i UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA ADEIR ARCHANJO DA MOTA SUICÍDIO NO BRASIL E OS CONTEXTOS GEOGRÁFICOS: CONTRIBUIÇÕES PARA POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE MENTAL PRESIDENTE PRUDENTE 2014 ii UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA ADEIR ARCHANJO DA MOTA SUICÍDIO NO BRASIL E OS CONTEXTOS GEOGRÁFICOS: CONTRIBUIÇÕES PARA POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE MENTAL Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciência e Tecnologia, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Geografia, como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Raul Borges Guimarães. Presidente Prudente 2014 iii Mota, Adeir Archanjo da. M871s Suicídio no Brasil e os contextos geográficos : contribuições para política pública de saúde mental / Adeir Archanjo da Mota. - Presidente Prudente: [s.n], 2014 xviii 208 f. : il. Orientador: Raul Borges Guimarães Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia Inclui bibliografia 1. Suicídio. 2. Contexto Geográfico. 3. Geografia da Saúde. I. Guimarães, Raul Borges. II. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. III. Título. CDD 910 iv v Ao meu pai, in memoriam. Ao Gabriel Archanjo e a minha mãe. vi AGRADECIMENTOS O ensino de qualidade é um bem cultural com elevado valor. Dificilmente eu acessaria os níveis médio e superior se não fosse às conquistas de movimentos sociais pelo ensino público, “gratuito” e de qualidade. Por isto, inicio agradecendo as brasileiras e os brasileiros que financiam a minha formação acadêmica e profissional desde os dois anos de idade. A tese apresentada é fruto de um esforço coletivo, que envolveu professores(as), amigos(as), instituições, familiares e conhecimentos científicos acumulados. A menção de todos(as) geraria uma extensa lista e provavelmente incorreria omissões; assim, agradeço aos que contribuíram, direta ou indiretamente, com a elaboração desta pesquisa e, nomeadamente, agradeço: Ao professor Raul Borges Guimarães, pelas orientações, pela amizade e pelo apoio na trajetória de doutoramento. Admito que a liberdade, associada ao apoio e à amizade, permitiu ricas experiências e um caminho de emancipação. À Luisa Iñiguez Rojas, pelas arguições, provocações e ensinamentos na banca de qualificação, nas aulas ministradas no PPGG e no VI Geosaúde. Aos docentes dos níveis básico e superior, em especial: à Cláudia, nas séries iniciais; à Ione, no fundamental e médio; ao Cesar Mendes, na iniciação científica e no mestrado na UEM; ao Eduardo Girardi, ao Everaldo Melazzo, ao Clifford, ao Claude Bertrand, ao Georges Bertrand e ao Bernardo Fernandes, pelos encaminhamentos e conteúdos ministrados nas disciplinas ofertadas no PPGG; e ao Eduardo Werneck, membro da banca de qualificação. Ao Rogerio Giuffrida pela disposição e pelos ensinamentos de Estatística, tanto nas tentativas de modelagem de dados como nos auxílios em Bioestatística. Ao Gabriel Archanjo, pelo carinho e compreensão de ter um “pai à distância”. A minha mãe e aos demais familiares pelos incentivos. Ao Rafael Catão, pelas discussões teórico-metodológicas, pelas sugestões nas representações cartográficas e pela amizade. À Raquel Arruda, pelas críticas construtivas, pelo carinho e pela atenção. Este casal, à vizinha Aurora e o orientador compõe a minha família prudentina. Ao Ronaldo Araújo pelo apoio e pelas trocas de experiências. À Tatiane Vinhal, pelo acolhimento e por compartilhar momentos de distração. vii Aos colegas do PPGG, pelas discussões e experiências, pelas festas e lutas: à Núbia, à Juliana, ao Ítalo, ao Ugeda, à Sílvia, ao Henrique, ao Juscelino, ao Wagner, ao Igor, ao Danilo, à Natacha, ao João, ao Rodrigo, à Natália, à Karime, ao Oséias, à Leonice, à Gislene, ao Márcio, à Letícia, ao José, à Karina, à Paula, ao Eduardo, ao Christian, ao Vitor, à Denise, ao Fernando, à Aline, à Ana Rosa, à Ana à Cláudia, à Angélica, ao Frederico, ao Agnaldo, à Leda e ao Anderson. À Juliana Araújo, pelo acolhimento, por compartilhar momentos de alegria e pela revisão de língua portuguesa. À Adriana, ao Valdeir e à Fabiana, novas amizades de recém-chegados a Barra do Garças e a UFMT – Campus Araguaia, pelo acolhimento e por compartilhar as ansiedades da redação final da tese e pela distância de amigos(as) e familiares. À Coordenadora Zenilda e os professores do Curso de Geografia da UFMT, em especial o Sandro Melo e o Romário Sousa, pela concentração dos encargos didáticos e pelo apoio. Estas contribuições foram indispensáveis para eu ministrar as disciplinas no primeiro ano de trabalho e, simultaneamente, finalizar esta tese. À terapeuta Maria, por mostrar que é possível desenvolver atividades simultâneas, mesmo que sobre pressões de prazos pouco flexíveis, associadas à pós-graduação, ao trabalho, à distância do filho, a assistência na reablilitação de uma cirurgia da mãe e ao desenvolvimento da incômoda gastrite. Ao Programa de Pós-graduação em Geografia da UNESP – Presidente Prudente, em especial, a Margarete, o Cezar e a Cinthia, coordenadores da gestão anterior e atual e a simpática e atenciosa secretária. A todos(as) os(as) funcionários(as) da Faculdade de Ciência e Tecnologia – UNESP. Ao Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico – CNPq, pelo apoio financeiro através da bolsa de doutorado. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pelas experiências proporcionadas de estágios na UFAM e na UFU, pelo Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (Procad). À Universidade Estadual Paulista – UNESP, pela oportunidade e apoio institucional na realização da pós-graduação. viii “As relações de poder não são algo de mal em si mesmas, das quais devemos nos livrar, eu creio que não existem sociedades sem relações de poder, se nós as entendermos como estratégias pelas quais os indivíduos tentem se conduzir, e determinar a conduta dos outros. O problema, portanto, não é de tentar dissolver as relações de poder em uma utopia de uma comunicação completamente transparente, mas fornecer regras de direito, técnicas de gestão e a moral, o ethos, as práticas de si, que permitirão, nos jogos de poder, se jogar com um mínimo possível de dominação”. (Michel Foucault, 1994). ix RESUMO O objetivo desta pesquisa foi analisar os contextos geográficos de mortalidade por suicídio no Brasil e a capacidade de resposta dos serviços de saúde mental. No Brasil, em um período de quinze anos (1997 a 2011), foram registrados mais de cento e vinte mil suicídios; quantidade muito superior a outros tipos de mortalidades com maior evidência nas políticas públicas e na mídia. A abordagem metodológica foi predominantemente quantitativa, tanto pelas limitações da pesquisa na escala nacional quanto pela disponibilidade de dados oficiais e atualizados, como, por exemplo, os dados de morbimortalidade no DATASUS (Ministério da Saúde), e sócio-demográficos no IBGE. A construção de um banco de dados geográfico da saúde mental brasileira e o emprego de técnicas bioestatísticas foram fundamentais para etapa analítica e para elaboração dos mapas, dos gráficos e das tabelas. A revisão sistemática da literatura possibilitou a identificação dos fatores protetores e predisponentes ao suicídio, a análise comparativa e o desenvolvimento teórico- metodológico do trabalho. A interdisciplinaridade, a análise multiescalar e o emprego da estatística espacial viabilizaram a identificação de contextos geográficos com mal-estar/ bem-estar psicossociais. A distribuição espaço-temporal dimensionou a magnitude do suicídio como importante problema de saúde pública. Os perfis sociodemográficos (gênero, faixas etárias, cor, estado civil, escolaridade e local de ocorrência) nacional e da região com suicídio endêmico no Sul do Brasil permitiram a diferenciação regional do suicídio; a inversão do efeito protetor da população de cor preta e a vulnerabilidade da população indígena (quando comparados os resultados da escala nacional e regional), a construção de geoindicadores e índice de saúde mental, a identificação dos grupos mais vulneráveis ao suicídio, as respectivas proporções populacionais e a necessidade da regionalização a partir das interações espaciais como contribuições para viabilizar a implementação de programas de intervenção. A presente pesquisa, predominantemente exploratória e descritiva, contribui para inserir a saúde mental na agenda de pesquisa da Geografia da Saúde brasileira e coloca a discussão sobre os poucos trabalhos que discutem o suicídio nas Ciências Humanas e Sociais no país. Palavras-chave: Geografia da Saúde. Suicídio. Serviços de Saúde Mental. x ABSTRACT The aim of this study was to analyze the geographic contexts of suicide mortality in Brazil and the response level of mental health services. In Brazil, in a period of fifteen years (1997-2011), there were more than one hundred twenty thousand suicides, is much higher than other types of mortality in higher evidence in public policy and the media. The methodological approach was predominantly quantitative, both by the limitations of the research on the national scale as the availability of official and updated data, for example, morbimortality data of DATASUS (Ministry of Health), and socio-demographic from the IBGE. The construction of a database of georeferenced Brazilian mental health and the use of biostatistical techniques were essential for the analytical phase and preparation of maps, graphics and tables. A systematic literature review enabled the identification of protective and predisposing factors to suicide, comparative analysis and theoretical and methodological development of the study. Interdisciplinarity, the multiscale analysis and the use of geostatistics enabled the identification of geographic contexts with discomfort / psychosocial well-being. The spatial-temporal distribution scaled the magnitude of suicide as a major public health problem. The national and regional endemic with suicide in southern Brazil sociodemographic profiles allowed the regional differentiation of suicide; reversal of the protective effect of black population and the vulnerability of the indigenous population (compared the results of the national and regional level), construction of geoindicators and mental health index, identifying the groups most vulnerable to suicide, their population proportions and the need for regionalization from the spatial interactions as contributions to enable the implementation of intervention programs. Search this predominantly exploratory and descriptive, helps to put the mental health research agenda of the Brazilian Geography Health and places the discussion of the few studies that discuss suicide in the humanities and social sciences in the country. Keywords: Geography of Health. Suicide. Mental Health Services. xi LISTA DE MAPAS Mapa 1: Mortalidade por Suicídio na América Latina e Caribe.................................12 Mapa 2: Suicídio e mortalidade por transtornos mentais no Brasil – 1979 a 2011.................................................................................................42 Mapa 3: Distribuição espaço-temporal da mortalidade por suicídio no Brasil – 1979 a 2011.................................................................................................50 Mapa 4: Dispersão espacial do suicídio no Brasil – 1979 a 2011.............................52 Mapa 5: Distribuição espaço-temporal da mortalidade por transtornos mentais no Brasil – 1979 a 2011...............................................................................53 Mapa 6: Mortalidade por suicídio no Brasil - 2009-2011.........................................58 Mapa 7: Mortalidade por transtornos mentais no Brasil - 2009-2011......................59 