UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Instituto de Artes – Campus São Paulo Programa de Pós-Graduação Mestrado em Música VANESSA DOS SANTOS RIBEIRO MEMÓRIA MUSICAL NA APRENDIZAGEM INFORMAL E SUAS RELAÇÕES COM OS MÉTODOS ATIVOS EM EDUCAÇÃO MUSICAL São Paulo – SP 2022 VANESSA DOS SANTOS RIBEIRO MEMÓRIA MUSICAL NA APRENDIZAGEM INFORMAL E SUAS RELAÇÕES COM OS MÉTODOS ATIVOS EM EDUCAÇÃO MUSICAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Música, do Instituto de Artes da UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Música. Linha de pesquisa: Música, Epistemologia, Cultura. Área de concentração: Cognição Musical. Orientadora: Profª Drª Graziela Bortz. São Paulo – SP 2022 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. R484m Ribeiro, Vanessa dos Santos, 1984- Memória musical na aprendizagem informal e suas relações com os métodos ativos em educação musical / Vanessa dos Santos Ribeiro. – São Paulo, 2022. 131 f. il. color. Orientador: Profa. Dra. Graziela Bortz Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Música - Instrução e estudo. 2. Músicos - Educação extra-escolar. 3. Músicos - Aprendizagem. I. Bortz, Graziela. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 780.7 Bibliotecária responsável: Fabiana Colares - CRB/8 7779 https://unesp.alma.exlibrisgroup.com/ https://unesp.alma.exlibrisgroup.com/ https://unesp.alma.exlibrisgroup.com/ VANESSA DOS SANTOS RIBEIRO MEMÓRIA MUSICAL NA APRENDIZAGEM INFORMAL E SUAS RELAÇÕES COM OS MÉTODOS ATIVOS EM EDUCAÇÃO MUSICAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Música, do Instituto de Artes da UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Música. Dissertação aprovada em: / / . Banca Examinadora Prof. (a) Dr. (a): . Instituição: . Julgamento: . Prof. (a) Dr. (a): . Instituição: . Julgamento: . Prof. (a) Dr. (a): . Instituição: . Julgamento: . Dedico este trabalho aos meus ancestrais, que não tiveram a oportunidade de estudar, e à minha querida mãe. AGRADECIMENTOS À minha mãe Ivanete, pelo amor e carinho que serviram de apoio em toda minha trajetória, além dos esforços para que eu pudesse alcançar meus objetivos. À minha tia querida Maria José, e a todos os familiares que sempre estiveram ao meu lado, me dando suporte e muito amor. À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Graziela Bortz, por toda a dedicação e paciência, compartilhando sua sabedoria, além de sua amizade e companheirismo que me deu forças para continuar. Aos membros da banca examinadora, Prof.ª Dr.ª Margarete Arroyo e Prof. Dr. Danilo Ramos, pela leitura e observações atentas e importantes, que contribuíram para o crescimento da minha pesquisa e da minha experiência acadêmica. Aos queridos professores de música que foram muito importantes para o desenvolvimento da minha musicalidade: Marta Ozzetti, Jaime Augusto das Neves e José Simonian. Às “unespianas” Bruna e Carime, pela enorme amizade, que foi um alicerce para a minha vida. Aos amigos da Escola de Música Intermezzo, em especial, o querido Rodolfo, que muito me ajudou, nos momentos de desespero. Às amigas de longas datas que acompanharam toda minha batalha e que moram no meu coração: Raquel, Ariadne. À toda equipe de funcionários do Instituto de Artes. E o agradecimento mais especial de todos: À Deus, por trazer a música, os amigos e os familiares à minha vida e proporcionar a realização dos meus sonhos, além de me ajudar a superar as mais diversas dificuldades. RESUMO RIBEIRO, Vanessa dos Santos. Memória musical na aprendizagem informal e suas relações com os métodos ativos em educação musical. 2022. Dissertação (Mestrado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), São Paulo, 2022. Alguns músicos constroem sua formação na aprendizagem informal, embasada em experiências práticas e, geralmente, apresentam uma habilidade para memorização musical. A presente dissertação propõe a convergência entre as experiências práticas da aprendizagem informal com as metodologias ativas em educação musical e a memorização musical. Tem por objetivo investigar se as abordagens desenvolvidas pelos métodos ativos de educação musical surgidos no início do século XX podem promover as habilidades envolvidas no processo de memorização e flexibilidade cognitiva de forma a orientar, alicerçar e auxiliar a performance musical no contexto da aprendizagem informal. Esses métodos envolvem o aprendizado por meio da prática musical, em que ocorrem experiências com diversos elementos musicais sem que haja um aprofundamento teórico inicial. Para o desenvolvimento deste trabalho, foi empregado como metodologia a pesquisa bibliográfica nas áreas de educação musical, aprendizagem formal, não formal e informal, e neurociência. O referencial teórico dessa dissertação são as metodologias ativas em educação musical de Dalcroze, Willems, Orff, Kodály, Suzuki, Martenot, Schafer, Paynter e Swanwick; os conceitos sobre memória de Izquierdo, Baddeley e Lent; e memória musical de Snyder, Chaffin e Logan. Os termos pesquisados incluíram memória e música, memorização musical, métodos ativos em educação musical, diferença nos tipos de aprendizagem musical, práticas musicais informais, memorização de músicos populares e tipos de memória. Depois do levantamento dos referenciais, procedeu-se a análise, síntese e os fichamentos. Os principais resultados observados foram as possibilidades de se obter uma melhora na memorização musical a partir de uma aprendizagem que desenvolve atividades práticas, como ocorre na formação de músicos de aprendizagem informal. Concluiu-se que há uma associação entre os aspectos cognitivos da memória musical e seu desenvolvimento com as experiências práticas e a interiorização da música, comuns à aprendizagem informal. As representações mentais são formadas pelas experiências e são importantes para a memorização musical e para gerar novos aprendizados. Considera-se o equilíbrio na formação musical entre a experiência prática e as sistematizações teóricas e técnicas, com reflexões que podem ser relevantes na formação do músico e conduzir sua maneira de estudar, principalmente quando esse tem por objetivo desenvolver a memória musical. Palavras-chave: memória musical; aprendizagem musical informal; métodos ativos em educação musical. ABSTRACT RIBEIRO, Vanessa dos Santos. Musical memory in informal learning and its relationship with active methods in music education. 2022. Dissertation (Master's in Music) – Graduate Program in Music of the Institute of Arts of the Universidade Estadual Paulista (Unesp), São Paulo, 2022. Some musicians build their training on informal learning, based on practical experiences and, generally, have an ability to memorize music. The present dissertation proposes a convergence between the practical experiences of informal learning with active methodologies in music education and musical memorization. It aims to investigate whether the approaches developed by active methods of music education that emerged in the early twentieth century can promote the skills involved in the memorization process and cognitive flexibility in order to guide, support and help musical performance in the context of informal learning. These methods involve learning through musical practice, in which experiences with different musical elements occur without an initial theoretical deepening. For the development of this work, bibliographical research was used as a methodology in the areas of music education, formal, non-formal and informal learning, and neuroscience. The theoretical framework of this dissertation is the active methodologies in music education by Dalcroze, Willems, Orff, Kodály, Suzuki, Martenot, Schafer, Paynter and Swanwick; the concepts of memory by Izquierdo, Baddeley and Lent; the musical memory of Snyder, Chaffin and Logan. Search terms included memory and music, music memorization, active methods in music education, difference in types of music learning, informal music practices, memorization of popular musicians, and memory types. After surveying the references, proceed with the analysis, synthesis and filings. The main results observed were the possibilities of obtaining an improvement in musical memorization from learning that develops practical activities, as occurs in the training of informal learning musicians. It was concluded that there is an association between the cognitive aspects of musical memory and its development with practical experiences and the internalization of music, common to informal learning. Animated representations are formed by experiences and are important for musical memorization and to generate new learning. The balance in musical training between practical experience and theoretical and technical systematizations is considered, with thoughts that may be relevant in the musician's training and in conducting his/her way of studying, especially when the objective is to develop musical memory. Keywords: musical memory; informal music learning; active methods in music education. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Esquema de um neurônio ............................................................................. 32 Figura 2 - Parte do lobo temporal esquerdo .................................................................. 34 Figura 3 - Circuito de Papez - Sistema límbico ............................................................ 37 Figura 4 - Córtex pré-frontal ......................................................................................... 38 Figura 5- Processos de memorização baseados em Lent .............................................. 41 Figura 6 - Processos de memorização........................................................................... 43 Figura 7 - Córtex pré-frontal, amígdala, hipocampo e córtex entorrinal. ..................... 47 Figura 8 - Relação da memória de trabalho com as demais memórias......................... 49 Figura 9 - Memória de longa duração ........................................................................... 52 Figura 10 - Guias de execução ...................................................................................... 69 Figura 11 - Memória de trabalho – diagrama de Snyder (2001) .................................. 73 Figura 12 - Exemplo de guia cifrada ............................................................................ 