Campus de São José do Rio Preto Juliana Silva Dias Memória e Memórias: entre o eu da ficção e a ficcionalização do eu São José do Rio Preto 2014 Juliana Silva Dias Memória e Memórias: entre o eu da ficção e a ficcionalização do eu Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Letras, junto ao Programa de Pós- Graduação em Letras, Área de Concentração - Teoria da Literatura, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Orientador: Prof. Dr. Orlando Nunes do Amorim São José do Rio Preto - SP 2014 Juliana Silva Dias Memória e Memórias: entre o eu da ficção e a ficcionalização do eu Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Letras, junto ao Programa de Pós- Graduação em Letras, Área de Concentração - Teoria da Literatura, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Banca Examinadora Prof. Dr. Orlando Nunes do Amorim UNESP – São José do Rio Preto Orientador Profª. Drª. Telma Maciel da Silva UEL Prof. Dr. Jorge Vicente Valentim Univ. Fed. de São Carlos Prof. Dr. Arnaldo Franco Junior UNESP – São José do Rio Preto Prof. Dr. Márcio Scheel UNESP – São José do Rio Preto São José do Rio Preto - SP 01 de agosto de 2014 Por ela... Não dá pra dizer que todas as flores resolveram desabrochar naquele mesmo instante de certo agosto de mais de oito décadas atrás... Mas e a certeza de que fariam tudo isso caso assim pudessem? Nada minava a doçura de seus olhos somada com a força pra lá de além que destes transbordava. Riso alto, riso frouxo, riso solto. Luz. Luz. O jeito de entender todas as formas, de se harmonizar com todos os ciclos. Linda, linda. A lembrança do teu colo, o cheiro do teu último abraço serão para sempre meus. Te amo para além de lá, pra sempre, pois nada é em vão. Ensinou-me a ter fé. Por ela, sempre será por ela! Vó, te amo para lá de além... Dedico mais este trabalho à Vó Rosa (in memorian), por ter se estabelecido como a minha imagem constante do amor incondicional dirigido a todos. Sempre. AGRADECIMENTOS Findo um longo processo de trabalho, chega, enfim, o momento imperativo dos agradecimentos... respiro fundo, vamos lá... Estes quatro anos e meio de pesquisa foram muito intensos para mim em todos os sentidos. Aprendi muito. Se eu mudaria alguma coisa? Não, de forma alguma: este é o meu fruto possível, esta é a minha experiência. E, assim, agradeço... À CAPES, pelo auxílio concedido no primeiro ano de pesquisa e, posteriormente, pelos quatro meses de bolsa de doutorado-sanduíche no exterior. E ao CNPq, pelo apoio financeiro nos demais meses entre 2011 e início de 2014. Ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Júlio de Mesquita Filho, UNESP/ IBILCE, campus de São José do Rio Preto, por ter sido a minha morada durante esses mais de dez anos de estudo. E também a todos os funcionários da universidade, de todos os setores, por serem a engrenagem do nosso "templo do saber". Ao pessoal da seção de pós-graduação, por todos os nós em pingo d água que vocês deram e, em especial, à Silvinha, por todo o apoio (e carinho) que recebi durante o pré- período de estágio no exterior. A todos os professores da graduação e da pós do IBILCE, pela minha formação. À Profa. Dra. Profª. Drª. Telma Maciel da Silva, da UEL, e ao Prof. Dr. Jorge Vicente, da Univ. Fed. de São Carlos, por comporem a banca de defesa e levantarem questões que deram outra cara ao trabalho, redimensionando, para melhor, a visão que tenho sobre esta tese para os trabalhos futuros que (oxalá) surgirão desta. Ao Prof. Dr. Arnaldo Franco Junior e ao Prof. Dr. Márcio Scheel, por acompanharem todas as etapas de avaliação deste trabalho e por contribuírem com sugestões que muito o enriqueceram. Ao Prof. Dr. Orlando Nunes do Amorim, por ter me apresentado ("a") Walter Benjamin, meu norte de leitura "pra sempre", e pela orientação quase "sem querer": nunca me esquecerei do seu susto no dia da entrevista durante o processo seletivo. Ao Prof. Dr. Francisco Cota Fagundes, da University of Massachusetts - UMass Amherst, por ser um exemplo de profissional, por ter acreditado no projeto desde nosso primeiro contato e, especialmente, por ter me mostrado vários ângulos de sua travessia para que eu pudesse construir a minha própria forma de enxergar a sua história. E também à supracitada universidade estrangeira, por me oferecer a estrutura necessária para realizar partes de minha pesquisa. À Dr. Juliana e ao Dr. Fábio e equipe, por verem a pedra no meio do caminho e, principalmente, por terem dado conta de tirar a danada de lá tão logo quanto possível. À Thais e à Giovanna, por me darem o suporte técnico necessário nos momentos em que mais precisei. Gi, muito obrigada por me ouvir e, sobretudo, por entender os meus (raros) silêncios. Aos amigos da graduação, Raquel, Mírcia, Jaqueline, Bárbara, Tatiana e Maisa, e aos da pós, André, Guilherme, Ana Carolina, Higor, Ana Paula, Mirane, Winnie, Nara, Diego (irmão acadêmico) e Josiane (irmã acadêmica), por rirem comigo na alegria e, sobretudo, na tristeza. Aos amigos nem da pós nem da graduação, mas que comigo compartilharam de um mesmo espaço, Adriana, Maryanna, Wellington, Gabriela, Marcos, Amanda, Leandro, Juca, Aline, Manuela, Marcelo, pelos cafés e afins. À Leiliane, por ser uma amiga de fé. À família Mokuso, por me oferecer o treinamento necessário lá para que eu conseguisse "enfrentar" tudo isso aqui. Em especial, a dois amigos muito queridos, Fernando Henrique Crepaldi Cordeiro e Eduardo de Brito Almeida. Ao primeiro, por ter lidado com meus textos e desabafos de ordem acadêmica, quanto ao segundo, por sempre me mostrar o lado bom dos revezes da vida. Ao amigo Paulo de Carvalho Junior, por dizer a coisa certa nos momentos certos e por ter me ajudado a enxergar a mim mesma de forma justa para que eu pudesse me reinventar nos momentos em que a vida assim exigiu. Muito obrigada pela paciência, pela força e, sobretudo, pela fé. Aos meus queridos Amauri e Denise, por estarem comigo em todas as horas. Estejam certos de que vocês foram mais do que amigos nesta reta final de trabalho. De coração, muito obrigada. Aos meus amigos Gabriela, Fábio, Vanessa, Lucas, Fernanda, Rodrigo, Érika, Janaina, Henrique, Eduardo, Leonardo, Tia Cláudia, Tio Adair, Fabrina, Fernando, Nicholas, Priscila, Wagner, por terem resistido junto a mim nestes quatro anos e meio. Estejam cientes de que não troco nenhum de vocês por nada neste mundo. Aos pequenos do meu coração, Luíza, Pietro, Ana Isabelle e ao miauzinho bebê que está a caminho, por serem uma fonte inesgotável de luz e de inspiração para mim. Aos familiares, tios e tias, Pedrinho, Sandra, Marluce; primas, Shirley, Adriele, Sheila, Sandra, por fazerem dos simples vínculos familiares verdadeiros laços de amor. À tia Antônia que amo muito, por ser a reunião de tudo o que é bom neste mundo e por oferecer um pouco desse tudo sempre que preciso. À minha irmã do coração, Eliane Soeiro Rosa, por ter o maior abraço de amor que conheço, ao meu mais novo irmão, Daniel Rosa, por colocar muitos sorrisos no rosto desta minha irmã, e à Sueli Dias dos Santos, mãe da Li, que dedica a mim amores e cuidados que fazem com que eu me sinta sua segunda filha. Trio, amo muito vocês. À minha irmã... ah, a minha irmã... Nana, você é o meu maior exemplo de força e de dedicação, o meu presente de Deus. Muito obrigada por fazer de mim uma de suas prioridades e, principalmente, por sentar no chão comigo, olhar em meus olhos e me enxergar de verdade. Sem o seu apoio, nada disso seria possível. Te amo muito. Ao meu pai, Gilberto, e à minha mãe, Maria Auxiliadora, por sempre e sempre acreditarem em mim e por afirmarem isso nos momentos em que mais preciso. Hoje, mais do que antes, eu sei que o colo de vocês é o lugar no qual eu sempre encontrarei aconchego. Amo muito vocês dois. Ao fim e ao cabo, gostaria de agradecer a Deus, com Quem me desentendi e com Quem depois fiz as pazes quase no fim desta caminhada. E também a todos os que foram necessariamente esquecidos, pois é de esquecimentos que alimentamos a memória, a protagonista deste trabalho. ... é impossível estudar o objeto antes de tê-lo delimitado e impossível delimitá-lo antes de tê-lo estudado. "O pacto autobiográfico (bis)", Philippe Lejeune ... um homem inteiramente feito de todos os homens e que vale tanto quanto os outros e a quem qualquer um pode se equivaler... As palavras, Sartre ... e a minha preferida... As ilusões caem uma após outra, como as cascas de uma fruta, e a fruta é a experiência. Sylvie, Gérard de Nerval RESUMO As teorias da memória que compõem o cenário atual sobre o tema da memória abrangem conceitos cujas linhas de pensamento se situam nos extremos: do idealismo platônico à sociologia baseada em quadros sociais. Na ponta sociológica, Maurice Halbwachs, por meio do que ele chama de “quadros sociais vivos do presente”, irá construir a sua teoria da memória coletiva. Relacionando essa memória aos conceitos de memória individual, memória histórica, espaço e tempo, o sociólogo desconstruirá ou reconstruirá alguns conceitos fundamentais da filosofia idealista vigente em sua época. A criação literária, reconhecida pioneira na análise dos fatos humanos, estabelecer-se-á como um campo fértil nos estudos da memória. Entendendo a importância e a relevância do estudo e a ampliação de todos os conceitos em torno dessa temática, este trabalho analisa a representação da memória nas literaturas moderna e contemporânea, partindo da ideia de que, em uma representação de memória construída pelo eu, seja essa representação fictícia ou ficcionalizada, sempre há a presença da sociedade por meio de quadros sociais. Como respaldo teórico, valemo-nos da teoria da memória coletiva e outros escritos relativos à memória que complementam o ponto-de-vista adotado. Para tanto, trabalhamos com as narrativas: Memórias de Lázaro (1952), do baiano Adonias Filho; The House on Mango Street (1984), da norte- americana de origem familiar e cultural mexicana, Sandra Cisneros; e No Fio da Vida: uma Odisséia Açor-Americana (Autobiografia) (2013), do açoriano e professor residente dos Estados Unidos, Francisco Cota Fagundes. Identificando e analisando os quadros de representação da memória dessas narrativas e articulando estes aos elementos da arte da ficção assinalados e trabalhados por Umberto Eco e por James Wood. Palavras-chave: Memória, Ficção, Maurice Halbwachs, História, quadros- sociais, Walter Benjamin. ABSTRACT The memory's theories that form the current scenario about the memory theme are composed by concepts in which areas of thinking are studied from the following extreme points: from platonic idealism to sociology based on social frameworks. Taking into account the sociology viewpoint, Maurice Halbwachs will be the basis of sociological studies due to his theory of collective memory through something that he named of 'social alive pictures from present'. Linking this kind of memory with concepts of individual memory, historical memory, space and time, the French sociologist is designated 'to destroy and rebuild' some fundamental concepts of current idealistic philosophy of his time. The literary creation (a kind of recognized pioneer in analyzing human facts) will be established itself as a good space of memory's study and the Marcel Proust's work will be one of the 'addresses' more visited by researchers of a variety of areas. Thus, considering the importance and the relevance of the study and the increase of all concepts around this subject, this project aims to analyze the representation of memory in modern and contemporary literature, defending the hypothesis that in a representation of memory built by an 'I', we will always find the presence of society through social frameworks. As theoretical base, this project will have the collective memory theory and other works related to the memory that will complement the point of view taken. In order to do this, we identified and analized the memory's representation framework of some narratives: Memórias de Lázaro (1952), written by Adonias Filho; The House on Mango Street (1984), written by Sandra Ciseros, an American but also Mexican descendent; and No Fio da Vida: uma Odisséia Açor - Americana (Autobiografia) (2013), written by Francisco Cota Fagundes, an Azorean and university professor who lives in USA. Identifying and analyzing the narratives’ frameworks representation memory and linking them to fiction art elements placed and developed by Umberto Eco and James Wood. Keywords: memory, fiction, Maurice Halbwachs, History, social frameworks, Walter Benjamin. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................... 11 1 ORIGEM DA "NOSSA" MEMÓRIA: UM POSSÍVEL INÍCIO E O CAMINHO ATÉ MAURICE HALBWACHS E WALTER BENJAMIN ............................................... 20 2 MEMÓRIAS DE LÁZARO (1952), ADONIAS FILHO ............................................. 51 2.1 FICÇÃO: A PECULIARIDADE DO REGIONALISMO ADONIANO ............................... 54 2.2 O REMEMORAR DE ALEXANDRE ........................................................................ 65 2.3 INQUIETAÇÕES DO PASSADO TOMAM FORMA NO PRESENTE: A MEMÓRIA DE ALEXANDRE ...................................................................................................... 76 2.4 A MEMÓRIA NA DIMENSÃO MÍTICA..................................................................... 93 2.5 REMEMORAR A MEMÓRIA: A REDENÇÃO DE ALEXANDRE................................... 100 3 THE HOUSE ON MANGO STREET (1984), SANDRA CISNEROS .......................... 105 3.1 NO ENCALÇO DAS MEMÓRIAS DE UM NÃO-PERTENCIMENTO: ESPERANZA ......... 111 3.2 A VOZ COLETIVA NAS MEMÓRIAS DE UM SÓ....................................................... 124 3.3 NOS CAMINHOS DA TRADIÇÃO E DO CONTAR DE HISTÓRIAS: O ROMPIMENTO E A CONTINUIDADE NA URDIDURA DOS FIOS ............................................................ 137 4 NO FIO DA VIDA UMA ODISSÉIA AÇOR-AMERICANA (AUTOBIOGRAFIA) (2013), FRANCISCO COTA FAGUNDES.......................................................................... 154 4.1 A CONSTRUÇÃO AUTOBIOGRÁFICA EM NO FIO DA VIDA (2013)........................... 162 4.2 DA CONSTRUÇÃO COLETIVA DE (UMA) MEMÓRIA .............................................. 182 4.3 O DISCURSO-MEMÓRIA COMO SALVAÇÃO .......................................................... 189 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 198 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 207 INTRODUÇÃO A princípio, e genericamente, pode-se dizer que toda construção literária que tem alguma marca de passado realiza um trabalho com a memória. A presença da memória como componente literário traz o sossego e o tormento diante daquilo que, aparentemente, "já se foi". Sossego ou tormento, aquilo que sobreviveu dos acontecimentos pretéritos sempre bate à porta, posto que o presente recorrentemente se utiliza daquilo que surgiu outrora em uma espécie de trabalho de continuidade ininterrupta da urdidura dos fios do tapete da existência. Não há como fugir do passado, não há como se desvencilhar dessa prática, dessa tradição milenar. Falar em literatura, falar em memória, falar sobre a representação da memória na literatura é irresistivelmente ter como um dos expoentes por excelência nessa temática o tempo perdido de Marcel Proust. Como uma espécie de justificativa literária primeira para os estudos aqui propostos, entendemos que, mesmo que sua obra não faça parte do nosso corpus de análise, acessar o passado da memória na literatura, em certa medida, sempre será uma revisitação da representação de um tempo redescoberto por um autor que, segundo Umberto Eco, "estava fascinado com a busca das coisas passadas e que terminaria sua obra sob a bandeira do tempo revivido" (ECO, 1994, p. 38). De forma geral, os estudos sobre a obra do autor supramencionado ressaltam o viés da memória de um ponto de vista intimista, particular, em uma espécie de reencontro do sujeito consigo mesmo, com seu eu do passado. Contudo, é justamente esse caráter particular do lembrar e da lembrança que iremos problematizar no decorrer das páginas deste trabalho. Entendemos que, apesar de o procedimento proustiano de busca pelo passado ser uma espécie de justificativa primeira para uma verdadeira consagração do percurso individual e involuntário da memória, é necessário que também detenhamos o nosso olhar para o que seria o outro lado da moeda: o caráter voluntário e coletivo no qual as memórias também e, arriscamos ainda, na maioria das vezes, se manifestam. Concentrando-se nas vias de acesso ao passado, nossa investigação tem por pontos-chave partes do processo do lembrar que, a nosso ver, mais suscitam divergências: o acionamento da memória e a construção da lembrança no presente. Consideramos, na análise das narrativas eleitas para o desenvolvimento da pesquisa, questões tais como a motivação do sujeito ao enveredar-se pelo caminho da 12 rememoração e, até mesmo, o ponto de partida desse ato de busca pelo passado. No que se refere à última questão levantada, concentramo-nos naquilo que haveria de fundamental, aquilo em que o sujeito necessariamente precisa deter-se para que, dessa forma, possa evocar suas memórias. Entendemos, a partir de um olhar atento aos questionamentos acima propostos, que, via de regra, os estudos que tratam da temática se realizam sob dois posicionamentos possíveis do eu quando esse acessa a memória: um de origem individual e outro de origem social, coletiva. O primeiro tem como origem o corpo do indivíduo, posicionamento este, como veremos, desenvolvido pelo estudioso Henri Bergson. Por outro lado, pensando no outro viés, temos como base o sujeito às voltas com as relações que ele estabelece com o seu meio, com aquilo que, de alguma forma, compõe o lugar em que ele vive, tais como as pessoas, o espaço, os grupos (tanto aquele ao qual ele pertence quanto outros com os quais estabelece contato). Essa segunda possibilidade de lidar com a expressão e com a manifestação da memória, cujo idealizador é o sociólogo Maurice Halbwachs, é o meio mais detalhadamente por nós explicitado, visto que será o arcabouço teórico para o desenvolvimento de nossa análise. Logo, escolhido o viés social de análise dos atos mnemônicos, relacionamos o panorama delineado acerca da atual disposição sócio-histórica em relação à concepção e à manifestação da memória às representações da memória nas obras literárias, aqui analisadas. Nesse sentido, procuramos verificar em que medida a opção pela teoria sociológica da memória favoreceu a nossa compreensão dessas representações literárias da memória. Acerca dessa teoria, nosso primeiro capítulo tanto esclarece justamente a presença de conceitos que encorpam o aporte teórico desta pesquisa quanto os explicita e os exemplifica recorrendo a, ora e outra, trechos das narrativas que compõem nosso corpus de pesquisa. No que se refere ao procedimento de elaboração de nossa base teórica, destacamos, ainda, os escritos do já citado Maurice Halbwachs e os relacionamos com os de origem filosófica construídos por Walter Benjamin e, dessa forma, demarcamos o norte para o desenvolvimento de nossa análise. Nesse sentido, notamos que, se o sociólogo estabelece, no seu A Memória Coletiva, publicação póstuma de 1950, um diálogo com Henri Bergson, fazendo deste seu grande Outro quando na elaboração de sua teoria da memória coletiva, buscando, dessa forma, os pontos nodais da teoria do autor de Matéria e Memória para a 13 construção de sua base conceitual, será, no entanto, com Benjamin, que não é citado na obra halbwachsiana, que podemos observar certa identificação das perspectivas adotadas por esses estudiosos que igual e coincidentemente sucumbiram em consequência dos desvarios de guerra, no caso, da Segunda Grande Guerra Mundial. Partindo dessa relação estabelecida, descobrimos correspondências, discordâncias e, até mesmo, certas continuidades de modos de pensar entre esses escritos. Fechamos o primeiro capítulo, que é majoritariamente teórico, acionando, ainda, certos elementos ficcionais, estabelecidos criticamente por James Wood (2011) e Umberto Eco (1994). Acreditamos que certos elementos – identificados e nomeados por esses estudiosos da estrutura da ficção – se manifestam nas narrativas que analisamos como espécies de instrumentos ou mesmo de “pistas” para o desvelamento de certos mecanismos da memória dos protagonistas das narrativas estudadas. Nesse sentido, notamos que é a investigação de alguns elementos que compõem a representação literária envolvidos no processo de acesso à memória que nos revela em que medida as diferentes personagens que realizam um processo de rememoração se valem de certos caminhos similares para a descoberta de suas memórias nos diferentes textos com os quais trabalhamos. Dessa forma, para a realização deste trabalho, tivemos como campo de pesquisa a análise da representação da memória nas narrativas Memórias de Lázaro (1952), do “imortal” baiano Adonias Filho; The House on Mango Street (1984), escrito pela autora de origem mexicana Sandra Cisneros; e No Fio da Vida: uma Odisséia Açor-Americana (Autobiografia) (2013), uma obra do professor açoriano Francisco Cota Fagundes. Entendamos, agora, essas histórias, de forma bem sucinta, pelo ponto de vista das memórias que as constituem. Em Memórias de Lázaro (1952, data da primeira publicação), de Adonias Filho (1915-1990), obra estudada em nosso segundo capítulo, ecos longínquos do passado são ouvidos pelo protagonista Alexandre na rústica paisagem, de forma a dar densidade ou multiplicidade significativa aos acontecimentos narrativos que têm como espaço ficcionalizado a região baiana dos cacauais. Órfão de pai e mãe, o narrador protagonista adoniano, criado por Jerônimo, amigo de Abílio (que, por sua vez, é pai de Alexandre), opta, em seus últimos momentos de vida, por percorrer alguns fatos de seu passado, guiado, aparentemente, pela urgência de entendimento da situação presente. Alexandre 14 sabe que não será salvo, entende que, enquanto suas memórias se abrem, é seu ciclo de vida que se fecha. Um narrador, cuja existência transita entre os acontecimentos e a narração destes, mescla tempo passado e tempo presente na tecedura narrativa. Dessa forma, se Maurice Halbwachs, como veremos mais adiante, afirma que o espaço é elemento fundamental daquele que se põe a lembrar, dada a primitividade “do lugar de Alexandre", o que se vê é um forte apego à terra, uma espécie de conexão herdada. Daí a necessidade do protagonista de ter que voltar à terra natal para que, junto a essa terra, possa recordar e, assim, viver seus últimos momentos, justificando, nesse sentido, a forma umbilical na qual espaço e personagens estão fortemente ligados. Na posição de uma contadora de histórias, situa-se Esperanza Cordero, a narradora de The House on Mango Street (1984, data da primeira publicação), escrito pela autora Sandra Cisneros (nascida em 1954), cuja origem mexicana se faz presente pela via da representação em toda a sua obra. Aos moldes de um romance autobiográfico, essa narrativa, que é esmiuçada em nosso terceiro capítulo, marca um período de transição da narradora, em que esta sai de uma posição de relativa inocência e chega a outro patamar devido a uma série de experiências vividas. Contudo, não será somente essa espécie de crescimento e/ ou desenvolvimento pessoal que marcará esse relato. Na verdade, Esperanza trava verdadeira batalha ao revolver certas problemáticas quando na elaboração de sua história, como a de viver em uma comunidade com forte ranço patriarcalista e, de forma mais intensa, a de (sobre)viver em um lugar onde o imigrante – e, ainda mais, a mulher imigrante ou a descendente de mulher imigrante – inexoravelmente está à margem do sistema vigente. Criando um ambiente onde a família e a comunidade mexicana podem ser vistas em cada ponto narrativo construído, a narradora relaciona acontecimentos, pessoas, impressões, redimensionando não somente o tempo das histórias narradas, que é o de aproximadamente um ano, pela garota, mas também, e sobretudo, o próprio espaço da Rua Mango: entendemos que entre as guias normais de uma rua qualquer certamente não caberiam as histórias de Esperanza. Na narrativa, nada é tão marcado pela memória quanto a permanência de um tempo que se inicia em um dado espaço, o México, com os seus antepassados, mas cuja continuidade se dá em um outro espaço, o do país onde agora o imigrante ou descendente deste está, os Estados Unidos. 