Mapa 8: Regionalização dos Clusters de Mortalidade por Suicídio no Brasil – 2009 a 2011..............................................................................................62 Mapa 9: Arcos de suicídio indígena e as “fronteiras” no Brasil – 2009 a 2011........80 Mapa 10: Populações indígenas municipais, Terras Indígenas e Unidades de Conservação Ambiental no Brasil – 2010..................................................82 Mapa 11: Dinâmica populacional dos indígenas e do “branco” no Brasil entre os anos de 2000 e 2010.............................................................................83 Mapa 12: Adensamento populacional na Reserva Indígena de Dourados – MS, 2010....................................................................................................87 Mapa 13: Suicídio na região Sul do Brasil – 2009 a 2011.........................................92 Mapa 14: Municípios paranaenses e a localização do estado do Paraná...............126 Mapa 15: Taxa média anual de suicídios (1998 a 2002) e a taxa de cobertura CAPS (dez. 2004) dos municípios paranaenses.....................................127 Mapa 16: Taxa média anual de transtornos mentais (1998 a 2002) e a taxa de cobertura CAPS (dez. 2004) dos municípios paranaenses....................128 Mapa 17: Taxa média anual de suicídios (2006 a 2010) e a taxa de cobertura CAPS (dez. 2010) dos municípios paranaenses.....................................129 Mapa 18: Taxa média anual de transtornos mentais (2006 a 2010) e a taxa de cobertura CAPS (dez. 2010) dos municípios paranaenses....................130 Mapa 19: Frentes pioneiras de “ocupação” do Paraná nos séculos XVI ao XX, a população e a taxa de urbanização dos municípios paranaenses em 2010...................................................................................................132 Mapa 20: Agrupamentos contíguos de municípios por grau de mortalidade por suicídio no Paraná – 2006 a 2010...........................................................133 xii Mapa 21: Média anual de suicídios e de internações por tentativa de suicídios nos municípios paranaenses, 2008 a 2010.............................................134 Mapa 22: Distribuição espacial do Indicador municipal IMOIS 2010 e dos hospitais psiquiátricos do Paraná em 2011.............................................138 Mapa 23: Distribuição espacial do Indicador municipal IMOIT 2010 e dos hospitais psiquiátricos do Paraná em 2011.............................................142 Mapa 24: Índice Municipal de Saúde Mental – M – Paraná, 2010...........................143 Mapa 25: Indicador dos níveis de prioridade dos municípios do Paraná para implantação ou expansão de Centro de Atenção Psicossocial – 2011....145 xiii LISTA DE ILUSTRAÇÕES Gráficos 1 e 2: Mortalidades masculina e feminina por suicídio na América Latina e Caribe – 2007..............................................................................13 Gráfico 3: Incidências de suicídios e óbitos por transtornos mentais no Brasil, 1979 a 2011..............................................................................................43 Gráfico 4: Frequências relativas de suicídios e óbitos por transtornos mentais no Brasil, 1979 a 2011..............................................................................49 Gráficos 5 e 6: Scatter Plots de Moran para as taxas médias de suicídios e de óbitos por transtornos mentais no Brasil, triênio 2009-2011...................60 Gráfico 7: Mortalidade por suicídio por cor/etnia e idade no Brasil, 2009 a 2011....77 Gráficos 8 e 9: Mortalidades por suicídio masculino e feminino, estado civil e faixa etária na região com suicídio endêmico – 2009 a 2011..................98 Gráfico 10: Associação entre a mortalidade por suicídio e a desigualdade de renda (Gini) em países europeus, 1989 a 1997....................................115 Gráficos 11 e 12: Mortalidade por suicídio e as populações sem religião e de religiões minoritárias no Brasil – 2009 a 2011.......................................119 Gráfico 13: Diagramas de dispersão dos suicídios e internações por tentativa de suicídio (2008 a 2010) por portes populacionais – Indicador Municipal IMOIS – Paraná, 2010...........................................137 Gráfico 14: Diagramas de dispersão dos óbitos e internações por transtornos mentais (2008 a 2010) por portes populacionais – Indicador Municipal – IMOIT – Paraná, 2010.......................................................................140 Gráfico 15: Impactos da implantação dos CAPS em Londrina na morbimortalidade por suicídio e por transtornos mentais – 1996 a 2010.........................141 Quadro 1: Tipologia dos Centros de Atenção Psicossocial conforme os portes populacionais.................................................................................22 Quadro 2: Determinantes da saúde mental da população......................................114 Quadro 3: Caracterização de sistemas religiosos saudáveis e não-saudáveis de Bowman.............................................................................................117 xiv Figura 1: Mortalidade por suicídio (por 100 mil habitantes) em 2011........................11 Figura 2: Representação gráfica dos indicadores compostos por portes populacionais..............................................................................................29 Figura 3: Estatística Moral de Guerry: o suicídio na França em 1833.......................33 xv LISTA DE TABELAS Tabela 1: Autocorrelação espacial das taxas de suicídios e de óbitos por transtornos mentais no Brasil – 1979 a 2010.............................................54 Tabela 2: Quantidade de microrregiões por classe de frequência relativa de suicídios no Brasil – 1979 a 2010 (por 100.000 habitantes)......................55 Tabela 3: Quantidade de microrregiões por classe de frequência relativa de óbitos por transtornos mentais no Brasil, 1979 a 2010 …………………...56 Tabela 4: Caracterização do Suicídio (2009 a 2011) e da População do Brasil.......68 Tabela 5: Percepções da influência da cor/etnia nas áreas de inter-relação social pelas distintas pessoas com 15 anos ou mais, por cor/etnia, 2008...........71 Tabela 6: Dinâmica demográfica indígena e não indígena entre 2000 e 2010 nos municípios com 3 ou mais suicídios indígenas...................................85 Tabela 7: Caracterização do Suicídio (2009 a 2011) e da População (2010)...........94 Tabela 8: Locais de ocorrência de suicídio por estado civil no Rio Grande do Sul – 2009 a 2011...................................................................................103 Tabela 9: Locais de ocorrência de suicídio por cor/etnia no Rio Grande do Sul – 2009 a 2011...................................................................................104 Tabela 10: Correlações lineares do suicídio e variáveis de morbidade, outras mortalidades, demográficas, socioeconômicas e culturais, 2009-2011..............................................................................................108 xvi LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ASI – Arco de Suicídio Indígena CAPS – Centro de Atenção Psicossocial CID - 10 – Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças CIMI – Conselho Indigenista Missionário CNES – Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde CVV – Centro de Valorização da Vida DASIS – Departamento de Análise de Situação de Saúde DATASUS – Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde DNPS – Diretrizes Nacionais de Prevenção de Suicídio FUNAI – Fundação Nacional do Índio IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IC – Intervalo de Confiança IDH – Índice de Desenvolvimento Humano IMOIS – Indicador Municipal de Morbimortalidade por Suicídio IMOIT – Indicador Municipal de Morbimortalidade por Transtornos mentais e comportamentais IMSAME – Índice Municipal de Saúde Mental IMUPRI – Indicador Municipal do Nível de Prioridade IWGIA – International Work Group for Indigenous Affairs LAI – Lesões autoprovocadas intencionalmente LILACS – Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde LISA – Local Indicators of Spatial Association MMA – Ministério do Meio Ambiente MS – Ministério da Saúde OMS – Organização Mundial de Saúde OPAS – Organização Pan-Americana de Saúde PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNDR – Política Nacional de Desenvolvimento Regional PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento REGIC – Regiões de Influência das Cidades xvii RID – Reserva Indígena de Dourados RIPSA – Rede Interagencial de Informações para a Saúde RR – Risco Relativo SIG – Sistemas de Informações Geográficas SIH – Sistema de Informações Hospitalares SIM – Sistema de Informação sobre Mortalidade SINAN – Sistema de Informação de Agravos de Notificação SAS – Secretaria de Atenção à Saúde SIS – Sistema de Informações de Saúde SRT – Serviço de Residência Terapêutica SUS – Sistema Único de Saúde SVS – Secretária de Vigilância de Saúde TI – Terra Indígena TMC – Transtornos mentais e comportamentais UC – Unidade de Conservação WHO – World Health Organization xviii SUMÁRIO APRESENTAÇÃO............................................................................................ 01 INTRODUÇÃO................................................................................................. 09 CAPÍTULO 1 – A MORTALIDADE POR SUICÍDIO E POR TRANSTORNOS MENTAIS: PRIMEIRAS IMPRESSÕES A PARTIR DE UMA ANÁLISE DE SOBREVOO..................................................... 36 1.1 – AS INCIDÊNCIAS DE SUICÍDIO E DE ÓBITOS POR TRANSTORNOS MENTAIS E COMPORTAMENTAIS.............................................................................. 1.2 – SAÚDE MENTAL E POPULAÇÃO: AS FREQUÊNCIAS RELATIVAS DE SUICÍDIOS E DOS TRANSTORNOS MENTAIS E COMPORTAMENTAIS................................ 1.3 – A DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DO SUICÍDIO E DA MORTALIDADE POR TRANSTORNOS MENTAIS POR OUTRA “LENTE”: UMA REGIONALIZAÇÃO A PARTIR DOS DADOS MUNICIPAIS……………………………………………... 40 48 56 CAPÍTULO 2 – PERFIL SOCIODEMOGRÁFICO E FATORES DE RISCO PARA O SUICÍDIO.................................................................. 65 2.1 – PERFIL SOCIODEMOGRÁFICO DO SUICÍDIO NO BRASIL................................. 2.2 – SUICÍDIO INDÍGENA, TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE................................ 67 75 CAPÍTULO 3 – O SUICÍDIO ENDÊMICO NA REGIÃO SUL........................... 89 3.1 – O PERFIL SOCIODEMOGRÁFICO A PARTIR DE DADOS DOS SUICIDAS NA ESCALA REGIONAL.................................................................................. 3.2 – ANÁLISE DO SUICÍDIO A PARTIR DE DADOS POPULACIONAIS: LEVANTAMENTO DE HIPÓTESES E COMPARAÇÕES DOS RESULTADOS.................................... 91 106 CAPÍTULO 4 – GEOINDICADORES E ÍNDICE PARA POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE MENTAL............................................................. 122 4.1 – GEOINDICADORES E ÍNDICE: CONCEITOS E APLICABILIDADE........................ 4.2 – DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL: UM EXEMPLO A PARTIR DO ESTUDO DO ESTADO DO PARANÁ....................... 124 125 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 149 REFERÊNCIAS................................................................................................ 