89 Figura 13 - Modelo da Teoria Espiral do Desenvolvimento Musical......................... 108 Figura 14 - Pilares da experiência musical de Paynter ............................................... 116 LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1 - Trecho da música “Dança de urso”, do compositor Candinho. ............... 62 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Tipos de Memórias ...................................................................................... 40 Tabela 2 - Modelo C(L)A(S)P / (T)EC(L)A ............................................................... 111 file:///C:/Users/Dell/Dropbox/1%20-%20Mestrado/1%20-%20Mestrado/1%20-%20DISSERTAÇÃO/DEFESA/Correções%20Defesa/Danilo.docx%23_Toc125650731 file:///C:/Users/Dell/Dropbox/1%20-%20Mestrado/1%20-%20Mestrado/1%20-%20DISSERTAÇÃO/DEFESA/Correções%20Defesa/Danilo.docx%23_Toc125650735 file:///C:/Users/Dell/Dropbox/1%20-%20Mestrado/1%20-%20Mestrado/1%20-%20DISSERTAÇÃO/DEFESA/Correções%20Defesa/Danilo.docx%23_Toc125650739 file:///C:/Users/Dell/Dropbox/1%20-%20Mestrado/1%20-%20Mestrado/1%20-%20DISSERTAÇÃO/DEFESA/Correções%20Defesa/Danilo.docx%23_Toc125650744 SUMÁRIO SUMÁRIO .......................................................................................................................................... 11 APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................ 12 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................. 18 1. METODOLOGIA .................................................................................................................... 24 2. MEMÓRIA E MEMÓRIA MUSICAL ................................................................................... 27 2.1. APRESENTAÇÃO DOS CONCEITOS DA MEMÓRIA ................................................................... 27 2.1.1. O cérebro e a memória ................................................................................................. 31 2.1.2. Tipos de memória ......................................................................................................... 39 2.2. MEMÓRIA MUSICAL ........................................................................................................... 59 2.2.1. Memória por cadeias associativas, memória expert e guias de execução ...................... 64 2.2.2. Memória ecoica e processamento inicial, memória de curto prazo, memória de longo prazo e memória de trabalho .................................................................................................................... 70 3. EDUCAÇÃO MUSICAL – APRENDIZAGEM E METODOLOGIA ATIVA ..................... 75 3.1. APRENDIZAGEM MUSICAL FORMAL..................................................................................... 76 3.2. APRENDIZAGEM MUSICAL INFORMAL ................................................................................. 81 3.3. APRENDIZAGEM MUSICAL NÃO FORMAL ............................................................................. 87 3.4. MÉTODOS ATIVOS EM EDUCAÇÃO MUSICAL ........................................................................ 90 3.4.1. Primeira geração de educadores das metodologias ativas em educação musical .......... 94 3.4.2. Segunda geração de educadores das metodologias ativas em educação musical ......... 106 4. RESULTADOS E DISCUSSÃO ............................................................................................ 117 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 124 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 125 12 APRESENTAÇÃO Esta pesquisa nasceu a partir de minha própria experiência musical, na qual vivenciei a aprendizagem nos âmbitos da prática informal e do ensino formal, o que gerou conflitos em meu desenvolvimento como educadora musical. Em meu processo de aprendizagem, inicialmente, não pude desfrutar do auxílio de um instrutor, por motivos financeiros. Conheci e concebi minhas primeiras melodias e os sons das primeiras notas em um piano de brinquedo, aos três anos de idade, de maneira informal e autodidata. Através desse pequeno instrumento, pude realizar pequenas experiências sonoras, assim como as “garatujas”1, que antecedem o grafismo na infância, e explorei aspectos rítmicos e melódicos. O piano passou a fazer parte do meu imaginário, e foi assim despertando um desejo de tocar e de ser musicista. Sem perceber, os sons formavam sentido e a cada nota tocada uma associação era feita com as músicas que conhecia até então. Consegui assimilar os sons das notas com as músicas que eram familiares ao meu contexto. Comecei, então, a tirar músicas por meio da percepção auditiva, mais conhecida como “tirar de ouvido”. Essa prática se tornou minha principal aliada no processo de memorização e aprendizagem musical no decorrer dos anos. Aos treze anos, entrei em uma escola livre de música, no curso de teclado, com o objetivo de aprender teoria e técnica musical, para sanar as dificuldades na execução de algumas músicas, que exigiam mais do que eu conseguiria aprender sem um professor. No que diz respeito à minha prática como musicista profissional, integrei grupos de choro e bossa nova como flautista, em que vivenciei o fazer musical. Mesmo com a limitação inerente à falta de conhecimento técnico e teórico, a memorização das músicas tocadas se tornou o meu recurso básico na aquisição de repertório. Atuei como tecladista profissional em bandas de baile, igrejas e eventos em geral, aos quatorze anos. Posteriormente, aos 18 anos, comecei a dar aulas de teclado em uma escola livre de música, e aprendi a tocar flauta transversal. Estudei outros instrumentos, como piano popular, saxofone, violão e bateria, nos anos seguintes, para atender à demanda de alunos de iniciação musical e aprimorar minhas apresentações. 1 “A ‘garatuja sonora’ do bebê e da criança pequena sintoniza-se com o modo como ela explora os materiais sonoros que tem em mãos, com a exploração de sons vocais com que se entretém por longos períodos, sem que importe o resultado e sem que o uso de ‘regras gramaticais’ dessa linguagem faça o menor sentido, como, aliás, só poderia ser” (BRITO, 2003, p.43). 13 Em busca de aperfeiçoamento e qualificação, procurei mais oportunidades de estudos, e com isso melhorar minhas aulas, para facilitar o aprendizado dos meus alunos. Busquei ajuda na cidade de Cubatão, na Escola Técnica de Música e Dança Ivanildo Rebouças da Silva, no conservatório municipal, e no projeto BEC (Banda Escola Cubatão). Já como estudante de conservatório, passei por um processo de desconstrução do que havia aprendido empiricamente, como se o que fora vivenciado fosse uma maneira incorreta de aquisição de conhecimento, e passei a ter uma visão imposta do que seria um aprendizado formal correto. Esse processo de formalização trouxe muitas questões a respeito das aulas que eu lecionaria, o que influenciou em minha iniciação como professora de música. Ao lecionar, baseei minhas aulas primeiramente no ensino tradicional, por instrução de meus tutores no conservatório e, subsequentemente, na aprendizagem mediante os métodos ativos em educação musical. Foram observadas divergências a respeito da flexibilidade interpretativa, da tomada de decisões, da improvisação e da memorização musical. A instrução orientada como correta (ensino tradicional) não ofereceu a meus estudantes ferramentas que favorecessem a memorização de músicas. Contudo, as aulas que abordavam uma musicalização que valoriza a vivência e a oralidade trouxeram a eles uma maior habilidade na memorização e em outras capacidades que envolvem emoções, musicalidade e criatividade. Tais observações nos levaram à seguinte reflexão: qual a relação entre os processos de aprendizagem e a memorização musical? Anteriormente aos estudos na graduação em música, trabalhei prioritariamente o ensino da leitura de partituras e técnica, sem a preocupação de desenvolver nos estudantes a escuta ativa2, ou outros aspectos relevantes, como criação, expressão, que serão abordados no decorrer deste trabalho. Como resultado, meus alunos não apresentavam flexibilidade3 interpretativa, tinham problemas com tomadas de decisões, não improvisavam nem compunham e não tinham a habilidade de memorizar as músicas. Por vezes, fui questionada por eles: “Como você toca de ouvido? Como você faz para decorar uma música?”. Não sabia qual o erro que cometia com meus alunos, por desconhecer o valor dos processos ativos, que nortearam minha infância, como as 2Refere-se a uma escuta mais atenta, que associa os sons a movimentos e gestos corporais, na qual o indivíduo passa a atribuir significado à música apreciada, que amplia e estimula a sua compreensão (LIMA; et.al., 2018). Para Mateiro (2012, p. 263), “a experiência de escutar atentamente conduz o ouvinte a um significado mais profundo da música [...] e escutar é uma forma especial da mente que pressupõe a atenção, a audição e a compreensão estética como parte da experiência entre o objeto musical e o ato de ouvir.”. 3 A flexibilidade que será apresentada nesta dissertação está relacionada com a plasticidade cerebral e a agilidade mental no momento de tocar uma peça musical. 