No prefácio escrito por Michel Fleury e Louis Henry para o trabalho de Maria Luiza Marcílio, intitu- lado A cidade de São Paulo: povoamento e população (1750-1850), os pais da demografia histórica francesa assinalaram a importância da pesquisa como o início de uma nova perspectiva dos estudos demográficos para o estado de São Paulo e, sem dúvida, para o Brasil. Destaque importante dessa obra é o fato de ela relacio- nar, por um lado, o estudo de uma população específica com suas muitas variáveis – como origem social (livre e escrava), origem geográfica (imigrantes) e econômica – e, por outro, utilizar os Registros Paroquiais da Freguesia da Sé e os recenseamentos ou Listas Nominativas para a cidade de São Paulo como fontes para o estudo demográfico a partir do método preconizado por Fleury e Henry, chamado “reconstituição de famílias”. Neste livro, Paulo Eduardo Teixeira elegeu o muni- cípio de Campinas como objeto de seu estudo, no qual pretende contribuir com e dar continuidade a essa construção do conhecimento acerca do comporta- mento da população paulista no passado, alargando as discussões propostas por Marcílio e por outros autores dentro da perspectiva da Demografia Histórica e dialo- gando com a História Social. A escolha da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas não foi aleatória. Ao longo de sua trajetória acadêmica, o autor dedicou parte de seus estudos a esse pequeno bairro da vila de Jundiaí, que, no século XVIII, deixou de ser apenas um pouso para tropas que seguiam rumo às minas de Goiás para se tornar, no despontar do século XIX, uma vila que atraiu os olhares de inúmeros migrantes. O primeiro fruto desse trabalho foi a pesquisa de mestrado em que o autor analisou a questão do povoamento dessa região vinculado à chefia dos domicílios, especialmente o de mulheres, e que foi publicado em 2004 sob o títu- lo de O outro lado da família brasileira. Tal conhecimento o aproximou das questões demográficas propriamente ditas, e, assim, Teixeira vislumbrou a oportunidade de estabelecer um diálogo profícuo sobre os sistemas demográficos no Brasil, principalmente porque para áreas de plantations isso ainda não havia sido realizado. Na primeira parte deste livro, o autor apresen- tará os padrões familiares que marcaram o período da história de Campinas, que se inicia em 1774, com o estabelecimento da freguesia, até o ano de 1850. Procurará também revelar, por meio do estudo da fecundidade, nupcialidade, mortalidade e migrações, quais os padrões demográficos de uma sociedade de plantation ao longo do período proposto. Na segunda parte, Teixeira analisará como se deu a formação das famílias de diversos estratos sociais, como a família dos senhores de engenho, consideradas as famílias da elite campineira, assim como as famílias dos diversos trabalhadores pobres, muitos dos quais mantinham estreitos vínculos com elementos cativos. Importante notar a distinção que o autor faz entre aqueles que formaram famílias legítimas diante da sociedade da época (entendendo por isso as uniões que preencheram as condições das leis religiosas e civis) em oposição às pessoas que, apesar de não se casarem diante do altar da igreja, constituíram famílias que tiveram uma organização peculiar, respeitada pela comunidade onde viviam os esposos, especialmente nos meios populares. Em virtude dos detalhes metodológicos envol- vidos ao longo das etapas do trabalho de coleta e tabulação dos dados, o autor apresenta ao fim do livro um Apêndice Metodológico, no qual aqueles que dese- jarem conhecer as técnicas adotadas e empregadas poderão certamente encontrá-las de forma detalhada e ampla. Paulo Eduardo Teixeira possui graduação (1987) em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestrado (1999) em História Social pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), campus de Franca, e doutorado (2005) em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília. Tem experiência nas áreas de História e Demografia Histórica, com ênfase nos seguintes temas: população, família, gênero, chefia de domicílio, movimentos migratórios, escra- vidão, economia e sociedade. A formação das famílias livres Paulo Eduardo Teixeira Paulo Eduardo Teixeira A form ação das fam ílias livres Em São Paulo, o aumento demográfico no século XVIII provocou a ocupação de novas porções do território, ampliando o espaço agrícola e empurrando progressivamente as fronteiras mais para o Oeste e para o Sul. Por trás desse aumento populacional, estava uma política colonial de povoamento, iniciada com a Restauração administrativa da Capitania de São Paulo, em 1765. Neste livro, Paulo Eduardo Teixeira elegeu a região de Campinas como lócus para seu estudo sobre a dinâmica demográfica em São Paulo, apontando as variáveis que interferiram e definiram a sociedade paulista no passado. A escolha desse município não foi aleatória. Ao longo de sua trajetória acadêmica, o autor dedicou parte de seus estudos a esse pequeno bairro da vila de Jundiaí que, no despontar do século XIX, tornou-se uma vila que atraiu os olhares de inúmeros migrantes. Tal conhecimento o aproximou das questões demográficas e, assim, Teixeira vislumbrou a oportunidade de estabelecer um diálogo profícuo sobre os sistemas demográficos no Brasil, principalmente porque para áreas de plantations isso ainda não foi realizado. 9 7 8 8 5 3 9 3 0 1 6 7 6 ISBN 978-85-393-0167-6 Campinas, 1774-1850 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 1A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 1 05/03/2012 17:56:0405/03/2012 17:56:04 FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Herman Jacobus Cornelis Voorwald Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Editor-Executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre Conselho Editorial Acadêmico Alberto Tsuyoshi Ikeda Áureo Busetto Célia Aparecida Ferreira Tolentino Eda Maria Góes Elisabete Maniglia Elisabeth Criscuolo Urbinati Ildeberto Muniz de Almeida Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan Nilson Ghirardello Vicente Pleitez Editores-Assistentes Anderson Nobara Fabiana Mioto Jorge Pereira Filho A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 2A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 2 05/03/2012 17:56:4905/03/2012 17:56:49 PAULO EDUARDO TEIXEIRA A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES CAMPINAS, 1774-1850 A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 3A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 3 05/03/2012 17:56:4905/03/2012 17:56:49 © 2011 Editora UNESP Direitos de publicação reservados à: Fundação Editora da UNESP (FEU) Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br www.livraria.unesp.com.br feu@editora.unesp.br CIP – BRASIL. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ T268f Teixeira, Paulo Eduardo A formação das famílias livres: Campinas, 1774-1850 / Paulo Eduardo Teixeira. São Paulo: Editora Unesp, 2011. Inclui bibliografi a ISBN 978-85-393-0167-6 1. Demografi a da família – Campinas (SP) – História – Século XVIII. 2. Transição demográfi ca – Campinas (SP) – História – Século XVIII. 3. Imigrantes – Campinas (SP) – História – Séc. XVIII. 4. Fecundidade humana – Campinas (SP) – História – Século XVIII. 5. Controle da natali- dade – Campinas (SP) – História – Século XVIII. 6. Café – Campinas (SP) – História – Séc. XVIII. 7. População – Campinas (SP) – Condições sociais – História – Século XVIII. 8. Família – Campinas (SP) – Condições so- ciais – História – Século XVIII. 9. Família – Campinas (SP) – Aspectos econô- micos – História – Século XVIII. 10. Campinas (SP) – Condições econômicas – História – Século XVIII. I. Título. 12-0740 CDD: 306.85098161 CDU: 314(815.6) Este livro é publicado pelo projeto Edição de Textos de Docentes e Pós-Graduados da UNESP – Pró-Reitoria de Pós-Graduação da UNESP (PROPG) / Fundação Editora da UNESP (FEU) Editora afiliada: A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 4A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 4 05/03/2012 17:56:4905/03/2012 17:56:49 Aos meus amados filhos, Matheus e Thiago A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 5A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 5 05/03/2012 17:56:4905/03/2012 17:56:49 A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 6A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 6 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 AGRADECIMENTOS O apoio financeiro para esta pesquisa foi essencial para que ela chegasse a bom termo; assim, deixo o meu agradecimento à Fapesp, que pela concessão de uma bolsa de estudos e apoio à reserva técni- ca cumpriu com um papel fundamental para a democratização do saber no ensino superior. Sou grato ao meu orientador, professor Nelson Hideiki Nozoe, por sua orientação ao longo dos anos de doutoramento, que foi fundamental para o amadurecimento das ideais lançadas no projeto inicial, bem como me ajudou a ser mais crítico em relação ao meu próprio trabalho. Acredito ter satisfeito suas expectativas! Quero agradecer ao professor José Flávio Motta pelo excelen- te curso ministrado na pós-graduação de História, quando tive a oportunidade de conhecê-lo não só como mestre, mas também como amigo, o qual participou da banca de docentes deste dou- torado trazendo valiosas sugestões. Outra pessoa inesquecível é a professora Laima Mesgravis, minha orientadora durante os pri- meiros passos no mestrado, que participou no exame final e, como é de seu feitio, trouxe colaborações preciosas das quais espero ter incorporado pelo menos uma parte. Agradeço ainda às professoras Ida Lewkowics e Maria Silvia C. B. Bassanezi pelas leituras e suges- tões pertinentes que fizeram durante o exame deste trabalho e que A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 7A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 7 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 8 PAULO EDUARDO TEIXEIRA procurei contemplar neste momento que reviso alguns pontos para a publicação. Agradeço também aos amigos que fiz no círculo da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep), dentre os quais quero destacar o professor Sergio Odilon Nadalin, que me deu uma cópia do programa de computador usado nesta pesquisa, o Sygap, bem como a Maria Luiza Andreazza, com quem travei inúmeras con- versas sobre o dito programa, que foram imprescindíveis para sanar muitas dúvidas. Ao amigo e professor Carlos de Almeida Prado Bacellar, que tão prontamente me apoiou na realização do estágio de docência na USP durante a realização do doutorado, que resultou em um traba- lho profícuo e estimulante. Aos amigos do Núcleo de Estudos em Demografia Histórica (Nehd) e do Centro de Estudos de Demografia Histórica da Amé- rica Latina (Cedhal), em especial à professora Eni de Mesquita Samara (in memoriam), pela consulta à biblioteca desse núcleo de pesquisa, onde encontrei teses, dissertações, livros e revistas que em outros locais não tive a oportunidade de ver. Em Campinas sou grato a diversas pessoas que gostaria de men- cionar nominalmente. Em primeiro lugar, à professora Maria Silvia C. B. Bassanezi, que me incentivou a ver os registros paroquiais que existiam no Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp. Depois de consultá-los, resolvi estudar a formação das famílias. Ao professor José Roberto do Amaral Lapa (in memorian), que, como grande conhecedor dos cantos e antros de Campinas, indi- cou o padre Euclides Senna, do Arquivo da Cúria Metropolitana de Campinas, que me abriu as portas para a consulta dos livros paroquiais daquela localidade. Agradeço também ao padre Julio César Calusni, bem como à secretária Martha Silvia Craveiro, por proporcionarem o acesso para fotografar cada página dos livros que ali pesquisei, matéria-prima deste livro. Aos colegas do Centro de Memória da Unicamp, na pessoa do Fernando e da Márcia, também o meu obrigado. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 8A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 8 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 9 Quero agradecer também à minha assistente, Vanessa Mendes, que durante alguns meses digitou um grande número de listas no- minativas e me ajudou a montar o banco de dados para o Sygap. E por falar mais uma vez em Sygap, não poderia deixar de agradecer ao programador Mário Fiorot, que decifrou vários erros no progra- ma e os reparou, fazendo com que este produzisse os resultados que ora apresentamos neste trabalho. Quero agradecer à minha querida esposa, Márcia, que esteve ao meu lado dando todo o apoio necessário para que eu pudesse viajar, pesquisar, ler e escrever, não tendo que me preocupar tanto com os dois pequenos, que, à época do doutorado, costumavam me rodear quando estava em casa. Finalmente, agradeço à Unesp por este programa de edição de textos de docentes tão importante para a divulgação do conheci- mento produzido dentro da academia. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 9A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 9 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 10A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 10 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 SUMÁRIO Introdução 13 Parte I Padrões demográficos da população livre em Campinas 31 1 O sistema demográfico de Campinas, 1774-1850 37 2 A fecundidade em uma sociedade de plantation 57 3 A nupcialidade em Campinas 85 4 A mortalidade no Oeste Paulista 105 5 O processo migratório e a formação dos casais 143 Parte II A formação das famílias livres em Campinas 155 6 Famílias legítimas 167 7 Famílias ilegítimas 215 Considerações finais 243 Referências bibliográficas 247 Apêndice metodológico 263 Anexos 293 A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 11A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 11 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 12A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 12 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 INTRODUÇÃO Desde o momento em que Philippe Ariès (1981, p.223) lançou sua ideia acerca de um novo sentimento de família1 que se generali- zou sobre diversas sociedades europeias que adentraram a moder- nidade, a família conjugal passou a ser alvo de estudos incessantes e sob diferentes perspectivas, a ponto de Michael Anderson (1984, p.11) apontar quatro tipos de abordagens diferentes relativamente à história da família: a psico-histórica, a demográfica, a dos senti- mentos e a da economia doméstica. Esse estudo está pautado em uma perspectiva demográfica, sobretudo na primeira parte deste livro. Porém tal estudo procurou incorporar elementos que foram pertinentes a outras abordagens, uma vez que entendemos que as análises demográficas são como portas de entrada para discutirmos a noção de família com outras ciências. O frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, em seu Elucidário das palavras, termos e frases, publicado em 1798, afirma que pela pala- 1 Deve-se destacar que esse livro (L’enfant et la vie familiale) de Philippe Ariès circulou na Europa a partir de 1960, e que André Burguière (1998, p.22), ao comentar sobre os estudos deste autor no campo da família e da infância, afir- mou que Ariès assinalava, já em 1948, a diversidade das tradições familiares na França e que este “via uma nova concepção de infância afirmar-se, no século XVIII, nos comportamentos educativos e afectivos das elites”. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 13A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 13 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 14 PAULO EDUARDO TEIXEIRA vra família “se entendiam os servos, que com suas mulheres e filhos moravam nas herdades, ocupadas sempre na lavoura.” (Viterbo, 1965, tomo 2, p.243) Ele descreve que a primeira nobreza e, par- ticularmente, os reis costumavam ter “numerosas famílias” distri- buídas em suas vilas e herdades, o que demonstra que o significado da palavra remetia a algo muito diferente daquilo que entendemos nos dias atuais. No verbete “Família Régia” são chamados “os ser- vos fiscais, que pertenciam ao rei, o qual muitas vezes os dava e doava às igrejas ou mosteiros, a quem unicamente deviam servir”. O sentido e o significado da palavra família entre os séculos VIII e XIII denota a condição de uma pessoa ou grupo de pessoas que serviam, quer aos reis ou aos monges. Nas palavras de Viterbo, os antigos “familiares” eram “contínuos comensais” que viviam nos mosteiros (ibidem, p.244). Em suma, no período feudal europeu a palavra família ainda apresentava uma ligação muito próxima do sentido empregado pela palavra latina “famulus”, que significa servo ou criado doméstico. Em seu clássico estudo intitulado Famílias, Jean-Louis Flandrin (1992, p.12-8) afirma que os dicionários franceses e ingleses reve- lam que o conceito de família entre os séculos XVI e XVII davam a “ideia de coabitação”, de maneira que family e household2 eram palavras que se equivaliam. Por sua vez, a palavra “casa” não im- plicava a ideia de coabitação, indicando uma relação mais ampla e que não se restringia ao domicílio (household) e nem mesmo à ideia de uma família nuclear (pai, mãe e filhos), pois a palavra implicava fornecer informações sobre a origem, a estirpe de um sujeito, como a expressão “é da Casa de...” pode ilustrar. Com essas considerações endossamos a ideia de Flandrin de que “o conceito de família, tal como é hoje habitualmente definido, só existe, pois, desde uma data recente, na nossa cultura ocidental”, e mais, 2 O domicílio (household) nas listas nominativas de habitantes é identificado pelo nome de “fogo”, e em muitos casos pode aparecer como sinônimo de família (family). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 14A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 14 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 15 que aquilo que outrora se chamava a família não se confundia com o trio pai-mãe-filhos, e que não é possível estudar esse trio dos sécu- los XVI, XVII e XVIII sem atender às suas ligações com a linhagem ou o parentesco, por um lado, e com a domesticidade, por outro. (ibidem, p.17-8) O antropólogo Claude Lévi-Strauss, ao identificar a família conjugal como um fenômeno quase universal, sustenta que ela tem sua origem no casamento. O matrimônio,3 seja monogâmico ou poligâmico, impõe, nas palavras do autor, “uma distinção entre o casamento, laço legal, socialmente aprovado, e as uniões temporá- rias ou permanentes resultantes da violência ou do consentimento” (Lévi-Strauss, 1986, p.76). Isso é importante para o estudo que iremos apresentar, pois o trabalho de reconstituição de famílias pressupõe a existência de famílias legítimas, uma vez que essas in- formações advêm dos registros paroquiais de matrimônio. A família conjugal, para Lévi-Strauss, deve ser entendida como “família restrita”, e essa família se caracteriza por concentrar um estatuto jurídico diferenciado e que anteriormente regia conjuntos muito mais vastos, como era o caso da “família extensa”. O incesto, por exemplo, constitui uma proibição que impede o casamento entre parentes, garantindo, de um lado, a procriação biológica para além do núcleo da família conjugal, e de outro, a liberdade de esco- lha do cônjuge entre outras famílias, promovendo um intercâmbio social, econômico e que resulta na constituição de extratos sociais que se diferenciam sem romper, necessariamente, com suas ori- gens, embora no jogo das alianças entre famílias possam formar-se grupos de aliados e/ou rivais. Finalmente, cabe relembrar que para Lévi-Strauss a família nu- clear (leia-se restrita) não é o elemento base da sociedade e nem o seu produto. [...] A sociedade não permite às famílias res- tritas que durem senão por um determinado espaço de tempo, mais 3 A palavra latina para casamento é matrimonium, que significa função (munium) de mãe (matris). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 15A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 15 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 16 PAULO EDUARDO TEIXEIRA curto ou mais longo... [...]. A relação das famílias restritas com a sociedade global não é estética [...]; esta relação é dinâmica, reúne em si tensões e oposições que se equilibram de maneira sempre precária. (Lévi-Strauss, 1986, p.96-7) Essa precariedade da família conjugal é uma característica atri- buída à sociedade industrial e que levou Le Play4 a chamá-la de fa- mília instável, uma vez que os filhos, ao casarem, deixam a casa dos pais e fundam outras famílias em outros domicílios que têm poucas chances de se perpetuarem (cf. Flandrin, 1992, p.61). Tal fragilida- de pode estar relacionada, entre tantos fatores, a um que conside- ramos fundamental para o estudo da família, que é a mortalidade, responsável pelo ciclo de vida individual e familiar, impactando a estrutura familiar, especialmente quando a morte atinge um dos cônjuges. Os registros paroquiais de óbitos serviram ao propósito de identificar esse momento de ruptura da vida dos indivíduos e, por conseguinte, das famílias às quais pertenciam. Com isso posto, podemos dizer que o conceito de família ado- tado neste estudo engloba as relações estáveis e duradouras, muitas vezes expressas pelos documentos na forma de domicílios em que coabitam pessoas de um mesmo “fogo”. Também aceitamos a exis- tência de uniões efêmeras como sinônimas de família, uma vez que delas originam vínculos de parentesco consanguíneos. Ambas as situações dão maior peso às relações de filiação, aos aspectos bio- lógicos da reprodução humana, mas que são necessários para a re- produção social. Mas a família também deve ser tratada como “um elemento dinâmico que se modifica e se adapta a condições diferen- tes, segundo suas necessidades, imprimindo a seus componentes 4 Para Pierre-Guillaume Frédéric Le Play (1806-1882) a família é a unidade social fundamental, e sua saúde e estabilidade são um indicador do estado da sociedade. Na opinião de Le Play, a sociedade caminhava para um tipo de família “instável” como resultado da industrialização e da urbanização cres- centes e da inserção das mulheres no mercado de trabalho, o que, em síntese, era visto como “sinal de decadência” (Burguière, 1998, p.22). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 16A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 16 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 17 uma série de comportamentos e atitudes que variam espacialmente, temporalmente, socialmente” (Scott, 1987, p.13) e, por que não dizer, culturalmente, uma vez que as relações estabelecidas por uma união mormente se entrelaçam a outras redes interpessoais, quer pelos laços de parentesco, quer por vínculos de amizade, como os de compadrio. Panorama dos estudos sobre família em São Paulo No prefácio escrito por Michel Fleury e Louis Henry para o trabalho da professora Maria Luiza Marcílio, intitulado A cidade de São Paulo: povoamento e população (1750-1850), os pais da de- mografia histórica francesa assinalaram a importância da pesquisa como o início de uma nova perspectiva dos estudos demográficos para o estado de São Paulo e, sem dúvida, para o Brasil. Esse traba- lho foi publicado inicialmente na França em 1968, mas sua versão para a língua portuguesa veio a acontecer apenas em 1974. Desta- que importante dessa obra é o fato de ela relacionar o estudo de uma população específica com suas muitas variáveis, como origem social (livre e escrava), origem geográfica (imigrantes) e econômica; e, por outro lado, utilizar os Registros Paroquiais da Freguesia da Sé e os recenseamentos ou Listas Nominativas para a cidade de São Paulo como fontes para o estudo demográfico a partir do método preco- nizado por Fleury e Henry, chamado “reconstituição de famílias”. Marcílio reuniu cerca de 25 mil registros entre batismos, casa- mentos e óbitos, consistindo em material que foi tratado por meio das “fichas de famílias”, não obstante as dificuldades inerentes à realidade paulista, quiçá brasileira, quer seja em relação aos nomes de famílias adotados, quer seja em relação à informação sobre a idade das pessoas parcialmente informada nos registros de morte e à não informação da idade ao casar nos registros matrimoniais, assim como outras diferenças em relação aos documentos france- ses de mesma natureza, o que obrigou a pesquisadora a dizer que ela pretendia A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 17A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 17 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 18 PAULO EDUARDO TEIXEIRA medir a fecundidade em São Paulo (1740-1809), segundo