157 APÊNDICE A.................................................................................................... 176 APÊNDICE B.................................................................................................... 206 1 APRESENTAÇÃO Canto das Três Raças Ninguém ouviu Um soluçar de dor No canto do Brasil Um lamento triste sempre ecoou Desde que o índio guerreiro Foi pro cativeiro E de lá cantou. Negro entoou Um canto de revolta pelos ares No Quilombo dos Palmares Onde se refugiou Fora a luta dos inconfidentes Pela quebra das correntes Nada adiantou. E de guerra em paz De paz em guerra Todo o povo dessa terra Quando pode cantar Canta de dor. O o O o o O o O o o O o O o E ecoa noite e dia É ensurdecedor Ai, mas que agonia O canto do trabalhado. Esse canto que devia Ser um canto de alegria Soa apenas como um soluçar de dor. (Clara Nunes, compositores: “Operários” – Tarsila do Amaral Paulo Pinheiro e Mauro Duarte) 2 Inicialmente, comunico que esta apresentação é uma espécie de memorial. Oportunamente, apresento também a estrutura da pesquisa. A infância e a adolescência, na periferia sócio-espacial de Maringá, nas décadas de 1980 e 1990, foram marcadas por uma série de experiências relacionadas aos transtornos mentais, tanto pela presença de “doentes mentais” em familiares e na vizinhança como pelas reflexões calcadas na “Bíblia Sagrada” e nas experiências individuais. Um tio, que morava próximo, com retardo mental e muito enérgico quando provocado; uma vizinha, que falava constantemente sozinha e “tocava” a boiada imaginária que invadia a casa dela, quando insultada passava horas proferindo palavras de baixo calão; o “Genife”, que pedia café em todas as casas do bairro, ora era tido como o coitado, ora era apresentado como perigoso para amedrontar crianças; a “Dalva”, uma jovem muito religiosa, que, após os trinta anos de idade, solteira, adepta de uma religião pentecostal, que, não autorizava o casamento com pessoas de outras religiões, e sem pretendentes na igreja que frequentava, surtou, levantava a roupa em espaços públicos e gritava “estou grávida”; um tio de minha mãe, muito acolhedor e comunicativo, após sofrer decepções familiares, passou a coletar o que defecava com as mãos e a pendurar estes resíduos em pregos das paredes de sua residência; dentre outras vivências na infância que me surpreendiam com situações inusitadas. Situações que em outros contextos poderiam resultar em desfecho fatal. Eu, uma criança de 9 anos, acompanhando meus pais a frequentes visitas a um parente que se encontrava internado em um hospital psiquiátrico. Nesta ocasião, fui construindo as minhas primeiras impressões do que seria um hospital psiquiátrico. Minhas impressões se agravavam ao ver o rosto tristonho dos que retornavam às suas visitas. Sob a ótica de uma criança, observava as grades que estavam naquelas portas e questionava, silenciosamente, seria um hospital, uma prisão? Pergunta de uma criança assustada com as grades e cores frias das paredes e portas daquele lugar. Na adolescência, houve uma série de conflitos com o meu pai, que me provocavam desde as primeiras horas do dia. Isto motivou minha mãe a procurar assistência à saúde mental gratuita, através da Unidade de Psicologia Aplicada da Universidade Estadual de Maringá, onde estagiários do curso de Psicologia prestavam atendimento. Toda minha família foi entrevistada e eu comecei a terapia. 3 Tinha o receio de sensibilizar a estagiária, então não relatava o que pensava e o que sentia. Também não expunha os desejos, as seções eram gravadas e não podia “dar mau testemunho da obra de deus”. Na época, frequentava uma religião pentecostal tradicional com os familiares. Após trocarem diversas vezes de estagiário, eu somente tangenciava algumas questões, mas me recusava a aprofundar as reflexões, por fim, encerraram as seções. A sensação foi de ter dificultado a terapêutica, por isto não tive maiores benefícios, além de compreender ao final que os psicólogos não se envolvem com os conflitos das pessoas em tratamento. A avó materna e uma tia moravam próximas a minha casa e se responsabilizavam por meus cuidados na ausência de minha mãe, que sempre viajava a trabalho. Eu tinha quatorze anos quando elas faleceram, óbitos que ocorreram com poucos meses de diferença. Estes falecimentos e as dificuldades de compreender a falta de apoio familiar promoveram o desenvolvimento de uma espécie de depressão, passei a desejar “o fim do mundo” e, posteriormente, a desenvolver ideação suicida. Após elaborar minuciosamente o ato, planejei ir à igreja com a família no domingo, não queria deixar pistas nem culpados, seria apenas um acidente de trânsito de um adolescente indo trabalhar em uma segunda- feira. No culto religioso, os cânticos e uma mensagem mudaram esses planos. Em uma igreja com mais de quinhentas pessoas, a mensagem bíblica se referia à fuga de um profeta para o deserto, que não queria ser morto como muitos outros, após encontrar uma árvore, se deitou e desejou a morte. Na narrativa, o desfecho era da assistência de anjos e uma mensagem “Coma e beba, pois mui longa será a sua jornada”. Aqui, a igreja exerceu um papel terapêutico. Outras histórias revelam atitudes relacionadas a sistemas religiosos não- saudáveis. Um exemplo que presenciei foi o caso de uma mulher, casada, de 26 anos, recém-batizada, migrante de outro município e desejosa de integrar a comunidade religiosa. Para isto, presenteou com artesanatos que confeccionava a maioria das mulheres da sua igreja. Em certa reunião onde a recém-batizada não estava, comentaram sobre os presentes e estranharam a iniciativa. Rapidamente, associaram a cor dos artesanatos a um transtorno mental leve da artesã. Entendiam este transtorno como consequências dos traumas de agressões físicas do ex- marido, mas concluíram que os artesanatos eram obras satânicas. Juntaram os 4 presentes e queimaram cantando hinos. O sentimento de rejeição ocasionou na recém-batizada uma situação de surto, o que reforçou o entendimento que haviam tomado a atitude correta. Esta mulher deixou de frequentar a religião após o tratamento psicológico. Já adulto e pós-graduado, mudei de cidade para lecionar. Minha única irmã havia migrado com o marido e o filho para Inglaterra e meus pais continuaram em Maringá, uma cidade média no interior do Paraná. Meu pai, que já apresentava um transtorno mental leve, após se mudar de residência contrariado, suicidou-se. Inicialmente, relacionei o fato apenas à religião e ao conflito familiar. Quando ministrava aulas de Sociologia no ensino médio, ao discorrer sobre a origem desta disciplina como ciência, apresentava a clássica obra de Durkheim, “O Suicídio”, e contextualizava com a análise de um caso de suicídio, relatava desde as condições de vida do sujeito na infância, às condições socioeconômicas quando ocorreu o fato, os traços de personalidade até os conflitos familiares. O desejo de apresentar um conteúdo significativo e, ao mesmo tempo, compreender melhor o fato ocorrido com meu pai me impulsionava. Os discentes se interessavam pelo assunto e eu, após aulas em distintas turmas, reelaborei a compreensão, havia uma conjuntura complexa de predisponentes multifatoriais. Iniciei o doutorado em março de 2010, dois anos após o falecimento do meu pai, e comecei a desenvolver o projeto de pesquisa “Geografia do Ensino Superior: Centralidade, Verticalidade e Horizontalidade”, que foi aprovado na etapa de seleção, no colóquio de doutorado e pelo orientador. Para aumentar a interação nos colóquios do Laboratório de Biogeografia e Geografia da Saúde com os demais acadêmicos, me matriculei na disciplina “Saúde Pública e Geografia dos Serviços”. Motivado a compreender o suicídio em minha família e a aplicar os novos conhecimentos, iniciei uma pesquisa paralela. Distante de familiares e com poucas amizades, passei noites espacializando o suicídio no Paraná, buscava correlação com religiões, posteriormente, com a cobertura dos serviços de saúde mental. A necessidade de compreender o suicídio e os serviços de saúde mental me levou a realizar leituras da legislação brasileira de saúde mental, a discussões teórico- metodológicas com o orientador e outros estudiosos da Geografia da Saúde. Os intercâmbios de ideias, as leituras e as discussões iniciais promoveram o desenvolvimento de uma metodologia para pesquisar o suicídio e a capacidade de 5 resposta dos serviços de saúde mental no Paraná. A construção de dois indicadores, um para comparar os óbitos e as internações de um determinado contexto geográfico e o outro para orientar a implantação ou a realocação dos serviços, possibilitou a elaboração do artigo “Política Pública de Saúde Mental e o Suicídio no Paraná – BR: Uma Abordagem Geográfica” (MOTA; GUIMARÃES, 2013). Neste contexto, o orientador propôs formalizar este projeto como a pesquisa de doutorado. Após um balanço das possibilidades e dos desafios a serem superados, substituímos o tema para o desenvolvimento da tese sobre o suicídio e os serviços de saúde mental no Brasil. A participação em eventos de Geografia da Saúde e a interlocução com geógrafos brasileiros e latino-americanos permitiram o desenvolvimento do projeto inicial. As viagens para os eventos realizados em Recife, Uberlândia, Manaus e São Luís possibilitaram trabalhos de campo, que foram realizados em: Agrestina e Caruaru, em Pernambuco; Uberlândia, Iraí de Minas e Pedrinópolis, em Minas Gerais; Parintins, Tefé, Tabatinga e Manaus, no Amazonas; Teodoro Sampaio, Martinópolis e Presidente Prudente, em São Paulo; Maringá, Londrina e Paranavaí, no Paraná. O diálogo com profissionais da área da saúde, a visita a hospitais, a unidades básicas, a CAPS, a PSF e a Secretarias Municipais de Saúde de contextos geográficos bastante distintos contribuíram com um olhar mais detalhado sobre a organização dos serviços e o entendimento do processo saúde-doença mental. As atividades realizadas no âmbito do PROCAD também contribuíram para dimensionar os desafios de se pensar os serviços de saúde mental na escala nacional, ao possibilitar os trabalhos de campo e as discussões com pesquisadores da UFU e da UFAM. Outro registro importante, pelas contribuições para presente pesquisa, foi a participação e as discussões na mesa-redonda “Amazônia Brasileira e os Rumos da Política Nacional de Saúde” do “Seminário Desenvolvimento Sustentável na Amazônia: Saúde, Ambientes, Cidades e Redes”, realizado em outubro de 2012, em Manaus. A experiência de doutoramento no Programa de Pós-graduação em Geografia da UNESP – Campus Presidente Prudente (PPGG) foi ímpar, devido às oportunidades de participação nas múltiplas atividades acadêmico-científicas no campus quanto pelas oportunidades de participar de programas interinstitucionais, 6 nos quais se inserem as agendas de pesquisa e as redes de pesquisadores nacionais e internacionais. Uma pesquisa desenvolvida no âmbito de uma universidade pública deve ter justificativa com relevância social, objetivo perseguido neste estudo, como se apresentou na introdução; no entanto, socializo uma assertiva a respeito do empenho, relacionado a uma justificativa pessoal, ou seja, de que este trabalho pode ter gerado uma singela contribuição para o conhecimento geográfico ou para a área da saúde. Contudo, no meu caso foi terapêutica, por possibilitar um diálogo melhor elaborado sobre um tema que é um problema de saúde pública, mas que envolveu um parente de primeiro grau, meu pai. Dentre as contribuições mais significativas neste percurso, destacam-se as obras de Christophe Dejours, pela relação que estabelece entre o local do suicídio e o fato. O suicídio de meu pai foi na Prefeitura Municipal de Maringá e acredito ter como um dos principais motivadores um processo judicial com a cobrança de 40 horas extras que o acusavam não terem trabalhado. A maioria das pessoas pode julgar isto como pouco significante, mas conhecedor dos valores de meu pai, um processo fere a honra, a masculinidade, como discutiram Minayo, Meneghel e Cavalcante (2012). Outros cinco servidores da seção que trabalhava também foram acusados, mas não reagiram da mesma forma, provavelmente, por estar relacionado a um valor baixo e ser uma causa coletiva. Este estudo foi organizado em seis itens: introdução, quatro capítulos de análises e discussões e as considerações finais. Na introdução, foram apresentados os contextos mundial e latino-americano do suicídio no Brasil, a partir da comparação das taxas de mortalidade dos países que enviaram dados de saúde para OPAS e para OMS. Ainda foram apresentados os objetivos geral e específicos, as hipóteses e as questões norteadoras, os recortes temporais e espaciais, os principais conceitos e noções, as medidas empregadas no estudo, a discussão sobre o papel do conhecimento geográfico no entendimento do suicídio, considerações sobre a luta antimanicomial no Brasil e a organização dos serviços de saúde mental na atualidade, breve exposição das contribuições do Geoprocessamento, da Cartografia e da Estatística Espacial no estudo do processo saúde-doença e, por fim, a construção dos geoindicadores e do índice municipal de saúde mental. 