14 brincadeiras e garatujas sonoras, escuta ativa, apreciação de repertórios diversos, experiência com a música e com os instrumentos. Precedentemente à graduação e à pesquisa, eu desconhecia a relação da interiorização dos conceitos musicais e das metodologias ativas com minha própria trajetória, e não havia um desenvolvimento da vivência musical em meu planejamento de aula. Contudo, havia uma preocupação com o ensino técnico e teórico musical, comuns ao ensino tradicional. Foi observado, nesse período, que meus alunos4 necessitavam impreterivelmente da partitura. Além disso, qualquer equívoco durante a performance os faria estagnar no trecho incorreto, retomando, muitas vezes, a música do início, ou sequer distinguiam o engano e prosseguiam com troca de tempos e/ou notas indevidamente dissonantes. Esse tipo de ausência de flexibilidade e memorização pode ser explicado pela privação de práticas ativas, em que o indivíduo compreende a música como um todo de forma contextualizada, e que foi o objetivo inicial de estudo desta pesquisa. As aulas que eu ministrava antes da graduação eram realizadas com muitos estudos de técnica, teoria e demasiados exercícios de leitura. Nesse período, eu dava aulas de iniciação nos seguintes instrumentos: teclado, piano, flauta transversal e saxofone. Entre os estudos de piano e teclado, alguns dos exercícios técnicos abarcavam métodos como “a dose do dia”, Czerny, Hanon. Para os alunos de sopro, havia os exercícios de notas longas, articulações, respiração, aos quais incluíam Moyse, Woltzenlogel, Taffanel, para flauta transversal, e Amadeu Russo, Albino e Pratti, para saxofone, além de exercícios de escalas maiores e menores, Bona e Pozzoli para leitura. Quanto ao repertório, as músicas eram desenvolvidas apenas por meio da leitura da partitura, sem a abertura para que ouvissem antes de ler, ou que explorassem o som de seus instrumentos e improvisassem. Em um dado momento, estava perdendo muitos alunos de sopro, que desistiam das aulas por não verem resultados musicais satisfatórios, ou seja, não tocavam músicas, só liam exercícios e faziam notas longas. Esse fato me fez criar uma “oficina de sopro”, que oferecia uma aula a mais na semana, para a prática em grupo. Para isso, eu escrevia arranjos que envolviam desde simples semibreves, até a melodia completa, de músicas populares, visando as apresentações de final de ano. Isso motivou a permanência dos alunos por mais tempo e trouxe melhores 4Exemplos vivenciados com meus alunos particulares residenciais e na extinta escola de música Onda Sonora (Guarujá - SP), nos anos de 2003 a 2009. 15 resultados musicais para eles. Mesmo assim, ainda apresentavam muita dificuldade em relação aos erros cometidos e nenhum deles conseguia memorizar uma única música. Mais tarde, pude alinhar minhas ideias com os conhecimentos que adquiri durante o curso de graduação em música, que realizei no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP. Os estudos na graduação me trouxeram as metodologias ativas e pude perceber sua relação com minhas experiências pessoais, inicialmente ignoradas pelo conservatório. Com isso, passei a ensinar com o olhar mais atento às práticas formais e, principalmente, informais, que também serão mencionadas a seguir. Minhas aulas passaram por uma mudança, gerada pela reflexão dos processos de aprendizagem que experienciei. Desde o fim da minha graduação, em 2015, atuo como professora no curso de iniciação musical, na Escola Livre de Música Intermezzo (São Paulo - SP). Nesse curso, os alunos, entre quatro e dezessete anos, aprendem diversos instrumentos, como piano, bateria, canto, violão, baixo e ukulele, de maneira exploratória. O intuito é oferecer ferramentas para que possam descobrir com qual instrumento mais se identificam e ter um desenvolvimento musical mais amplo, no que diz respeito ao conhecimento global da música, ou seja, para que não aprendam somente a observar o seu próprio instrumento, mas todos aqueles com os quais atuarão em conjunto. O trabalho desenvolvido na Intermezzo envolve uma aula que parte do lúdico, da exploração sonora de diversos instrumentos, até a execução de músicas em apresentações que ocorrem a cada semestre. Nessas aulas, há uma preocupação com os aspectos técnicos e teóricos, que não foram rejeitados, mas adaptados e apresentados em paralelo com atividades que envolvem prática musical, atividades criativas e escuta ativa. As músicas são escolhidas pelas crianças e algumas são sugeridas por mim, para fins didáticos. Procuramos vivenciar cada peça das mais diversas maneiras, como, por exemplo, dançando, passando uma pequena bola no tempo forte, e trazendo aos poucos uma parte da música para o instrumento escolhido por elas (uma nota ao piano, uma batida no surdo da bateria), até que, aos poucos, a música vai tomando forma e as próprias crianças passam a sugerir como querem tocar, isto é, começam a criar seus arranjos. Na maioria das vezes, essas músicas são apresentadas sem a partitura, pela transmissão oral. Após esse processo, são criadas notações personalizadas, as quais escrevo em seus cadernos ou no computador junto com as crianças. Nesse momento, 16 apresento alguns aspectos teóricos de leitura e peço que elas me ajudem a escrever a partitura. Com isso, as músicas vão aos poucos sendo memorizadas pelos alunos, que ainda criam seus próprios arranjos. Eu pude entender, empiricamente, como a interiorização dos conteúdos musicais, em decorrência das atividades práticas, afetavam na memorização e na performance de meus alunos. Todavia, não compreendia como ocorriam seus efeitos cognitivos. A partir desse princípio, pesquisei sobre autores que trataram das abordagens ativas em educação musical, bem como autores que tiveram seus trabalhos baseados em estudos da memória, voltados ou não para a área de música. Nessa caminhada, muitos assuntos se convergiram, trazendo a importância da representação mental e da construção da criatividade nos processos mnemônicos. Após a graduação, durante o meu trabalho como educadora, foi possível associar minha primeira experiência na infância e adolescência, que abrangia a prática e exploração dos elementos sonoros, com as metodologias ativas e com a aprendizagem musical informal. Essa relação das aulas com as duas realidades, antes e após minha graduação, com as quais me deparei como educadora e como musicista, me trouxeram à tona a crítica ao sistema tradicional. A ênfase aos aspectos teóricos, técnicos e à leitura como objetivos principais, que podem implicar na expertise musical, nos faz refletir o porquê de ainda termos que discutir a importância das práticas ativas. Essas abordagens ativas já estão disponíveis e fundamentadas desde o início do século passado. No entanto, embora sejam muito usadas na musicalização, são subestimadas por professores de instrumento e canto, principalmente no modelo de conservatório de ensino um a um (professor/aluno). Embora muitos educadores estejam engajados com essas metodologias e cientes dessas discussões, ainda é possível se deparar com essa barreira “clássico versus popular”, aprendizagem formal versus informal. Em suma, passei a trazer as músicas de diversas maneiras aos estudantes, de forma que os conceitos teóricos e técnicos iam se apresentando conforme as necessidades no decorrer do aprendizado. Uma música é escolhida pelos estudantes e explorada quanto a sua forma, timbres, alturas, e adaptada, com um arranjo simples, criado em conjunto. Essa adaptação faz com que, respeitando cada nível de conhecimento e habilidade, os alunos consigam tocar a música escolhida, aceitando seus erros, e com eles, aprender novos elementos. A música é explorada, primeiramente, pelo corpo, através de atividades que envolvem a dança, jogos e brincadeiras. Em 17 paralelo a esse processo, apresento a leitura da notação musical, igualmente com jogos, brincadeiras e aplicativos, que envolvem essa temática, de maneira lúdica. Posto isso, observei um desenvolvimento em meus alunos, sobretudo no âmbito da memória musical. Baseada em minhas experiências e dificuldades em transmitir a habilidade de memorização aos alunos, desenvolvi meu Trabalho de Conclusão de Curso da graduação, intitulado “Musicalidade e Percepção: um estudo sobre a memória musical”. A ideia era compartilhar a relação que observei e buscar entender como ocorreu meu processo de memorização e de alguns musicistas, que fizeram parte da pesquisa. A partir desse trabalho, várias outras questões foram levantadas e me trouxeram até a presente pesquisa. Retomei minhas pesquisas sobre a memória musical no Programa de Pós-Graduação da UNESP, participando do Grupo de Pesquisa em Percepção Musical, com a orientação da Professora Doutora Graziela Bortz. 18 INTRODUÇÃO A notação musical é a representação gráfica das propriedades musicais como altura, duração, intensidade e timbre (MED, 1996, p. 12), e foi a primeira tentativa organizada de fixar outros sons além da fala. Ela substituiu fatos auditivos por sinais visuais e seu desenvolvimento transcorreu progressivamente entre a Idade Média e o século XIX (SCHAFER, 2001, p. 175 e 176). Esse sistema gráfico foi criado com o intuito de servir de guia à memória e para que se mantivessem os registros de uma música que, inicialmente, era improvisada e disseminada por meio do uso da tradição oral. Segundo Sloboda (2008, p. 26), a linguagem se assemelha à música em alguns aspectos, entre eles na transmissão auditivo-vocal, como uma forma primária e no sistema de notação, no qual “quem escreve expressa a sequência que deseja comunicar como um conjunto de símbolos escritos, e o receptor recupera a mensagem decodificando símbolos visuais”. Para que a oralidade5 não se limitasse e para haver a preservação das músicas e essas perdurassem no tempo, foram criados símbolos que configuram a partitura musical. Dessa forma: Uma obra composta podia ser ensinada e transmitida oralmente e podia sofrer alterações nesse processo de transmissão. Mas a invenção da notação musical tornou possível escrever a música de uma forma definitiva, que podia ser aprendida a partir do manuscrito. A notação era, por outras palavras, um conjunto de indicações que podiam ser seguidas, quer o compositor estivesse ou não presente. Desse modo, composição e execução passaram a ser atos independentes, em vez de se conjugarem na mesma pessoa, como antes sucedia, e a função do intérprete passou a ser de mediação entre o compositor e o público (GROUT; PALISCA, 2007, p. 97) Em estilos musicais como jazz, choro, bossa nova ou rock, quando um músico se apresenta com partitura ou algum tipo de notação, como melodia cifrada, ou lead sheet6, espera-se que ele tenha outras habilidades, como capacidade de improvisação, tomada 5Trataremos a oralidade como uma transmissão de conhecimentos compartilhados mediante processos orais. 