15 No Fio da Vida: uma Odisséia Açor-Americana (Autobiografia) (2013, data da primeira publicação em português) é a obra que fecha nosso corpus de análise e compõe, dessa forma, a posição de protagonista de nosso quarto capítulo. Esse escrito autobiográfico foi feito pelo escritor, pesquisador e professor de origem açoriana, nascido na ilha Terceira, Conselho da Praia da Vitória, Francisco Cota Fagundes (nascido em 1944). Sendo um imigrante na América, Cota Fagundes remonta a sua trajetória de vida pela via da memória, tendo o tema da diáspora como uma espécie de norte da narrativa, posto que emigrou da sua ilha Terceira para os Estados Unidos no ano de 1963. Parece ser justamente no significado ambivalente em que a travessia realizada pode ser entendida que a autobiografia se faz. Ambivalência relevante, posto que, se por um lado o avô que teve o filho na América antes de voltar para a ilha açoriana da Terceira “garantiu” a possibilidade de um retorno dos membros da família e esse fato, tal como o deslocamento em si, é tratado como uma benesse – em termos financeiros – não somente pela família em questão como também por todos que compõem a comunidade na qual o sujeito se insere, a ilha mencionada; por outro lado, a rememoração de Cota Fagundes é perpassada por uma espécie de incômodo, tal como se fosse um diálogo mal estabelecido entre aqueles que, de alguma forma, fazem parte de sua jornada: o protagonista pode ser visto por muitos como aquele que “venceu” na América, mas o deslocamento – territorial, identitário, entre outros – que a marca “imigrante” traz consigo parece ser um desconsolo que se arrasta por entre as páginas da autobiografia, uma espécie de melancolia que aplaca o sujeito-narrativa. Dessa forma, entendemos que a narrativa fagundiana é daquelas que percorrem um tipo de fio da navalha dos escritos halbwachianos que norteiam nosso trabalho. Aquele fio que, como veremos, se estabelece na trincheira identificada por Halbwachs entre memória coletiva e memória histórica, em virtude mesmo de uma das marcas dessa autobiografia que é o pensar sobre o pensar ser estrangeiro, que, em muitas das passagens da narrativa, culmina em uma defesa da condição do imigrante que, como veremos, não é só dele (pensando, aqui, no fato do texto ser uma autobiografia), é coletiva. Consideramos que, no intuito de contemplar um amplo campo de estudo entre literatura e estudos sócio-históricos, as diferenças entre os componentes de nosso corpus de pesquisa contribuíram, ao nosso ver, para que encontrássemos variados tipos de manifestações memorialísticas e formas diferentes de se acessar a memória. Vale, 16 ainda, dizer que, apesar de nosso conjunto analisado ser totalmente composto por narrativas do eu, os diferentes pontos-de-vista dos narradores-protagonistas em relação à história de si que narram e as diferentes formas – gêneros literários – em que se realizam também foram fatores que contribuíram deveras para a construção de nossa análise. Em outras palavras, entendemos que, embora o nosso corpus de pesquisa seja composto por tipos textuais bem distintos, ao considerarmos essa necessidade urgente de busca pelo passado, que é comum a todas as narrativas, encontramos neste ponto um vínculo que une todas essas narrativas. O fato em comum, ou seja, toda essa “volta” urgente aos acontecimentos de outrora, é caracterizada por uma necessidade imperativa de compor o relato, a tangenciar todos os protagonistas durante essa volta ao passado: Alexandre está à beira da morte, Esperanza trava uma batalha consigo entre o pertencer e o não querer pertencer ao espaço em que ela está, Fagundes nos conta sobre dois espaços distintos sem conseguir localizar nestes o “seu” próprio espaço. No que se refere às formas das narrativas, foi proposital a nossa busca pela diversidade para que, nesse sentido, pudéssemos, na medida do possível, identificar o que haveria de comum e particular nas representações literárias da memória e, quiçá, o mais importante, se essa diferença entre as formas revelaria uma maior ou menor pertinência quanto a utilização do viés sociológico de análise da memória a depender do “grau” de ficção de um determinado gênero. Nesse sentido, temos as seguintes configurações do gênero em relação ao tema da memória: (a) o romance, em que “o lembrar” de uma memória “assumidamente” fictícia é o norte da narrativa; (b) uma espécie de romance autobiográfico, cuja inserção de elementos emprestados da vida real para a narrativa de ficção redimensionam, ao nosso ver, as problemáticas da memória do contexto social representado; e (c) a autobiografia, em que a escrita, que culmina na ficcionalização da vida real, revela intencionalmente as nuances de uma vida, mas que, inexoravelmente, (n)a “verdade”, são representações literárias da memória que se tem dessa vida em forma de linguagem. Vale adiantar que, se por um lado podemos enxergar certos matizes comuns a todas as narrativas, a variedade de textos tem como consequência também a diferença em relação ao olhar depositado nas narrativas que já merece, nessas primeiras páginas de nosso trabalho, ser minimamente explicitado. Em Memórias de Lázaro, as conexões entre as memórias são mais densas se comparadas às outras narrativas, é como se a 17 proximidade da morte do protagonista implicasse em uma maior noção de começo, meio e fim do processo de busca pelo passado. The House em Mango Street é uma narrativa em que os fatos históricos e, principalmente, as mazelas sociais são mais marcadamente presentes do que na narrativa adoniana, não que haja dependência com o que é exterior à narrativa, mas o texto de Cisneros constrói-se como uma potente voz social. Já em No fio da vida, os fatos históricos também são salientes, contudo, é na ligação entre a narrativa e seus referentes extratextuais, preponderantemente, com os seus peritextos (dedicatória, agradecimento, prefácio, nota do autor, epílogo), que podemos estabelecer a maior diferença em relação à maneira como as narrativas podem ser analisadas. Indiscutivelmente, cada forma literária exige que olhemos para cada uma delas de forma distinta. Notamos, por exemplo, em relação a essa diferença, que na narrativa adoniana há uma espécie de maior independência da obra em relação à exterioridade, posto que a narrativa de Fagundes parece, de alguma maneira, ser mais ancorada nos peritextos que compõem o volume. Característica essa marcada, sobretudo, pela noção de continuidade entre a vida das personagens na narrativa do imigrante açoriano – tais como Fagundes, “ele mesmo”, Jeanette e Maria Deolinda – e os peritextos que compõem o romance. Como veremos, a relação estabelecida entre esses textos que compõem a obra funciona, em certo sentido, como uma espécie de afirmação da ideologia que norteia essa composição autobiográfica. Diferentemente disso, há uma ligação mais tímida entre Esperanza e a autora de The house on Mango Street, e a não existência de vínculo entre Adonias Filho e Alexandre, apesar de o cenário narrativo, ao que parece, ser temperado por uma paisagem presente aos olhos do menino Adonias Filho. De comum às narrativas, notamos que o espaço no qual as personagens são inscritas e, principalmente, a importância desses espaços para a manifestação da memória de cada uma delas, foi um fator importante na análise conjunta dessas narrativas. No texto adoniano, tem-se um chão do qual não se pode fugir, o bairro em que se localiza Mango Street envolve a todos que por lá residem em um ciclo inescapável, de onde sempre o sujeito fará parte independentemente de estar ou não vivendo nessa comunidade, já em No fio da vida, é na exposição de dois espaços separados por um oceano que podemos enxergar um homem aparentemente sem espaço, mas cujas memórias estão indiscutivelmente arraigadas a esses lugares. 18 Se uma espécie de solidão parece também marcar o relato de todas as personagens, o que se vê é a construção de narrativas em que pulula uma espécie de voz coletiva. Afirmamos, nesse sentido, na introdução deste trabalho, por meio da importância do espaço e da forte presença de uma coletividade, a pertinência da escolha e do uso de uma teoria de origem sociológica para a análise da representação textual da memória. Dessa forma, por exemplo, podemos observar no texto de Fagundes que é clara a defesa da condição estrangeira que sobrepõe essa verdadeira necessidade coletiva acima de qualquer predisposição e inclinação pessoal que, em certo sentido, são esperadas em uma escrita do eu. Evidente, nessa mesma narrativa, é também uma espécie de marcação da “historiografada” corrida do ouro da Califórnia, um exercício comum àqueles açorianos recém-saídos – libertos – dos navios baleeiros dos americanos, inscrição factual essa que não ocorre tanto pela presença literal do fato histórico na narrativa, mas, sobretudo, pela motivação primeira de todos aqueles que resolvem deixar de viver na terra natal: a busca por dias melhores em uma nova terra. Nesse sentido, o relato do narrador fagundiano se situa como uma bandeira levantada em defesa de si e do outro. Outro esse que pode ser qualquer um: açoriano ou não, que se deslocou para os Estados Unidos ou para qualquer outro lugar. Dessa forma, constrói- se, em todas as narrativas, linha após linha, um quadro de experiências formado por trânsitos, estabelecimento de relações, enfim, sabores e dissabores que justificam o estado de vida presente daquele que decide contar suas próprias memórias. No que se refere ao nosso método, identificamos nas obras supracitadas tanto seus quadros sociais – quadro esse que é uma espécie de poderoso sujeito coletivo vivo1 – fictícios quanto seus quadros sociais ficcionalizados, tendo como respaldo a teoria da memória coletiva de Maurice Halbwachs, bem como outros escritos relativos à memória que complementam o ponto-de-vista adotado por nossa proposta. Buscamos, nesse sentido, durante todo o processo de desenvolvimento de nosso trabalho, verificar o quão relevante é a presença da coletividade tanto na construção das memórias do eu quanto no resgate futuro dessas no ato da rememoração do sujeito. Como consequência desse procedimento de análise adotado, pudemos verificar em que medida a análise da memória, quando desenvolvida a partir do estudo da inscrição do eu 1 A definição de quadro social será mais bem explicitada no primeiro capítulo da tese. 19 em seu meio social, foi, de fato, um meio fértil de análise dessas representações da memória na literatura. Fechando este trabalho, depois de entendida as particularidades de cada obra, tecemos as nossas considerações finais, que são marcadas por uma escrita que revela o que há de próximo entre essas três narrativas que, a princípio, podem parecer tão díspares em vários sentidos. Como poderemos constatar, as análises desenvolvidas ao longo desta pesquisa tornam esses singulares relatos do eu mais próximos um do outro, promovendo um diálogo que, ao nosso ver, relativiza a diferença entre o eu da ficção e a ficcionalização do eu que temos nestas primeiras páginas deste trabalho, por meio da análise de cada uma das representações literárias da memória pinçadas nos objetos que formam nosso corpus. 