7 No primeiro capítulo, intitulado “A mortalidade por suicídio e por transtornos mentais: primeiras impressões a partir de uma análise de sobrevoo” se realizou uma primeira aproximação de um fenômeno ainda pouco estudado pela Geografia: o comportamento suicida. A partir do mapeamento das frequências absolutas e relativas do suicídio e da análise multiescalar, foi possível observar a desigual distribuição espacial do fenômeno. Conforme a diferenciação espacial e a constatação intuitiva de agrupamentos municipais com altas taxas se aplicaram métodos da estatística espacial, o índice de Moran e o Moran local, que possibilitaram a regionalização dos agrupamentos de municípios acima da média e a regionalização dos municípios abaixo da média brasileira. O capítulo “Perfil sociodemográfico e fatores de risco para o suicídio” foi apresentado para identificar o perfil sociodemográfico do suicídio no país. Na análise deste perfil, foram constatadas taxas de mortalidade discrepantes para todas as categorias analisadas: gênero, idade, cor/etnia, estado civil, escolaridade e local de ocorrência. As associações do sexo masculino e de idosos com taxas mais elevadas são clássicas. A análise das demais categorias contribuiu para aumentar o conhecimento deste fenômeno, com destaque para a questão indígena, para a qual se fez uma leitura geográfica para identificar os processos territoriais que promoveram e continuam a promover a epidemia do comportamento suicida em etnias indígenas. No terceiro capítulo, se focalizou o agrupamento mais numeroso de municípios com elevada taxa de mortalidade por suicídio. A endemicidade do comportamento suicida neste cluster alto-alto, como se analisou e delimitou no primeiro capítulo, permitiu a denominação dada ao título “O suicídio endêmico na região Sul”. Avanços na compreensão desta região com suicídio endêmico advieram da caracterização dos suicidas, realizada para o mesmo período da macroescala, permitindo assim a comparação dos perfis sociodemográficos e apreendendo o peso do contexto geográfico regional. A abordagem populacional contribuiu para analisar outros fatores sócio-ambientais, econômicos, culturais e epidemiológico de risco a morbimortalidade, fundamentando-se em trabalhos quantitativos e qualitativos para interpretar os resultados que podem contribuir para as programas de intervenções na saúde mental da região estudada. 8 O quarto capítulo “Geoindicadores e índice para política pública de saúde mental” inicia com considerações conceituais de indicador, indicador composto, geoindicadores e índice e orientações de aplicabilidade na área da saúde. Posteriormente, se aplicou a metodologia de (re)alocação de serviços de saúde mental, explicitada na introdução. A metodologia foi testada no estado do Paraná, por ser o território político-administrativo de maior vivência e experiência do autor. Por último, foi possível apontar os desafios e as possibilidades da política nacional de saúde mental. Nas “Considerações finais”, se reiterou os resultados das análises e das principais discussões e se debateu a questão metodológica das abordagens individuais e populacionais e os possíveis caminhos para empreender a leitura geográfica do processo saúde-doença mental. Para continuar, se fez apontamentos de possibilidades de novos estudos, ao constatar que a compreensão do comportamento suicida e dos transtornos mentais encontra-se em etapa inicial na Geografia da Saúde latino-americana. Novos esforços de pesquisas multicêntricas e com abordagem quali-quantitativa permitirão os avanços necessários para aumentar a compreensão do contexto geográfico no processo saúde-doença psicossociais. 9 INTRODUÇÃO Cidadão Tá vendo aquele edifício moço Ajudei a levantar Foi um tempo de aflição, era quatro condução Duas pra ir, duas pra voltar Hoje depois dele pronto Olho pra cima e fico tonto Mas me vem um cidadão E me diz desconfiado "Tu tá aí admirado ou tá querendo roubar" Meu domingo tá perdido, vou pra casa entristecido Dá vontade de beber E pra aumentar meu tédio Eu nem posso olhar pro prédio que eu ajudei a fazer Tá vendo aquele colégio moço Eu também trabalhei lá Lá eu quase me arrebento Fiz a massa, pus cimento, ajudei a rebocar Minha filha inocente veio pra mim toda contente "Pai vou me matricular" Mas me diz um cidadão: "Criança de pé no chão aqui não pode estudar" Essa dor doeu mais forte Porque que é qu'eu deixei o norte Eu me pus a me dizer Lá a seca castigava, mas o pouco que eu plantava Tinha direito a colher Tá vendo aquela igreja moço, onde o padre diz amém Pus o sino e o badalo, enchi minha mão de calo Lá eu trabalhei também Lá foi que valeu a pena, tem quermesse, tem novena E o padre me deixa entrar [...] (Zé Ramalho, compositor: Lúcio Barbosa) 10 A saúde mental registrou, na última década, recordes nas taxas de mortalidade no Brasil. No contexto internacional, este país figura entre a terça parte com as taxas mais baixas de suicídio e de transtornos mentais e comportamentais, conforme estimativas da Organização Mundial de Saúde (WHO, 2012a). Essa realidade se transforma ao dar um “zoom”, ao analisar as escalas cartográficas maiores e as diferentes categorias sociodemográficas para traçar os perfis epidemiológicos, revelando a diversidade da unidade Brasil, na qual municípios ou clusters municipais e grupos ou minorias populacionais, possuem taxas muito altas, bastante discrepantes da “média” do país. Estas minorias étnicas e contextos geográficos não podem ser ignorados. Os óbitos por lesões autoprovocadas intencionalmente1 (LAI) são um sério problema de saúde publica para muitos países. Com os dados de 56 países, enviados na década de 1990, para Organização Mundial da Saúde (OMS), Diekstra (1995) afirma que este tipo de mortalidade está entre os 10 principais tipos de causas e para a faixa etária de 15 a 34 anos encontra-se comumente entre a segunda ou terceira posição. O Relatório Mundial da Saúde, divulgado pela OMS, no primeiro ano do século, estimou que 450 milhões de pessoas sofrem de perturbações neurobiológicas, problemas psicossociais ou relacionados ao abuso de álcool e de drogas (WHO, 2001). Conforme a OMS, ocorrem no mundo cerca de cem suicídios a cada hora, o que totaliza anualmente 844 mil óbitos por autoviolência. Em menos de 5 décadas, estas taxas aumentaram 60% (WHO, 2010). No Brasil, em um período de quinze anos (1997 a 2011), ocorreu mais de cento e vinte mil suicídios. Isto significa, em média, 23 autoagressões letais por dia. No mesmo período, se contabilizou mais cento e vinte e dois mil óbitos por transtornos mentais e comportamentais2 (TMC), uma média de 23 por dia, dentre os quais a maioria é vinculada ao abuso de substâncias psicóticas, como álcool e 1 Forma de se denominar na Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) e no Sistema de Informações de Saúde (SIS) do Sistema Único de Saúde (SUS) o ato de se autoinfringir/ autoviolentar, que pode levar a internação e a óbito. Neste estudo as lesões autoprovocadas intencionalmente aparecerão como tentativa de suicídio, ou na forma abreviada de LAI. No caso que estas lesões autoprovocadas intencionalmente (LAI) levar a óbito, será denominada de suicídio, de autoagressão letal ou autoviolência letal. 2 Os transtornos mentais e comportamentais também aparecerão abreviados como TMC ou denominados transtornos mentais, além de aparecer em alguns estudos como distúrbios mentais. 11 outras drogas. Ao somar os suicídios com os óbitos por transtornos mentais, em média, registra-se 46 óbitos diariamente no país (BRASIL, 2013). Em comparação internacional para o ano de 2011, o Brasil possuiu taxa de suicídio inferior a dois terços de mais de 100 países que enviaram dados de mortalidade para Organização Mundial de Saúde. A representação cartográfica (Figura 1) disponibilizada pela OMS (WHO, 2012a) é de baixa resolução, mas permite, a título de introdução, realizar uma primeira análise comparativa. Figura 1: Mortalidade por suicídio (por 100 mil habitantes) em 2011 Fonte: WHO, 2012a. Ao dispor a mortalidade por suicídio nos países latino-americanos e caribenhos em intervalos de classes menores (Mapa 1), se observou um aumento significativo na variabilidade das taxas, com destaque para os situados no Caribe. O Brasil, em comparação com os demais países da América Latina e Caribe, encontra-se em uma posição intermediária, com taxa de mortalidade por suicídio de 5,62 por 100 mil habitantes (OPAS, 2013). Ainda em relação a esta comparação, o país possuía em 2007 uma taxa mais de três vezes menor do que a de Guiana, o Suriname e o Uruguai, todos estes países são fronteiriços ao Brasil. O país ainda registrou taxas duas ou mais vezes as registradas no Peru, na Guatemala e em Belize. 12 Mapa 1: Mortalidade por Suicídio na América Latina e Caribe Observações: As taxas são estimadas e padronizadas. Os anos de referências são: 2004 (Haiti, República Dominicana, Santa Lúcia e Uruguai), 2005 (Bahamas, Guadalupe, Guaiana Francesa, Martinica e Suriname); 2006 (Barbados, Guiana, Nicarágua e Trinidad e Tobago); 2008 (Dominica); 2007 (demais países com dado disponível). A análise da mortalidade por suicídio por gênero em todos os países latino- americanos e caribenhos evidencia a assimetria entre a autoviolência letal de homens e mulheres (Gráficos 1 e 2). 13 masculina feminina Gráficos 1 e 2: Mortalidades masculina e feminina por suicídio na América Latina e Caribe – 2007 Fonte: OPAS, 2013. 