6Tipo de notação musical utilizada na música popular, em que a melodia é escrita no pentagrama e a harmonia acima da pauta, com os acordes representados em cifras, sem apresentar dinâmicas, andamentos etc. 19 de decisão e maleabilidade para lidar com situações imprevistas, que, a princípio, não são oferecidas pela notação musical; porém, podem se desenvolver mediante a construção de uma memória musical particular, como observa Sève: O jazz, o choro e outros estilos e gêneros populares costumam ter também suas músicas notadas apenas com indicações essenciais – ritmos melódicos, formas, alturas, tonalidades e sugestões de andamento (fornecidas, muitas vezes, por indicações de gênero nas peças). Detalhes de articulação, de dinâmicas e agógicos (dentre exceções, no choro, está a obra de Ernesto Nazareth) raramente são escritos. Muitos procedimentos interpretativos encontram-se revelados em um sistema de códigos compartilhados pela tradição oral (2016, p. 1305). Dessa forma, a memória de todos esses outros elementos é primordial para esse tipo de compartilhamento musical, proveniente da tradição oral. A maneira como a oralidade se difunde requer memorização na execução das músicas, que não apresentam todas as possibilidades interpretativas em sua notação. Os primeiros estudos sobre memória foram levantados por Ebbinghaus (1850- 1909), que foi o primeiro a demonstrar que era possível estudar os processos mnemônicos através de experimentos, e a relacionar a integração de novos aprendizados com o que havia sido adquirido anteriormente. Alguns estudos recentes foram realizados por Izquierdo (2018) e Baddeley (2011). Lent (2010) apresenta abordagens sobre a estrutura do cérebro e as classificações das memórias descobertas até o momento da publicação de seu livro. Embora esses autores tenham pesquisado a respeito da memória, não apresentaram muitos aspectos ligados ao contexto musical, que será o objeto de pesquisa deste estudo. Esses autores apresentam somente alguns exemplos breves sobre como a memória é utilizada para tocar um instrumento. No cenário atual, foram observados alguns livros de autores que relacionam os aspectos mnemônicos com a música, como, por exemplo, Snyder (2001), que apresenta uma introdução à memória musical, e Lima (2013), que interliga a memória com a performance e o aprendizado musical. Outros materiais, como artigos e dissertações, também trouxeram embasamento para a compreensão da memória musical e sua relação com a aprendizagem. Contudo, não foram encontrados trabalhos que correlacionam a memorização com a formação dos músicos com aprendizagens informais e as 20 metodologias ativas em educação musical. Com isso, esta pesquisa pretende examinar essa lacuna, para que possamos observar se há pontos convergentes entre os estudos de memória na neurociência e a aprendizagem musical informal, e observar, ainda, elementos que sejam comuns entre essa aprendizagem e as metodologias ativas. Ao constatarmos a memorização presente na performance de músicos que aprenderam com práticas informais, especulamos: quais fatores cognitivos influenciam o desenvolvimento da memorização musical nas práticas informais? O objetivo geral deste trabalho é apresentar a relação dos fatores cognitivos que favorecem a memorização musical nas práticas informais. Como objetivos específicos, pretende: • Examinar os tipos de memória; • Investigar os tipos de aprendizagem (formal, não formal e informal), • Investigar as metodologias ativas em educação musical; • Observar se a relação entre a construção da memorização musical e os métodos ativos em educação musical na literatura científica investigada. A memorização musical é um processo que envolve múltiplas áreas do cérebro, construída com o envolvimento geral do indivíduo com as obras a serem executadas através de suas vivências7 musicais, individuais e coletivas. Isso é o que constrói a representação mental, que é um agrupamento de informações que formam padrões que serão recrutados pela memória ao longo da vida. Investigamos se as abordagens desenvolvidas pelos métodos ativos de educação musical surgidos no início do século XX possam promover as habilidades envolvidas no processo de memorização e flexibilidade cognitiva de forma a orientar, alicerçar e auxiliar a performance musical no contexto de aprendizagem informal. Esses métodos envolvem o aprendizado por meio da prática musical, em que ocorrem experiências com diversos elementos musicais sem que haja um aprofundamento teórico inicial. O aprendizado baseado em vivências é o que pode resultar em uma maior representação mental e, com isso, um desenvolvimento na plasticidade cerebral 8. A plasticidade cerebral, por sua vez, envolve e promove a memória musical, que desenvolve a aprendizagem musical, pois uma performance com alta complexidade exige do cérebro mecanismos de distintas memórias (LEÃO, 2013, p. 96). Como efeito, 7Trata-se da experiência de vida de cada indivíduo, em que se obtém conhecimentos que envolvem práticas e sentimentos. 8Capacidade do cérebro de se moldar. Será melhor detalhada no item 1.1. 21 essa memória musical depende de outras habilidades, constatadas nas práticas musicais, entre elas: imagética musical, que são os aspectos cognitivos da prática musical; memória auditiva operacional (que seria o componente musical da memória de trabalho ou operacional); imagem mental, atribuída à visualização ou formação de imagens mentais; audição mental, inerente à visualização auditiva mental, ou escuta ativa, que se trata de ouvir sons na mente, sem que estejam de fato ocorrendo a partir de fontes externas; percepção auditiva, que desempenha a anamnese da altura dos sons; memória tonal, capaz de reconhecer as tonalidades (LEÃO, 2013, p. 97). Todavia, não é incomum que o ensino de música seja centrado em aspectos teóricos que se distanciam da prática. Podemos citar como exemplo desse ensino a abordagem musical na iniciação, concentrada na decodificação da notação musical antes mesmo que os estudantes tenham vivenciado sua prática. Ela envolve o ouvir, o apreciar e o vivenciar a música, que pode ser relevante para a construção da memória e aprendizagem musical, e pode prescindir ao aprendizado técnico e teórico. Segundo Carrasqueira (2017, p. 209), a grande maioria dos métodos de ensino musical empregados nas escolas brasileiras é baseada na leitura, nos quais o aprendizado a partir da escuta, “tirando” músicas “de ouvido”, próprio das culturas populares “orais”, não é estimulado, podendo até ser reprimido. O que queremos discutir nesta pesquisa é a maneira mais interiorizada da memorização musical, que envolve a fluência9. Trata-se de uma memória sintática, que relaciona experiências de vida como ponto de partida para adquirir essas memórias. Assim, o desenvolvimento das habilidades musicais é inerente ao envolvimento do indivíduo com a música, bem como o conhecimento e a internalização dos conteúdos aprendidos por meio de uma musicalização que é ativa, ou seja, que envolve exploração sonora, criação e reflexão10. Essa internalização, abordada nesta pesquisa, está relacionada à capacidade de apreender os elementos externos e transformá-los em significados internos, e será melhor explanada no decorrer desta dissertação. A presente pesquisa foi elaborada em quatro capítulos. O capítulo 1, apresenta a metodologia desenvolvida para a realização da presente pesquisa. No capítulo 2, apresentaremos os conceitos fundamentais dos processos mnemônicos e a memória musical. Primeiramente, serão abordados alguns termos 9Trataremos o termo fluência como uma maneira mais tangível, ágil e espontânea de tocar uma música, ou seja, o indivíduo não apresenta interrupções de frases musicais durante a performance e tem habilidade de continuar a música após algum equívoco. 10 Pensamento crítico e consciência. 22 importantes para o conhecimento dos elementos que compõem o cérebro e suas ligações com o corpo, utilizados para o entendimento do estudo da memória e suas categorias. Serão abordados os seguintes tipos de memória: memória sensorial, memória de trabalho, memória de curto e longo prazo, memória declarativa e não declarativa. Também serão apontadas as subdivisões das memórias declarativas e não declarativas: episódica, semântica, procedural, emocional, associativa, não associativa e priming. Em seguida, abordaremos os tipos de memória envolvidos na aprendizagem e no processo de memorização musical, com embasamento de Snyder (2001) e de Chaffin et al. (2012). Serão tratadas as memórias: auditiva, motora, visual, emocional, narrativa, linguística e expert, de acordo com a visão de Chaffin et al. (2012); e as memórias: ecoica, de trabalho, chunking, de curto e longo prazo, conforme a perspectiva de Snyder (2001). No capítulo 3, trataremos os contextos da aprendizagem musical formal, informal e não formal, além das metodologias ativas em educação musical da primeira e segunda geração. Essa seção abordará conteúdos relacionados à formação erudita e popular, e apresentará como funcionam as aprendizagens formais, informais e não formais. Serão apontadas suas peculiaridades, que sugerem uma reflexão sobre suas viabilidades em relação ao desenvolvimento da flexibilidade e criatividade11 musical. Quanto aos métodos ativos em educação musical, serão levantados alguns dos principais educadores da primeira e da segunda geração. Entre os autores da primeira geração estão: Dalcroze, Willems, Orff, Kodály, Suzuki e Martenot, que representaram uma mudança na educação musical do século XX. Suas ideias trouxeram a experiência que antecede o ensino técnico e teórico musical. Já entre os autores da segunda geração, serão abordados: Swanwick, Schafer e Paynter. Esses educadores se caracterizaram pelo fazer musical, igualmente à experimentação dos conteúdos musicais. No entanto, trouxeram a criatividade, a composição e o repertório de vanguarda para as suas metodologias. Uma vez apresentados os conceitos mnemônicos, a memória musical, os tipos de aprendizagem e os processos associados às metodologias ativas em educação musical, discutiremos, no capítulo 4, como as experiências musicais podem atuar como um difusor das representações mentais e, com isso, promover as habilidades envolvidas no 11De acordo com Torrance, citado por Paynter (1999, p. 11), a criatividade é “a manifestação de um novo produto relacional, que, por um lado, nasce do caráter único do indivíduo, e por outro, dos materiais, acontecimentos, pessoas e circunstâncias de sua vida”. 23 processo de memorização e flexibilidade cognitiva de forma a orientar, alicerçar e auxiliar a performance musical no contexto de aprendizagem informal. 