os métodos preconizados para o estudo de população não-malthusiana, méto- dos elaborados por Louis Henry e aplicados a numerosos trabalhos monográficos de Demografia Histórica. No entanto, tais métodos são válidos para o caso de países com registros paroquiais contendo as informações indispensáveis à sua aplicação; o que não é o caso de nossa documentação para São Paulo [...] (Marcílio, 1974, p.69-70). Assim, o estudo da fecundidade e o da mortalidade ficaram prejudicados pela qualidade dos documentos. Mas o caráter inau- gural da História Quantitativa nesse trabalho abriu o caminho para outras pesquisas, algumas realizadas pela própria Marcílio, outras encabeçadas por pesquisadores interessados no passado brasileiro sob a ótica das relações econômicas, sociais e políticas. A última nota em relação a esse trabalho pioneiro da professora Maria Luiza Marcílio deve ser destacada da introdução à edição francesa, na passagem em que a pesquisadora ressalta a importân- cia de que “para bem estudar a população da cidade de São Paulo impunha-se o conhecimento paralelo da história de seu povoamen- to” (ibidem, p.14). Assim, o povoamento de um lugar, uma fregue- sia, uma vila, uma cidade, uma região, deve ser o ponto central de todo trabalho que procure dar conta do crescimento demográfico de sua população, uma vez que o povoamento não ocorre desconec- tado das ações dos grupos humanos e que atuam em lugares distin- tos, ora como donos do poder, determinando políticas de povoa- mento, ora como migrantes – sujeitos com o poder de escolher –, aceitando tais propostas ou rejeitando-as e optando por outros ca- minhos. Portanto, contextualizar o povoamento do Oeste Paulista nesta introdução de um estudo sobre as dinâmicas demográficas que caracterizaram a sociedade campineira nos séculos XVIII e XIX cumpre o papel de pensar a influência de outros fatores – eco- nômicos, sociais, religiosos, políticos e culturais – que imprimiram a formação do regime demográfico que iremos apresentar. Continuando a apresentar um panorama sobre os estudos de po- pulação, a tese de livre-docência da professora Maria Luiza Marcí- A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 18A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 18 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 19 lio, Crescimento demográfico e evolução agrária paulista: 1700-1836, apresentada em 1974, mas publicada somente em 2000 pela Huci- tec/Edusp, marcou a utilização das listas nominativas de habitan- tes como um documento potencialmente importante e significativo para conhecer as características demográficas não apenas de uma vila ou cidade, mas de uma área mais ampla, a capitania e pro- víncia de São Paulo. Trata-se, segundo Schwartz, de um “clássico secreto”, justamente devido aos entraves para sua publicação, mas que hoje pode ser consultado amplamente e que expõe uma análise profunda do aumento da população paulista entre 1765, quando foram iniciados os primeiros recenseamentos para São Paulo sob as ordens do Morgado de Mateus, e o ano de 1836, quando as listas nominativas praticamente desapareceram dos arquivos. A riqueza dessa pesquisa advém da preocupação da professora Marcílio em associar as análises demográficas às estruturas sociais. Assim, a primeira parte do livro apresenta os pressupostos teóri- co-metodológicos nos quais ela embasou sua pesquisa. As listas nominativas de habitantes se configuram como a fonte maior, so- bretudo para as considerações que são abordadas na segunda parte do texto, onde são apresentados o crescimento da população e as configurações domiciliares e de família, assim como são exploradas as informações de ocupação e cor para discutir aspectos econômicos da formação e composição da força de trabalho, como também a composição étnica da população. Tudo isso tendo como pano de fundo as estruturas demográficas, que no caso da “população livre da capitania de São Paulo estava em crescimento constante desde o século XVIII, crescimento este devido basicamente ao seu aumento próprio, vegetativo” (idem, 2000, p.95). O livro Caiçara: terra e população, publicado em 1986, é fruto de um esforço para estudar uma população que se aproximasse dos moldes das populações francesas, ou seja, que fosse estável, com pequena mobilidade espacial, a fim de se aplicar o método de “reconstituição de famílias” utilizando as listas nominativas de ha- bitantes, e não os registros paroquiais. O tratamento metodológico e o cuidado com as fontes são alguns dos pontos altos do trabalho, A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 19A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 19 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 20 PAULO EDUARDO TEIXEIRA além de este trazer uma radiografia do mundo rural a partir de um estudo de caso que ilustra realidades de muitos outros municípios brasileiros que tiveram essa ligação do campo com o mar, uma forma de viver e sobreviver típica no litoral brasileiro. Dessa maneira, ao elegermos uma localidade paulista para nosso estudo, necessariamente temos de nos remeter e fazer o leitor refle- tir sobre a importância do trabalho dessa pesquisadora, não apenas pelo caráter desbravador de sua obra, mas porque disso decorreu uma reflexão importante do ponto de vista teórico-metodológico, uma vez que ela propôs a primeira configuração do que seriam os regimes demográficos que vigoraram no Brasil no seu passado colonial e imperial. Essa é uma referência direta que aqui se faz ao artigo “Sistemas demográficos no Brasil do século XIX”, que foi publicado pela professora Marcílio quando organizou o livro Po- pulação e sociedade: evolução das sociedades pré-industriais, editado pela Vozes em 1984.5 Um dos objetivos do artigo foi sistematizar os diferentes padrões de comportamento populacional identificados em vários estudos que até aquele momento revelavam uma diversidade de estruturas e dinâmicas demográficas no Brasil pré-industrial. Tratam-se, nas palavras da autora, de hipóteses ou de colocações preliminares, calcadas nos primeiros resultados elaborados em análises demográficas empíricas, mas que necessitarão de novos e multiplicados estudos setoriais para testá-las e comprová-las. (idem, 1984, p.194) 5 Sistemas demográficos, na visão de Nadalin (2004, p.174) é um sinônimo do conceito de “Regime demográfico” utilizado desde Thomas Malthus. Assim, citando Rowland (s. d., p.14) “o conceito de regime demográfico especifica um conjunto de relações e de mecanismos que estão na base da organização social quer da reprodução biológica de uma população, quer da reprodução do conjunto das relações mediante as quais se regula a apropriação social (e a distribuição) dos meios de vida dessa população”. Os termos foram usados de forma indiscriminada ao longo do texto. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 20A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 20 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 21 Disso resultou a proposição de “pelo menos quatro tipos de pa- drões demográficos”, que foram denominados assim: 1) Sistema demográfico das economias de subsistência, que pode ser representando pelo trabalho sobre os caiçaras de Ubatuba publicado pela professora Marcílio (1986). 2) Sistema demográfico das economias das plantations. Neste caso a autora afirmou que não havia estudos de demografia histórica sobre uma tal população. 3) Sistema demográfico das populações escravas, descrito prin- cipalmente a partir das características apresentadas pela tese do professor Robert W. Slenes (1976), The Demography and Economics of Brazilian Slavery: 1850-1888. 4) Sistemas demográficos das áreas urbanas no século XIX, exemplificados pelos estudos realizados por Katia Mattoso (1978), para Salvador; Marcílio (1968), para São Paulo; e Miranda (1978), para Curitiba. O último parágrafo do artigo de Marcílio deixa aberta a fron- teira para a renovação dessa tipologia proposta por ela, entenden- do que o avanço das pesquisas no decurso dos anos poderia vir a modificar esse quadro, ou então confirmá-lo. Coube ao professor Sergio Odilon Nadalin apresentar uma proposta que abrange ou- tras estruturas sociais, consideradas por ele como “complexas”, dada “a singularidade histórica de uma sociedade ‘móvel’, que se caracteriza, inclusive, por uma relativa instabilidade familiar e pelo contraponto, também original, de uma população mais estável ins- talada no litoral” (Nadalin, 2004, p.136). Dentre os possíveis regi- mes demográficos que vigoraram no Brasil colonial até a metade do século XIX foram elencados dez, sendo alguns deles compatíveis com a proposta de Marcílio.6 6 São eles: regime demográfico “paulista”, das “plantations”, da escravidão, da “elite”, das sociedades campeiras, das economias de subsistência, das “drogas do sertão”, das secas do sertão, restrito aos colonos açorianos, e, finalmente, um sistema demográfico das economias urbanas (cf. Nadalin, 2004, p.137-42). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 21A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 21 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 22 PAULO EDUARDO TEIXEIRA Em relação às pesquisas que foram desencadeadas tendo como perspectiva estudos de casos paulistas, podemos pontuar algumas que nitidamente representaram uma continuidade em relação aos estudos das populações livres, buscando um diálogo com a obra de Marcílio. Ana Silvia Volpi Scott e Carlos de Almeida Prado Bacellar foram dois discípulos da professora Marcílio que apresentaram em 1987 duas dissertações muito importantes, focalizando estudos especí- ficos sobre as famílias de elite de duas regiões paulistas. No caso de Scott, a área focada foi a do Vale do Paraíba e a região da capital de São Paulo, ao passo que Bacellar foi estudar as famílias de elite do Oeste Paulista, sobretudo das vilas de Itu, Jundiaí, Campinas e Porto Feliz. No caso da primeira, suas conclusões propuseram ao leitor o conhecimento de que entre as famílias de elite o casa- mento precoce de uma mulher com um homem, frequentemente mais velho (entre 7 e 13 anos), era a grande regra para aqueles que viveram entre 1765 e 1836, proporcionando elevados índices de fecundidade (cf. Scott, 1987, p.267-9). No entanto, o número de in- divíduos por domicílio era menor do que o esperado, possivelmente como decorrência das elevadas taxas de mortalidade, sobretudo in- fantil. Outro ponto que explica isso é o fato da adaptação do método de reconstituição de famílias a partir do uso das listas nominativas. Ou seja, embora esses documentos revelem um retrato da popu- lação em um dado momento, eles não permitem saber com rigor as datas de nascimento, casamento e morte. De qualquer forma, a contribuição desse trabalho avançou sobre uma pauta ainda inex- plorada: a família de elite. A contribuição de Carlos Bacellar foi importante por estudar os mecanismos utilizados pelas famílias de elite dos senhores de engenho do Oeste Paulista, demonstrando como os casamentos consanguíneos, o dote e outros expedientes marcaram a formação de um padrão cujo objetivo era manter a concentração de capitais e reproduzi-la ao longo das gerações sucessoras (cf. Bacelar, 1987, p.270). Mas antes disso, o trabalho mostrou que a média de filhos por casal era superior àquela que Marcílio havia encontrado para A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 22A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 22 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 23 Ubatuba, demonstrando que os níveis de fecundidade, elevada para as mulheres do Oeste Paulista, se assemelhavam aos casos estudados por Scott (Bacellar, 1997, p.72). Anos mais tarde, em 1994, quando Bacellar fez a introdução à sua tese de doutorado intitulada Família e sociedade em uma eco- nomia de abastecimento interno (Sorocaba, séculos XVIII e XIX), alertou para o fato de até aquele momento haver “apenas um único trabalho de reconstituição de famílias que abrangesse toda a po- pulação de uma vila paulista” (idem, 1994, p.11), lembrando ao leitor que os trabalhos de Scott (1987) e Bacellar (1987) restrin- giram-se a reconstituir apenas as famílias da elite paulista.7 Os resultados do estudo sobre Sorocaba apontaram para a ampliação, no dizer do autor, do “conhecimento sobre a demografia de nossas populações livres no passado, abrindo caminho para a definição de prováveis padrões regionais dentro da própria Capitania de São Paulo”. E mais: [...] conseguimos estabelecer algumas semelhanças entre o compor- tamento demográfico sorocabano e de outras vilas, notadamente Ubatuba. Por outro lado, as diversidades também se fizeram notar diante da demografia da elite agrária do oeste paulista, apontando para a possibilidade de encontrarmos padrões demográficos dife- renciados seja em relação à atividade econômica, seja em relação ao segmento social considerado. (ibidem, p.377) Esses estudos pautados na Demografia Histórica, ao investirem no conhecimento das estruturas da população, naturalmente foca- ram sua atenção na família. Esses novos olhares, em função dos mé- todos e das fontes utilizadas, permitiram um “transbordamento” das pesquisas que tratavam, sobretudo, do casamento, do concubi- nato, do compadrio, das famílias dos “homens esquecidos” – livres e escravos –, dos mecanismos de transmissão de herança, e muito 7 O “único trabalho” é uma referência explícita ao livro Caiçara (1986), de Marcílio. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 23A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 23 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 24 PAULO EDUARDO TEIXEIRA mais. Nesse sentido, houve um distanciamento dos estudos de ma- triz demográfica para trabalhos de inspiração econômica e social.8 O livro de Valter Martins, Nem senhores, nem escravos (1996) pode ser lembrado como um desses estudos pautados na história da população que apresenta sólido fundamento empírico utilizando as Listas nominativas de habitantes de Campinas, além de inven- tários, testamentos e outras fontes, para discutir o processo de acu- mulação de riqueza entre os pequenos agricultores no período de 1800 a 1850. E por último, mas sob outra perspectiva, destacamos a tese de Dora Isabel Paiva da Costa (1997, p.298), que se preocupou com o processo sucessório entre as famílias de elite e de pequenos agricultores de Campinas, concluindo que esses grupos exibiram estratégias de “partição igualitária” entre seus membros. A que se destina esta pesquisa O presente trabalho vem dar continuidade a essa construção do conhecimento acerca do comportamento da população no passado paulista, alargando as discussões propostas pelos autores aqui cita- dos dentro da perspectiva da Demografia Histórica e dialogando com a História Social. A escolha da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas não foi aleatória. Ao longo da trajetória acadêmica esti- vemos dedicando parte de nossos estudos a esse pequeno bairro da vila de Jundiaí que no século XVIII deixou de ser apenas um pouso para tropas que seguiam rumo às minas de Goiás para se tornar, no despontar do século XIX, uma vila que atraiu os olhares de inú- meros migrantes. O primeiro fruto desse trabalho foi a pesquisa de mestrado em que tratamos da questão do povoamento dessa região vinculado à chefia dos domicílios, especialmente o de mulheres, e 8 Eni de Mesquita Samara faz um rápido balanço historiográfico das relações entre o tema família e a Demografia Histórica nas páginas do segundo capítulo do livro Família, mulheres e povoamento (2003, p.17-25). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 24A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 24 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 25 que foi publicado em 2004 sob o título de O outro lado da família brasileira. Tal conhecimento nos aproximou das questões demográ- ficas propriamente ditas, e, assim, vislumbramos a oportunidade de estabelecer um diálogo profícuo sobre os sistemas demográficos no Brasil, principalmente porque para áreas de plantations isso ainda não foi realizado. Ao comentar sobre as transformações sofridas pela cidade de Campinas, Amaral Lapa (1996) propôs um esquema interessante ao dizer que “À cidade colonial sucede então a cidade imperial (aristocrática), que não esperará a liquidação do escravismo e a mudança do regime político para ir-se transformando na cidade burguesa”. A relação que se encontra implícita nessas palavras apresenta estreita ligação entre os ciclos econômicos vivenciados pela localidade. Para a cidade colonial temos o açúcar; para a cidade imperial, o café; enquanto a cidade burguesa se prepara para rece- ber a indústria. Em 1842, a vila campineira foi elevada à condição de cidade. Entretanto, para Lapa (idem, p.20), ela ainda era uma cidade colo- nial. Para esse autor, a “cidade imperial” passa a ser uma realidade a partir de 1850, quando se dá a construção do Teatro São Carlos. Assim, em 1854 a cidade continuava a ter em sua população uma maioria de escravos, embora um movimento de retomada do au- mento da população livre tenha sido concretizado, possibilitando um desenvolvimento tal que em 1872 sua população ultrapassou a da capital da província, e o incremento de livres foi surpreendente, quase triplicando sua população em dezoito anos, pois se em 1854 eram 6.052 habitantes livres, em 1872 passou a 17.712.9 Finalmen- te, em 1886, a população total chegou a 41.253 indivíduos, perden- do a primazia para a cidade de São Paulo, que assumia novamente o primeiro lugar entre as cidades mais populosas da província, com 47.697 pessoas (Bassanezi, 1998, v.III, anexo 3, p.37 e v.IV, p.34-5). 9 A Tabela 2 do Capítulo 1 apresenta a população livre e escrava em diversos momentos históricos. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 25A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 25 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 26 PAULO EDUARDO TEIXEIRA Reconhecida a importância de Campinas no cenário provin- cial do século XIX, somada à ausência de estudos nessa área de interesse, que é a família, cuja importância é fundamental para entendermos os processos desencadeados pela sua inserção na so- ciedade, acreditamos encontrar os meios suficientes para justificar um estudo sobre temas que estão interligados com os processos de povoamento e a consolidação de uma cidade na região que ficou conhecida historicamente por Oeste Paulista. Ao reavaliar a produção científica sobre o tema da família para a publicação de seu trabalho, Bacellar (1997, p.20) – em Palavras do autor – reconheceu que “De uma maneira geral, muito ainda resta ser feito. Mesmo se nos restringirmos ao caso paulista, é for- çoso reconhecer que praticamente nada sabemos sobre a família do cafeicultor e suas práticas sucessórias”. E o que dizer das demais famílias de pessoas livres? Deve-se, ainda, dizer que a escassez de pesquisas nesse campo resulta em grande medida das “dificuldades em se trabalhar as fontes documentais”, como disse Bacellar, “o principal obstáculo para aqueles que decidem se aventurar por esta seara, principalmente no que diz respeito às famílias de pouca ou nenhuma posse” (ibidem, p.13). Para Poussou (1977, p.149), “não é possível estudar unicamente a variável demográfica. É necessário seguir, passo a passo, a evolu- ção econômica, social, mesmo política de uma paróquia”. Essa frase resume as críticas que foram levantadas sobre os estudos demográ- ficos, mesmo aqueles de caráter mais histórico e que incorriam no lapso de não terem em mente a noção do “fato social total” (Dupâ- quier, 1984, p.30). Por essa razão, dividimos o trabalho em duas partes. A primeira parte de nossa proposta visa conhecer a dinâmica da reprodução das famílias de pessoas livres em Campinas, em um ambiente em que, decorrente do recente povoamento, a mobilidade espacial passa a ser mais um elemento de estudo do incremento populacional a partir do estabelecimento da Freguesia de Nossa Senhora da Con- ceição das Campinas, em 1774. O deslocamento populacional que permitiu a entrada e saída de pessoas em Campinas está ligado A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 26A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 26 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 27 ao processo de esgotamento do solo na região de Itu e de outras localidades, bem como ao avanço da fronteira e à busca por novas terras.10 O crescimento econômico e populacional proporcionou a elevação de Campinas à condição de vila de São Carlos, em 1797, que permaneceu nessa condição até o ano de 1842, quando assumiu status de cidade e retomou seu nome original: Campinas. Dessa maneira, um de nossos objetivos é estudar os padrões familiares que marcaram esse período da história de Campinas, que se inicia em 1774, com o estabelecimento da freguesia, até o ano de 1850. Economicamente falando, são períodos bem diversos, pois nos primeiros anos da freguesia predominou uma agricultura de subsistência e o florescimento da lavoura canavieira, e durante o período da vila campineira houve a expansão dessa cultura, seguida pela introdução do café. No entanto, a substituição das plantações de cana pelos cafezais ocorreu especialmente na segunda metade do século XIX, quando é possível que outros padrões demográficos tenham modificado a dinâmica demográfica campineira, sobretudo pela entrada maciça de imigrantes europeus.11 Assim, nossa pesquisa em sua primeira parte procurará reve- lar, por meio do estudo da fecundidade, nupcialidade, mortalida- de e migrações, quais os padrões demográficos de uma sociedade de plantation ao longo do período proposto. Ou seja, pretende-se avaliar se parte da tipologia de classificação dos vários sistemas demográficos vigentes até o século XIX no Brasil, que foi proposta por Marcílio (1984, p.196), é empiricamente válida para Campinas e, consequentemente, para todo o Oeste Paulista, uma vez que se tornou representativa das áreas de plantation na província a ponto de ser carinhosamente chamada de Princesa d’Oeste. 10 Em trabalhos anteriores discutimos essa questão (Teixeira, 2004; 2006, p.113-22). 11 Esta é uma sugestão advinda de uma pesquisa que estamos realizando desde 2010 sob a direção de Rosana A. Baenninger (Nepo/Unicamp) e que integra o projeto temático intitulado “Observatório das Migrações em São Paulo” e financiado pela Fapesp. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 27A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 27 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 28 PAULO EDUARDO TEIXEIRA Para atingirmos nossos propósitos faremos uma análise longitu- dinal dos registros paroquiais e das listas nominativas, perpassando por várias gerações, com o intuito de vir a conhecer o ciclo vital dos indivíduos e da coletividade, isto é, a formação das famílias, bem como os mecanismos que se criaram para sua manutenção. Uma vez que a formação das famílias encontra-se na base de toda e qualquer população, e cientes de que, para o período que pre- tendemos estudar, sabemos pouco acerca dos métodos de controle de sua reprodução (ou mesmo pelo fato de haver ausência desses mecanismos de autocontrole), torna-se vital conhecer os padrões de natalidade e mortalidade, bem como verificar a ação da fecundida- de, nupcialidade e outros fenômenos que possam determinar o grau de crescimento populacional. Em consonância com Marcílio (1984, p.200), encontraríamos para as regiões de plantation uma elevada fecundidade legítima, que contribuiria para garantir uma pronun- ciada natalidade, mas que, dada a mortalidade muita elevada, espe- cialmente das populações infantil e juvenil, resultaria em um ritmo de crescimento natural “menos rápido que o dos setores de subsis- tência”. E como elemento construtor desse quadro, a autora aponta, ainda, a saída de indivíduos livres em razão de uma pronunciada mobilidade espacial. Nesse aspecto, entendemos que o movimento migratório deve ser um estudo complementar ao eixo principal de nossa análise, pois houve um importante movimento de entrada e saída de pessoas influenciando na constituição das relações sociais entre os membros da comunidade no que se refere ao casamento e à formação dos casais. A partir de então, a segunda parte de nosso estudo se ocupará da gênese de diferentes tipos de famílias, ou melhor, analisará como se deu a formação das famílias de diversos estratos sociais, como a família dos senhores de engenho, por nós consideradas as famílias da elite campineira, assim como as famílias dos diversos trabalha- dores pobres, muitos dos quais mantinham estreitos vínculos com elementos cativos. Além disso, tratamos de fazer uma distinção entre aqueles que formaram famílias legítimas diante da sociedade da época, entendendo por isso as uniões por meio de casamentos le- A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 28A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 28 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 29 gítimos, ou seja, aqueles que preencheram as condições das leis reli- giosas e civis, em oposição às pessoas que, apesar de não se casarem diante do altar da igreja, constituíram famílias que tiveram uma organização peculiar, respeitada pela comunidade onde viviam os esposos, especialmente nos meios populares. Portanto, o termo “família ilegítima” quer indicar apenas a união não sacramentada pela Igreja Católica. Para essa segunda parte foram usados não só os documentos paroquiais e as listas nominativas de habitantes, como foram in- cluídos inventários, testamentos, registros de terras e outras fontes de ordem qualitativa. Devemos fazer apenas uma ressalva quanto aos procedimentos metodológicos aplicados à primeira parte deste estudo, pois em virtude dos detalhes envolvidos ao longo das etapas do trabalho de coleta e tabulação dos dados, optamos por criar um Apêndice Metodológico, no qual aqueles que desejarem conhecer as técnicas adotadas e empregadas poderão certamente encontrá-las de forma detalhada e ampla. Em suma, uma vez que “inexistam estudos de demografia his- tórica das populações livres do setor da grande lavoura do Brasil” (Marcílio, 1984, p.200), este trabalho visa estudar um sistema de- mográfico representativo das economias de plantation, que foi o caso de Campinas. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 29A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 29 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 30A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 30 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 PARTE I PADRÕES DEMOGRÁFICOS DA POPULAÇÃO LIVRE EM CAMPINAS A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 31A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 31 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 32A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 32 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 Como assinalamos na introdução, Campinas passou por trans- formações significativas com a chegada da grande lavoura canaviei- ra no final do século XVIII, o que a caracterizou como uma área destinada a produzir o açúcar que tinha como destino o mercado internacional. Esta primeira parte do nosso trabalho, portanto, deverá analisar as implicações daquilo que podemos observar pelo Gráfico 1, ou seja, de que da passagem do século XVIII para o iní- cio do XIX houve uma mudança de patamar relacionado ao aumen- to do número de casamentos, havendo posteriormente uma grande estabilidade até o início do ano de 1850, o que pode ser o reflexo da fixação de famílias, impulsionando, assim, a natalidade, que supe- rou em muito os altos índices de mortalidade.1 Sabemos que certas áreas no Brasil escravista foram mais ou menos influenciadas pela presença da população cativa, e em Cam- pinas a influência desse grupo se fez sentir mais fortemente no conjunto da população a partir do momento em que a lavoura da cana-de-açúcar foi introduzida como eixo principal da economia 1 Essa estabilidade da população livre pode ser observada pela Tabela 2, na qual se vê, entre 1814 e 1829, um intervalo de quinze anos quando o número de livres cresceu em apenas 46 pessoas (aumento de 1,2% para todo o intervalo). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 33A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 33 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 34 PAULO EDUARDO TEIXEIRA local. Assim, não podemos, ao estudar a população livre, desconsi- derar a presença da população cativa, pois essa refletiu os interesses da camada de pessoas livres e que foram responsáveis pela impor- tação de escravos para a dita localidade. Nesse sentido, entendemos que um sistema demográfico da plantation, como proposto por Marcílio (1984), precisa ser repensado à luz do que propõe Nadalin (2003), ou seja, que não se pode minimizar a complexidade inerente ao passado histórico. Essa complexidade se daria pela inter-relação entre diversos sistemas demográficos ao mesmo tempo, criando assim outros regimes populacionais ditos “restritos”.2 Portanto, 2 Nas palavras de Nadalin (2003, p.258), “Regimes demográficos que se suce- dem, se interpõem e se superpõem no tempo e no espaço. Que confrontam, em dicotomias complexas, ‘estabilidade’ e ‘instabilidade’, ‘aventura’ e ‘trabalho’, o ‘litoral’ e o ‘planalto’, ‘aglomerações urbanas’ e a ‘rarefação sertaneja’, a ‘floresta’ e o ‘campo’... No plural, estes tempos e espaços foram construídos pela distensão demográfica a partir das regiões litorâneas (e de São Paulo da Piratininga), originando, em alguns momentos, outros sistemas irradiadores”. 0 50 100 150 200 250 300 350 400 450 177 4 177 8 178 2 178 6 179 0 179 4 179 8 180 2 180 6 181 0 181 4 181 8 182 2 182 6 183 0 183 4 183 8 184 2 184 6 185 0 Ano BATISMOS CASAMENTOS ÓBITOS Gráfico 1 – Números totais, por ano, de casamentos, batismos e óbitos de pessoas livres (Campinas, 1774-1850) Fonte: Registros Paroquiais de Campinas, 1774-1850. (Arquivo da Cúria Metropolitana de Campinas – ACMC). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 34A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 34 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 35 queremos deixar bem claro que nosso objetivo é estudar o sistema demográfico da população de livres, reconhecendo que há outro sistema demográfico, o da população escrava, mas que não será alvo de nossa análise neste trabalho.3 3 Para estudar os padrões das populações cativas seria necessário construir uma metodologia própria, quem sabe adaptando a que dispomos hoje e que está baseada em Henry e Fleury. Sobre as técnicas de reconstituição de famílias, cf. Henry, 1977b. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 35A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 35 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 36A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 36 05/03/2012 17:56:5005/03/2012 17:56:50 1 O SISTEMA DEMOGRÁFICO DE CAMPINAS, 1774-1850 A atual cidade de Campinas teve seu princípio a partir da for- mação de um pouso destinado àqueles que percorriam o caminho que ligava a cidade de São Paulo à região das minas de Goiás (Figura 1). Essa estrada, segundo Saint-Hilaire (1976), se estendia “quase que paralelamente à fronteira ocidental de Minas Gerais”, pas- sando por Jundiaí, Campinas, Mogi-Mirim, Mogi-Guaçu, Casa Branca e Franca. Outro viajante, o pastor Kidder (1980, p.233), após deixar para trás a capital da província, em 1839, e seguir rumo a Campinas, descreveu a entrada desse caminho da seguinte maneira: O caminho desenvolvia-se por entre morros e vales, apenas de raro em raro proporcionando uma visão mais ampla. Cada curva da estrada parecia nos levar mais para o âmago de um vastíssimo labi- rinto repleto de belezas vegetais, apenas levemente tocados, aqui e acolá, pela mão do agricultor. Se perto da metade do século XIX o visitante pôde contemplar poucas roças ao longo do caminho, imaginemos o que não teria sido isso nos anos de 1740, quando foram distribuídas as primeiras datas de sesmarias na região de Campinas. Para se ter uma ideia mais A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 37A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 37 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 38 PAULO EDUARDO TEIXEIRA aproximada, o recenseamento da população do “bairro do Mato Grosso caminho de Minas”, futura vila de Campinas, mostrou que a dita localidade pertencia à vila de Jundiaí no ano de 1767 e que era composta por 53 domicílios, ou fogos. Porém, a vida política de Campinas iniciou uma mudança em 1774, quando atingiu sua autonomia religiosa ao estabelecer a freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas, para, ao final do século XVIII, exa- tamente no ano de 1797, estabelecer a independência política em relação a Jundiaí, tornando-se uma vila, batizada com o nome de São Carlos. Assim, temos traçado os três períodos aludidos: o bair- ro, que compreende o momento anterior a 1774; a freguesia, que se inicia nesse ano e se estende até 1797; e finalmente a vila, que fin- dou em 1842, quando seu nome de origem voltou a ser restaurado, e nasceu a cidade de Campinas. CAPITANIA DE SÃO PAULO CAPITANIA DAS MINAS GERAIS CAPITANIA DO RIO DE JANEIRO MOGIGUAÇU MOGI MIRIM JUNDIAÍ Caminho das Minas de Mato Grosso Caminho das Minas de Goiás Caminho do Mar Caminho das Minas Gerais Caminho de Parati Caminho das Minas Gerais Caminho das Minas Gerais Caminho do Mar Caminho de Santos PORTO FELIZ ARAÇARIGUAMA SANTANA DO PARNAÍBA ITU SOROCABA SÃO ROQUE COTIA SANTOS SÃO VICENTE SÃO PAULO MOGI DAS CRUZES JACAREÍ TAUBATÉ CUNHA ATIBAIA NAZARÉ LORENA GURATINGUETÁ PINDAMONHANGADA UBATUBA SÃO SEBASTIÃO BRAGANÇA JUQUERI GUARULHOS ITANHAEM IGUAPE XIRIRICA FREGUESIAS E/OU SEDES DE MUNICÍPIOS APIAI Figura 1 – Mapa da capitania de São Paulo, 1765. Fonte: Rangel (1990, p.44). Do ponto de vista de uma localidade de fronteira com o sertão, pode-se dizer que até a primeira década do século XIX Campinas se mantém de forma destacada, atraindo pessoas para suas terras. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 38A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 38 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 39 Porém, nos anos subsequentes outras localidades mais a oeste se apropriarão dessa condição, como o caso de Rio Claro nos anos 1830/1840. O regime demográfico, entendido aqui como sinônimo de “sis- tema demográfico”, corresponde a um conjunto de variáveis de- mográficas que permitem, dentro de um determinado contexto social, estabelecer relações que indicam os mecanismos de controle social da reprodução, que estão na base da organização social quer da reprodução biológica de uma população, quer da reprodução social. Entre as variáveis que pretendemos trabalhar nas páginas seguintes figuram aquelas que certamente poderão dar uma dimen- são ampla do sistema demográfico que vigorou em Campinas entre 1774 e 1850, ou seja, a fecundidade, a natalidade, a nupcialidade, a mortalidade e a mobilidade espacial. No entanto, antes de abordar- mos os aspectos relacionados a uma “história demográfica”, vamos apresentar alguns fatos para melhor conhecer o contexto em que vigorou o regime demográfico campineiro. Uma radiografia dos anos de formação e consolidação de Cam- pinas pode ser obtida pela observação da Tabela 1, que indica o número total de domicílios em cada ano examinado, assim como oferece os números da população total correspondente, que permi- tiram calcular duas variáveis, que foram a média de habitantes por domicílio e a taxa de crescimento da população. Considerando toda a população, verificamos que, mesmo in- cluindo os escravos, a média de pessoas por domicílio não excedeu a nove indivíduos em todo o período. Nesse sentido, Campinas, apesar da crescente entrada de escravos a partir de 1780, manteve a média de habitantes pouco acima da encontrada por Marcílio para toda a capitania de São Paulo (Marcílio, 2000, p.97). Ao observar, na Tabela 1, os intervalos dos anos de 1767/1770 e 1774/1778, nota-se uma ligeira baixa no número total de habi- tantes a ponto de a taxa de crescimento ser negativa. Entretanto, há que apontar uma diferença significativa entre os dois períodos: no primeiro, Campinas ainda era um bairro rural da vila de Jundiaí que convivia com as flutuações de viajantes que passavam pela re- A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 39A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 39 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 40 PAULO EDUARDO TEIXEIRA gião com destino ao interior, enquanto que no segundo caso, o ano de 1774 marcou a fundação da freguesia de Nossa Senhora da Con- ceição das Campinas, consequentemente atraindo um contingente de pessoas interessadas em suas terras. Assim, a média de morado- res por domicílio, que decresceu, respectivamente, de 5,1 para 4,4, e de 8,3 para 6,7, alerta para a mobilidade espacial das pessoas, e até mesmo para o exercício de certas atividades, como o tropeirismo, visto que os indivíduos permaneciam temporariamente longe de seus lugares de origem. As taxas de crescimento da população são muito elevadas, espe- cialmente em dois momentos: o da fundação da freguesia (1774), que já foi mencionado, e o da última década do século XVIII, que Tabela 1 – População total de pessoas livres e escravas (Campinas, 1767-1886) Ano* No total de domicílios No total de habitantes No médio de pessoas por domicílio Taxa de crescimento** 1767 53 268 5,1 – 1770 59 261 4,4 –0,8% 1774 57 475 8,3 16,2% 1778 67 448 6,7 –1,4% 1782 93 560 6,1 5,7% 1786 111 691 6,2 5,4% 1790 177 1.138 6,4 13,3% 1794 249 1.862 7,5 13,1% 1798 368 2.508 6,8 7,7% 1814 717 5.593 7,8 5,1% 1829 950 8.545 8,9 2,8% 1854 – 14.201 – 2,1% 1872 – 17.712 – 1,2% 1886 – 41.253 – 6,2% Fonte: Listas Nominativas de Campinas (Arquivo Edgard Leuenroth [AEL] – Unicamp). * Os dados para o ano de 1798 foram coletados em Eisenberg (1989, p.358). Para os anos de 1854, 1872 e 1886, os dados são de Bassanezi (Org.) 1998, v.II, p.298, v.III, Anexo 3, p.37 e v.IV, p.34-5. ** A Taxa Média de Crescimento Anual refere-se à média anual obtida para um período de anos compreendido entre dois momentos, e as estimativas de crescimento da população são realizadas pelo método geométrico. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 40A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 40 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 41 culmina com a elevação de Campinas à condição de vila em 1797. Nessas duas ocasiões o que explica esses números são as correntes migratórias, os deslocamentos de pessoas que aproveitaram as boas condições oferecidas para a exploração agrícola, especialmente da cana-de-açúcar. A título de comparação, o cálculo da taxa geomé- trica anual média de crescimento entre 1778 e 1798 foi de 8,9%, valor muito expressivo, se comparado ao de Lorena, no Vale do Paraíba, que alcançou 1,8% durante o mesmo período (Marcondes, 1998, p.56). O intervalo precedente que marca o início do século XIX até o ano de 1814 ainda mantém taxas elevadas de crescimento, porém desse momento em diante os números revelam a redução do ritmo de aumento da população, que se deve em parte à saída da popula- ção livre rumo a outras áreas de fronteiras mais a oeste, de maneira que o incremento da população se deveu mais à entrada de cativos para a lavoura canavieira, que até a década de 1850 foi muito signi- ficativa. Para que se tenha um exemplo desse fato, basta notar que entre a população livre dos anos de 1814 e 1829 praticamente houve uma estagnação, não pela falta de famílias para dar continuidade à procriação, em outras palavras, não pela ausência de nascimentos, e nem mesmo porque os óbitos suplantaram os nascimentos, mas devido ao processo de mobilidade espacial que levou muitos agri- cultores a procurarem outras terras para suas famílias.1 O período entre 1829 e 1854 pode ser retratado como o auge da lavoura canavieira e o início da cafeicultura na localidade, momento que também foi marcado pela elevação de sua condição para cidade e que registrou uma queda na taxa geométrica anual média maior que o período anterior, assinalando o valor de 2,1%. Apesar disso, a população livre retomou seu crescimento, atingindo uma taxa de 1,9%, enquanto a população cativa reduziu de 6,4% para 2,1% em relação ao período anterior. 1 A Taxa Média de Crescimento Anual da população livre em Campinas entre os anos de 1829 e 1814 foi de 0,08%, conforme dados da Tabela 2. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 41A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 41 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 42 PAULO EDUARDO TEIXEIRA Embora a proposta deste estudo esteja centrada até meados do século XIX, a informação contida na Tabela 1 do período entre 1854 e 1886 atesta que Campinas passou a sofrer outro processo, distinto do que foi operado até então, quando o crescimento econômico pautado pela cana-de-açúcar foi responsável pela vinda de pessoas livres e escravas de diversas localidades. A população de Campinas continuou a se multiplicar, mas os atores desse desenvolvimen- to foram outros, possivelmente brasileiros e europeus vindos das mais remotas regiões para trabalharem nos cafezais e nas indústrias paulistas. Tabela 2 – Distribuição da população total por condição social (Campinas, 1774, 1794, 1814, 1829 e 1854) Ano Condição social Livres Escravos Total No % No % No % 1774 388 81,7 87 18,3 475 100 1794 1.364 73,3 498 26,7 1.862 100 1814 3.700 66,2 1.893 33,8 5.593 100 1829 3.746 43,8 4.799 56,2 8.545 100 1854 6.052 42,6 8.149 57,4 14.201 100 Fonte: Listas Nominativas de Campinas (AEL – Unicamp). Para 1854 os dados são de Bassanezi (Org.), 1998, v.II, p.298. Como demonstramos, até 1814 a entrada de livres foi muito importante para a expansão demográfica da vila campineira em termos absolutos. Por exemplo, dos 527 chefes de domicílio que declararam naturalidade, apenas 67 eram nascidos em Campinas (Teixeira, 2004, p.114). Por sua vez, a participação da população cativa foi paulatinamente se tornando mais expressiva, a ponto de esse grupo se tornar majoritário em 1829. Sobre esse momento, Slenes (1998, p.17) afirma que “Açúcar e escravidão rapidamente tornaram-se praticamente ‘sinônimos’ em Campinas e o cresci- mento da população cativa foi explosivo: em torno de 18% ao ano entre 1789 e 1801, e 5% ao ano entre 1801 e 1829”. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 42A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 42 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 43 Constata-se uma proporcional queda do número de pessoas livres dentro da população total à medida que o número de escravos seguiu na direção inversa, ou seja, proporcionalmente a sua popu- lação foi crescendo, até superar, de forma absoluta, a população de livres.2 Na base dessa sociedade, o escravo passou a ganhar maior importância para o estabelecimento de uma economia agrária vol- tada ao comércio, e em 1814, quando a vila de Campinas não tinha completado vinte anos de existência, já despontava como uma re- gião com maciça presença de mão de obra escrava, para em 1829 superar a antiga vila de Itu e muitas outras.3 Embora tivesse ocorrido um aumento da população escrava de maneira geral, o que se percebe é que a posse de escravos foi um im- portante fator de diferenciação social e econômica, constituindo em prestígio para seus detentores, o que vale dizer que a propriedade escrava representava grande parte de sua riqueza. Assim, ao utilizar o índice de Gini para cada um dos anos estudados, nota-se que a concentração de riqueza na localidade campineira foi surpreenden- te, expressa pelo aumento de seu valor de 0,46 em 1774 para 0,52 em 1794, e de 0,63 em 1814 para 0,67 em 1829.4 Tais informações permitem notar a intensificação do processo de concentração de 2 O ano de 1854 é representativo de muitos acontecimentos ocorridos nesse período, como o fim do tráfico de escravos, a primeira lei de terras, e no espaço campineiro, a cafeicultura tomando espaço antes destinado aos canaviais, a condição de cidade imperial adquirida em 1842, e uma população livre que voltou a crescer após 1829. 3 Luna e Klein (1990, p.370), estudando a posse de escravos em algumas locali- dades de São Paulo em 1829, apontaram para as seguintes médias de escravos por proprietário: Itu = 11; Mogi = 4,6; São Paulo = 4,9. Em Campinas, nesse ano a média foi de 14,7. 4 “O índice de Gini corresponde a um coeficiente estatístico largamente utili- zado para medir concentração de renda e riqueza. [...] quanto mais regular- mente se distribui a renda ou riqueza, mais próximo de zero estará o valor do índice (zero no limite); correlativamente, quanto mais concentrada estiver a riqueza ou renda, maior será o valor do aludido índice que, no máximo, iguala- -se à unidade” (Luna, 1981, p.121, nota 4). Utilizamos a variável “posse de escravos” como uma proxy da variável “riqueza”. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 43A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 43 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 44 PAULO EDUARDO TEIXEIRA riqueza na forma de escravos entre o final do século XVIII e meados do XIX, momento esse em que a lavoura canavieira assumiu impor- tante papel econômico na vila campineira. Confirmam essa posição os resultados apresentados pela Tabela 3, que mostra a distribuição porcentual dos escravistas e seus cati- vos por faixas de tamanho de plantéis. Tabela 3 – Distribuição porcentual dos proprietários de escravos de acordo com faixas de tamanho dos plantéis (FTP) (Campinas, 1774, 1794, 1814 e 1829) FTP % de proprietários % de escravos 1774 1794 1814 1829 1774 1794 1814 1829 1 24 16,2 19,8 21,4 6,9 2,4 2,1 1,5 2 – 4 60 39,2 39,6 26,9 43,7 15,8 11,6 4,9 5 – 9 12 18,9 16,4 16,2 22,9 17,1 11,7 7,2 10 – 19 0 20,3 8,4 14,4 0 39,2 12,4 13,7 20 – 39 4 4,1 9,4 9,5 26,5 14,5 27,8 17,2 40 e + 0 1,3 6,4 11,6 0 11 34,4 55,5 Total 100 100 100 100 100 100 100 100 Fonte: Listas Nominativas de Campinas (AEL – Unicamp). Obs.: % = distribuição percentual. Considerando os proprietários de pequenas escravarias, ou seja, aqueles com menos de cinco cativos, nota-se que agregam a maior parte dos senhores ao longo dos anos selecionados. Entretanto, quando avaliada a posse de escravos nas mãos desses mesmos se- nhores, nota-se uma queda dos números, representando a perda de importância desse grupo que, em 1774, detinha 50,6% de toda escravaria e, em 1829, chegou a compor apenas 6,4%. Há, por sua vez, um maior número de escravistas com mais de quarenta cativos, que passam a ser os responsáveis pela maior concentração de escravos nos anos 1814, com 34,4%, e 1829, com 55,5%. O número médio de escravos por proprietário para essa mesma faixa correspondeu a cinquenta cativos em 1814, e 70 em 1829. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 44A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 44 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 45 Tabela 4 – Razão de sexo da população livre segundo faixa etária (Campinas, 1767-1829) RAZÃO* 1767 1770 1774 1778 1782 1786 1790 1794 1800 1817 1829 –12 83 95 92 108 76 78 87 111 102 108 124 12 – 60 91 88 90 89 86 80 85 88,6 95 96 84 +60 100 250 110 240 130 141 163 133 92 134 127 Total 88 93 92 99 84 82 88 98 98 101 95 *A razão de sexo define-se como o número de homens por um grupo de cem mulheres. Fonte: Listas Nominativas de Campinas (AEL – Unicamp). Os dados para os anos 1800, 1817 e 1829 foram coletados em Martins (1996, p.32-44), e em virtude disso os dados para a faixa de -12 correspondem, na realidade, à faixa de até 9 anos, ao passo que a faixa seguinte corresponde de 10 a 59 anos. Observando a Tabela 4 nota-se a preponderância do sexo femi- nino entre o segmento livre da população, algo que vem corroborar aquilo que foi observado por Marcílio (2000, p.83) para a capitania de São Paulo. Entretanto, algumas considerações devem ser feitas nesse caso, pois a razão de sexo é desfavorável não só para a popula- ção masculina em idade adulta, mas também para a população infan- til. Assim, a ideia de que os constantes recrutamentos eram a causa para se entender o predomínio de mulheres deve ser repensada à luz de novas investigações. Além disso, os dados citados atestam algo diferente daquilo que foi sugerido por Marcondes (1998, p.60), ou seja, que “no início da ocupação de uma nova região haveria a emi- gração, principalmente, de homens das áreas mais antigas”. O que notamos no princípio da ocupação de Campinas, quando esta era um bairro rural de Jundiaí, é a numerosa presença de casais, caracteriza- da pelos domicílios nucleares, isto é, aqueles compostos pelo casal, ou o casal com filhos. Assim, o processo migratório para as áreas de fronteira pode ter diferido muito, dado o tipo de exploração econô- mica da referida região, e para o nosso caso, a participação da mulher foi essencial, fosse ao lado de seu marido, fosse mesmo sozinha.5 5 A chefia feminina de domicílios em Campinas pode ser compreendida em parte por esse processo migratório. Em 1829 havia 54 fogos singulares dirigidos por mulheres, contra apenas 18 liderados por homens (cf. Teixeira, 2004, p.258). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 45A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 45 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 46 PAULO EDUARDO TEIXEIRA Ao considerar a faixa daqueles que atingiam os 60 anos de idade, nota-se uma razão de sexo elevada, indicando que os riscos de morte para as mulheres deveriam ser maiores do que para os homens. Além disso, deve-se assinalar que, em virtude dos poucos habitantes que chegavam a tal idade, o pequeno rol de pessoas que compunham esse grupo pode gerar um diferencial maior da razão de sexo entre homens e mulheres para essa faixa etária. Tabela 5 – Razão de sexo da população escrava pela faixa etária (Campinas, 1778-1829) RAZÃO* 1778 1782 1786 1790 1794 1800 1817 1829 –12 66 47 81 60 89 118 96 103 12 – 60 106 131 123 119 163 213 266 259 +60 300 250 200 350 600 600 411 644 Total 100 103 108 99 145 194 234 234 *A razão de sexo define-se como o número de homens por um grupo de cem mulheres. Fonte: Listas Nominativas de Campinas (AEL – Unicamp). As listas de 1767 e 1770 não re- gistraram nenhum escravo, e a de 1774 indica apenas o número total de cativos em um fogo. Os dados para os anos 1800, 1817 e 1829 foram coletados em Martins (1996, p.32-4), e em virtude disso os dados para a faixa de -12 correspondem, na realidade, à faixa de até 9 anos, ao passo que a faixa seguinte corresponde de 10 a 59 anos. Quando se analisa a proporção entre homens e mulheres na po- pulação escrava (Tabela 5), percebe-se nitidamente que a vinda de cativos do sexo masculino tornou-se preponderante especialmente a partir de 1794, momento em que os engenhos começaram a pro- liferar na freguesia. Embora houvesse a preferência por escravos do sexo masculino para o trabalho no campo, certo equilíbrio entre os sexos pode ser notado até o ano de 1790, quando então as razões de sexo atingem 145 em 1794, 194 em 1800, 234 em 1817 e 1829. Sem dúvida, a lavoura canavieira mudou o comportamento dos escravistas em re- lação ao tipo de escravo a ser adquirido. Podemos dizer que até 1790 havia um equilíbrio entre o sexo dos cativos, especialmente daque- les que se encontravam na faixa de 10 a 29 anos. Porém, a partir de 1794, o interesse dos senhores passou a ser em comprar homens de 20 a 29 anos. Observem-se os gráficos 2 e 3, que ilustram esse momento de transição. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 46A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 46 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 47 0 a 10 11 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 a 60 Maiores de 60 Idade 25% 15% 25%5% 15%05% Homens Mulheres Gráfico 2 – Pirâmide etária da população escrava (Campinas, 1778) Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (AEL– Unicamp). O Gráfico 2 evidencia que a faixa de crianças (de 0 a 10 anos), sobretudo do sexo feminino, sobressaía às demais. A partir de 1778, esse comportamento assemelha-se ao encontrado por Motta (1999, p.230-78) para o caso de Lorena, em 1801. Embora seja difícil es- tabelecer algumas respostas para tais situações, alguns paralelos podem ser traçados em relação às crianças cativas. O primeiro deles refere-se ao tamanho dos plantéis em que viviam esses escravos, pois a maioria encontrava-se naqueles que possuíam um maior número de escravos, favorecendo não só as relações sexuais entre eles como a própria existência da família escrava. Um segundo ponto está vin- culado justamente “ao efeito que o desenvolvimento dessas famílias poderia ter sobre o próprio tamanho dos plantéis onde elas estives- sem. [...] ao que tudo indica, a família escrava responde pela trans- formação de um plantel médio em um grande” (ibidem, p.279-80). Assim, em 1778, o sargento-mor João Rodrigues da Cunha mantinha em seu domicílio três famílias de escravos: Mateus e Maria, juntamente com dois filhos; José, 42 anos, casado com Tere- za, forra, ao lado de quatro filhos; e mais Francisco e Ana, com três filhos. Além desses, o sargento tinha mais quatro escravos, totali- A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 47A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 47 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 48 PAULO EDUARDO TEIXEIRA zando dezoito indivíduos. Alguns anos depois, em 1782, o plantel do sargento modificou-se um pouco, pois ele não possuía mais os quatro últimos escravos, e a cativa Maria, mulher de Mateus, havia morrido naquele ano. Porém, graças às famílias escravas o número do plantel mantinha-se o mesmo.6 O Gráfico 3, por seu turno, apresenta uma configuração em que o desequilíbrio entre os sexos dos escravos começará a ser ve- rificado, especialmente, nas faixas adultas de 11 a 30 anos, com a nítida preferência pelo trabalho masculino. Por exemplo, até 1790, houve um equilíbrio entre os sexos. Porém, a partir de 1794, a dife- rença entre homens (59,1%) e mulheres (40,9%) apenas aumentou, atingindo os picos mais elevados na década de 1820, quando, por exemplo, os homens entre 21 e 30 anos corresponderam ao total do número de mulheres, isto é, 27,1%, conforme ilustra o Gráfico 4. Diante disso, a expansão da família escrava sofreu consequências pela falta de parceiros entre eles, embora não obstruindo a existên- cia daquela, segundo Slenes (1999, p.75). 0 a 10 11 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 a 60 Maiores de 60 Idade 25% 15% 25%5% 15%05% Homens Mulheres Gráfico 3 – Pirâmide etária da população escrava (Campinas, 1794) Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (AEL– Unicamp). 6 Lista Nominativa de Habitantes de Campinas, 1778, fogo 5, e 1782, fogo 4 (AEL– Unicamp). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 48A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 48 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 49 0 a 10 11 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 a 60 Maiores de 60 Idade 25% 15% 25%5% 15%05% Homens Mulheres Gráfico 4 – Pirâmide etária da população escrava (Campinas, 1826) Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (AEL– Unicamp). Os dados apresentados na Tabela 6 para a faixa de pequenos plantéis levam a concordar com a ideia de que uma grande barreira aos casamentos religiosos entre escravos era o pequeno rol de po- tenciais cônjuges. Por sua vez, entre os plantéis com dez ou mais escravos, a razão de sexo pode determinar a proporção de homens e mulheres casados. Para o ano de 1778, nota-se o predomínio do elemento feminino entre os cativos nas propriedades maiores, não só favorecendo o casamento para os homens como também possi- bilitando a oportunidade de escolha de seu cônjuge. Esse caso pode demonstrar como um dado sistema demográfico está associado à sua base econômica, podendo gerar a alteração em uma determina- da variável demográfica, como o sexo. Assim, procurou-se mostrar que a entrada da lavoura canaviei- ra em Campinas alterou a estrutura demográfica do contingente cativo que, forçadamente, foi instalando-se na região, sendo o ele- mento masculino entre 21 e 30 anos o preferido pelos senhores de escravos. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 49A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 49 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 50 PAULO EDUARDO TEIXEIRA Tabela 6 – Casados e viúvos como porcentagem dos escravos e escravas de 15 anos ou mais, por tamanho de faixa de plantel (TFP) (Campinas, 1778, 1801, 1829) TFP Homens com 15 anos ou mais Mulheres com 15 anos ou mais Razão de sexo 1778 1801 1829 1778 1801 1829 1778 1801 1829 1 – 9 19,2% 32,8% 20% 31,2% 39,2% 31,4% 163 123 170 10 e + 58,3% 29,3% 23,4% 42,8% 68,8% 60,2% 86 231 309 Total 31,5% 30,1% 23,0% 36,6% 58,2% 55,4% 126 192 286 Fonte: Listas Nominativas de Campinas, 1778 (Arquivo do Estado de São Paulo). Os dados para 1801 e 1829 foram coletados em Slenes (1999, p.75, Tabela 1). Entre a população livre, as pirâmides de idade mostram um perfil muito diferente ao longo desse período. Em 1774, conforme ilustra o Gráfico 5, encontra-se uma popu- lação predominantemente jovem, composta por casais com filhos menores e com alguns desníveis em determinadas faixas de idade. Assim, na faixa de 21 a 30 anos, a razão de sexo foi de 53,5, o que demonstra com clareza a emigração de homens nessas idades. Já na faixa seguinte, isto é, entre 31 e 40 anos, a razão de sexo foi de 164,3, com o predomínio dos homens, talvez por morte de mulheres nessa faixa de idade. 0 a 10 11 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 a 60 Maiores de 60 Idade 25% 15% 25%5% 15%05% Homens Mulheres Gráfico 5 – Pirâmide etária da população livre (Campinas, 1774) Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (AEL – Unicamp). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 50A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 50 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 51 Passados vinte anos, a configuração clássica de uma pirâmide de base larga que demonstra um vigoroso crescimento vegetativo pode ser vista, conforme mostra o Gráfico 6. As crianças com menos de 10 anos correspondiam a 39% da população total, indicando a presença de casais e um equilíbrio entre os sexos, com 49,8% de homens e 50,2% de mulheres. Essa tendência permaneceu durante as quatro primeiras décadas do século XIX. No entanto, cabe dizer que a partir de 1794 se acentuou uma diferença entre homens e mulheres na faixa de 11 a 20 anos, em que a razão de sexo foi de 75. Em 1814 ela se elevou para 81,2 (Gráfico 6) e atingiu um mínimo em 1829 (Gráfico 8) com a marca de 62,5, demonstrando a ausência de jovens rapazes. 0 a 10 11 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 a 60 Maiores de 60 Idade 25% 15% 25%5% 15%05% Homens Mulheres Gráfico 6 – Pirâmide etária da população livre (Campinas, 1794) Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (AEL– Unicamp). Avaliando a presença de homens e mulheres nas faixas de 0 a 14 anos entre o período de 1774 e 1829 nota-se um equilíbrio entre os sexos, o que levou a descartar a hipótese de um crescimento diferenciado e a aceitar a possibilidade de emigração de homens da faixa etária dos adultos para outras localidades mais a oeste. Além disso, o alto índice de crianças (de 0 a 10 anos) ao longo desse estudo (gráficos 4 a 9) atesta níveis elevadíssimos de fecundidade, como se verá adiante. Em 1794, a importância dos jovens cresceu A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 51A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 51 05/03/2012 17:56:5105/03/2012 17:56:51 52 PAULO EDUARDO TEIXEIRA significativamente, atingindo quase a metade (49%) da população cadastrada, caindo em 1814 para 36,6% e voltando a subir para a marca de aproximadamente 42%.7 0 a 10 11 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 a 60 Maiores de 60 Idade 25% 15% 25%5% 15%05% Homens Mulheres Gráfico 7 – Pirâmide etária da população livre (Campinas, 1814) Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (AEL– Unicamp). Sublinhe-se que a marcha migratória não afetou negativamente a evolução populacional no que se refere à procriação de crianças e, portanto, de pessoas das novas gerações. Ao que parece, o processo de saída de livres foi o responsável por manter o número da popu- lação estável até a década de 1830, não aumentando seus efetivos, quando então se nota o aumento populacional impulsionado por um movimento migratório com saldo positivo, visualizado pelo Gráfico 8, onde os adultos da faixa etária de 21 a 40 anos passaram a constituir um importante grupo. Além disso, o predomínio de mulheres nessa faixa etária pode estar relacionado ao número de mulheres chefes de domicílio, que era de 25% em 1829 (Gráfico 9).8 7 Deve-se salientar que para o ano de 1814 não se teve informação da idade para 631 pessoas do total de 2.984 habitantes arrolados na Lista Nominativa desse ano, o que talvez justifique uma queda no percentual de jovens. 8 Das 1.422 mulheres livres anotadas por Müller, tem-se que 15% delas corres- pondiam a mulheres chefes de domicílio. Sobre a chefia feminina em Campi- nas para o ano de 1829, ver Teixeira, 2004, p.99-102. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 52A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 52 05/03/2012 17:56:5205/03/2012 17:56:52 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 53 0 a 10 11 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 a 60 Maiores de 60 Idade 25% 15% 25%5% 15%05% Homens Mulheres Gráfico 8 – Pirâmide etária da população livre (Campinas, 1826) Fonte: Mapa da Lista Nominativa de Habitantes (Arquivo Edgard Leuenroth – Unicamp). 0 a 10 11 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 a 60 Maiores de 60 Idade 25% 15% 25%5% 15%05% Homens Mulheres Gráfico 9 – Pirâmide etária da população livre (Campinas, 1829) Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (AEL– Unicamp). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 53A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 53 05/03/2012 17:56:5205/03/2012 17:56:52 54 PAULO EDUARDO TEIXEIRA Enfim, 1836 talvez seja outro momento vivido por Campinas (Gráfico 10) que trouxe algumas mudanças que vieram transformar a cidade, como o início da chegada de imigrantes estrangeiros, que pouco a pouco tomaram parte ativa nas atividades econômicas da cidade, seja no campo, como lavradores meeiros dos cafezais que se multiplicaram, seja no comércio e na indústria, que se expandiu a partir de 1850. Tais fatores podem ter reforçado ainda mais o porcentual de pessoas ativas entre a população campineira, que já era elevado em 1829, com uma participação de praticamente 50%, conforme apresentado pelo Gráfico 11.9 0 a 10 21 a 25 11 a 20 31 a 40 41 a 50 51 a 60 61 a 70 Maiores de 70 Idade 25% 15% 25%5% 15%05% Homens Mulheres Gráfico 10 – Pirâmide etária da população livre (Campinas, 1836) Fonte: Müller (1978, p.139). 9 Um estudo para uma vila da ilha açoriana de São Jorge apresentou uma ten- dência semelhante à encontrada para Campinas: elevado percentual de jovens e ativos, com uma parcela menor de velhos (cf. Madeira et al., 1998, p.69-71). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 54A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 54 05/03/2012 17:56:5205/03/2012 17:56:52 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 55 0% 20% 40% 60% 80% 100% 1774 1794 1814 1829 Jovens Ativos Velhos Gráfico 11 – Evolução dos Grupos Funcionais10 (Campinas, 1774-1829) Fonte: Listas Nominativas de Habitantes (Arquivo Edgard Leuenroth – Unicamp). 10 Os jovens foram classificados entre 0 e 14 anos, idade com que os homens já poderiam contrair matrimônio segundo as Constituições Primeiras. Para os adultos, adotou-se a idade de 15 a 50 anos, por achar-se que em virtude de uma baixa expectativa de vida naquele tempo, o período de 35 anos seria relativamente viável para a idade ativa de uma pessoa. Finalmente, os velhos foram considerados acima de 50 anos, quando especialmente as mulheres acima dessa idade já estariam na fase da menopausa e, portanto, não mais contribuindo para o aumento populacional. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 55A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 55 05/03/2012 17:56:5205/03/2012 17:56:52 A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 56A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 56 05/03/2012 17:56:5205/03/2012 17:56:52 2 A FECUNDIDADE EM UMA SOCIEDADE DE PLANTATION Em áreas dominadas pelo cristianismo, o casamento tendia a ser uma forma de cumprir com a determinação divina relatada na Bí- blia, no versículo 28 do primeiro capítulo do livro do Gênesis, que diz: “Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra, e sujeitai-a”. Além disso, o apóstolo Paulo, ao dar conselhos aos solteiros e viúvas de Corinto em matéria de casamento, diz-lhes que aqueles que “não podem conter-se, casem-se, pois é melhor casar do que abrasar-se” (I Cor. 7:9). Diante disso, a Igreja cristã viu no casamento um meio para evitar a fornicação ou concupiscência. Estavam dadas as bases daquilo que passaria a constituir os elementos da fé católica no que se referia ao matrimônio, um dos sete sacramentos da Igreja.1 A fecundidade, portanto, como um comportamento sexual, está associada à procriação humana, em termos do número efetivo de filhos em relação às mulheres em idade reprodutiva. Em relação ao estudo da fecundidade, especialmente em sociedades que não realizam esse controle no casamento, nesse caso condicionado por outros determinantes, como a moral e a religião, a idade ao casar 1 Os sete sacramentos são: batismo, confirmação, eucaristia, penitência, ordem, matrimônio, unção dos enfermos (cf. Vide, 1719, p.10). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 57A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 57 05/03/2012 17:56:5205/03/2012 17:56:52 58 PAULO EDUARDO TEIXEIRA torna-se um dos fatores principais para se determinar sua variação.2 Assim, em sociedades como a brasileira do século XIX, a fecundi- dade das mulheres tendia a ser elevada para aquelas que se casavam mais jovem. Nas sociedades pré-industriais da Europa houve co- munidades em que a idade média para o casamento foi de 20 anos, enquanto em outras esse número se situava aos 30 anos de idade, o que possibilitava a geração de um volume populacional diferencia- do entre elas (Wrigley, 1969, p.116). Cabe lembrar também outro fator importante, que é a morta- lidade materna, que pode interferir diretamente na fecundidade de uma população. Assim, com o aumento da duração média do casamento durante os últimos duzentos anos, a fecundidade sofreu alterações importantes no meio social, pois os pais passaram a ter “a possibilidade de olhar para o futuro como um período em que enve- lheceriam lado a lado já livres dos cuidados de terem de criar filhos” (Anderson, 1984, p.17). Portanto, o estudo da fecundidade abre a porta para o entendimento do complexo jogo dos relacionamentos entre homens e mulheres sob o ponto de vista demográfico. Para este estudo foram utilizados os dados relativos às mulhe- res casadas em todas as idades férteis, ficando de fora os dados pertinentes àquelas que tenham tido filhos, mas para as quais não constava o nome do cônjuge ou parceiro, ou seja, as mães solteiras. Esse procedimento foi adotado porque a análise feita pelo programa utilizado requeria apenas as famílias ditas completas cujas datas de início e fim de união eram conhecidas, bem como informações se- guras sobre a prole resultante de um dado matrimônio. Pela mesma razão os dados sobre filhos abandonados foram deixados de lado, o que não impediu que nosso trabalho tivesse bom êxito, uma vez que, como veremos, grande parte dos nascimentos se produziu dentro do matrimônio. 2 Outros fatores também concorrem para uma variação da fecundidade, tais como culturais (religiosos), econômicos (crises de abastecimento) e políticos (políticas de controle ou incentivo a natalidade) (cf. Damiani, 2002, p.36). A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 58A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 58 05/03/2012 17:56:5205/03/2012 17:56:52 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 59 O Sygap (Système de Gestion et d’Analyse de Population), um programa de computador que foi desenvolvido por uma equipe francesa e outra canadense sob a direção de Alain Bideau e Jacques Legare, foi programado para seguir os mesmos critérios da técnica empregada por Louis Henry e Michel Fleury, resultando na for- mação de quatro tipos de família: MF, MO, EF e EO, conforme demonstramos no Apêndice Metodológico.3 Iniciamos nosso estudo sobre a fecundidade em Campinas com o cálculo da taxa bruta de natalidade,4 uma vez que esse indicador nos possibilita perceber o ritmo de nascimentos. Assim, para o ano de 1794, a taxa de natalidade foi de 53‰, valor equivalente aos mais elevados índices encontrados para a Europa em 1890, onde a Rússia apresentou a taxa de 48,5‰ (Cascão, [s. d.], p.429). Para os padrões norte-americanos, índices como o de Clayworth, que atingiram a marca de 37,2‰, ou o de Andover, que foi pouco mais além, com 37,7‰, foram considerados elevadíssimos para o século XVIII (Greven Jr., 1995, p.105-6). Em Ubatuba, no ano de 1798, a taxa bruta de natalidade dos caiçaras foi de 43‰, e em 1818 che- gou a 47,6‰. Em Curitiba, em 1803, essa taxa foi de 47,4‰. Esse indicador, embora de forma simplificada, retrata um crescimento significativo da população, especialmente porque, em 1814, a nata- lidade para Campinas atingiu a espantosa taxa de 70‰! Esses dados comparativos sugerem a existência de pelo menos dois modelos demográficos distintos. Portanto, estudar os padrões de Campinas de forma mais detalhada implica recorrer à técnica da reconstitui- ção de famílias, pois os dados da taxa bruta de natalidade ou taxa anual média de natalidade, como também é chamada, usam como denominador comum a população total, e em realidade apenas uma parte dela está sujeita à procriação (Welti, 1997, p.107). 3 O tipo de família MF corresponde àquela que possui a data de casamento e de morte de um ou ambos os cônjuges; portanto, tipo de família completa. 4 O cálculo da taxa bruta de natalidade corresponde à divisão do número de nascimentos em um determinado ano pela média da população do mesmo ano, multiplicado por mil. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 59A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 59 05/03/2012 17:56:5205/03/2012 17:56:52 60 PAULO EDUARDO TEIXEIRA Assim, estudar a fecundidade das mulheres que potencialmente possam gerar uma descendência, ou seja, aquelas que se situam entre 12 e 49 anos, é o caminho mais apropriado.5 Taxas de fecundidade A taxa de fecundidade legítima é um dos meios adequados para avaliar a força da natalidade de uma dada localidade. A Tabela 7 apresenta a taxa de fecundidade de diversos estudos, brasileiros e europeus, pelos quais se podem fazer algumas colocações pertinen- tes aos processos demográficos envolvidos. Por sua vez, entre as mulheres que atingiram a idade de 40 anos ou mais, nota-se que houve uma diminuição de sua fecundidade, indicando o princípio da menopausa e, portanto, o fim de sua capa- cidade reprodutiva. Quando se observam comparativamente as localidades, sur- preende-se com os resultados da fecundidade das mulheres livres em Campinas, uma vez que são as mais elevadas entre as mães de 12 até 29 anos de idade. Entre a faixa de 30 e 34 anos aparecem as mulheres da elite do Oeste Paulista, das quais várias eram de Campinas.6 Após essa idade, as mulheres de Curitiba foram as que apresentaram índices mais elevados para as idades entre 35 e 49 anos. No entanto, a força da fecundidade nos anos iniciais de vida conjugal era fundamental para que uma família viesse a ter um grande número de filhos. 5 Muitos estudos consideram a idade fértil da mulher variando dos 15 aos 49 anos. No entanto, foram encontradas mulheres que se casaram precocemente, com 12, 13 ou 14 anos, o que levou a adotar esse recorte. Além disso, em vários casos que foram atribuídas datas de nascimento a mulheres casadas, optou-se pela idade dos 14 anos. 6 Em estudo sobre a elite paulista do Vale do Paraíba, Scott (1987, p.130) tam- bém verificou uma alta taxa de fecundidade, o que demonstra que a diferen- ciação social é um dos fatores a ser levado em consideração. A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 60A_formacao_das_familias_livres_(GRAFICA)_V2.indd 60 05/03/2012 17:56:5205/03/2012 17:56:52 A FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS LIVRES 61 Em relação a isso, o bairro italiano de Santa Felicidade, em Cu- ritiba, pode ser um exemplo esclarecedor de alta fecundidade que encontrou explicação “na nupcialidade generalizada e precoce as- sociada à natalidade forte” (Balhana, 1978, p.74).7 Tabela 7 – Fecundidade comparada por grupos de idade. Diversas localidades8 Mulheres casadas no período Idade observada da mãe No de uniões 12 -1 4 15 -1 9 20 -2 4 25 -2 9 30 -3 4 35 -3 9 40 -4 4 45 -4 9 Campinas (SP): 1774-1850 393 563 564 485 389 252 112 41 456 Elite do Oeste Paulista: 1765-1836 157 427 414 420 402 282 159 39 – Sorocaba (SP): 1679-1810 227 366 407 376 335 268 138 30 – Ubatuba (SP): 1790-1830 363 480 469 421 388 247 167 47 750 Antonio Olyntho (PR): 1895-1949 – 533 507 409 354 320 146 20 178 C.E.L. (PR): 1866-1894 – 427 484 403 328 237 119 15 – Curitiba (PR): 1731-1798 279 455 474 457 385 323 202 47 – N. Sra. da Lapa (PR): 1770-1829 195 383 358 302 267 230 150 43 399 Crulai (França): 1674-1742 – 320 419 429 355 292 142 10 – Meulan (França): 1790-1839 – 397 396 305 233 146 57 6 – Treppio (Itália): 1790-1889 – 364 445 436 389 307 174 18 424