20 CAPÍTULO 1 – ORIGEM DA "NOSSA" MEMÓRIA: UM POSSÍVEL INÍCIO E O CAMINHO ATÉ MAURICE HALBWACHS E WALTER BENJAMIN Em uma de suas vertentes de análise, a compreensão da memória na contemporaneidade tem se construído a partir de suas relações com a sociedade. Sendo esse quadro atual o produto de pensamentos que compreendem mais do que somente o campo sociológico presente, alguns pontos dessa espécie de caminho de “origem da memória” foram bem demarcados ao longo do tempo. Da antiga dualidade filosófica estabelecida por Platão entre ideal e real, abandonaram-se alguns traços que dificultam o estabelecimento de relações analíticas e nasceu a teoria psicológica e filosófica da memória de Henri Bergson, baseada nas relações entre corpo e espírito. Construindo, na verdade, simulando algumas situações em que essas relações bergsonianas seriam possíveis, para depois tecer outras mais, que, de certa forma, desestabilizam esse viés psico-filosófico da memória, anteriormente delineado, Maurice Halbwachs elabora a teoria da memória coletiva, de cunho sociológico, que tem por base os chamados “quadros sociais” da memória, identificados e delineados pelo “mentor” de Halbwachs, Émile Durkheim. Nesse construto sociológico da memória, uma “antiga” relação de aproximação entre memória e história vai perdendo forças, para, posteriormente, na contemporaneidade, outras (por vezes, polêmicas) relações entre as duas instâncias serem construídas, unindo-as novamente por meio de uma reestruturação do conceito de história embasado nas necessidades sociais e adaptado a elas. À parte qualquer necessidade de posicionamento ante as discussões que envolvem esses distanciamentos e aproximações, é interessante, aqui, saber que “o material em disputa”, a memória, ganha novos matizes, revitalizando, assim, a forma de olhar para as questões mnemônicas. Dentro de uma das possibilidades de performatização e de posterior análise da memória, na literatura, nota-se que, entre o eu da ficção e a ficcionalização do eu, ou seja, tanto nas memórias do ser que é “todo ficção”, quanto nas Memórias (gênero literário) do ser que passou a, também, ser fictício, já que é produto da escrita literária, as “novas” configurações e funções da memória – baseadas em um olhar voltado a ela que a dissocia do método tradicional de formação do discurso da história, ancorado, sobretudo, em um tempo pautado pela cronologia e pela homogeneidade – parecem ter sido representadas precoce e profundamente pelo/ no discurso estético literário. Dada 21 esta visão geral acerca do aporte teórico utilizado neste trabalho, passemos ao trabalho, neste capítulo, de pormenorização desta teoria em associação com a literatura, de forma a mostrar a pertinência do entrelaçamento deste viés crítico com as representações literárias da memória, e, mais especificamente, com o nosso corpus de pesquisa. Em relação ao aspecto teórico literário, também daremos especial atenção a certos mecanismos da ficção que constituem e constroem as marcas da memória presentes nas narrativas. Ao “criar” o Mundo dos sentidos e o Mundo das idéias – a conhecida Doutrina das Idéias de Platão – o filósofo estabelece parâmetros que, de certa forma, organizam os acontecimentos em duas ordens: uma física (ou anímica) e outra psíquica. O primeiro mundo estaria ligado à efemeridade das coisas, dos fenômenos, pois a materialidade, campo de atuação dos sentidos, está sujeita à corrosão do tempo. O segundo mundo, eterno e imutável, o mundo das ideias, surge das relações do homem com o todo universal: as coisas se diluem com o passar do tempo, mas as suas formas transitarão por todo o sempre. Para Platão, é como se a “ideia de homem” antecedesse e sobrevivesse ao próprio homem. Partindo dessa base filosófica, Henri Bergson (1859-1941), em Matéria e Memória (1896, data da primeira publicação em francês), erguerá sua teoria sobre a memória a partir de interações que ele afirma existir entre dois elementos: corpo e espírito. Usufruindo de termos emprestados da biologia e traçando relações entre esses elementos, ele estabelecerá uma oposição que ocupa posição fundamental dentro de seus escritos: perceber x lembrar. Combinando um processo corpóreo presente, no caso, a percepção, a um processo de emersão de algo que estava aparentemente perdido, a lembrança se constituiria. Nesse sentido, a percepção seria uma parte do processo de lembrar, enquanto que a lembrança, o produto do lembrar, seria o ponto de intersecção entre corpo e espírito. Findo o processo, a lembrança termina por “impregnar” as representações, ou seja, de certa forma, o processo de lembrar ficcionaliza essas representações. Por isso, segundo Bergson, é que as lembranças difeririam tanto das ideias e das percepções: enquanto a lembrança surge de um processo de combinatória, percepção e emersão, a percepção seria um dos dois possíveis processos realizados pelo cérebro a partir de um estímulo aplicado a ele, um processo cujas etapas compreendem imagem-cérebro-representação; e o conceito de ideia, segundo os escritos bergsonianos, seria a herança filosófica platônica: uma espécie de concepção que 22 compreende, ao mesmo tempo em que precede qualquer especificidade, qualquer “coisa material”, algo puro, original, do qual tudo parte e tudo descende (Cf. BERGSON, 1990). Em suma, “o cuidado maior” de Bergson “é o de entender as relações entre a conservação do passado [que se localizaria no corpo físico] e a sua articulação com o presente, a confluência de memória e percepção” (BOSI, 1979, p. 12). A partir dessas colocações, Bergson indica dois extremos da atividade mnemônica, duas formas de manifestações da memória, uma marcada pela memória-hábito e outra pela imagem- lembrança, em que a primeira “é a dos mecanismos motores”, está ligada basicamente à realização de atividades cotidianas, e a segunda são as “autênticas ressurreições do passado”, “a lembrança pura”, que “traz à tona da consciência um momento único, singular, não repetido, irreversível, da vida” (BOSI, 1979, p. 11). Em termos mais gerais, a primeira seria a memória voluntária, ligada ao exercício da vida ativa, e a segunda seria a memória involuntária, relacionada à marcha singular da vida contemplativa que, curiosamente, mesmo sendo o resultado de um exercício contemplativo, a “localização”, nela, do dado resgatado estaria no próprio corpo do indivíduo que lembra. No intuito de entender essa espécie de aproveitamento dos escritos de Platão em meio à teoria bergsoniana que entrelaça corpo e espírito ao explicar as manifestações memorialísticas, deparamo-nos com um trecho de âmbito mais abrangente acerca do pensamento filosófico elaborado por Walter Benjamin (1892-1940). É premissa do discurso filosófico ser dotado de característica deveras abstrata, nesse sentido, Bergson, ao se valer da Doutrina platônica das Ideias na construção de seus escritos, termina por dar uma espécie de dimensão utilitária possível a esse pensamento do filósofo grego, visto que, segundo Benjamin (2011): As grandes filosofias representam o mundo na ordem das ideias. Mas, regra geral, o quadro conceitual em que isso se deu há muito que começou a esboroar-se. Apesar disso, esses sistemas mantêm a sua validade enquanto esboços de uma descrição do mundo, tal como aconteceu com a doutrina das ideias de Platão, a monadologia de Leibniz ou a dialética de Hegel. De fato, é próprio de todas essas tentativas preservarem seu sentido, muitas vezes mesmo desenvolverem-no de forma potenciada, quando a sua referência deixa de ser o mundo empírico para ser o das ideias (BENJAMIN, 2011, p. 20). 23 Ou seja, entendemos que o quadro conceitual em que a filosofia platônica se deu há muito já se foi. E, dessa forma, é como se Bergson, no momento em que desenvolve sua teoria, realizasse uma espécie de movimento contrário pelo qual essas “grandes ideias passam” e, em certo sentido, devolvesse a essa ideia um tipo de conceito possível que o recolocaria no mundo empírico. De posse do pensamento do filósofo alemão, poderíamos entender esta “aplicação” como a capacidade singular do outro filósofo, Henri Bergson – mas este, da vida psicológica –, de enxergar um sistema que pouco se aproxima do mundo empírico. Parece ser essa forma potenciada que é enxergada por Henri Bergson quando ele elabora seus escritos. Somando-se a isso, entendemos ainda que, ao passar a doutrina platônica para um viés, digamos, empírico, Bergson salvaria, na elaboração mesma de sua teoria, o sistema platônico, quando o transforma em conceito, ou até mesmo, em conteúdo cognitivo: uma espécie de surgimento de um devir que comprova a existência de algo em potência dessa singular “descrição do mundo”. Em outras palavras, é como se Bergson pudesse se apropriar dos pensamentos de Platão, que são muito abstratos, de forma a dar uma espécie de fim utilitário a eles, tornando-os mais acessíveis, no momento em que estabelece seus estudos sobre a memória. A teoria bergsoniana é um dos melhores exemplos do pensamento vigente no início do século XX. De modo geral, as teorias filosóficas e sociológicas tinham forte cunho idealista e mecanicista2, situação, esta, que alguns creditam às limitações da própria linguagem corrente de que se dispunha no período mencionado, problema este que será parcialmente “resolvido” pela geração seguinte (Cf. DUVIGNAUD, 2006, p. 8-10). Segundo Schmidt e Mahfoud (1993), será a Escola de Strasbourg que inovará os estudos ao reunir uma elite de cientistas de origem etária e intelectual distintas, a fim de promover uma interação entre pesquisadores franceses e alemães. Ainda segundo os autores supracitados, essa nova safra de cientistas será, também, composta por estudiosos de origem judaico-alemã: pensando, dessa forma, na realização de um trabalho de cunho sociológico, histórico e psicológico, nada mais “ideal” do que trabalhar com cientistas acostumados a serem “o outro” (Cf. SCHMIDT; MAHFOUD, 1993, p. 286). 2 Alguns outros estudiosos classificam o pensamento de Bergson como intuicionista (Cf. SILVA, 1992, p. 708). 24 De forma a contestar os traços do antigo mestre Henri Bergson, Maurice Halbwachs (1877-1945), um dos filhos da Escola de Strasbourg, alinhando-se aos princípios de Durkheim (Cf. DUVIGNAUD, 2006, p. 9), mais especificamente, aos princípios “sobre a existência de relações dinâmicas entre as classificações sociais e mentais” e interpretando-os em direção a uma “historização da sociologia”3 (SCHMIDT; MAHFOUD, 1993, p. 285), formula sua teoria da memória coletiva4. Para a elaboração dessa teoria, ele utiliza-se repetidamente do princípio fundamental da dialética: partindo da construção de uma situação em que seria possível a existência da ideia que irá ser contraposta à dele, logo em seguida, ele a “destrói” ou a reconstrói sob outra base. A ideia a ser contraposta estaria em vigor na contemporaneidade do autor, “um idealismo filosófico fortemente dominante” (SCHMIDT; MAHFOUD, 1993, p. 286). Em geral, nota-se que as ideias contrapostas são pontos-chave da teoria bergsoniana, o embate é claro, “o Outro” da teoria de Halbwachs é a teoria psico- filosófica de Bergson5. É usufruindo desse procedimento dialético que em seu livro póstumo, A memória coletiva (1950, data da primeira publicação em francês), Halbwachs estabelece relações entre a “sua” memória coletiva e elementos que servem de estrutura para a elaboração da teoria, são eles: memória individual, memória histórica, tempo e espaço. Por meio de traços leves, essas relações serão abaixo explicitadas. Segundo esse sociólogo, as lembranças, de forma geral, são o produto de um conjunto, de um verdadeiro emaranhado de influências sociais produzidas nos grupos que estabelecem relações tanto interna, entre membros do grupo, quanto externamente, relações entre os grupos. Vale dizer que se entende grupo, aqui, no sentido de grupo social que, ao nosso ver, parece ser mais condizente com os escritos de Halbwachs e que é definido como: 3 Faz-se importante ressaltar que é necessário ter muita cautela ao se considerar essa direção dos escritos halbwachsianos, pois, em certa medida, ele criticará negativamente, no Capítulo II, Memória coletiva e Memória histórica, de seu livro A memória coletiva (2006), o uso da história associado à concepção de memória. Essa problemática será, aos poucos, mais bem explicitada no decorrer deste capítulo. 