII. Porém é na escola que mais se vê a ação de seus tentáculos, onde promove desigualdade, discriminação e controle. Isso ocorre devido à necessidade de escolarização, trazida pelo desejo de progresso que a industrialização criou e que hoje, na configuração social moderna, faz da escola uma instituição homogeneizante, autoritária e normatizadora. O disciplinamento da criança está relacionado, portanto, com o moderno estatuto da infância. Este a institui socialmente ligando-a a determinadas práticas familiares e formas de educação produzidas no século XVIII, ou melhor, num momento em que a sociedade ocidental vive profundas mudanças sociais, com uma progressiva divisão do trabalho e uma crescente urbanização, o que exige a formação de um cidadão. A infância torna-se, então, objeto de um outro olhar e, portanto, de um outro modo de governá- la. De tal maneira, o disciplinamento passa a ser exercido na família e nos colégios, com um controle de cunho cada vez mais rígido e total”.(DORNELES, 2005,p.36) A ânsia pela produtividade desenfreada, própria da sociedade capitalista numa cultura globalizada, a liquidez das relações, somadas às conquistas da ciência, fizeram conceber o homem como um ser que necessita estar apto a adequar-se ao mundo nas diversas situações que enfrenta, e, aquele que, por algum motivo, não acompanha a massa, é visto como o diferente, o incompleto, o desajustado, o imperfeito que necessita de ajuda para justapor-se aos anseios sociais. Sendo então a escola uma instituição de vigilância, que tem a sensação normalizadora como instrumento, ela funciona como um aparelho para punir os desvios. Ela vigia, aponta e pune todo e qualquer tipo de conduta desviante. A patologização, que será tratada mais especificamente no próximo capítulo, é uma forma de apontar os desvios, enquanto a medicalização vem num segundo momento para punir, isto é, tratar o que se encontra em estado de anormalidade. Outra forma de punição e disciplinamento é o exame, prática corriqueira nas escolas. Porém, o que se percebe hoje, é que o exame vem sendo incorporado cada vez mais cedo, inclusive no local onde a pesquisa de campo foi realizada, essa é uma prática que vem se tornando cada vez mais comum. Crianças da educação infantil passam por “provinhas”, que ajudam o professor a detectar o nível de aprendizagem da criança. Foucault (2008, p. 154) trata sobre o exame, dizendo: O exame combina as técnicas de hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. Além do exame em formato de prova, há a avaliação diária das atividades realizadas pela criança em seus livros didáticos, que antes eram adotados a partir do ensino fundamental e atualmente vem sendo utilizados desde o primeiro ano da educação infantil. O uso de cartilhas deu espaço às apostilas e cada vez mais escolas municipais tentam acompanhar as escolas particulares. Sabe-se que hoje a maioria dos municípios do estado de São Paulo12 já adota o material, que a princípio é bem aceito pela família, por pressupor uma educação de qualidade. Porém, essas tarefas que são pensadas e programadas por adultos, com o intuito de obedecer a um conteúdo programático, não trazem atividades lúdicas que favorecem a criatividade e a liberdade de expressão da criança, deixando-as submissas a uma aprendizagem mecânica e repetitiva. A apostila, que é apresentada como recurso pedagógico, nada mais é que um instrumento de dominação e disciplinamento, que se acopla à rotina rígida, para impor à criança formas de aprender e desenvolver suas atividades. É um material homogêneo, que não leva em consideração as singularidades e as necessidades da criança, pois simplesmente traz o conteúdo e o professor o transmite ao aluno, muitas vezes numa pedagogia acelerada modificando o caráter da educação infantil, assemelhando-se ainda mais ao ensino fundamental. Para (MOTTA, 2001, p. 4): ... o conhecimento apostilado, porém, produzido em verdadeiras “fábricas do saber”potencializa a “(re)produção” de indivíduos massificados, prontos à adequação social que, atualmente, tem como um de seus principais objetivos o consumo, ... O que faz com que a educação fique a serviço do capital, pois sem consumo e lucros o capital se dilacera. O conteúdo da apostila é extenso. Por este motivo, as crianças ficam a maior parte do tempo dentro da sala de aula e esporadicamente participam de alguma atividade extra classe. As crianças, já em estado de disciplinamento, internalizam o silêncio tão solicitado nos primeiros dias de aula pelas professoras e, alguns dias depois, incorporam a disciplina e o que se percebe são “adultos em miniatura”, procurando compreender o sentido daquele conteúdo que está 12 Segundo o jornal O Estado de São Paulo de (13/04/2008), 150 