24 1. METODOLOGIA Para o desenvolvimento deste trabalho, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, de abordagem qualitativa, com o objetivo de investigar se os procedimentos desenvolvidos pelos métodos ativos de educação musical podem promover as habilidades envolvidas no processo de memorização e flexibilidade cognitiva no contexto de aprendizagem informal. A maioria das fontes foi investigada por meio da Internet, devido ao fechamento das bibliotecas, após o surgimento da pandemia do coronavírus, que ocorreu no começo da pesquisa, no ano de 2020. Alguns livros e materiais já haviam sido coletados no levantamento preliminar (realizado durante a graduação), e outros foram adquiridos de fontes diversas, tais como: biblioteca virtual das universidades federais e estaduais, JSTOR, Scielo, bancos de teses, anais da ABEM e SIMCAM, Revista Opus, PlosOne, PerMusi e Psychology of Music. Os principais termos pesquisados incluíram memória e música, memorização musical, métodos ativos em educação musical, diferença nos tipos de aprendizagem musical, práticas musicais informais, memorização de músicos populares e tipos de memória. A pesquisa se fundamenta em revisão narrativa da literatura, tendo como fontes principais textos que abordam os conceitos sobre memória: Izquierdo (2018), Lent (2010) e Baddeley (2011). Para expor as categorizações mnemônicas e sua relação com a música, foram apresentadas as fundamentações de Chaffin e Logan (2012); Snyder (2016 e 2001); Ericsson e Pool (2021); Sloboda (2008); Machado (2022); Barbacci (1965). A autora Hill (2018) foi uma descoberta que surgiu no decorrer da investigação, e inspirou a reflexão sobre os tipos de aprendizagem e sua influência na habilidade criativa. Quanto às fundamentações teóricas ligadas à aprendizagem musical formal, informal e não formal, prática musical, tradições orais e abordagens acerca dos métodos de ensino musical ativos em educação musical, foram consultados autores como: Fonterrada (2008); Mateiro e Ilari (2012); Brito (2015, 2011, 2003); Green (2002); Podestá (2013); Vitale (2011). Este trabalho foi realizado em duas etapas, em que a primeira consistiu em buscar fontes, que apresentassem a relação da memória com a música e com a aprendizagem musical, e o fichamento. Não foram encontrados textos em língua portuguesa de pesquisas realizadas no Brasil, relacionados à memória musical, o que 25 levou a uma busca mais específica da formação da memória no âmbito geral e seus tipos. Foi encontrada uma tradução em português do texto A memória e a execução musical de Chaffin et al, que serviu como guia para encontrar outras fontes a respeito de memória musical. Entre as referências, estavam outras pesquisas sobre memória e performance musical de Chaffin, que fomentaram a base desta pesquisa, com textos originais em inglês. Foram encontrados no Brasil, a respeito da memória humana, os livros: Memória (IZQUIERDO, 2018) e Memória (BADDELEY et al, 2011). Com a chegada de termos desconhecidos na área musical, a pesquisa avançou para termos técnicos abordados na anatomia humana, que foram disponibilizados pelos livros: Cem Bilhões de Neurônios (LENT, 2010) e Neuroanatomia Funcional (MACHADO, 2022). Isso ampliou a busca para a área de ciências biológicas, para que pudessem ser estudadas as zonas do cérebro envolvidas no processo de memorização. Aos poucos, foram delimitados os textos inerentes aos aspectos da memória, que pudessem auxiliar no entendimento geral dessa área. Depois de estudados os termos técnicos para as partes que compõem o cérebro, foram investigados quais os tipos de memória e como eles são desenvolvidos. Com isso, para cruzar com a memorização nas práticas musicais informais, foram analisadas como as experiências de musicistas poderiam influenciar nesse contexto. Ao observar os textos que envolveram a performance de músicos populares, que obtiveram a aprendizagem informal, como o livro Memória, Performance e Aprendizado Musical: Um processo Interligado, foi possível achar textos que aproximaram as práticas informais com as metodologias ativas em educação musical. Alguns livros foram consultados e fichados para essa abordagem: How popular musicians leran (GREEN, 2002) e Music and memory: an introduction (Snyder, 2001). Houve alguns critérios de seleção e exclusão dos textos, para que o fichamento e demais etapas fossem realizadas. Foram selecionados textos que explicavam as metodologias ativas em educação musical, para apresentar as bases dessa abordagem. Como exemplo os livros: De tramas e fios: um ensaio sobre música e educação (FONTERRADA, 2008), e Pedagogias em educação musical (MATEIRO e ILARI, 2012). Também foram selecionados os textos que se relacionavam com a memória na performance. Como fator de exclusão, foram descartados textos que abordavam a memória como fator histórico, ou como reminiscências da vida pessoal na formação dos músicos. Em relação aos métodos ativos, foram excluídos, a princípio, os educadores da 26 segunda geração. Todavia, alguns desses autores foram trazidos para a pesquisa, conforme o desenvolvimento das análises. Depois do levantamento das referências, decorreu a segunda etapa, que consistiu em uma análise, síntese e escrita da dissertação. Nessa etapa, alguns textos apresentaram ideias semelhantes, mas não havendo ligação direta entre eles. Ou seja, pode-se deduzir o cruzamento das ideias gerais a respeito da memória musical e como os tipos de aprendizagem podem influenciar nessa memorização, porém não há um autor que as unisse. Com isso, o trabalho trouxe as definições teóricas de memória, memória musical, tipos de aprendizagem e métodos ativos em educação musical, para apresentar uma reflexão sobre as ideias convergentes. 27 2. MEMÓRIA E MEMÓRIA MUSICAL 2.1. Apresentação dos conceitos da memória A memória é a aquisição, formação, conservação e evocação de informações que é gerada pelas experiências de humanos e animais (IZQUIERDO, 2018, p. 1). Ela envolve vários processos que se iniciam na vivência sensorial até chegar às estimulações nervosas que agem em determinados pontos do cérebro, fazendo com que essas novas informações se consolidem. Segundo Izquierdo (1989, p. 89), a aquisição de memórias denomina-se aprendizado e as experiências são “aqueles pontos intangíveis que chamamos presente”. Para ele, os pontos intangíveis são o tempo, que flui como um rio, que envolve o passado e o futuro, que é atravessado por um ponto denominado presente, no qual futuro (que não existe ainda) e passado (que existe somente em forma de memória) são as consequências de algo quase imaterial como é o presente. “Não há tempo sem um conceito de memória; não há presente sem um conceito do tempo; não há realidade sem memória e sem uma noção de presente, passado e futuro” (IZQUIERDO, 1989, p. 89). Em outros termos, não há memória sem aprendizado, nem aprendizado sem experiência, pois são o resultado do que, em algum momento em nossa vida, percebemos e sentimos. Essa, porém, não é a visão de Lent (2010, p. 644), que acredita que não se deva confundir memória com aprendizagem. Para esse autor, a aprendizagem está presente meramente no processo de aquisição das informações que serão armazenadas e não nos demais segmentos como aquisição, formação, conservação e evocação. A aquisição, portanto, é o recebimento da informação e do processo de aprendizagem; a formação é o ato de codificar a informação recebida; a conservação é o armazenamento; e a evocação é o resgate do que foi codificado. Lent (2010, p. 650) afirma que mediante a aprendizagem nos tornamos aptos a conduzir o comportamento e o pensamento. A memória, por sua vez, é o arquivamento seletivo dessas informações aprendidas, que podem ser evocadas no momento que quisermos, de maneira consciente ou inconsciente (p. 650). 28 A memória, em suas diversas formas, não é o único componente da cognição nem da inteligência; a percepção, o raciocínio e a criatividade desempenham funções no mínimo igualmente importantes (IZQUIERDO, 2018, p. 86). A afirmação de Izquierdo nos mostra também que há muito mais do que somente o componente mnemônico, relevante para a aprendizagem e armazenamento de informações, que serão abordados no âmbito da memória musical nos próximos segmentos, e que são inerentes ao desenvolvimento das memórias auditivas, semânticas e desempenho criativo. A percepção é o que vamos tratar como processo de discernir, distinguir, comparar e entender as informações recebidas pelos órgãos sensoriais (BRITO, 2011, p. 49). Lent (2010, p. 612) afirma que a percepção é a “capacidade de associar as informações sensoriais à memória e à cognição, de modo a formar conceitos sobre o mundo e sobre nós mesmos e orientar o nosso comportamento”. Ou seja, a mente percebe o que é sentido pelo corpo, analisa e reconstrói o objeto percebido como um todo, para ser memorizado ou reconhecido e, com isso, possa orientar nosso comportamento. Para Damásio (2012, p. 80), raciocínio é o “processo de pensamento orientado para um determinado fim”. Segundo o autor (p. 157), os termos raciocinar e decidir envolvem normalmente que se tenha conhecimento da situação que precisa de decisão, das distintas respostas e suas opções para uma possível ação e das consequências como resultados dessas ações. O raciocínio será visto como um processo de organização mental que permite a resolução de problemas. Apesar de distintas, aprendizagem e memória se agregam e se fundem no que se diz respeito às funções básicas na aquisição de conhecimentos, nos aspectos motor, verbal, visual, auditivo, lógico e emocional. Posto isso, não há aprendizado sem memória, pois eles caminham juntos no desenvolvimento cognitivo do indivíduo e envolvem todo o contexto em que eles estão inseridos no decorrer de sua jornada pela vida. Os estudos sobre a memória humana são relativamente recentes. O filósofo alemão Herman Ebbinghaus (1850-1909) foi o primeiro a demonstrar que era possível estudar o desenvolvimento mnemônico de forma experimental. Ele elaborou estudos que focavam nos princípios sobre como um novo aprendizado interagia com o que havia 29 sido adquirido anteriormente (BADDELEY, 2011, p. 16). Na década de 1920, o psicólogo experimental Karl Lashley (1890-1958) deu início a alguns modelos teóricos, elaborando um experimento para “medir” a memória de ratos em relação a animais expostos a lesões cerebrais. O que ele pretendia era encontrar a “unidade” teórica da memória, que ele chamou de engrama12. Porém, a conclusão de que a memória tinha localização distribuída no sistema nervoso e que as demais funções neurais necessitavam de