4 Em virtude da necessidade de que entendamos alguns termos utilizados por Maurice Halbwachs dentro do contexto da sociologia, daqui pra frente faremos uso do Dicionário da Sociologia (1961), de Fernando Azevedo, bem como da definição feita por outros teóricos em relação a alguns termos. Quando possível, além de uma definição mais abrangente, também utilizaremos algumas que estão relacionadas a Émile Durkheim, conhecido mestre de Halbwachs, de quem se sabe que o discípulo adotou para si alguns conceitos. 5 Nesse sentido, vale dizer que essa descrição, digamos, sucinta do trabalho de Henri Bergson, presente neste capítulo, foi feita justamente para que se pudesse entender esse "Outro" de Maurice Halbwachs cuja teoria é um dos princípios norteadores deste trabalho e merece, sim, ser mais bem explicitada. 25 [...] número variável de pessoas associadas permanentemente por processos de interação. A comunicação entre os membros do grupo faz com que uns possam participar das experiências dos outros, estabelecendo-se, aos poucos, uma relação de homogeneidade de pensamento, sentimento e ação. Em cada grupo há padrões de comportamento que representam experiências acumuladas e servem como diretrizes de conduta pessoal. A homogeneidade de atitudes faz surgir, nos membros do grupo, a consciência da própria semelhança e da diferença com relação a outros grupos. Os conceitos de in-group ou we-group em confronto com o out-group são manifestações da chamada consciência coletiva que é, a um tempo, cognitiva e emocional (AZEVEDO, 1961, p. 162, grifos do autor). O grau de complexidade, a quantidade de grupos que se entrecruzaram para a elaboração da lembrança, e a intensidade das relações estabelecidas entre o indivíduo6 e o grupo, dificultam ou facilitam o processo de recordação dessa lembrança. Nesse sentido é que, para o autor, a memória “puramente” individual (concepção construída por Bergson, por exemplo) seria uma ilusão (Cf. HALBWACHS, 2006, p. 69). Ela, a memória individual, seria um ponto-de-vista da memória coletiva sujeito à lei de causalidade, cuja causa, muitas vezes, é de difícil identificação: A cada uma dessas influências [vindas nos mais diversos ambientes com os quais estabelecemos relações], concebemos que uma outra se oponha, acreditamos que nosso ato é independente de todas essas influências, ainda que não esteja sob a dependência exclusiva de nenhuma delas. Então nos damos conta de que na verdade ele resulta de seu conjunto e está sempre dominado pela lei de causalidade (HALBWACHS, 2006, p. 70). Tendo como objetivo distinguir a memória coletiva da memória histórica, Halbwachs desmembra o segundo termo quando explica o princípio significativo de cada uma das palavras que o compõe: a história busca a imobilidade por meio das diferenças de um dado período, enquanto a memória, em seu trabalho, mantém os traços e a semelhança, promovendo continuidade. É premissa também da história a busca pela 6 De modo geral, por indivíduo, aqui, entende-se como: “o ser humano no sentido biológico, em confronto com a pessoa ou a personalidade palavra essa que se refere ao conjunto das aquisições feitas em sociedade”. Para Gilberto Freire (apud Azevedo), “o indivíduo é aquela realidade biológica sob a realidade social ou a base da socialização ou da socialidade e que de modo nenhum pode ser ignorada no estudo de tudo o que for social, embora o objetivo do estudo sociológico seja o indivíduo sob condições sociais e de cultura: o indivíduo com status” (AZEVEDO, 1961, p. 180). Contudo, Seixas afirma, em nota, que "a noção de indivíduo apresenta-se extremamente reduzida, apequenada, no pensamento de Halbwachs" (SEIXAS, 2001, p. 103), posto que, segundo nos diz Halbwachs em Cadres sociaux de la mémoire, o indivíduo "não escapa a uma sociedade senão na condição de opor-lhe uma outra quando o homem acredita encontrar-se só, face a face consigo próprio, outros homens surgem e com eles os grupos dos quais se destacam" (HALBWACHS apud SEIXAS, 2001, p. 103). 26 imparcialidade por meio do distanciamento. Seu trabalho, portanto, é com o passado. O presente é levado em conta somente ao se considerar quais são os fatos sociais7 que não pertencem mais ao seu raio de ação e que, portanto, fazem, “agora”, parte da história. Ao mesmo tempo, é verificável que a memória coletiva é construída por meio do estabelecimento de relações entre passado e presente. Este, segundo a teoria, situa-se sobre camadas de vestígios do passado. Acentuando-se ainda mais as diferenças entre os dois termos, nota-se que o contato no grupo e com outros grupos é que forma a memória coletiva e que todos os fatos gerados desse contato têm a sua importância; já a história, segundo esse conceito de história considerado por Halbwachs, é formada por fatos excepcionais. De combustíveis distintos, memória (coletiva) e história são alimentadas. Partindo das ideias de tempo e duração vigentes na época em que o sociólogo francês trabalhava em sua teoria, aproximadamente no período entre guerras, a de que o tempo seria um meio homogêneo e vazio, no qual as durações seriam de desenvolvimento e origem individuais, tanto em relação ao sujeito quanto em relação às outras durações, Halbwachs amplia as possibilidades de performatização de ambos, tempo e duração, a partir de possíveis representações sociais desses estados. Entrelaçados aos grupos sociais, eles passam a ser delineados dentro da diversidade de consciências coletivas8 existentes na sociedade9. A noção de duração perde seu caráter individual, em relação ao sujeito e às outras durações, a partir do momento em que se 7 Por “fato social” entende-se que, “em sentido estrito, todos os processos de interação social (v.) podem ser chamados de fatos sociais. Dada, porém, a estreita interdependência ente cultura e sociedade, também os objetos da cultura não material comportam essa denominação [...]. [Além disso], os fatos sociais têm um caráter específico, irredutível, fundamental; distinguem-se pelo seu caráter coletivo, isto é, por serem fatos pertencentes a um grupo como grupo, e pelo seu poder de coerção, isto é, por serem sujeitos à sanção social [...]” (AZEVEDO, 1961, p. 130-131, grifo nosso). Emile Durkheim, em Les règles de la méthode sociologique, assim afirma: “Os fatos sociais consistem em modos de agir, pensar e sentir, exteriores ao indivíduo e dotados de um poder coercitivo pelo qual se lhe impõem” (apud BOSI, 1979, p. 16-17). 8 A “consciência coletiva”, seria o “estado representativo, cognitivo e emocional, que abrange, além da própria pessoa, todos os indivíduos do próprio grupo, assim como interesses e valores culturais. A consciência coletiva inclui todos e tudo a que a palavra nós e nosso se reportam. Essa capacidade de representar as pessoas do próprio grupo e a cultura comum como unidade, constitui a fonte mais importante da coesão ou solidariedade social. As concepções mais antigas de uma consciência coletiva, acima ou afora dos componentes de um dado grupo, são mitos. [...] Conteúdo da consciência coletiva são as representações coletivas” (AZEVEDO, 1961, p. 182). 9 Considerando a problemática de definição do termo pelos sociólogos, o termo é entendido aqui por “conjunto relativamente complexo de indivíduos de ambos os sexos e de todas as idades, permanentemente associados e equipados de padrões culturais comuns, próprios para garantir a continuidade do todo e a realização de seus ideais. Nesse sentido, o mais geral, a sociedade abrange os diferentes grupos parciais (família, sindicato, igrejas, etc.) que dentro dela se formam” (AZEVEDO, 1961, p. 312-313). Dukheim é adepto de uma concepção bem diferente: “ao termo sociedade [ele] preferiu instituição, definindo a Sociologia como a ‘ciência das instituições, de sua origem e desenvolvimento’” (AZEVEDO, 1961, p. 312-313, grifo do autor). 27 considera que a “sequência de nossos estados não é uma linha sem espessura, cujas partes nada têm a ver com as que precedem e as que vêm depois” (HALBWACHS, 2006, p. 123). A ideia de total individualidade, nesse sentido, seria uma ilusão criada por uma permanência relativamente longa em uma mesma corrente de pensamento que “surge em nós e nos outros”, ou seja, tem a característica e “a tendência de um pensamento coletivo” (HALBWACHS, 2006, p. 123). Aliada a essa ilusão, outra mais viria à tona: a rapidez dos acontecimentos em uma dada sociedade, segundo o pensamento dominante na época de Halbwachs, estaria condicionada à quantidade de ações realizada pela mesma. Essa falsa impressão é desconstruída pelo sociólogo a partir do momento em que se deixa de estabelecer comparações entre os grupos (ou seja, não se tem a diferença como parâmetro) e se passa a considerar o significado dessas ações em um dado grupo, colocando, em primeiro plano, os estados de consciência dos membros do grupo em relação às mesmas ações, a importância das ações do grupo no grupo. Usando o mesmo princípio, dessa forma também seria reconstruída a noção de tempo, cujas delimitações de uso no grupo, segundo o sociólogo francês, variam de acordo tanto com as transformações do grupo/ sociedade, que fecham e abrem os tempos, quanto com as necessidades específicas de um dado grupo, ou seja, os chamados “centros de interesse” (HALBWACHS, 2006, p. 149), que determinariam a permanência de um dado tempo (uma “unidade” de tempo) na sociedade, mesmo que, às vezes, se tenha a necessidade de os centros de interesse serem “mais fortes” que as próprias transformações que ocorrem entre outros membros do grupo. Dessa forma, o “grupo novo”, aquele atingido/influenciado pelas transformações, passa a coexistir com o “grupo antigo” em um mesmo grupo, multiplicando-se, assim, os centros de interesse (Cf. HALBWACHS, 2006, p. 149). É a permanência de um desses centros de interesse, ainda que membros desse grupo se distanciem deste e passem a não compactuar/ compartilhar dos mesmos anseios, que garante que as lembranças surjam apesar de tudo o que parece se constituir como uma entrave para que estas apareçam. Nesse sentido, é possível notar a sobrevivência da memória do grupo em um indivíduo, embora este, aparentemente, pela longa distância em relação ao espaço e pelo longo tempo transcorrido desde o último encontro, não faz mais parte deste grupo: independentemente do seu querer ou não querer pertencer a esse grupo, a relação estabelecida se faz presente pela existência de uma consciência coletiva a envolver a todos. É assim que o narrador de No fio da vida: 28 uma Odisséia Açor-Americana (Autobiografia) (2013), de Francisco Cota Fagundes, ao se deparar novamente com o seu espaço de outrora, a ilha Terceira, Açores, e, a partir dessa ação, irresistivelmente reatar os laços com os membros desse grupo, é tomado por uma série de lembranças que jaz muito distante – considerando o sentido de tempo, espaço e cultura – de sua condição atual: Ouviu-se uma voz gritar de não sei onde. A madrinha deu ordem para parar o cortejo: era a Irene, a rapariga cega que era exatamente da minha idade e que costumava viver do outro lado da rua da nossa casa. Queria tocar várias pessoas para reconhecer quem eu era? Ela fê-lo. Quando me tocou já sabia. – Este é o Chico. Reconhecia-o em qualquer parte. Os meus olhos encheram-se de lágrimas enquanto recordava ter andado a pedir com ela e com os irmãos, o que a madrinha sempre detestara. Um dia deixara escapar o carrinho de madeira em que ela ia e o carrinho tinha ido pela colina abaixo com a pobre Irene aos gritos dentro. Felizmente não se tinha aleijado. Eu tinha feito aquilo para ver o que aconteceria. Devia ter uns seis anos mas já era um diabinho. E tudo fomos lembrando (FAGUNDES, 2013, p. 340, grifo nosso). Neste trecho são dois os momentos em que a força da memória coletiva se faz presente. Um deles, de caráter mais particular, é o fato de a menina cega recordar-se da feição do Chico de outrora a partir das