14 Nas estatísticas e nas histórias orais, o sexo masculino – o ser homem – se associa a atos violentos, que se revelam de múltiplas formas e intensidades, se adequando às conformações sociocultuais dos contextos geográficos, se evidenciando como: violência moral ou violência física; violência urbana ou violência rural; violência pública ou violência privada; violência ao outro ou autoviolência, sendo a letalidade desta última a temática privilegiada neste estudo. Uma sociedade marcada por violências e corrupções, na qual alguns grupos se omitem e “sobrevivem” de forma alienada, alguns se identificam, outros são coagidos ou seduzidos a reproduzir. Aqueles que recusam ou não se adaptam corroboram com as estatísticas das causas externas. Conforme Camus (1942), o suicídio é o único “problema filosófico verdadeiramente sério”, a contradição da luta pela vida e o impulso de morte. Quando este impulso se potencializa pelo sofrimento psíquico e se sobressai à vida, na ausência de apoio social, há um suicida potencial. No século XIX o suicídio era estudado predominantemente por psiquiatras, que associavam o suicídio à loucura, a insanidade mental. A abordagem médica do estudo do suicídio se fortaleceu desde o século XVII, quando o médico inglês Thomas Browne propôs o termo em grego autofonos, que traduzida para o inglês é suicide, e passou a estudar sistematicamente o fenômeno. Na Itália estudos buscavam explicar a diferenciação na ocorrência da mortalidade por suicídio a partir da variabilidade climática, ale de outros estudos que relacionavam o fenômeno a raça ou a hereditariedade. No final do século XIX, o filósofo, pedagogo e cientista social Émile Durkheim (1858-1917) publica “O Suicídio” (1897), uma obra que buscou aplicar o acúmulo de experiências e da teoria sociológica publicada dois anos antes em “As regras do método sociológico”. Este autor positivista recebeu influência das escolas inglesa e alemã, das quais influenciou o seu pensamento o idealismo, o empirismo e o utilitarismo. O suicídio é considerado por Durkheim (1986 [1897]) um fato social, resultante dos níveis de integração social nos distintos grupos sociais. A obra “O Suicídio” é seccionada em quatro partes: na primeira introduz a discussão sobre o fenômeno, classifica e conceitua o suicídio e começa a distinguir a abordagem sociológica da psicológica; na segunda parte “Os fatores extra-sociais”, contra- argumenta os estudos que associam o suicídio aos estados psicopáticos, a escola 15 italiana, a hereditariedade e a imitação e afirma que estas abordagens podem explicar casos eventuais, o que contribui pouco para entender a distribuição geográfica da taxa social de suicídio; na terceira parte “Causas sociais e tipos sociais” expõem o método para determiná-los e em seguida os tipos de suicídios: egosista, altruísta, anômico e fatalista, analisando os condicionantes sociais culturais, políticos e sócio-economicos: religiões, estado civil, paternidade, poder público, crises econômicas e riqueza; na quarta parte “Do suicídio como fenômeno social em geral”, o autor faz considerações gerais das quais se destaca a discussão sobre homicídio e finaliza apontando consequências práticas (DURKHEIM, 1986). Ainda nesta obra, Durkheim (1986, p.11) define o fenômeno como “todo o caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo praticado pela própria vítima, ato que esta sabia que produziria este resultado”. Esta definição é semelhante à publicada pela OMS quase um século posterior (WHO, 1993). Conforme Bertolote (2012, p.38) ocorreu a retomada pós década de 1950 de pesquisas pelas perspectivas filosófica e médica, assim como a consolidação no final do século XX e o início do XXI da abordagem deste fenômeno pela Saúde Pública, com ênfase na prevenção. A cultura judaico-cristã predominante no mundo ocidental através da religiosidade promove a reflexão do suicida como ato de indivíduo “fraco”. Além de não compreender o suicida como resultante do sistema produtor, acredita-se que a recusa ao produto seja atribuída à dupla fraqueza do suicida, a saber: não adaptação; e, não imposição a continuidade a luta pelas mudanças. Vigiar e punir são estratégias comumente empregadas para o controle social (FOUCAULT, 1997 [1975]). Utilizam violência institucionalizada para combater “as violências”. Esta educação controladora e punitiva não serve para o desenvolvimento de sociedades justas, equitativas. A construção destas sociedades passa pela socialização da riqueza produzida socialmente, como apontou Marx (1988) e seus discípulos, mas também depende de novos princípios socioculturais calcados nas liberdades, nas emancipações. As imposições institucionais a sujeitos e comunidades servem apenas para reprodução de valores autoritários e uniformizadores, e para manter a hegemonia desta sociedade capitalista, clientelista, machista, heteronormativa, racista, que se 16 traveste de “democrática”, quando, na realidade, impera o que Saramago (1998) denominou de falsa democracia. Por sua vez, a primeira década do século XXI marca um período de relevantes transformações no processo de saúde-doença e nas políticas públicas no Brasil; nas quais múltiplos processos sociais, econômicos e políticos buscam se consolidar. O entendimento deste novo contexto geográfico nacional, relacionado à dinâmica espacial das doenças e a reestruturação dos serviços de saúde, é imprescindível para tomada de decisões e para implementação dos serviços pelos gestores dos diversos níveis de governo devem ser realizadas para minimizar a morbimortalidade e promover o bem-estar. Caberia perguntar qual é o papel do conhecimento geográfico no entendimento dessas transformações e do fenômeno do suicídio. A geógrafa Iñiguez Rojas (2006) afirma que o bem-estar tem sido pouco estudado pelos geógrafos. No que tange à saúde mental, há tradição geográfica nos estudos de incidência da esquizofrenia, desde as contribuições dos estudos ecológicos da escola de Chicago (FARIS; DUNHAM, 1965; DEVERTEUIL, 2007), a contribuições que evidenciam a influência do lugar e da vizinhança (FONE; DUNSTAN, 2006; GARY et al., 2007) e os que procuram incorporar novas metodologias qualitativas (GIGGS, 1973). De acordo com estes estudos, podem-se identificar comunidades cujas características propiciariam a formação de ambientes terapêuticos (perfil da população - idade, gênero, estado civil; desemprego e/ou precarização do trabalho; ambientes estressantes com tendências à ansiedade, dentre outros), assim como certa correlação entre contextos geográficos. Assim, as contribuições da Geografia da Saúde, associada a outras ciências que tradicionalmente estudam o processo saúde-doença mental, a Sociologia, a Antropologia, a Psiquiatria e a Psicologia Social, devem intensificar os seus esforços para ampliar a compreensão do suicídio, com o objetivo de dar suporte à tomada de decisões de gestores e de profissionais da área da saúde. Desta forma, o estudo dos suicídios e dos óbitos por transtornos mentais pode ser um caminho para a discussão do bem-estar/mal-estar da população, ou seja, das condições de vida. A identificação dos contextos geográficos locais e regionais associada a detalhados perfis epidemiológicos, pode contribuir, a curto prazo para proposta de programas de intervenções com efetividade e eficiência. A médio prazo, para auxiliar 17 na realocação dos serviços de saúde especializados, como a ampliação da acessibilidade social e espacial aos Centros de Atenção Psicossocial, ao identificar as interações socioespaciais para regionalizar os serviços indisponíveis, viabilizando os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS): equidade, universalidade e integralidade. A longo prazo, acredita-se que a educação escolar e extraescolar pode transformar a racionalidade dos sujeitos, a lutar contra as desigualdades socioespaciais e investir em promoção de saúde. É por isto que a discussão da saúde mental, e do suicídio em particular, pode ser inserida no debate da Geografia da Saúde. O objetivo deste estudo é analisar os contextos geográficos de mortalidade por suicídio no Brasil e a capacidade de resposta dos serviços de saúde mental. Como objetivos específicos para atingir o objetivo geral se realizaram: a) Mapear a incidência acumulada e as taxas de mortalidade por suicídio e por transtornos mentais e comportamentais; b) Analisar os perfis sociodemográficos do país e de contexto geográfico com mal-estar psicossocial; e, c) Construir geoindicadores para contribuir com as políticas públicas de saúde mental. As questões que norteiam esta pesquisa são: a) Qual a espacialidade dos óbitos por suicídio e por transtornos mentais no Brasil? b) Os contextos geográficos resultam em diferentes situações de bem-estar/ mal-estar psicossocial? c) A distribuição dos serviços de saúde mental priorizam as espacialidades com elevadas morbimortalidades por suicídio e por transtornos mentais? As hipóteses deste estudo são: a) A mortalidade por suicídio e por transtornos mentais se concentram nos grandes espaços urbanos do país; b) Os diferentes contextos geográficos resultam em distintos processos de saúde-doença mental no país; e, c) A concentração dos serviços de saúde mental ocorre nos municípios de portes médio e grande, atendendo os contextos com as maiores taxas de mortalidade por suicídio e por transtornos mentais. 18 Inicialmente, podemos afirmar que este estudo é exploratório e descritivo, por buscar na literatura especializada em saúde mental contribuições para maior compreensão das espacialidades dos suicídios e dos transtornos mentais e da capacidade de resposta dos serviços de saúde no Brasil. Há ainda uma pretensão de atingir o patamar de pesquisa explicativa, a partir da identificação dos contextos geográficos brasileiros e da apreensão da dinâmica dos fenômenos estudados em cada contexto. Este estudo referencia 235 textos para fundamentar o estudo, a maioria identificada pelas pesquisas nas bases bibliográficas LILACS, MEDLINE e no Banco de Teses da CAPES: 125 são artigos científicos, publicados em revistas espacializadas; 13 são teses ou dissertações desenvolvidas no país; 63 são livros ou capítulos de livros; e os demais são leis, relatórios, fontes dos dados oficiais e outros. Ressalta-se que mais da metade dos artigos são recentes, ou seja, publicados entre 2005 e 2013, e 78 discutem sobre o suicídio. Dos artigos referenciados que abordaram o tema suicídio, mais de dois terços foram publicados em revistas internacionais, com destaque para Social Science & Medicine, Health & Place e American Journal of Public Health, com 4, 3 e 3 artigos, respectivamente. Enquanto os artigos científicos internacionais são majoritariamente em língua inglesa e encontram-se disperso em revistas de diversas áreas de pesquisa, os 22 artigos brasileiros, referenciados sobre suicídio, estão concentrados em um reduzido número de revistas especializadas: Cadernos de Saúde Pública; Revista Brasileira de Psiquiatria; Revista de Saúde Pública; e, Ciência e Saúde Coletiva. Esta concentração evidencia que o tema suicídio é estudado por poucos pesquisadores no país, a sua maioria com formação em Medicina, em Saúde Coletiva ou em Psicologia. Outras áreas do conhecimento podem e devem contribuir. Um dos pressupostos deste estudo é a compreensão de que a complexidade do real é inatingível, quer pelas limitações do tempo de estudo, quer pela seleção de dados como indicadores da realidade, ou pelas vivências e experiências em determinados contextos geográficos, sociais e históricos em detrimento de outros. A compreensão do real, objetivo máximo da ciência, é impossível, mas o desenvolvimento da cognição humana permite aproximações sucessivas ao 19 fenômeno/objeto estudado, ao buscar, no mínimo, os principais elementos relacionados à complexidade que envolve o fenômeno/objeto. Almeja-se, neste estudo, se aproximar da complexa realidade relacionada ao mal-estar humano, como os óbitos e internações por suicídio e por transtornos mentais, com o objetivo de identificar os contextos geográficos que protegem do adoecimento e dos que ampliam a possibilidade de adoecer. Portanto, a temática saúde mental é bastante complexa e polêmica, tanto entre as áreas e subáreas do conhecimento quanto entre grupos étnicos, membros de religiões diferentes e posições éticas a respeito do poder de decisão de uma pessoa sobre o próprio corpo e sobre sua vida. Tal complexidade exige um arsenal de procedimentos metodológicos para explorar as múltiplas possibilidades de se compreender o objeto estudado, o que demanda a abordagem do problema da pesquisa tanto de forma quantitativa, utilizando-se das técnicas e recursos da estatística descritiva e da estatística espacial, quanto pela abordagem qualitativa. De acordo com a OMS, pode-se sintetizar o ato suicida como um ato consciente sobre a própria pessoa que espera um desfecho fatal (WHO, 1993). O suicídio pode ser considerado ainda um transtorno multidimensional, resultado de uma complexa