municípios contratam os sistemas apostilados privados, representando 23% das 645 cidades do Estado. No país, há mais de 300 cidades brasileiras que já adotaram alguma forma de apostilamento, somando 690 mil alunos que usam o material. Totalizando um gasto de aproximadamente R$ 100 milhões anuais. na apostila e que mais parece um enigma a ser desvendado, como uma caça ao tesouro, que tem como prêmio o mundo letrado. Essa internalização da disciplina ocorre por meio de redes invisíveis que vêm de várias direções – como o Estado ou as classes dominantes - e se institucionalizam tomados por autoridade e autoritarismo. O corpo, por ser manipulado, passa a obedecer de forma automatizada. A ilustração que consta na página seguinte13 mostra a forma com que desde o século XIX a disciplina é aplicada, usando o corpo como alvo de dominação. Capturados pela instância do poder, os alunos passam a se comportar de forma robotizada. Nesse sentido, Carvalho (2006, p. 57) contribui descrevendo o cotidiano de uma sala de aula: ...os alunos sentam-se enfileirados, vestidos uniformemente, obrigados também a se comportarem uniformemente – com uma postura ereta, silenciosos e atentos aos ensinamentos -, proporcionando condições para absorverem os conhecimentos de uma outra pessoa, que se julga detentora do conhecimento – ao menos da área previamente proposta pela instituição. Tais alunos, geralmente tratados como iguais, são colocados numa condição de aprendizagem dos mesmos conteúdos, na mesma velocidade e da mesma forma. Muitas vezes não se respeitam seus conhecimentos prévios, suas diferenças em termos de capacidade, muito menos suas opiniões sobre o que se está aprendendo. O aluno tem apenas o dever de aprender em um tempo determinado, de uma forma preestabelecida e configurada de acordo com o que se cobra na sociedade. Vê-se, nesse âmbito, um processo de homogeneização, vítima de uma racionalização produzida a partir de modelos... 13 Esquema de postura corporal da escola francesa de Port-Mahon do século XIX: triunfo da disciplina. Fonte: Revista Nova Escola- Outubro de 2008. Contudo, há aqueles que fogem dos padrões de controle considerados normais, e manifestam-se com outras formas de comportamento. Este “desajuste”, que incomoda os educadores, é visto como indisciplina. A indisciplina é entre os educadores atualmente, uma das queixas que mais aparecem no cotidiano escolar. Ao ouvi-los observa-se que se queixam de falta de regras, desobediência às normas, desinteresse pelo ensino e atitudes agressivas. Porém, ao relatar estas queixas, mais parece que os alunos apontados são adolescentes, estudantes do ensino médio, quando na verdade são alunos da educação infantil, ou seja, crianças entre 03 e 05 anos, que são vistas como descontroladas, desregradas, desobedientes e agressivas. Mas o que será isso? O que fez a infância mudar tanto nos últimos anos? Ou não foi a infância que mudou e sim o sistema educacional infantil que vem se tornando cada vez mais um lugar de práticas disciplinadoras e estigmatizantes que têm como único objetivo a eficiência, ou seja, a excelência na produtividade. Mesomo (2004, p.108) descreve claramente o que ocorre na educação infantil de forma geral: (...) na educação infantil, primeira etapa da educação básica, o que se observa hoje, em geral, é o início das separações dos corpos, tempos e espaços na escola, instaurando-se uma arte de governar. Gestos e falas controladas, filas e vigilância permanente; os locais indicam valores e garantem obediência. As salas abarrotadas de mesas e cadeiras são o principal ambiente de permanência das crianças, servindo o parque na maioria das vezes apenas para recreio e descanso. Muitas das queixas dos professores em relação à indisciplina têm a ver com falar demais, falar alto ou não permanecer sentado muito tempo no momento das atividades em sala de aula, comportamentos comuns da infância, que passam a ser confundidos muitas vezes com distúrbios e transtornos do comportamento, o que acaba impulsionando o professor a solicitar o auxílio dos especialistas parapedagógicos (psicólogos, neurologistas, psiquiatras e afins), com o intuito de solucionar tais questões. Conforme a suposição principal desta pesquisa acredita-se que a indisciplina até mais do que os problemas de aprendizagem, é o que leva muitas crianças aos consultórios. Alguns estudos caminham com o desejo de compreender a causa da indisciplina e sua relação com os sexos, pois segundo ARRUDA (2006), a ocorrência de transtornos como o do TDAH surge com maior índice entre os meninos do que nas meninas. Porém, os especialistas dizem não saber ainda se as meninas são menos acometidas por transtornos dessa natureza ou é o diagnóstico que fica prejudicado, pois nas