localização e eram manifestadas em todas as regiões estava equivocada. Posteriormente, Donald Hebb (1904-1985), aluno de Lashley, levou adiante a ideia antilocalizacionista da memória. Para Hebb, ao perceber um evento, um indivíduo ativa alguns circuitos do neocórtex, que “representariam” o evento. Sua evocação seria a reativação dos circuitos que, repetidos, evocariam o evento com a ativação de alguns componentes. Resumidamente, a recordação de acontecimentos seria um resultado da estimulação dos circuitos que se configuram com as repetições, podendo ser concebidos no sistema nervoso através da visão, audição, sistema motor etc. Tudo isso dependeria das regiões envolvidas, de modo a ocorrer de maneira distribuída, sendo eles ligados a todos os circuitos neurais (LENT, 2010, p. 645 e 646). As bases conceituais da plasticidade sináptica, exploradas nos recentes estudos, foram elaboradas na década de 1940 por Hebb, quando presumiu que as conexões mais ativas eram fortalecidas e estabilizadas, ou seja, a ativação simultânea das células pós- sinápticas de maneira repetitiva pode aumentar a eficácia e prover mudanças na força sináptica dessas células (LENT, 2010, p. 646). A plasticidade é a capacidade de se moldar, se transformar, devido às ações de elementos externos (OLIVEIRA, 1997, p. 24). A neuroplasticidade, então, está ligada às adaptações do sistema nervoso, em especial dos neurônios. Plasticidade é o conjunto de processos fisiológicos, em nível celular e molecular, que explica a capacidade das células nervosas de mudar suas respostas a determinados estímulos (IZQUIERDO, 2018, p. 44). 12O engrama é a “unidade física da memória, de natureza ainda desconhecida, como se fosse o arquivo cerebral correspondente a um fato, pessoa, objeto, história, ou qualquer outro item memorizado” (LENT, 2010, p. 676). 30 Isto é, uma acomodação oriunda das respostas aos estímulos em função de experiências, que pode se manifestar em diversas formas. Uma delas é a plasticidade sináptica, que se trata do “aumento ou diminuição, prolongados ou permanentes, da eficácia da transmissão sináptica, e pode resultar na estabilização das sinapses existentes, e até mesmo na formação de novas sinapses” e pode ser a base celular e molecular de alguns tipos de memória das pessoas adultas (LENT, 2010, p. 148). As experiências proporcionadas na vida das pessoas envolvem múltiplas áreas do cérebro e conduzem a memória, formando a representação mental. Segundo Ericsson e Pool (2021, p. 78-80), a representação mental é, essencialmente, um conjunto de informações que formam padrões preexistentes. Segundo Ericsson e Pool: Em qualquer área, não apenas na execução musical, a relação entre habilidade e representações mentais é um círculo virtuoso: quanto mais habilidoso você se torna, melhores são suas representações mentais, e quanto melhores forem suas representações mentais, mais eficientemente você pode praticar para aprimorar sua habilidade (2021, p. 96). Esses padrões partem de práticas deliberadas, que são atividades e estratégias de estudo, que demandam esforço e ações conscientes, com objetivos bem definidos, visando uma melhora das habilidades previamente adquiridas (p. 113-114). Os padrões, então, são processados rapidamente, de modo a formar uma estrutura conceitual organizada para auxiliar os refreamentos da memória de curto prazo. Essa estrutura codifica memórias com significado, transformando e associando a memória de longo prazo e recuperando-a com as estruturas criadas, o que permite a tomada de decisões de forma mais assertiva e mais ágil, além de poder auxiliar na aprendizagem de novos elementos (p. 93). Com o desenvolvimento dos computadores, entre as décadas de 1950 e 1960, surgiu a psicologia cognitiva que, no âmbito da memória, almejava distinguir os processos de codificação, armazenamento de informações e evocação. A codificação concerne à conversão dos dados adquiridos, ou seja, organiza as informações sensoriais recebidas. O armazenamento refere-se ao registro e acomodação das informações codificadas. Já a evocação é o resgate ou recuperação do que foi armazenado na memória, trazida para o consciente. Como resultado dessa distinção dos processos de 31 memorização, segundo Baddeley (2011, p. 29), as memórias foram apresentadas em três tipos: memória sensorial, memória de curta duração e memória de longa duração. Esses conceitos serão abordados nas seções a seguir. Atualmente, com o progresso das novas tecnologias, o estudo das atividades elétricas do cérebro envolve o uso de métodos de eletrodos na calota craniana (EEG e ERP) e a tomografia por emissão de pósitrons (PET), que vem sendo substituída pela ressonância magnética funcional (fMRI) e pelo magneto encefalograma (MEG), técnicas estas menos invasivas. Alguns aspectos dos processos mentais envolvidos na memória serão apresentados a seguir, com o intuito de apontar algumas abordagens sobre tipos de memória que serão observados no decorrer do presente trabalho. 2.1.1. O cérebro e a memória Os neurônios são células com estruturas adequadas para transmissão e processamento de sinais do sistema nervoso, com a atuação dos gliócitos13, e que se comunicam através de sinapses. Assim, o sistema nervoso cria um contato entre dois neurônios ou entre um neurônio e uma célula muscular, sendo capaz de transmitir, bloquear e até modificar mensagens entre as células. Isso ocorre em função da produção, do armazenamento, da evocação e da articulação da memória animal (LENT, 2010, p. 4; IZQUIERDO, 2018, p. 4). A Figura 1 ilustra os elementos que compõem os neurônios: 13Gliócito é uma das células responsáveis pela constituição do sistema nervoso e pertence à família de células que conjuntamente são denominadas neuroglia, cuja função é dar infraestrutura e processar a informação, construindo tecidos nervosos, nutrindo, sustentando, agindo como célula imunitária e controlando o metabolismo dos neurônios, regulando assim a transmissão sináptica (LENT, 2010, p. 4). 32 Fonte: - IZQUIERDO (2018, p. 6). Nos neurônios encontram-se prolongamentos que funcionam como antenas e que estabelecem redes que se comunicam umas com as outras. Os prolongamentos longos que emitem informação em forma de sinais elétricos a pontos distantes são chamados de axônios. Tratam-se de fibras principais de saída da informação. Já os prolongamentos próximos ao corpo celular, em que os axônios colocam essa informação, atuam como fibras de entrada. Estes são chamados de dendritos. Axônios e dendritos habitam o Figura 1 - Esquema de um neurônio 33 corpo celular dos neurônios e se agrupam em localidades restritas no sistema nervoso, formando grandes conjuntos com funções distintas (LENT, 2010, p. 4; IZQUIERDO, 2018, p. 4; DAMÁSIO, 2012, p. 46). A capacidade dos neurônios de recebimento de informações de terminações dos axônios é maior que a de emissão. Os neurônios recebem aproximadamente 10 mil terminações de axônios, provenientes de outros neurônios, enviando apenas um axônio, que se ramifica em no máximo 20 vezes, ou seja, recebem mais informações de outros neurônios do que retransmitem (IZQUIERDO, 2018, p. 5 e 6). Damásio (2012, p. 47) relata a ativação dos neurônios como “disparo” no dialeto neurocientífico. Essa ativação é que transmite uma corrente elétrica que passa do corpo celular ao axônio, cuja capacidade de ação alcança a sinapse. Esse movimento libera os neurotransmissores, que são elementos químicos, que atuam consequentemente nos receptores. As sinapses, que são pequenos espaços entre as células, têm a capacidade de inibir ou estimular a comunicação entre os neurônios, liberando os neurotransmissores. Entre os principais elementos químicos que os compõem, alguns têm efeitos excitatórios, como o glutamato e a noradrenalina, enquanto outros têm efeitos inibitórios, como o GABA (ácido gama-aminobutírico) e a serotonina, e outros podem criar efeitos excitatórios e inibitórios, como a dopamina e a acetilcolina (DAMÁSIO, 2012). Segundo Izquierdo (2018, p. 7), as moléculas glutamato, GABA, dopamina, noradrenalina, serotonina e acetilcolina, citadas acima, formam os neurotransmissores fundamentais que abrangem os processos de memória. Durante a presente pesquisa, o conhecimento de algumas áreas do cérebro se mostrou importante para a compreensão da memória. Segundo Lent (2010, p. 672) e Machado (2022, p. 259 e 260), a memória é uma função disposta em amplas regiões neurais, como o hipocampo, giro denteado, córtex entorrinal, amígdala, área pré-frontal dorsolateral, córtex para-hipocampal, áreas de associação do neocórtex, áreas diencefálicas relacionadas com a memória e regiões moduladoras da formação de memórias. Essas áreas se apresentam na Figura 2 abaixo e serão brevemente explanadas a seguir, sem aprofundamento, pois não é o objetivo deste trabalho. 34 Figura 2 - Parte do lobo temporal esquerdo Fonte: MACHADO, 2022, p. 58 35 O hipocampo era chamado de corno de Ammom14 (CA), e se trata de “uma eminência alongada e curva, situada no assoalho do corpo inferior do ventrículo lateral acima do giro para-hipocampal” (MACHADO, 2022, p. 259). Em outros termos, é uma parte curva, próxima da amígdala, na parte interna do cérebro, que faz parte no processo de formação de novas memórias. Está relacionado também com o sistema límbico, ligado às emoções15 e responsável também pela memória espacial. Atua por meio do córtex entorrinal, ao receber aferências16 de inúmeras áreas neocorticais. Trata-se de uma estrutura que atua na regulação comportamental, aprendizado e memória. Coordena a consolidação17 dos engramas da memória explícita, sem armazená-los, organiza as novas informações e conecta as emoções às memórias (MACHADO, 2022, p. 259; LENT, 2010, p. 664). Em resumo, essa área do cérebro está relacionada com o movimento da memória de curto prazo para a memorização em longo prazo, numa espécie de memória de médio prazo, em que: a) faz associações entre as diversas informações sensoriais, recebidas pelo corpo através dos sentidos – visão, olfato, audição etc.; b) seleciona quais dessas informações recebidas pelos sentidos serão relevantes ou não, para filtrar o que será enviado para a memória de longo prazo; c) oferece um senso de localização espacial. O giro denteado está localizado entre a área entorrinal e o hipocampo, nos quais possui ligações neurais, e é encarregado pela dimensão temporal da memória. Machado (2022, p. 259) apresenta, como exemplo dessa dimensão temporal, o fato de identificarmos se a data de um evento, como nosso casamento, se foi antes ou depois de nossa formatura. Córtex entorrinal é uma região do cérebro localizada no lobo temporal medial, e geralmente é a primeira a ser comprometida na doença de Alzheimer18. Tem como função a abertura para o hipocampo, isto é, recebe várias conexões, vindas do giro denteado, para formar um elo de transmissão para o hipocampo (MACHADO, 2022, p. 259; LENT, 2010, p. 667). 