interação de fatores biológicos, genéticos, psicológicos, sociológicos e ambientais (WHO, 2000), ao qual se podem acrescer as dimensões culturais, políticos e econômicos. Este ato é um tipo de morte evitável e os principais fatores de risco são os transtornos mentais, com destaque para depressão, e os transtornos por consumo de álcool e outras drogas, a violência, as sensações de perda e os contextos culturais e sociais (WHO, 2012b). Segundo Giggs (1973), o suicídio pode ser associado ao contexto mais amplo da saúde mental e correlacionado ao ambiente social e familiar. Ainda que se deva sempre considerar os indivíduos mais suscetíveis, o suicídio, como qualquer doença mental, ganha contornos bio-psico-sociais muito diferenciados dependendo do lugar em que vive o cidadão (MEADE; FLORIN; GESLER, 1988). Estudos realizados indicam que as condições de vida e as formas de adoecer e morrer são desiguais no interior do espaço urbano (BANDO; BARROZO, 2010). Assim, a promoção da saúde mental também exige, necessariamente, a implementação de medidas de caráter preventivo diferenciado para o risco do suicídio, considerando as necessidades 20 básicas de cada ambiente social, dentro das características psicossociais de seus habitantes. Especificamente, na área da saúde mental, sempre houve o predomínio, ainda vigente, de uma cultura de exclusão do doente. Até o século XVIII, trancafiavam-se os loucos em prisões, asilos e hospícios. A insanidade era associada ao pecado e a atividades do demônio, assim como a distúrbios emocionais e a más condutas morais (FOUCAULT, 1980). O movimento de criação de instituições para os insanos ocorreu em vários países da Europa e nos Estados Unidos, durante as três primeiras décadas do século XIX (LUZ, 2004). Foram os hospitais psiquiátricos que tornaram possível o estudo científico da doença mental. Mas os sanatórios e manicômios demonstraram muito pouco eficácia no tratamento das doenças mentais, servindo, via de regra, como espaço alienante e cronificante. A luta antimanicomial italiana iniciou no final da década de 1960, e tem Franco Basaglia como um dos principais precursores. Basaglia lutou para substituir o tratamento hospitalar e manicomial de Trieste por uma rede territorial de serviços de atenção comunitários, emergências psiquiátricas em hospital geral, cooperativas de trabalho protegido, centros de convivência e residências terapêuticas (BASAGLIA, 2001 [1968]). No Brasil, a discussão a respeito da desospitalização em saúde mental ganhou expressão no final da década de 1980, principalmente a partir do debate no Congresso Nacional do Projeto de Lei n.° 3.657/89, de autoria do deputado mineiro Paulo Delgado, vinculado ao Partido dos Trabalhadores. Indignado com a multiplicação dos leitos psiquiátricos por parte da iniciativa privada confessional, mantida com recursos públicos, esse deputado se inspirou no modelo antimanicomial italiano que já defendia os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. O objetivo do disputado movimento de integração da saúde mental aos programas de promoção da saúde. Após doze anos de embates e debates, foi aprovada a Lei n.° 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental no Brasil, singular ao projeto de lei de 1989. A argumentação e pressão política exercida pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica sobre o Ministério da Saúde (MS) culminou no estabelecimento da Portaria SNAS/MS n° 189/91, que ampliou e diversificou os procedimentos das 21 Tabelas SIH/SUS e SIA/SUS, possibilitando o financiamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) de novas estruturas assistenciais, como os hospitais-dia, Núcleos de Atenção Psicosocial (NAPS), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e unidades psiquiátricas em hospitais gerais; tendo como fundamentos a inclusão social e a cidadania das pessoas com agravos de saúde mental. As limitações financeiras da primeira metade dos anos de 1990 e a forte tendência à descentralização política demandaram dos gestores locais a implantação das novas estruturas de assistência a saúde mental, na qual o SUS faria o custeio. Neste contexto político econômico a expansão dos CAPS e NAPS no país foi bastante modesta na década de 1990, no ano de 2000, contava-se com pouco mais de 200 estabelecimentos. A ruptura deste contexto se deu pelo decreto da Portaria GM nº 336/2002, na qual os CAPS, os NAPS e os Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAMs) passaram a integrar o SUS. Assim, em apenas um quinquênio, em 2006, se tinha quase 900 CAPS implantados, o que duplicaria até o ano de 2011. No início de 2014, já se contabilizou 2341 CAPS no país, cadastrados no CNES (BRASIL, 2014). A Portaria GM nº 336/2002 determinou que os CAPS, NAPS e CERSAMs fossem recadastrados como CAPS I, II, III, CAPSi (infanto-juvenil) ou CAPSad (álcool e drogas), classificados pelo porte populacional do município e/ou a especialidade. Os CAPS III, por exemplo, são instalados em municípios com mais de 200.000 habitantes e funcionam 24 horas, todos os dias da semana (Quadro 1). A cobertura de cada tipo de CAPS é diferenciada, como já se observava no Quadro 1, e o cálculo da taxa de cobertura deste serviço de saúde mental ainda apresenta certa relação com este parâmetro populacional. O Ministério da Saúde, de acordo com as medidas apresentadas em diversos documentos, dos quais se cita os Indicadores do Pacto pela Saúde (BRASIL, 2012a), aufere o potencial dos CAPS: a) CAPS I para 50.000 habitantes; b) CAPS II, o CAPSi e o CAPSad para 100.000 habitantes cada; e c) CAPS III para 150.000. Observa-se pelos parâmetros da normativa que os CAPS I, II e CAPSad podem ser implantados em maior quantidade de municípios, enquanto os CAPSi e CAPS III apresentam requisitos populacionais existentes em, apenas, 2,40% dos municípios brasileiros poderiam sediar estabelecimentos especializado em criança e adolescente ou ter internação hospitalar acessível 24 horas. Isto já é um indicativo do peso na agenda política 22 nacional da saúde mental. O CAPS III é o único tipo de serviço que pode atuar nos três níveis de prevenção3, por funcionar em horário integral e por possuir leitos para internação de pessoas em situação de crise. Os leitos psiquiátricos em hospitais especializados e gerais, geralmente centrados no modelo biomédico, tiveram a quantidade de leitos reduzida drasticamente, no país, na primeira década do século XXI, o que deixou parte significativa dos usuários deste serviço desassistida tanto do diagnóstico-tratamento-reabilitação como da promoção da saúde mental. CAPS I – municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes Funciona das 8 às 18 horas De segunda a sexta-feira CAPS II – municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes Funciona das 8 às 18 horas De segunda a sexta-feira Pode ter um terceiro período, funcionando até 21 horas CAPS III – municípios com população acima de 200.000 habitantes Funciona 24 horas, diariamente, também nos feriados e fins de semana CAPSi – municípios com população acima de 200.000 habitantes Funciona das 8 às 18 horas De segunda a sexta-feira Pode ter um terceiro período, funcionando até 21 horas CAPSad – municípios com população acima de 100.000 habitantes Funciona das 8 às 18 horas De segunda a sexta-feira Pode ter um terceiro período, funcionando até 21 horas Quadro 01: Tipologia dos Centros de Atenção Psicossocial conforme os portes populacionais. Fonte: BRASIL, 2004. A lógica organizacional dos serviços de saúde, conforme Guimarães (2005, p. 1018), geralmente é estruturada pela demanda dos prestadores de serviços, como se pode observar na tipologia dos serviços de saúde mental, quando deveria “considerar as informações epidemiológicas mais relevantes que podem diferenciar 3 A prevenção – conforme o modelo de prevenção de doenças de Leavell e Clark (1978) – é dividida em três níveis: a) prevenção primária, que compreende a promoção da saúde e a proteção específica; b) prevenção secundária, do diagnóstico e tratamento a limitação da incapacidade; e c) prevenção terciária, compreendida como o processo de reabilitação. 23 as regiões do país, bem como as reivindicações da população, encaminhadas pelas entidades que representam os usuários nos Conselhos de Saúde”. A luta antimanicomial apresentaram conquistas com as mudanças na legislação de direitos humanos no Brasil, já a implementação da assistência à saúde mental no país “não têm” recursos suficientes para implantar os CAPS e após sua consolidação diminuir/eliminar os leitos psiquiátricos em hospitais especializados. A lógica economicista da administração pública impôs primeiramente a redução dos leitos, depois a implantação deste serviço de prevenção primária de saúde mental, deixando parte dos usuários completamente desasistida da assistência, o que contribui para compreender o aumento das taxas de morbimortalidade no Brasil. Os municípios de porte médio ou grande podem contar com internações nos CAPS III. Este tipo de estabelecimento de saúde não comporta as demandas quando situados nos grandes espaços urbanos, o que limita a possibilidade de pactuação na área de saúde mental entre os municípios que possuem o serviço e os municípios de pequeno porte. Um exemplo disto é a distribuição espacial dos CAPS III na unidade federativa do Paraná, que contava, em julho de 2012, com apenas duas unidades: uma em Londrina, implantada em 2002, com população municipal de 506.702; e outra em Cascavel, implantada em 2006, com 286.205 habitantes (IBGE, 2012b). Uma limitação desta norma era a de subsidiar financeiramente a implantação de CAPS I (menores equipes e horário de funcionamento) apenas nos municípios com mais de 20.000 habitantes, o que reflete na conjuntura atual, sem levar em conta quais possuem as acessibilidades espacial e social, as maiores taxas de mortalidade e de morbidade e a quantidade de recursos financeiros investidos em saúde mental. Desta forma, a análise da distribuição espacial das internações por suicídio e por transtornos mentais demonstrou ser um caminho profícuo para a abordagem geográfica no entendimento dos impactos da política da saúde mental nas ações e serviços de saúde no território. Em agosto de 2006, foi instituída a Portaria GM nº 1.876/2006, com as Diretrizes Nacionais de Prevenção de Suicídio (DNPS). Estas diretrizes deveriam ser organizadas pelos gestores de saúde das diversas esferas político-administrativas, pelas instituições acadêmicas, pelas organizações governamentais e não- governamentais e determinaram a SAS/MS para estruturar as DNPS, para constituir 24 um grupo de trabalho e para apresentar e pactuar as DNPS na Comissão Intergestores Tripartite. Novos estudos devem abordar a influência desta portaria nas unidades federativas, avaliando a atuação dos governantes para além do estabelecimento de normas. No presente estudo, para caracterizar suicídio se utilizou a Décima Revisão da Classificação Internacional das Doenças (CID-10). Compreende-se como: I) tentativa de suicídio, a internação por lesões autoprovocadas intencionalmente (X60 a X84); II) suicídio, o óbitos pela mesma LAI; e c) morbidade hospitalar no SUS, a internação em hospital credenciado no SUS. Os transtornos mentais e comportamentais, conforme a OMS (1992), são as patologias inscritas no Capítulo V da CID-10 (F00 a F99), que compreende os grupos: a) transtornos mentais orgânicos, inclusive os sintomáticos (F00 a F09); b) transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de substância psicoativa (F10 a F19); c) esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e transtornos delirantes (F20 a F29); d) transtornos do humor (F30 a F39); e) transtornos neuróticos, transtornos relacionados com o estresse e