características do rosto atual. E a outra manifestação coletiva da memória se apóia no argumento de que os fatos que são lembrados sobem à tona de forma conjunta pelos membros do grupo. Quanto ao primeiro, não nos é possível afirmar que o fato de Irene ter tateado Francisco quando em companhia dos mesmos membros desse grupo que cruzou os tempos se constituiu em um fato essencial para que ela ainda se recordasse dele, contudo, é inegável que essa condição em muito facilitou o seu trabalho, condição essa que, por si só, relativiza, ao menos em parte, o viés, a princípio, individual dessa manifestação memorialística. Já em relação ao protagonista, parece ser o contato promovido através do tato entre ele e a rapariga que lhe possibilitou recordar do fato do passado e, estabelecida essa ponte entre passado e presente, de todos passarem, a partir daí, a lembrar-se de tudo. Tendo como norte os escritos de Ecléa Bosi (1979), consideraríamos os seguintes dizeres da estudiosa para o surgimento desse tipo de lembranças a que acima nos referimos e que, ao menos em um primeiro momento, não estabelecem nenhum ponto de contato com a situação atual do indivíduo – no caso, o protagonista Francisco – que lembra: “Ao lado da história escrita, das datas, da descrição do período, há correntes do 29 passado que só desaparecem na aparência” (BOSI, 1979, p. 33). Fagundes não compartilha mais de um mesmo espaço que seus antigos parentes, contudo, a corrente do passado, como vemos no trecho supracitado e na análise feita a posteriori, ainda existe. Segundo Halbwachs, basta a memória tentar se lembrar de um fato, seja ele o mais distante e fugidio, que um elemento sempre comporá essa lembrança: o espaço10. A memória sempre se reportará ao ambiente anteriormente conhecido por quem lembra (Cf. HALBWACHS, 2006, p. 188). Ou seja, a memória coletiva também se situa em um meio espacial. É quando ela se fixa nele que surgem as lembranças. Além das lembranças, os espaços físicos trazem conforto aos grupos por serem uma espécie de materialização da soma das tradições da comunidade que “sobrevive” no presente11. É por isso que, segundo o autor, algumas pessoas sentem mais a perda de suas construções materiais do que as transformações sócio-político-culturais. Também é por isso que a intensidade do apego da memória coletiva nas imagens sociais de um dado grupo pode ser medida pela resistência do mesmo em relação às mudanças em seu espaço (Cf. HALBWACHS, 2006, p. 162). Ou seja, quanto mais antigas e tradicionais forem as construções, mais sua memória coletiva será composta por imagens sociais. Para o grupo, do arranjo dessas imagens emana tradição, arranjo esse que simboliza a resistência de um grupo. É por isso que as atividades antigas que persistem nos velhos espaços do grupo são privilegiadas pela memória do mesmo: são estes sempre os primeiros espaços a serem lembrados. Contudo, segundo o autor, não são os espaços que unem o grupo, mas, sim, suas afinidades e atividades relacionadas e compartilhadas entre os membros desse grupo nesse espaço. Mas o livro halbwachsiano revela ainda que não é somente pela configuração atual do espaço que atua a materialidade, mas também por meio de imagens que ora são 10 Apesar de Maurice Halbwachs se utilizar do termo “espaço” no título de seu capítulo, há outros elementos (que são referenciados pelo sociólogo) cujo “raio de influência” na vida do sujeito acontece quase que da mesma forma, como os objetos, os documentos e os contratos. 11 Entenda-se que o conforto, nesse sentido, está relacionado à retomada do espaço que é familiar ao sujeito, “eles [os objetos (e, como se pode perceber com base na nota acima, também os espaços)] são uma espécie de companhia silenciosa e imóvel, estranha à nossa agitação e às nossas mudanças de humor, e nos dão uma sensação de ordem e tranqüilidade” (HALBWACHS, 2006, p. 157), é dessa espécie de familiaridade que brota o conforto. Já em relação à possibilidade de uma sensação de conforto vindo da lembrança evocada no espaço em questão, esse evento (muito provavelmente) dependerá do conteúdo da lembrança e do caminho percorrido pelo sujeito ao evocá-la a partir do quadro social do presente que possibilitou que essa lembrança fosse (re)construída. 30 reproduzidas por ele e nele. Relações estabelecidas no passado persistem no presente por meio do círculo material que “abriga” o que a ele foi anteriormente relacionado, pois, "A lembrança não é uma realidade e sim uma operação: não existe lembrança, nós nos lembramos. Nós nos lembramos captando em alguma coisa que nos esteja sendo dada outra coisa que não nos é dada: a significação do passado" (POUILLON, 1974, p. 40). Passam-se anos, mas as marcas sociais podem ser vistas como que incrustadas nos espaços, mesmo que eles tenham sido modificados: no espaço base que abrigou o “velho” e que agora abriga o “novo” de alguma forma sobrevivem os vestígios do passado. No romance Memórias de Lázaro (1952), quando o narrador-protagonista se depara com o “novo”, as paredes, agora, enegrecidas, marcas da destruição de sua moradia, há um desespero e um conforto no momento em que Alexandre se encontra cerceado por essas paredes, pois é imerso na angústia daquilo que foi destruído que ele encontrará abrigadas aquelas que são suas memórias: Ponho a lanterna no chão, onde foi o alpendre, e respiro o ar exausto do vale. Não fosse o vento, não fosse também a excitação da memória, e talvez se aquietassem as fibras nervosas, fluindo uma sensibilidade menos irascível. Além do vento e da memória, porém, há a primeira parede, enegrecida, a marca do fogo nos tijolos. A seguir, outra. E mais outras, depois. É um cerco aberto, são colunas isoladas, aprumadas como homens. No espaço livre que limitam, e que a mim parece um estômago exposto, sobrevive ainda, aprisionado, um mundo que ignoro possa ser novamente meu. A desolação do interior não me assusta e, erguendo novamente a lanterna, encerro-me entre as paredes que Jerônimo ajudou a construir. Observo que o fogo tudo consumiu, móveis e roupas, as portas e o teto – tudo consumiu, repito, menos as fantásticas paredes que me parecem reveladas no circuito da luz e ignoradas nas sombras noturnas (ADONIAS FILHO, 1970, p. 13, grifo nosso). O desespero evidente de Alexandre, por um lado, revela a importância desse espaço para o filho de Abílio, contudo, por outro lado, camufla uma verdade, aparentemente desconhecida por ele. É evidente que é o abalo na estrutura material que faz com que o protagonista sinta angústia, mas há uma espécie de conforto, ao que tudo indica, desconhecido para ele em relação a essa dinâmica estabelecida entre espaço e personagem. Assim entendemos, pelo fato de que, apesar de suas memórias se apoiarem nesse lugar que foi modificado desde a última vez em que Alexandre o viu, ainda são esses restos que se constituem como verdadeira e forte estrutura para o aparecimento de 31 suas recordações. De alguma forma, a memória de um indivíduo agarrado aos vestígios e, aparentemente, ciente dessa, para ele, fundamental dependência, mostra-se mais sólida que esta morada: os vizinhos queimaram a sua casa, mas não destruíram a morada que ele abriga em sua memória, ela é mais forte, ela subjaz a esse acontecimento. Sim, Alexandre se mostra depende desse espaço, mas suas memórias têm uma dimensão que é maior que ele. São a marcas similares a essas marcas da tradição que se apegam os fiéis quando depositam valor e importância nos espaços religiosos. Quando buscam na materialidade a marca das religiões por meio de ideias e imagens, ainda que o “código divino” das escrituras afirme que Deus está em toda a parte. Outro espaço social, o espaço jurídico, também evoca lembranças por meio da memória coletiva: a imobilidade dos espaços, forte característica destes, oferece garantias de permanência também aos espaços jurídicos. Essas “garantias” imóveis também migram para os acordos sociais, como os contratos, pois “é impossível que a imobilidade das pessoas e a permanência de suas atitudes recíprocas não se expressem sob forma material e não se delineiem no espaço” (HALBWACHS, 2006, p. 174). Por vezes, é a necessidade de manutenção da memória de um dado grupo pela prática dos rituais que garante a sobrevivência de uma coletividade, mesmo que membros do grupo venham a separar-se. De acordo com o que acima descrevemos, essa necessidade imperativa de manutenção de um ato ritualístico seria uma espécie de possível roupagem dos sentimentos de conservação que se apoderam do sujeito em relação às práticas de ordem religiosa. Na narrativa de Sandra Cisneros, The house on Mango Street (1984), o imigrante que precisou deixar sua terra em busca de melhores condições de vida estabelece uma pausa em seu trabalho, deixa a família, segue rumo ao país de origem por uma necessidade maior. Essa necessidade é pautada na condição e na ciência de ainda ser pertencente ao “velho” grupo, composto por membros da família e da comunidade da qual ele fazia parte. A volta do filho da terra é que garante a sobrevivência desse grupo por meio da manutenção, quiçá, da perpetuação dos tradicionais rituais fúnebres praticados junto aos que estão para além das fronteiras do lugar em que “agora” se habita: Nosso abuelito está morto, Papa diz logo cedo em meu quarto. Está muerto, e então como se ele acabasse de ouvir a notícia dele mesmo, 32 ele se enruga e chora, meu corajoso Papa chora. Eu nunca tinha visto meu papa chorar e não sei o que fazer. Eu sei que ele precisa ir, que ele vai pegar um avião para o México, todos os tios e tias estarão lá, e eles terão uma foto em preto e branco tirada em frente ao túmulo com flores em forma de lança em um vaso branco porque é assim que eles encomendam a morte naquele país (CISNEROS, 1991, p. 56, grifo nosso).12 Interessante destacar que há um empenho por parte de Papa para que ele esteja presente no velório do pai, entretanto, essa necessidade não é somente enxergada por aquele que participará de todo o cerimonial. A família, aqui representada pela voz de Esperanza, reconhece o caráter imperativo da viagem que será feita. Ou seja, as entrelinhas dos acontecimentos nos indicam que a tradição passada de geração a geração na convivência familiar foi efetivamente compreendida e/ ou apreendida pela garota. Talvez, Esperanza nunca tenha presenciado esse tipo de funeral, contudo, aquilo que o pai ou mesmo outros familiares contaram para ela sobre essa questão lhe foi suficiente para que ela, dessa forma, afirmasse: “Eu sei que ele precisa ir [...]” (CISNEROS, 1991, p. 56). Enfim, da relação estabelecida entre memória coletiva e os elementos que serviram de contraponto para a escrita da teoria de Maurice Halbwachs, uma ideia perpassa todos os pontos de sua teoria: a memória coletiva é formada pelos quadros sociais vivos que se acumulam no espaço através do tempo. Segundo Seixas (2001), é o olhar para trás em busca de similaridades que, além de compor a memória, conseguiria, na atualidade, explicar realidades sociais que parecem mesmo ter sido “intuídas” pelo sociólogo francês (Cf. SEIXAS, 2001, p. 96). Devido à importância, ou melhor, ao fato dos quadros sociais serem verdadeiros elementos-chave dentro da teoria de Maurice Halbwachs, tracemos algumas considerações acerca deles. Ao longo de seu artigo “Halbwachs e a memória- reconstrução do passado: memória coletiva e história” (2001), Jacy Alves de Seixas tece importantes definições e considerações sobre o quadro social halbwachiano. Segundo a autora, o quadro social se estabelece como uma espécie de “poderoso sujeito coletivo” 12 Your abuelito is dead, Papa says early one morning in my room. Está muerto, and then as if he just heard the news himself, crumples like a coat and cries, my brave Papa cries. I have never seen my papa cry and dont't know what to do. I know he will have to go away, that he will take a plane to Mexico, all the uncles and aunts will be there, and they will have a black-and-white photo taken in front of the tomb with flowers shaped like spears in a white vase because this is how they send the dead away in that country (CISNEROS, 1991, p. 56, grifo nosso). 