14Em referência ao deus egípcio Amon, cuja representação parece com um chifre, o qual os antigos anatomistas associaram ao hipocampo (LENT, 2010, p. 170). 15As emoções são experiências interiores subjetivas, acompanhadas de manifestações fisiológicas e comportamentais (LENT, 2010, p. 715). 16Levam os impulsos nervosos dos receptores periféricos até o sistema nervoso central (MACHADO, 2022, p. 265). 17Processo em que são fixados os conteúdos na memória de longa duração e que ocorre após a aquisição de informações (IZQUIERDO, 2018, p. 23). 18Doença degenerativa, que causa perda gradual da memória de trabalho e de curta duração (MACHADO, 2022, p. 262). 36 A amígdala, igualmente denominada de corpo amigdaloide19, atua como modulador emocional das memórias processadas no hipocampo e em áreas vizinhas. Além disso, ela é capaz de armazenar memórias emocionais e reconhecer as emoções expressadas por outros indivíduos (MACHADO, 2022, p. 260; LENT, 2010, p. 670). Está localizada no lobo temporal medial, próximo ao hipocampo, e é constituída por um complexo de núcleos (LENT, 2010, p. 670). Ela é o principal órgão do sistema límbico, estrutura inerente às emoções e à memória. Em suma, amígdala é o agente essencial para processar e desencadear as emoções. As emoções podem ser definidas como sentimentos subjetivos, positivos ou negativos, que desencadeiam manifestações fisiológicas, comportamentais e de muitos tipos de estados mentais, que atuam como motivadores essenciais para a sobrevivência da espécie (MACHADO, 2022, p. 249 e 250; SPRINGER e DEUTSCH, 2008, p. 225). Embora a etimologia da palavra emoção seja “movimento para fora”, para Damásio (2012, p. 135): [...] emoção é a combinação de um processo avaliatório mental, simples ou complexo, com respostas dispositivas a esse processo, em sua maioria dirigidas ao corpo propriamente dito, resultando num estado emocional do corpo, mas também dirigidas ao próprio cérebro (núcleos neurotransmissores no tronco cerebral), resultando em alterações mentais adicionais (DAMÁSIO, 2012, p. 135). O autor considera que há outras transformações no estado do corpo de um indivíduo que são notadas apenas por ele mesmo. Ou seja, não se trata apenas de mudanças corporais, as quais passam para os órgãos mediante as terminações das células nervosas, perceptíveis a outras pessoas, por serem externas. Todavia, existem manifestações internas que são percebidas somente pelo indivíduo. Outra região, que faz parte do sistema límbico, é o córtex cingulado anterior. Nessa área, ocorre a interação entre os sistemas encarregados pelas emoções e sentimentos, atenção e memória de trabalho. Essa interação ocorre de maneira tão específica que forma tanto a fonte de energia para a ação externa, que se trata do movimento, quanto para a ação interna, que concerne ao raciocínio (DAMÁSIO, 2012, p. 81). 19Área distinta da amígdala palatina, localizada na laringe. 37 As áreas diencefálicas relacionadas com a memória são os corpos mamilares do hipotálamo. Segundo Machado (2022, p. 260), essas estruturas integram o circuito de Papez20, que está relacionado com o processamento de emoções. Por sua vez, as emoções fazem parte das regiões moduladoras da formação de memórias, assim como a parte basolateral da amígdala e os núcleos dopaminérgicos. A Figura 3 abaixo apresenta o circuito de Papez: Figura 3 - Circuito de Papez - Sistema límbico Fonte: Machado (2022). No circuito de Papez, representado pela Figura 3 acima, é possível identificar a estrutura que contorna as formações inter-hemisféricas, que, somadas à amígdala e à área septal, são responsáveis pelas emoções e formam o sistema límbico21. O circuito de Papez é composto por um mecanismo que conecta um conjunto de regiões associadas de modo circular. Esse modo circular forma uma rede neural que passa pelo hipocampo, 20Refere-se ao circuito criado pelo anatomista James Papez (1883-1958), que converteu a ideia de centros isolados de coordenação emocional para o conceito de conjunto de regiões associadas de modo circular. Mais tarde, Papez aproveitou o termo criado por Paul Broca, e seu circuito passou a ser conhecido como sistema límbico. 21O termo sistema límbico foi introduzido por MacLean em 1952, que somou as estruturas da amígdala e da área septal ao circuito de Papez. 38 fórnice, corpo mamilar, fascículo mamilotalâmico, núcleos anteriores do tálamo, cápsula interna, giro do cíngulo, giro para-hipocampal e retorna ao hipocampo, que fecha o circuito. Contudo, para a formação do sistema límbico, algumas estruturas foram incluídas, como a amígdala, que se trata do centro desse sistema, e a área septal, que se liga ao hipotálamo (MACHADO, 2022, p. 199 e 249; LENT, 2010, p. 720). Área pré-frontal dorsolateral é uma subárea da área pré-frontal22, que se localiza na superfície anterior e dorsolateral do lobo frontal (MACHADO, 2022, p. 241). A Figura 4 apresenta a localização do córtex pré-frontal: Figura 4 - Córtex pré-frontal Fonte: Lent (2010). Para Machado (2022, p. 241), é nessa região que se realiza o processamento da memória operacional, e é um circuito igualmente importante para as funções executivas. Segundo o autor, as funções executivas envolvem a execução de estratégias comportamentais das ações, como planejamento e organização, solução de problemas e avaliação das consequências (MACHADO, 2022, p. 241). 22Área desenvolvida na evolução dos mamíferos, que possui conexões com praticamente todas as áreas do encéfalo. Tais conexões possibilitam operar nas funções coordenadoras das funções neurais e, com isso, constituir a base do nosso comportamento inteligente (MACHADO, 2022, p. 240 e 241). 39 O córtex para-hipocampal está situado na parte posterior do giro para- hipocampal e é responsável pela memorização de novos cenários, pois é ativado pela visão de novas paisagens, como uma rua, ou cenas ainda não conhecidas pelos indivíduos (MACHADO, 2022, p. 260). Áreas de associação do neocórtex são regiões mais externas do cérebro, onde são armazenadas as memórias de longa duração. Essas ainda são áreas que necessitam de mais estudos, e que, segundo Machado (2022, p. 260), suas interações com o hipocampo ainda são objeto de pesquisas. As áreas do neocórtex, que se encontram em diferentes categorias de conhecimento, se referem à parte evolutivamente moderna do cérebro, que é característica dos mamíferos (DAMÁSIO, 2012, p. 45; LENT, 2010, p. 364). Após essa apresentação de algumas estruturas do cérebro, com a finalidade de localizarmos e entendermos termos importantes para a memória, serão abordados a seguir os tipos de memória e suas características. 2.1.2. Tipos de memória Nesta seção, será apresentado um breve panorama dos tipos de memória. Isso será possível a partir de um levantamento bibliográfico que pretende abranger conceitos e fundamentações nos diversos tipos de memória encontrados no decorrer da presente pesquisa. Dessa forma, acredita-se ser possível construir uma base que possibilite fazer uma análise relacionada com a aprendizagem, performance e memória dos musicistas, que será apresentada no decorrer do trabalho. Lent (2010, p. 649) classifica as memórias quanto ao tempo de duração (memória ultrarrápida ou imediata, memória de curta duração e memória de longa duração) e quanto à sua natureza (memória explícita ou declarativa, memória episódica, memória semântica, memória implícita ou não declarativa, memória de representação perceptual, memória associativa, memória não associativa e memória operacional ou memória de trabalho). Podemos observar, na Tabela 1 abaixo, as características de cada tipo de memória, segundo a visão de Lent: 40 Tabela 1 - Tipos de Memórias Tipos e Subtipos Características Quanto ao tempo de retenção Ultrarrápida ou memória sensorial De frações de segundos a alguns segundos de duração Curta duração Dura minutos ou horas; noção do presente momento Longa duração Dura por horas, dias ou anos; registro do passado autobiográfico e dos conhecimentos do indivíduo Quanto à natureza Explícita ou declarativa Pode ser descrita por meio de palavras e outros símbolos Episódica Contempla uma referência temporal a partir de fatos sequenciados Semântica Conceitos atemporais, relacionados a uma memória referentes aos aspectos da cultura do indivíduo: memória cultural Implícita ou não declarativa Não descrita por meio de palavras De representação perceptual Representa imagens sem significado conhecido: memória pré-consciente De procedimento Refere-se aos hábitos, habilidades e regras Associativa Associa dois ou mais estímulos (condicionamento clássico), ou estímulo a uma certa resposta (condicionamento operante) Não associativa Atenua a resposta (habituação) ou aumenta a (sensibilização) através da repetição de um mesmo estímulo Operacional ou memória de trabalho Permite o raciocínio e o planejamento do comportamento Fonte: LENT (2010, p. 650). 