transtornos somatoformes (F40 a F48); f) síndromes comportamentais associadas a disfunções fisiológicas e a fatores físicos (F50 a F59); g) distorções da personalidade e do comportamento adulto (F60 a F69); h) retardo mental (F70 a F79); i) transtornos do desenvolvimento psicológico (F80 a F89); j) transtornos do comportamento e transtornos emocionais que aparecem habitualmente durante a infância ou a adolescência (F90 a F98); e, k) transtorno mental não especificado (F99). Uma das limitações da CID-10 são as possibilidades de subnotificação das LAI, como, por exemplo, ao permitir o registro de parte destas apenas como lesões, na qual a intenção é indeterminada. Os óbitos por sequelas das causas externas disponibilizados pelo SIM no DATASUS não permitiu distinguir os óbitos por sequelas do suicídio e das agressões (Y87 – Sequelas de uma lesão autoprovocada intencionalmente, de agressão ou de um fato cuja intenção é indeterminada). Outra limitação dos dados é a possibilidade de “silêncio epidemiológico”, comum em áreas com poucos estabelecimentos e profissionais da saúde, geralmente associado às regiões com baixa densidade demográfica e predominantemente rurais. Nos anos de 2005 a 2009, enquanto se registrou 44.759 suicídios no Brasil, foram registrados 57.092 óbitos no grupo de causa “eventos cuja intenção é indeterminada” (Y10 a 25 Y34) e mais 436 como sequelas – Y87 (BRASIL, 2013). Com os transtornos mentais, além da negligência de informações sobre mortes, parte expressiva dos óbitos tem a causa básica classificada como “mal definida”. Mello Jorge et al. (2002), ao analisar os registros de óbitos com “causa mal definida”, após realizar entrevistas em domicílios, hospitais e no Instituto de Medicina Legal de três estados, identificou que parte significativa poderia ser reclassificada como transtornos mentais. No referencial empírico, se explorou múltiplos bancos de dados de órgãos públicos e de institutos de pesquisas, compreendidos neste trabalho como os Censos Demográficos de 1980, 1991, 2000 e 2010 do IBGE (2012a); as Estimativas Populacionais de 1979 a 2009 do IBGE (2012b); o Banco de Teses da CAPES; os dados do DATASUS (BRASIL, 2013); e, o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde – CNES (BRASIL, 2012b). O recorte espacial do estudo é o Brasil e o universo de pesquisa os 5.565 municípios brasileiros. Os dados desagregados ou agregados por bairros ou por setores censitários ou apenas entre as áreas urbanas e rurais dos municípios permitiriam análises urbano-regionais de tais fenômenos, mas não foram acessíveis; por isto, registra-se neste estudo, uma indignação pela morosidade do Ministério da Saúde. Investiu-se tempo e recursos financeiros em viagens a Brasília, em telefonemas e em correspondências eletrônicas, para aquisição de dados indisponíveis no Departamento de Informática do SUS (DATASUS), e não se conseguiu o contato direto com funcionários ou com a coordenação do SIM nem a resposta às solicitações encaminhadas. O recorte temporal do presente estudo compreendeu os anos de 1979 a 2011, conforme a disponibilidade de dados de mortalidade no DATASUS. A análise da distribuição espaço-temporal destes 33 anos foi realizada por microrregiões do IBGE (1990). A espacialidade das mortalidades por suicídio e por transtornos mentais com unidade espacial por municípios foram realizadas com os dados mais recentes, para o triênio 2009-2011. O estudo dos fatores socioeconômicos para o risco de suicídio do país e da região com suicídio endêmico no Sul, a análise espacial de agrupamentos e as correlações lineares também se fez para o triênio 2009-2011. Apenas o subitem 4.2 teve como recorte temporal o triênio 2008-2010, por ter sido a primeira parte executada, por não dispor de tempo para reatualização e por não comprometer o estudo, ao se tratar de um exemplo de aplicação dos 26 geoindicadores e índices criados com o objetivo de contribuir com as políticas públicas de saúde mental. Um dos quesionamentos recorrentes em pesquisas de eventos raros se refere à amplitude total das taxas de mortalidade, que podem variar muito em pequenas populações, como exemplo cita-se a ocorrência de suicídio em municípios com menos de 5 mil habitantes. Uma das técnicas empregadas para diminuir a amplitude destas variações é a média móvel trienal, esta técnica de suavização é comumente empregada e possuí alto nível de aceitação nos estudos científicos. O que justificatifica as análises deste estudo por triênios. Estudos estatísticos do IBGE e de outras instituições disponibilizam estimativas populacionais por municípios para os anos intercensitários. Tais estimativas possuem margens de erro aceitáveis. Com o objetivo de não somar erros toleráveis se optou por trabalhar preferencialmente com os anos censitários, ou seja, a população empregada nos cômputos das taxas de mortalidade trienais foi a de ano censitário (População, no meio do período P). Explicação esta para adoção do triênio 2009-2011 em parte significativa das medidas, dos métodos estatísticos, bioestatísticos e das análises neste estudo. A análise espaço-temporal permite apreender processos da organização social de um grupo ou de um povo, como corrobora Santos (2012 [1985], p. 77) ao afirmar que “a evolução que marca a etapa do processo de trabalho e das relações sociais marca, também, as mudanças verificadas no espaço geográfico, tanto morfologicamente, quanto do ponto de vista das funções e dos processos”. A análise espacial dos dados de saúde coloca desafios e possibilidades, como destacou Barcellos e Ramalho (2002), ao apontarem que: os eventos de saúde acontecem no indivíduo, enquanto as análises espaciais ocorrem no nível populacional; os macrodeterminantes sociais e ambientais, “externo” as pessoas, torna imprecindível a aplicação do Geoprocessamento para análise de dados com origem em diferentes sistemas de informações; os dados epidemiológicos são coletados segundo a lógica territorial do SUS e os processos socioambientais que restringem ou promovem situações de risco a saúde não se limita a estes territórios, que possuem caráter político-administrativo. A análise espacial da morbidade e da mortalidade por LAI e por TMC foram realizadas tanto pelas frequências absolutas como pelas taxas médias. Conforme 27 Costa et al. (2009, p.44) a taxa expressa a estimativa do risco4 de morte de uma população, em um dado período, por uma causa específica ou por um grupo de causas, que se calcula pela “ razão entre os óbitos por y e a quantidade de pessoa- tempo de exposição, acumulada pela população sob risco [...] ou a estimativa da população referida ao meio do ano em questão”. Desta forma, as taxas médias de óbitos (txΩ) e de internações (txΞ) por lesões autoprovocadas intencionalmente e por transtornos mentais foram calculadas pelas medidas: txΩ = n óbitos, no meio do período P x 10⁵ População, no meio do período P txΞ = n internações, no meio do período P x 10⁵ População, no meio do período P Diekstra e Gulbinat (1993) elaboraram uma tipologia para comparar a mortalidade por suicídio entre países, consideraram: a) baixa mortalidade, os países com taxas até 5 suicídios por 100 mil habitantes; b) média mortalidade, os que possuíam taxas de 5 até 14,99 suicídios por 100 mil; c) alta mortalidade, os que apresentaram taxas de 15 até 29,99 por 100 mil; e, d) muito alta, os que possuíam taxas de 30 ou mais por 100 mil habitantes. Para os cálculos de risco relativo (RR) aplicados nos capítulos 2 e 3, se obtiveram elevados nível de significância, com o p-valor menor que 0,001, e com o intervalo de confiança de 95%. A medida simplificada para determinar o RR foi: RR (%) = taxa de mortalidade para o fator X x 100 taxa de mortalidade para o fator Y A partir de análises estatísticas se elaborou gráficos, indicadores compostos, índice e representações cartográficas. A comparação da morbimortalidade dos municípios a partir de frequências absolutas leva a equívocos se não considerar as diferenças populacionais. O mesmo ocorre em estudos comparativos que se utilizam 4 “Risco em Epidemiologia equivale a efeito, probabilidade de ocorrência de patologia em uma dada população, expresso pelo indicador paradigmático de incidência” (ALMEIDA-FILHO; COUTINHO, 2009, p. 635). 28 de frequências relativas, também denominadas de taxas, por evidenciarem os municípios de pequeno porte populacional. Para evitar tais discrepâncias, se adotou, nesta pesquisa a iniciativa de construir indicadores que levasse em consideração as frequências relativas dos fenômenos estudados e os portes populacionais, o que permitiu a comparação de municípios de distintos portes de uma unidade federada. Para o contexto paranaense, predominantemente urbano e com uma densa rede urbana, como se pode observar no estudo “Regiões de Influências das Cidades 2007” (IBGE, 2008), os municípios foram agrupados da seguinte forma: a) < 20 mil habitantes, considerados municípios de porte pequeno; b) 20 mil a <100 mil, considerados municípios de porte médio; e, c) ≥ 100 mil habitantes, considerados municípios de porte grande. A unidade federada do Paraná, tomada como exemplo de aplicação da metodologia proposta, em 2010 contava com apenas dois municípios com mais de 500 mil habitantes, Curitiba, metrópole (1C), uma capital estadual, e Londrina, uma capital regional B (2B), conforme o IBGE (2008), o que dispensou a criação de classe para os grandes espaços urbanos, adequada para os municípios com mais de 500 mil habitantes. A aplicação da metodologia favorecerá trabalhos futuros, nos estudos comparativos de metrópoles e regiões metropolitanas nacionais e internacionais. Em algumas regiões brasileiras, por exemplo, aconselha-se a subdivisão das classes propostas, como se evidencia no caso da região Norte, caracterizado pela baixa densidade demográfica e pela rarefeita rede urbana. Os diagramas de dispersão das taxas médias trienais (2008 a 2010) de óbitos e internações por LAI e TMC por portes populacionais permitiu comparar de forma relacional os municípios paranaenses. Os municípios de cada classe, correspondente ao porte populacional, teviram os óbitos e as internações divididas em tercis. A partir destes tercis de mortalidade e morbidade se elaborou o indicador municipal de morbimortalidade por suicídio (IMOIS), que varia de 0 a 9: a) IMOIS 0 indica ausência de registro de óbito e internaçõe por LAI; b) o 1° tercil da mortalidade e da morbidade equivalem ao IMOIS 1; c) o 1° tercil dos óbitos e o 2° tercil de internação corresponde ao IMOIS 2; d) o 1° tercil de óbitos e o 3° tercil de internação é o IMOS 3; e) o 2° tercil dos óbitos e o 1° tercil das internações equivale ao IMOIS 4; f) o 2° tercil dos óbitos e o 2° tercil das internações equivale ao IMOIS 5; g) o 2° tercil dos óbitos e o 3° tercil das internações equivale ao IMOIS 6; h) o 3° 29 tercil dos óbitos e o 1° tercil das internações equivale ao IMOIS 7; i) o 3° tercil dos óbitos e o 2° tercil das internações equivale ao IMOIS 8; e j) os municípios agrupados no 3° tercil de óbitos e no 3° tercil de internações correspondem ao IMOIS 9. Para facilitar a comunicação da situação de um município em relação aos demais municípios do mesmo porte populacional ou da unidade federada elaborou- se a representação gráfica (Figura 2). Figura 2: Representação gráfica dos indicadores compostos por portes populacionais Organização: Adeir Archanjo da Mota; Raul Borges Guimarães, 2012. A construção do indicador municipal de morbimortalidade por transtornos mentais (IMOIT) seguiu a mesma metodologia do IMOIS, variando assim de 0 a 9, no qual o IMOIT 0 indica ausência de óbitos e internações por TMC, IMOIT 1 a baixa quantidade de óbitos e internações por transtornos até o IMOIT 9, referente ao alto