meninas o TDAH se manifesta de forma diferente, à criança se apresenta apática e desanimada, enquanto no menino é ao contrário, ele se torna, segundo os neurologistas, indisciplinado e desatencioso, o que acaba chamando mais a atenção dos professores. Ou seja, se a ciência ainda não foi capaz de provar cientificamente tal transtorno, como já é possível encontrar diferenças de sintomas entre os gêneros? Frente a tudo isso, outro ponto deve ser levantado. Sendo então o menino mais diagnosticado por conta das manifestações de indisciplina, pode-se dizer que se reafirma a suposição principal de que a indisciplina tem relação com o diagnóstico de TDAH e por sua vez, crianças que apresentam comportamentos considerados indisciplinados, acabam sendo patologizadas e consequentemente medicalizadas por conta da manifestação indisciplinar. Desta forma, pode-se dizer que o desejo de uma instituição disciplinar está muito presente na escola o que influencia nas condutas dos professores dentro da sala de aula. Segundo Aquino (2005, p. 16): ... tomar a indisciplina e outros comportamentos disruptivos como fenômenos complexos ditados pelos novos tempos pedagógicos significa conceber a relação professor-aluno como necessariamente conflitiva. A sala de aula deve ser vista como espaço de encontro onde aluno e professor, unem-se para refletir sobre as questões que muitas vezes se encontram além dos livros. O professor não é um mero transmissor de conhecimento, como o aluno também não é um mero receptor, são partes de um processo educativo que só flui de maneira positiva quando ambos se respeitam e reconhecem no outro a sua importância. Tal importância da presença e da mediação do conhecimento e do aprendizado pelo outro, reflete a concepção de um processo “social” e “socializado” de uma e outra esfera. O conhecimento, em todos os seus aspectos, e o aprender, por decorrência, são acontecimentos de natureza social. O esperado, portanto, é que se aponte para a importância central do outro, e da condição de alteridade, inclusive para o estabelecimento efetivo de um processo de construção cognitiva, processo que, sem a presença do outro, permanece parcial, precário, ou mesmo irrealizado de todo. No entanto. Muitos professores não adotam esta maneira de ensinar, e, sim, uma postura muitas vezes ditatorial, passando como um rolo compressor pelas diferenças dos alunos, impondo seu ponto de vista sobre assuntos que deveriam ser discutidos em sala de aula, porém, na verdade, são “despejados” nos alunos, considerados “folhas em branco”, em detrimento de suas peculiaridades e opiniões (CARVALHO, 2006, p. 59). A vida, prenhe de sentidos que se renovam a todo instante, é inesgotável. Por isso, tanto na aprendizagem de conteúdos como na aprendizagem do que é o ser humano, cabe a nós escapar de pensar o mundo como um sistema fechado de conceitos, ou tentar reduzir o outro a um molde dentro do qual queremos enquadrá-lo. “Muitas vezes temos que deixar de lado todo tipo de abordagem técnico-científica e, desarmados, estar simplesmente com o outro... Educar é estar com o outro” (NOVASKI, 1995, p. 13-14). Ao moldar, controlar e punir, a escola priva a criança de liberdade. Liberdade de expressão, liberdade de brincar, de procurar os seus próprios interesses, de socializar, de reivindicar, de errar enfim, de ser ela mesma, pois a infância – livre de hipocrisia social - é a única fase em que o ser humano consegue ser original. A criança vai perdendo os seus sentidos, quando já não pode mais usá-los. A sua linguagem corporal é roubada quando ela não pode mais manifestar as dores e os sabores por meio do corpo ou da fala, ao se sentir presa num sistema que a rejeita, ela passa a internalizar às disciplinas e a aceitar o que lhe impõem. Pode-se então, concluir, a partir de tais reflexões que a escola sempre foi palco das disciplinas e das diversas formas de disciplinamento. No entanto, tendo em vista, as inúmeras transformações ocorridas na contemporaneidade, deve-se questionar qual é a concepção de criança que os profissionais que trabalham com a educação infantil possuem, pois ao apontarem, no cotidiano escolar, casos de indisciplina, crianças são encaminhadas aos serviços de saúde, com o objetivo de serem diagnosticadas e tratadas para que haja o controle de seus comportamentos, sem ao menos procurar compreender as tramas sociais, que corrompem e desumanizam a infância. CAPÍTULO III PATOLOGIZAÇÃO E MEDICALIZAÇÃO INFANTIL: A VIGILÂNCIA PUNITIVA CAPÍTULO III - PATOLOGIZAÇÃO E MEDICALIZAÇÃO INFANTIL: A VIGILÂNCIA PUNITIVA “O disciplinamento médico na sociedade higienista passa pela fabricação de crianças, futuros homens rijos que, desde a mais tenra idade, devem ser acompanhados por médicos para que ‘um dia estejam prontos para oferecer docilmente suas vidas ao país’.” COSTA, 1989, p. 179 A patologização e a medicalização escolar são as molas propulsoras desta pesquisa, por considerar tal questão de suma importância nos dias atuais, uma vez que vem aumentando expressivamente o número de crianças que estão sujeitas à medicalização em consequência de comportamentos considerados desviantes. Faz-se necessário elucidar e definir tais termos como patologização e medicalização, para possibilitar que o leitor perceba como são vistos esses conceitos na ótica dos pesquisadores. São termos construídos ao longo da história, que vêm indicar um contraponto com a ciência médica que, influenciada pelas idéias higienistas, foram se estabelecendo em divisões binárias, como: saúde-doença, normal-anormal, ordem-desordem, louco- não louco e por fim, raças superiores-inferiores. Ao passar pelo crivo pré-concebido do que é esperado, desejado e aceito, marginaliza-se o diferente, vendo-o como algo negativo, que deveria ser combatido e eliminado. Contudo, os bons costumes, a moral, as doenças físicas e psíquicas passaram a ser vistos sob uma ótica higienista, o que instituiu a rejeição dos indivíduos que vêm a destoar dos padrões ditos normais. Desta forma, criou-se a necessidade de recorrer a psicofármacos no tratamento das dificuldades escolares, que influenciado pela industrialização e pelo capitalismo fez da escola uma instituição de produção e regulação social. Vários anos se passaram desde o princípio do movimento da higienização e, caminhando por uma linha do tempo, pode-se perceber que poucas coisas mudaram e hoje a escola continua sendo uma instituição selecionadora e punitiva, que procura homogeneizar os comportamentos e patologizar àqueles que se destoam dos demais. Aqueles que “desviam”, os alunos considerados “problema”, não acompanham de forma eficiente a massa e passam a ser estigmatizados, sendo vistos como fracassados com baixas condições de sucesso. Assim fala-se do fracasso escolar (a despeito do equívoco no uso do termo), pois, na verdade, a instituição escola no seu objetivo primordial nunca fracassou, pois sempre desempenhou perfeitamente o papel do qual foi incumbida: vigiar, apoiando a vigilância numa forma padronizada de comportamento para apontar, para os diferentes, a importância da ordem para o alcance do êxito. Desta forma, o fracasso deixa de ser escolar e passa a ser do escolar, aquele que apresenta comportamento considerado desviante em relação ao padrão pré-estabelecido pela sociedade. Ao ressaltar o Fracasso Escolar neste trabalho, pretende-se evidenciar a ótica pelo qual este problema vem sendo analisado. Cada vez mais é possível perceber a relação construída entre saúde e educação. Essa interferência da medicina na saúde deixa nebuloso o verdadeiro motivo que leva a criança a um baixo aproveitamento escolar. O Fracasso Escolar deveria ser visto, segundo Collares e Moysés (1985) - como “resultado de complexo jogo de fatores educacionais, sociais, culturais e econômicos, que refletem a política governamental para o setor social”. Ao desconsiderar estes fatores, a criança passa pelo crivo preconceituoso da normalidade, no qual vítima de um aparelho social distorcido passa a ser apontada como deficiente intelectual, portadora de algum transtorno. Isso ocorre sob as lentes de uma pedagogia submissa à ciência médica e de uma medicina guiada pela psiquiatria biológica, a qual individualiza a criança e retira a responsabilidade do sistema educacional. O Fracasso Escolar é termo institucionalizado, presente na escola como problema, cuja existência - que já parece ser inquestionável -, opera produzindo saber. Porém, se antes o aluno fracassado era aquele que apresentava “desinteresse”, “indisciplina” e “falta de educação”, na atualidade é o aluno que apresenta algum tipo de disfunção cerebral de origem genética, capaz de causar deficiências e desordens no comportamento. A ciência médica atravessou o âmbito escolar e hoje a escola é um dispositivo institucionalizado, que foi produzido e produziu relações de saber-poder. A escola é o lugar por excelência onde sempre se buscou o aperfeiçoamento da espécie, um eficaz observatório que possui um sistema panóptico de funcionamento. O panoptismo é um termo usado por Foucault (2008), para descrever todos os mecanismos de poder que são dispostos em torno do anormal, com o intuito de marcá-lo e modificá- lo, por ser um dispositivo polivalente de vigilância. Foucault (ibid.p.165) cita o Panóptico de Bentham14 descrevendo a forma arquiteturial dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção: elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um operário ou um escolar...Tantas jaulas, tantos pequeno