33 impessoal, “que se refere a um só tempo às idéias e às representações imaginadas instituintes do pensamento social” (SEIXAS, 2001, p. 100-101), mas ideias com imagens (antibergsonismo...). Este sujeito nos é exterior, imóvel, mas não imutável, não são nossa obra exclusiva e se impõe a nós de fora (Cf. SEIXAS, 2001, p. 100-101), ou seja, segue a linha da objetividade e exterioridade tão caras a Maurice Halbwachs. Não estando as lembranças presentes no indivíduo em si – tal como Bergson afirma em sua teoria – as lembranças, para Halbwachs, seriam construídas a partir do quadro social e, nesse sentido, este edificaria tanto a memória quanto o esquecimento, circunscrevendo e controlando a memória coletiva à medida que a reconstrói. Sendo esse poderoso sujeito coletivo uma entidade viva, posto que está em constante transformação, o movimento orgânico, quase uma função respiratória que lhe caracterizaria, é descrito da seguinte forma: “os quadros sociais constituem fatos sociais, na acepção durkheiniana, ao mesmo tempo contrainte e interiorização, tornando-se com o passar do tempo um habitus“ (SEIXAS, 2001, p. 106). De forma a reafirmar a marca desse que é elemento central dentro da memória coletiva, na verdade, segundo Bosi (1979), Halbwachs busca, na elaboração de toda a sua teoria, “fixar a pertinência dos ‘quadros sociais’ e das instituições13 e das redes de convenção verbal no processo que conduz à lembrança” (BOSI, 1979, p. 25). É Jacy Alves de Seixas, ainda em seu artigo de 2001, quem estabelece estreitas relações entre a teoria halbwachsiana e a “função” da memória na contemporaneidade. Mesclando alguns pontos da teoria contida em A memória coletiva (1950) e em Les cadres sociaux de la mémoire (1925, data da primeira publicação em francês) aos conceitos atuais – e polêmicos – de história e historiografia elaborados por Pierre Nora, além de outros escritos contemporâneos que, segundo a estudiosa, derivam da teoria de Halbwachs. 13 Apesar do termo “instituição” estar presente, como já pudemos observar, na definição de Durkheim de sociedade, este não foi por nós utilizado na descrição da teoria de Maurice Halbwachs. Contudo, não abriremos mão de transcrever a sua definição, visto que a ideia deste perpassa, de alguma forma, toda a teoria, sobretudo na relação entre memória e espaço. Assim, segundo Azevedo (1961), “instituição social” é um “complexo integrado por idéias, padrões de comportamento, relações inter-humanas e, muitas vezes, um equipamento material, organizados em torno de um interesse socialmente reconhecido. As instituições desenvolvem-se de costumes nos quais continuam radicadas. Normas ou leis escritas são qualidades meramente incidentais na vida das instituições, sobrepondo-lhes somente nas chamadas sociedades civilizadas. Essencial é apenas o consenso (v.) social, sem o que jamais se estabelece uma verdadeira instituição” (AZEVEDO, 1961, p. 182). Ainda no verbete, o autor irá afirmar que, para Durkheim, “as instituições seriam o verdadeiro objeto da Sociologia, e as características como todas as maneiras de pensar e de agir ‘que o indivíduo encontra preestabelecidas na sociedade e cuja transmissão se faz geralmente pela educação’” (AZEVEDO, 1961, p. 182). 34 Em um dos resultados desse procedimento adotado por Seixas, ela afirma que é possível entender as memórias de êxodo e exclusão sociais, tão evidentes na contemporaneidade, a partir dos quadros sociais que, como já foi dito, são elementos fundamentais da teoria halbwachsiana. Uma das bases mais fortes da teoria de Halbwachs, a multiplicidade de quadros sociais formadores da memória oriundos da também multiplicidade de relações travadas entre membros dos grupos e entre outros grupos (realidade social no contexto da teoria do sociólogo que ganhou “cores mais fortes” na realidade social do agora segundo nos afirma Seixas (2001)), é que garantiria a atualidade dos escritos de Halbwachs. Contudo, ao discorrer sobre a memória dos afetos, a autora faz uma ressalva e demonstra a necessidade de diluição da dicotomia real e irreal14, salientada na teoria, para que outras manifestações de memória de cunho subjetivo possam ser também explicadas. Além desse par dicotômico, real e irreal, outro par, ainda segundo a autora, necessitaria ser diluído: a oposição binária entre memória e história (SEIXAS, 2001, p. 107), identificada pelo sociólogo francês e descrita por ele em sua teoria. Nesse sentido, Seixas apresentará as considerações de Pierre Nora em que este, ao identificar uma espécie de necessidade de repaginação dessa ciência, mais especificamente da forma como ela “pinça” os acontecimentos sociais para construir seu discurso, termina por apropriar-se do método da memória, no entanto, colocando-a como uma espécie de subproduto da história, em virtude, talvez, do seu forte teor subjetivo, pois, para ele, “a memória é a tradição vivida – ‘a memória é a vida’ – e sua atualização no ‘eterno presente’ é espontânea e afetiva, múltipla e vulnerável; a história é o seu contrário, uma operação profana, uma reconstrução intelectual sempre problematizadora que demanda análise e explicação, uma representação sistematizada e crítica do passado” (SEIXAS, 2004, p. 40). Daí entendermos os procedimentos de Nora como sendo polêmicos, segundo nos afirma Seixas. Contudo, importante ressaltar que, ao contrário do método de outros estudiosos da memória que se valem da filosofia e também da literatura para a elaboração e a escrita de suas considerações, ou seja, dialogam com outros discursos de forma a validar o seu próprio, Nora opta por deixar esses outros saberes à parte. Aparentemente, os fundamentos da metodologia da história de que Halbwachs falava em seu tempo são os “problemas” que foram apontados na atualidade. 14 Principalmente nos trechos da teoria em que Halbwachs disserta sobre memória individual e sobre duração, pois, nesses pontos, é possível notar que ele constrói uma verdadeira barreira contra a memória inconsciente e a dureé bergsonianas. 35 Retomando os dizeres do autor de A memória coletiva, o apego da história ao posicionamento cronológico e às diferenças, sem qualquer relação com os fatos “vividos”, revelaria uma espécie de não-função da ciência. À parte as discussões em torno da apropriação de Nora, mas tendo esse, digamos, “extremo”, como sendo o esforço resultante ou mesmo uma reação a essa concepção halbwashiana acerca da construção do discurso da história, segundo a autora, a memória tem sido vista hoje como um “dado histórico inovador”, capaz de explicar diversos pontos nodais das memórias contemporâneas, como, por exemplo, a relação entre memória e exclusão social. Vale dizer que, hoje, essas exclusões não estão atreladas aos “antigos” grandes êxodos em que grandes grupos sociais emigravam para o além-mar em busca de melhores condições socio-político-econômicas de vida; mas deriva, sim, desse movimento, pois permanece a ideia do deslocamento, contudo, agora ele é feito por sujeitos que rumam a lugar algum, os dos botes infláveis: serão estes os que irão formar os novos guetos. Ao lado destes, surgem também os guetos simbólicos das fronteiras não palpáveis, como as da sexualidade e as dos gêneros (Cf. SEIXAS, 2001, p. 96). É, dessa forma, que os conceitos de memória conquistam cada vez mais espaços dentro dos estudos históricos, em que noções como as de lugares de memória e memória historicizada desses sujeitos dos direitos e deveres da memória contemporânea ganham cada vez mais notoriedade entre os historiadores (Cf. SEIXAS, 2001, p. 95-97). Para entender essas novas configurações da memória acima delineadas, vale, aqui, estabelecer um panorama dessa, por vezes, conflituosa relação entre memória e história ao longo dos tempos. A predominância do ideal de pensamento das ciências naturais, atuante em fins do séc. XIX e início do século XX, condenava os chamados, segundo Galileu, "doutores da memória" (LORIGA, 2009, p. 14). Seguindo a mesma linha, Pascal afirmava, ainda segundo Loriga (2009), que esses doutores – na verdade, herdeiros dos gregos da época clássica que, segundo Seixas, por meio de “uma aproximação fecunda e problemática entre memória e história”, constituíam a primeira “finalmente como o meio privilegiado de acesso ao verdadeiro conhecimento” (SEIXAS, 2004, p. 39) – atuantes em campos tais como o da história, o do direito, o da teologia, o da geografia, não poderiam ser considerados dignos filósofos, visto que não buscavam as verdades ocultas, pois tinham por base o que fora construído por seus ancestrais. 36 Entendemos, a partir desses apontamentos, algumas imbricações importantes que nos fazem compreender as fases que marcam a relação estabelecida entre memória e história. A primeira é a de que, ao contrário dessa necessidade de Halbwachs em separar a memória e a história, os primeiros passos na formação dos discursos desses saberes, muito provavelmente, não foram marcadamente distantes, pois o processo de conexão no qual a memória se estabelece era o método, de forma geral, senão adotado, ao menos difundido como o prevalecente na formação dos discursos das humanidades. A segunda, marcada pela "alforria", pela necessidade da História e da Historiografia de trilharem um caminho não só diferente, mas, sobretudo, distante do trilhado pela memória, já que não parecia ser interessante a associação para a formação de um discurso independente. E, terceiro, a reconciliação, essa espécie de necessidade atual da História de rever a sua própria base e, em dada medida, alinhar-se à memória e reinventar-se. Necessidade, essa, que, em dada medida, retoma os pensamentos de Pascal e Galileu e os transcende, posto que não há mais a presença do método histórico na ideia que se tem de memória, ou seja, que esta fosse construída por dados estáticos do passado. Essa transposição do tipo de olhar da memória de Halbwachs para os estudos da história, realizada pelos estudiosos, que acrescenta novos matizes ao conceito de história, reestruturando-o de forma a que ela “sobreviva” na atualidade, por meio de um posicionamento que valoriza os vivos quadros sociais do presente sem, contudo, desprezar os tais vestígios, componentes de suas camadas, alia-se, de alguma forma, a um conceito que também merece ser revisitado: os conceitos (e a diferenciação) de gênese e de origem elaborados por Walter Benjamin. Para tanto, analisemos a problemática que envolve a definição dos dois identificada por Benjamin. Partiremos pelo caminho mais prosaico, as definições encontradas em dicionários, para, em seguida, entender a construção da ideia formulada e desenvolvida em seus escritos sobre o Barroco Alemão. Entrelaçando as definições dos verbetes encontrados nos dicionários Aurélio e Houaiss da língua portuguesa, entende-se por gênese a formação/ constituição/ desenvolvimento dos seres, “conjunto de fatos ou elementos que contribuíram para produzir uma coisa” (HOUAISS, p. 964); e a marcação que mais nos interessa é que o termo origem é colocado como espécie de sinônimo de gênese nos dois dicionários. No que se refere ao termo origem, este é colocado como ponto inicial, princípio, começo, procedência de uma coisa que tem continuidade no tempo (Cf. HOUAISS, p. 1398, grifo nosso); é marcado ainda como 37 sendo local de nascimento, procedência, naturalidade, sequência das gerações anteriores de um indivíduo ou família, fonte, nascente de um rio. Não considerando, neste momento, as diferenças entre a língua portuguesa e a alemã – da e na qual Benjamin encontrou outras especificidades que lhe chamaram a atenção – o que nos salta aos olhos é o fato de que, no verbete que define gênese, o termo origem é tido como sinônimo do primeiro, dado este que, como veremos, é justamente o ponto contestado pelo filósofo alemão a partir qual ele desenvolve suas