óbito e alta internação. A partir da soma dos níveis dos indicadores compostos IMOIS e IMOIT multiplicado por 10 ¹ elaborou-se o Índice Municipal de Saúde Mental (IMSAME), representado por M, que varia de 0 a 1,8: a) o índice IMSAME de 0 a 0,3 indica situação psicossocial satisfatória; b) o IMSAME de 0,4 a 0,6 sugere uma situação Indicador Municipal de morbimortalidade 30 intermediária; c) o IMSAME de 0,7 a 1,2 é indicativo de uma situação de alerta para a saúde mental; e d) o índice IMSAME 1,3 a 1,8 indica uma situação psicossocial insatisfatória, que pode comprometer a qualidade de vida de habitantes susceptíveis. Para um município apresentar um M de 1,3 ou maior, no mínimo, conta com um dos indicadores (IMOIS ou IMOIT) com alta mortalidade e o outro com média mortalidade associada à alta morbidade. A medida é representada da seguinte maneira: M = (IMOIS + IMOIT) x 10 ¹ Tais indicadores compostos e o índice M contribuem para identificar os territórios em diferentes situações de bem-estar “mental” por grupo de causas e de forma geral, respectivamente. Analisado a distribuição espacial desse índice, observou-se o potencial para aplicá-lo na gestão dos serviços de saúde mental, através da construção do indicador do nível de prioridade ou para instalar este tipo de serviço em municípios desassistidos ou para ampliar a cobertura exigida pela demanda. Este indicador municipal do nível de prioridade (IMUPRI) leva em consideração o índice M e a taxa de cobertura dos serviços de atenção básica a saúde mental, ou seja, a taxa de cobertura dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), calculado a partir da seguinte medida: IMUPRI = Taxa de cobertura dos CAPS/ M Quanto maior o índice M e quanto menor a taxa de cobertura dos CAPS, maior seria a necessidade de serviços de saúde mental. Desta forma, se encontrou o nível de prioridade para cada município de forma relacional, considerando, assim, o porte populacional de cada município, incluso no M e na taxa de cobertura populacional dos CAPS. Os municípios da unidade federada que possuem a prioridade máxima para instalação ou ampliação dos serviços de atenção à saúde mental foram os que tiveram IMUPRI menor que 0,50; os que possuem prioridade alta são os de IMUPRI entre 0,50 e 0,99; serão considerados de prioridade média os que possuem IMUPRI de 1 a 1,99; e, os que apontaram IMUPRI igual ou maior que 31 2 são considerados de baixa prioridade, tendo em vista que todos os municípios devem contar com ações e serviços de atenção à saúde mental nos três níveis de prevenção, principalmente na promoção de saúde. Para os municípios que não possuíam CAPS no ano estudado se adotou o próprio M como indicador de prioridade do município, assim distribuídos: a) 0,1 a 0,3 indicam uma baixa prioridade; b) 0,4 a 0,7 indicam prioridade média; c) 0,8 a 1,0 são indicativos de alta prioridade; e d) 1,1 ou mais como prioridade máxima na oferta ou ampliação dos serviços de saúde mental. A taxa de cobertura do CAPS por município encontra-se disponível no DATASUS – Indicadores do Pacto pela Saúde 2010/2011 (BRASIL, 2012a) para os anos de 2007 a 2011, porém esta taxa teve que ser recalculada por possuir erros, que se pressupõe serem de digitação. O cálculo para conferência foi realizado com base nas medidas indicadas pelo próprio Ministério da Saúde. Para se calcular a taxa de cobertura dos CAPS informaram que os bancos de dados são CNES e IBGE. Ao comparar a quantidade de CAPS por municípios, já tabulada no banco de dados geográfico, com a taxa de cobertura por município se observou uma inconsistência. Identificaram-se sete municípios com CAPS em 2010, conforme o CNES, que não constavam no Pacto pela Saúde 2010/2011, a taxa de cobertura deste serviço estava registrada como nula. Observaram-se também dois casos inversos, que constava no Pacto e não estava cadastrado no CNES, além de alguns municípios com taxa de cobertura consideravelmente distinta da apresentada calculada. Bailey (2001) afirma que a Geografia tem a contribuir com os estudos epidemiológicos e com a Saúde Coletiva, de forma geral, e denomina esta área de Epidemiologia Geográfica, que associa ao mapeamento de doenças, estudo ecológico, análises de clusters de doenças e a avaliação ambiental e o monitoramento. Estes estudos são empreendidos no Brasil predominantemente pela Geografia da Saúde5, tanto pelo rápido desenvolvimento a partir da década de 1990, como pela continuidade da predominância das abordagens individuais na busca por fatores de risco nos trabalhos de Saúde Pública e de Epidemiologia. 5 As possibilidades e os desafios de aplicação do Geoprocessamento nos estudos sanitários foram explorados na “Série Capacitação e Atualização em Geoprocessamento em Saúde” elaborado pela FIOCRUZ/ Ministério da Saúde, com a participação de renomados geógrafos (BRASIL, 2006). 32 Desde a primeira metade do século XIX o desenvolvimento da análise espacial a partir do mapeamento de dados tratados estatisticamente contribuiu para a consolidação da Ciência Social moderna (FRIENDLY, 2007). André-Michael Guerry contribuiu significativamente para avanços na estatística espacial, no estudo da criminalidade e no que viria pouco depois ser denominado de Sociologia. Durkheim (1986 [1897]), no clássico “O Suicídio”, obra relevante para consolidação da Sociologia como ciência, se apoiou no “Ensaio sobre Estatística Moral da França” de Guerry – publicado em 1833, após a premiação da Academia Francesa de Ciências, em 1832, para fundamentar a teoria social, como se pode observar pela citação e pela inclusão do mapa estatístico “Suicídio” (Figura 3) na obra de Durkheim. Para elaboração das representações cartográficas, Guerry contou com a elaboração dos mapas pelo geógrafo veneziano Adriano Baldi, que se utilizou da técnica recém- criada, denominada posteriormente de mapas coropléticos, por empregar a ordem visual para facilitar os estudos comparativos espaciais e temporais. A Semiologia Gráfica, sistematizada por Bertin (1973) foi referência para elaboração dos mapas temáticos, que podem ser agrupados em quatro categorias: a) representação dinâmica (Mapa 4); b) representações qualitativas (Mapas 8, 12 e 14); c) representações ordenadas (Mapas 20, 22 e 23); e; d) representações quantitativas, para as quais se utilizaram métodos distintos, para os dados absolutos se aplicou o método das figuras geométricas proporcionais (Mapas 2, 9, 10, 19 e 21) e para os dados relativos utilizou-se o método coroplético (Mapas 1, 3, 4, 5, 6, 7, 11,13, 15,16, 17, 18, 24 e 25). Os mapas 15, 16, 17, 18, 21 e 25 foram elaborados a partir da sobreposição de dois planos de informações com dados relativos ou absolutos, adaptando as aplicações consideradas ideais para cada método, ou seja, justifica-se a aplicação do método de figuras proporcionais em dados relativos pelo objetivo de realizar a análise espacial pelo método da sobreposição dos planos de informação. 33 Figura 3: Estatística Moral de Guerry: o suicídio na França em 1833 Fonte: Friendly, 2007. A Semiologia Gráfica, sistematizada por Bertin (1973) foi referência para elaboração dos mapas temáticos, que podem ser agrupados em quatro categorias: a) representação dinâmica (Mapa 4); b) representações qualitativas (Mapas 8, 12 e 14); c) representações ordenadas (Mapas 20, 22 e 23); e; d) representações quantitativas, para as quais se utilizaram métodos distintos, para os dados absolutos se aplicou o método das figuras geométricas proporcionais (Mapas 2, 9, 10, 19 e 21) e para os dados relativos utilizou-se o método coroplético (Mapas 1, 3, 4, 5, 6, 7, 11,13, 15,16, 17, 18, 24 e 25). Os mapas 15, 16, 17, 18, 21 e 25 foram elaborados a partir da sobreposição de dois planos de informações com dados relativos ou absolutos, adaptando as aplicações consideradas ideais para cada método, ou seja, justifica-se a aplicação do método de figuras proporcionais em dados relativos pelo objetivo de realizar a análise espacial pelo método da sobreposição dos planos de informação. 34 A análise da distribuição temporal e espaço-temporal são fundamentais para compreensão da dinâmica da mortalidade em determinado território. Esta leitura analítica, distante da realidade cotidiana de parte considerável da população, oferta a possibilidade de apreender os processos na macroescala espaço-temporal, ao indicar tendências no desenvolvimento da mortalidade por determinada causa específica ou grupo de causas. Tais possibilidades podem ser extrapoladas para o estudo das morbidades. O uso da estatística descritiva e da estatística espacial são imprescindíveis na análise espacial para formalizar os resultados apreendidos intuitivamente ou que não foram identificados pela grande quantidade das unidades espaciais analisadas. A análise espacial para identificar agrupamentos de valores semelhantes utilizada foi o índice global de Moran (MORAN, 1948), que varia de -1 a +1. Outra opção seria o índice C de Geary, que não foi utilizado pelo fato de estudos clássicos, como o de Cliff e Ord (1981), considera-lo menos consistente por variar mais em relação à distribuição dos dados da amostragem. Conforme Câmara et al. (2004), o I igual a 0 indica que a distribuição espacial do fenômeno é aleatória, ou seja, sem correlação entre os valores dos atributos das “áreas” adjacentes. Abaixo de 0 até -1, estes valores indicam uma dependência espacial negativa e acima de 0 a +1 indicam que a espacialidade analisada apresenta autocorrelação positiva. Este índice é considerado fraco quando se aproxima de zero e forte quando se aproxima de -1 ou +1. O índice global de Moran é calculado pela fórmula: onde n é a quantidade de áreas, i e j são distintas áreas, x é a média da variável x, ijw são coeficientes da matriz de peso e 0S a soma dos elementos da matriz de peso. Conforme Câmara (2004, p. 169-170), 35 [...] a medida de proximidade pode ser calculada a partir de um dos seguintes critérios: a) ijw = 1, se o centroide de Ai está a uma determinada distância de Aj; caso contrário ijw = 0; b) ijw = 1, se Ai compartilha um lado comum com Aj, caso contrário ijw = 0; c) ijw = lij/li, onde lij é o comprimento da fronteira entre Ai e Aj e li é o perímetro de Ai. O Geoprocessamento foi um dos principais instrumentais técnicos utilizados no estudo, com destaque para a construção de um banco de dados geográfico de saúde mental do Brasil e para a visualização e comunicação cartográfica pela Cartografia Digital. Os softwares utilizados nesta pesquisa foram: a) o ArcGIS 9.3 (disponível no Laboratório de Geocartografia da UNESP/FTCPP) para análises espaciais e na elaboração de parte dos mapas; b) o Philcarto 5.66 para elaborar outra parte das representações cartográficas; c) o GeoDa 1.0.1 nas análises de estatística espacial; e, d) o Bioestat 5.0, nas análises bioestatíticas. Os gráficos e as tabelas foram elaborados no Microsoft Office Excel 2007. 36 CAPÍTULO 1 MORTALIDADE POR SUICÍDIO E POR TRANSTORNOS MENTAIS: PRIMEIRAS IMPRESSÕES A PARTIR DE UMA ANÁLISE DE "SOBREVOO" La critique É a loucura não existe. A loucura está em todos os lugares ao mesmo tempo. Normal é o tédio dos dias sem graça que as pessoas fazem pra elas mesmas. (Ana Carolina, Antônio Villeroy, Dunga , Nilo Romero) 37 A construção de uma leitura sobre qualquer objeto de pesquisa acontece por aproximações, quer em relação às experiências pessoais, profissionais e acadêmicas quer em relação às temporalidades e escalas geográficas analisadas. A partir das reflexões de Maurice Merleau-Ponty, sobre o “pensamento de sobrevoo”, Souza (2007) alerta os geógrafos e os demais estudiosos sobre as limitações de se ater apenas à análise e à ação da macroescala, sem combinar as escalas do “olhar de longe” até a do “mergulho no cotidiano”.