considerações. Tendo ainda os dicionários por base, consta trazermos à baila também o termo gênesis, em seu sentido bíblico, que é o primeiro livro da bíblia, no qual se encontra a descrição da criação, geração do mundo. Complementando ainda a ideia cunhada pelo livro base cristão, vemos no Dicionário enciclopédico da bíblia (1971) o termo ser referido como um livro cujo conteúdo e estrutura abrigam uma série de histórias de origens em diversos planos, como por exemplo: o plano que abrange toda uma humanidade e o que se circunscreve a uma nação (Cf. Dicionário enciclopédico da bíblia, 1971, p. 628-629). Diz-se, ainda, que “tal redação final [do Gênesis] cristalizou- se em torno de um escrito herdado do passado que, havia muito tempo, se tinha fixado, sintetizando tradições principalmente orais de um dado grupo”, que não podem ser colocadas com exatidão na linha da história, mas que são frutos de uma “tradição ampla em movimento” que, em virtude dessa condição não estagnada, se enriquece com dados da experiência dando uma imagem mais próxima da vida de Israel (Cf. Dicionário enciclopédico da bíblia, 1971, p. 628-629). Pensando nesse sentido de coletividade, relacionado, segundo a fonte, ao teor histórico das Escrituras, torna-se mais fácil entendermos a ênfase na projeção para o futuro, marcada pela Teologia: Esse limitado valor histórico não prejudica a mensagem bíblica. Pois essa narrativa sobre as “primeiras coisas” (do mundo e da humanidade e depois de Israel) é uma “protologia”; refere-se apenas aparentemente ao passado longínquo; na realidade exprime a fé no futuro do homem e de Israel, refere-se antes às últimas coisas: a protologia bíblica é escatologia. A fé descobre o sentido da vida, pois abre uma perspectiva para um homem melhor num mundo melhor; percebe na história da existência humana as verdadeiras intenções de Deus, aquilo que o homem e Israel deviam ser e, apesar de tudo, ainda podem vir a ser.[...] O ponto de partida do Gên não é, pois, o passado, mas o presente nacional de Israel e a situação em que o homem de fato se encontra. Por uma referência ao passado, que na realidade é uma perspectiva para o futuro, o Gên quer contribuir para uma iluminação da existência pela fé. Por isso os materiais e a narrativa devem frequentemente mais à atualidade do que ao passado 38 (DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DA BÍBLIA, 1971, p. 630, grifo nosso). Dessa forma, notamos que, apesar de a definição do termo encontrado no dicionário bíblico corroborar, ao seu modo, a questão da sinonímia em relação aos termos supracitados, já que coloca o Gênesis como a compilação de uma tradição oral e sua projeção para o futuro, algo como que “uma continuidade no tempo”, relacionando- a à própria definição do termo origem no dicionário, essa relação acontece de forma inversa. Ou seja, se no dicionário “comum” encontramos um sentido de equivalência de gênese em relação a origem, mas não o contrário, não há como negar que, na enciclopédia bíblica, há uma espécie, no mínimo, de identificação entre a descrição do primeiro livro do Pentateuco e a definição de “origem” do dicionário, mais que isso, a definição do termo gênese no dicionário pouco pode ser alinhada à definição do Gênesis, pois o primeiro parece ter o objeto como delimitante, já o segundo, marcado pelo movimento, tem como norte a consequência, “tudo” o que surgiu “a partir de”. Em Origem do drama trágico alemão (2011)15, fica-nos evidente que Benjamin também parte da definição do dicionário para a marcação da diferença entre os termos. Mas, se em português é o significado dos vocábulos que gera essa propensão a não distinção entre os termos, em alemão é na etimologia da palavra que as coisas já começam a se complicar. Entstehung significa gênese em alemão e ursprung origem, mas –stehung também significa origem, daí a explicação da confusão quando na associação imediata entre os termos e a necessidade de dissociação enxergada e feita por Benjamin. Acrescentemos, ainda, que o termo –sprung significa salto, dado este que nos revela uma nova dimensão do termo. De posse dessas significações, gênese se coloca como um encadeamento e origem como um salto dentro da obra benjaminiana, já que origem, segundo Benjamin (2011), “não designa o processo de algo que nasceu, mas antes aquilo que emerge do processo de devir e desaparecer” (BENJAMIN, 2011, p. 34). Em uma espécie de necessidade do outro ou mesmo de movimento contínuo de busca pelo termo, que é recíproco – gênese busca origem ao passo que origem também procura por gênese – para que ambas construam suas próprias definições a partir da forma do outro: 15 Como visto, daremos preferência à tradução de João Barrento quando nas considerações tecidas acerca da obra, contudo, não abriremos mão do prefácio de Sérgio Paulo Rouanet na sua tradução intitulada Origem do drama barroco alemão (1984). 39 A origem insere-se no fluxo do devir como um redemoinho que arrasta no seu movimento o material produzido no processo de gênese. O que é próprio da origem nunca se dá a ver no plano do factual, cru e manifesto. O seu ritmo só se revela a um ponto de vista duplo, que o reconhece, por um lado como restauração e reconstituição, e por outro como algo de incompleto e inacabado (BENJAMIN, 2011, p. 34). O movimento capaz de resgatar o material, os fenômenos, as obras literárias é o salto dado no ato mesmo do reconhecimento. De alguma forma, também é esse reconhecer que Benjamin tem como ideia quando distingue os termos sistema e tratado: “O sistema se baseia na continuidade, na coerência ininterrupta dos seus vários elos, ao passo que a descontinuidade [um salto, por exemplo] é a lei do tratado” (ROUANET, 1984, p. 22). Aproximando as considerações benjaminianas à ideia de Halbwachs, vale dizer que também essa forma de pensar se alinha especificamente à diferenciação entre memória e história colocados por Halbwachs, é Rouanet (1984) quem nos explica: [...] o historiador dialético deve libertar o objeto histórico do fluxo da história contínua, salvando-o, sob a forma de um objeto-mônada; fragmento de história, agora intemporal, que o olhar da Medusa do historiador mineraliza, transformando-o em natureza, e que como tal dá acesso à pré-história do objeto, e à sua pós-história. Na perspectiva da história descontínua, a única verdadeiramente dialética, não se pode portanto falar de gênese, que supõe o vir-a-ser e o encadeamento causal, e sim em origem, que supõe um salto no Ser, além de qualquer processo (ROUANET, 1984, p. 19). Tendo essa definição, ou melhor, esse procedimento como norte, Walter Benjamin, ao analisar as nuances da estrutura do drama trágico alemão a partir de um critério estético singular, que não invalida as obras consideradas menores para a determinação daquela que ele considera como “a forma do barroco”, estabelece um procedimento de pesquisa que alcança novos horizontes. Nesse sentido, essas representações tidas como secundárias e, por isso mesmo, comumente desconsideradas, transparecem, ao contrário do que em um primeiro momento possa parecer, uma maior evidência dos contornos desse perfil estético literário. Ou seja, a partir do confronto entre os extremos, por meio de saltos entre obras “maiores” e “menores”, Benjamin constrói o caminho da origem do drama trágico alemão. Nesse sentido, na perspectiva estrutural (e original), não são os encadeamentos cronológicos e lineras que contam, e sim as afinidades internas, independentemente tanto da distância que separa as duas épocas em que o fenômeno, obra literária, se estabelece, quanto do valor estético que a 40 tradição deposita nessa obra. Gagnebin (2007), ao falar sobre as "Teses" de Benjamin16, explicita essa relação tendo por base a corrente histórica: Quando Robespierre cita a Roma antiga (Tese XIV), Benjamin vê nesta retomada, talvez inábil, o esboço de uma ligação inédita entre dois fenômenos históricos; graças a essa ligação, dois elementos (ou mais) adquirem um novo sentido e desenham um novo objeto histórico, até aí insuspeitado, mais verdadeiro e mais consistente que a cronologia linear (um pouco como esses jogos nos quais a criança deve interligar entre eles os pontos esparsos no papel que, subitamente, revelam uma figura insuspeitada). Em oposição à narração que enumera a sequência dos acontecimentos como as contas de um rosário, este procedimento, que faz emergir momentos privilegiados para fora do continuum cronológico, é definido, no fim das "Teses", como a apreensão de uma constelação salvadora (GAGNEBIN, 2007, p. 15). Dessa forma, da definição do dicionário, passando pelas colocações bíblicas do Gênesis até chegar aos apontamentos que se tornam conceitos dentro dos escritos de Walter Benjamin, é possível observar que a marcação da coletividade e da tradição são, via de regra, colocadas em segundo plano quando da escrita historiográfica tradicional, linha da gênese. Servindo-nos do discurso no qual se faz o nosso próprio material de consulta, notamos que, por detrás da definição do Gênesis do dicionário-enciclopédia, há claramente uma crítica negativa acerca do fato de que conteúdo do livro bíblico provém das histórias orais de uma coletividade, obtidas na tradição, essa opinião assim se apresenta: “Esse limitado valor histórico não prejudica a mensagem bíblica” (DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DA BÍBLIA, 1971, p. 630, grifo nosso). Tendo em mente a problemática que envolve os termos e, principalmente, as considerações de Seixas sobre a memória como um dado inovador da história na contemporaneidade, parece ser de um conceito de história similar ao que está sendo construído atualmente que Walter Benjamin fala quando distingue o termo gênese do termo origem. Segundo Rouanet (1984), “as idéias originadas na história, são, portanto, em si mesmas intemporais, mas contém sob a forma de ‘história natural’, ou virtual, uma remissão à sua pré e pós-história” (ROUANET, 1984, p. 18, grifo nosso). Ora, as características dessas idéias originadas na história se alinham bem aos conceitos de memória coletiva produzidos por Halbwachs, pois, ao se ter em mente o conceito de origem e ao se associar o mesmo ao “comportamento” de um dado memorialístico, a 16 Este trabalho do filósofo alemão é intitulado tanto por "Sobre o conceito de história" (título este que consta em nossas referências) quanto por "Teses de filosofia da História". 41 lembrança, por exemplo, é possível perceber que ela não teria condições de vir à tona se não tivesse estabelecido contato com outras “entidades”: ela foi formada em um dado espaço (que, por sua vez, já serviu de “cenário” para que outros quadros sociais fossem formados, ou seja, potenciais futuros dados memorialísticos) por meio de relações realizadas entre o(s) grupo(s) social(ais) e (somente) conseguiu “reaparecer” nessa evocação devido à relação que esse dado do passado estabelece com o quadro social construído no presente, ou seja, em dada medida, essas relações revelam o que se poderia chamar de uma espécie de “pré e pós-história”, a origem (benjaminiana) dessa lembrança. Nesse sentido, o efeito remissivo desses dados históricos (e memorialísticos), dentro de uma estrutura com começo, meio e fim, as narrativas literárias, revelaria, por exemplo, por meio de um dado quadro social capturado, tanto os vestígios da tradição que o precedeu, quanto também poderiam prenunciar os quadros sociais que posteriormente serão privilegiados e também capturados pela memória coletiva. Dentro dessa visão panorâmica envolvendo a temática da memória e também da lembrança, a literatura não exerceu (nem exerce) papel de coadjuvante: ela foi, na verdade, a pioneira na análise dos fatos humanos (Cf. DUVIGNAUD, 2006, p. 15-16). Ainda segundo o autor supracitado, a sociologia começou, de fato, a refletir sobre a temática da memória depois da literatura, a partir do momento em que foi possível observar o dado social no evento de memória, ou seja, quando ele, o