41 Para Lent (2010, p. 646 e 647), os processos mnemônicos se iniciam na aquisição, sendo essa a entrada de um acontecimento (objeto, emoção, pensamento, som etc.) no neurossistema, oriundo do mundo externo e concebido mediante os sentidos para o interior dos indivíduos. Observe a Figura 5, que representa os processos de memorização, de acordo com Lent: Fonte: Lent (2010). Figura 5- Processos de memorização baseados em Lent 42 Durante a aquisição, proveniente dos eventos externos e perante a quantidade e complexidade desses eventos, transcorre a seleção, que abrange alguns aspectos mais significativos e marcantes para a mente. Os estímulos de eventos internos do cérebro também são importantes nessa fase, e envolvem emoções ou sentimentos, dedução e associação de ideias, que podem modular as memórias das informações recebidas. Em seguida, ocorre o processo de retenção, que é temporária na maioria das vezes e disponibiliza a lembrança dos aspectos selecionados de cada evento. É necessário que haja a repetição da informação para que essa não desvaneça. Com o decorrer do tempo, esses aspectos podem desaparecer, caracterizando um processo de esquecimento, sendo esse o agente limitante do tempo de retenção, causado pela não utilização de cada evento. A consolidação, por sua vez, é caracterizada pela permanência dos eventos na memória, de forma prolongada, e muitas vezes por toda a vida. Por fim, o derradeiro processo mnemônico é a evocação, que é a maneira na qual acessamos a informação armazenada para mentalizá-la e exteriorizá-la em comportamentos. Izquierdo (2018) e Machado (2022) classificam as memórias de acordo com sua função (memória de trabalho ou operacional), com o tempo que duram (memória de curto prazo e memória de longo prazo) e com seu conteúdo (as memórias declarativas − explícitas − e procedurais ou de procedimento − implícitas). Os autores trazem, também, as memórias associativas e não associativas e o priming. Vejamos os processos de memorização baseados nas leituras de Izquierdo (2018) e Braz (2013) na Figura 6: 43 Figura 6 - Processos de memorização Fonte: Baseada em Izquierdo (2018) e Braz (2013). A memorização ocorre por processos que levam a uma organização mental, que se inicia com um primeiro contato, oriundo da recepção da informação pela memória ultrarrápida (sensorial). Essa informação é recebida pelos estímulos externos, provenientes da visão, audição, tato, e dura apenas alguns segundos, o suficiente para ser analisada pela memória de trabalho, que manipula, evoca e compara as informações Informação Memória sensorial Memória de trabalho Processada Memória de Curto Prazo Não Processada Descartada Processada Memória de Longo Prazo Memória de Longo Prazo Memória Não Declarativa Procedimental Emocional Memória Declarativa Semântica Episódica Não Processada Descartada 44 recebidas com as informações já adquiridas, formadas e conservadas nas memórias preexistentes − de curta e longa duração, declarativas e não declarativas (IZQUIERDO, 2018, p. 53). A memória de trabalho é quem decide o que iremos recordar ou descartar, e o que iremos fazer a seguir, ou se é algo que pode comprometer nossa sobrevivência. A partir de então, irá se iniciar o processo de retenção, formando arquivos na memória de curto prazo e para a memória de longo prazo. As memórias de curto e de longo prazo seguirão por caminhos paralelos e independentes até a sua consolidação. Na fase de aquisição, algumas informações serão mantidas na memória de curto prazo, para a realização de alguma tarefa presente, podendo se encaminhar para a memória de longa duração, caso esta seja processada. O processamento da memória de curta duração pode ser realizado por repetições para armazenamento e posterior evocação (MACHADO, 2022, p. 258, IZQUIERDO, 2018, p. 54 e 55). Baddeley (2011, p. 18), contudo, afirma que a questão de tipos de memória ainda é controversa. Para o autor, deveríamos pensar em termos de estruturas como local de armazenamento e de processos. Portanto, o autor aborda sistemas separados de memória sensorial, de curta duração e de longa duração, que podem ser subdivididos em componentes delimitados. Nas seções seguintes, serão abordados os tipos de memória, como parte da pesquisa desenvolvida na presente dissertação, com fundamentação de Lent (2010), Baddeley (2011), Izquierdo (2018) e Machado (2022). Memória sensorial A memória sensorial, segundo Baddeley (2011, p. 19), é mais compatível com a ideia de percepção da realidade dos sentidos do que com a classificação dos tipos de memória. Ela se trata de uma memória ultrarrápida, que está relacionada com a recepção dos estímulos externos e se apresenta na aquisição de informações. Um exemplo dessa memória pode ser descrito com o que ocorre durante uma conversa. No momento em que falamos, para darmos continuidade a uma frase, precisamos estar cientes da palavra anterior para que a próxima palavra faça sentido. Para isso, retemos cada palavra anterior por alguns segundos, para que as seguintes possam ter conexão. Essa retenção ocorrerá em tempo suficiente para que a conversa seja realizada, sendo assim ainda mais imediata que a memória de curta duração, e 45 desaparece logo que concluirmos o que queremos expressar. Esse desaparecimento é denominado decaimento (LENT, 2010, p. 656). É por meio dessa memória que captamos os estímulos externos, de maneira não consciente. Lent (2010, p. 656) afirma que a memória sensorial é configurada como pré- consciente. Para o autor, os eventos externos incidem sobre o sistema nervoso por meio dos sentidos e, supostamente, os processos mnemônicos ocorrem preliminarmente nos sistemas sensoriais. Quando o recebimento do estímulo decorre de uma informação visual, o termo adotado é memória icônica23: no entanto, quando provem de um evento auditivo, é chamado de memória ecoica24, que está relacionada â memória sensorial auditiva (BADDELEY, 2011, p. 19-21; LENT, 2010, p. 656). Baddeley (2011, p. 21) expõe que, ao solicitar que uma pessoa se lembre de um número de telefone longo, há uma diferença na retenção, de acordo com o estímulo utilizado, caso seja lido ou ouvido. Segundo o autor, há uma maior probabilidade de erro com a apresentação visual do que com a auditiva. De acordo com Lent (2010, p. 656), testes de relato parcial mostraram que a memória ecoica se prolonga por mais tempo que a icônica, uma vez que é necessário mais tempo para processarmos os sons verbais para compreender o que nos falam. Seguidamente ao processo de entrada das informações, provenientes da memória sensorial, a memória de trabalho vai gerenciar o que foi recebido e fará todo um processo, que será apresentado na seção a seguir. Memória de trabalho ou operacional A memória de trabalho, ou operacional, possui processamento breve e fugaz. Ela pode ser considerada como um sistema gerenciador central, que mantém a informação por tempo suficiente para ser manipulada. Esse sistema pode ou não entrar na memória consolidada e, caso não se consolide, pode não deixar traços neuroquímicos, pois depende fundamentalmente de atividade elétrica dos neurônios do córtex pré-frontal e do hipocampo (IZQUIERDO, 2018, p. 14 e15). Para Baddeley (2011, p. 22), esse tipo de memória se constitui em um sistema para manutenção e manipulação temporária das 23Referente a ícone, que significa símbolo, imagem (LENT, 2010, p. 656). 24Referente a eco, que quer dizer som repetido (LENT, 2010, p. 656). 46 informações, preparado para explorar outros recursos dentro das memórias de curta e longa duração. Para Lent (2010, p. 650), esse armazenamento temporário é útil para o raciocínio imediato e a resolução de problemas, ou na elaboração de comportamentos. Esse tipo de memória nos interessa particularmente no que se refere à memória auditiva que, segundo Leão (2013, p. 97), é importante para a criação de estruturas e procedimentos envolvidos na execução, percepção e apreciação musical, que serão abordados no decorrer desta pesquisa. Machado (2022, p. 257) explica que esse tipo de memória atua para gerenciar nosso contato com a realidade, já que permite dar sequência a um raciocínio, entender e responder perguntas, memorizar uma frase lida para ler a frase seguinte, memorizar um número até discá-lo. A função gerenciadora desse tipo de memória funciona primeiramente como uma triagem, na qual, ao receber uma informação ou estímulo externo, é averiguado se se trata de um material novo ou não. Após essa verificação, que decorre de um acesso imediato às memórias preexistentes, é constatado se a informação é ou não útil ou conhecida para, a partir de então, combinar o processamento de informações que o sujeito já concebeu com o armazenamento de novos materiais. Isso é feito de maneira temporária, imediata, ao se executar tarefas complexas, de modo a manipular as informações adquiridas, e regular o comportamento e o raciocínio. O processamento da memória operacional demanda atividade elétrica de neurônios, que percorrem pelos axônios, liberando neurotransmissores sobre proteínas receptoras dos neurônios subsequentes ao alcançarem suas extremidades. Esse processamento interpreta a bioquímica da informação processada, que ocorre fundamentalmente no córtex pré-frontal anterolateral e órbito-frontal e apresenta conexões com a amígdala basolateral e o hipocampo mediante o córtex entorrinal (IZQUIERDO, 2018, p. 14). A Figura 7 mostra a localização do córtex pré-frontal, da amígdala, do hipocampo e do córtex entorrinal: 47 Figura 7 - Córtex pré-frontal, amígdala, hipocampo e córtex entorrinal. Fonte: LENT (2010, p. 667). Segundo Izquierdo (2018, p. 15), as regiões do cérebro responsáveis pelos estados de ânimo, níveis de consciência e emoções levam axônios ao córtex pré-frontal que liberam os neurotransmissores25, modulando assim as células do lobo frontal responsáveis pela memória de trabalho, o que pode ser afetada, caso alguma adversidade ocorra. Essa memória está ligada às funções executivas (FE), que se constituem em uma associação de habilidades mentais de alta ordem26: 25A memória de trabalho tem como principais neurotransmissores a acetilcolina e a dopamina, que agem no córtex pré-frontal anterolateral (IZQUIERDO, 2018, p. 15). 26Trata-se da inteligência fluida, que envolve capacidade de raciocinar, resolver problemas e relacionar padrões (DIAMOND, 2013, p. 151). 48 As Funções Executivas (FE) abrangem vários processos cognitivos que permitem comportamento independente e autorregulado. Essas construções cognitivas incluem inibição, resolução de problemas, comportamento direcionado a objetivos e manutenção de informações na memória de trabalho. Outro componente da FE é a flexibilidade cognitiva, a capacidade de se ajustar a demandas de tarefas novas ou em mudança, que geralmente são capturadas através de um projeto de troca de tarefas (ZUK, 2014, p. 1, tradução nossa). Izquierdo (2018, p. 17) afirma que a memória operacional permite o ajuste fino do comportamento, uma vez que uma falha nesse sistema prejudicaria o julgamento e a nossa percepção da realidade, que é fundamental para nossa sobrevivência. Além de determinar se uma informação é nova ou não, a memória de trabalho verifica se ela é útil ou maléfica para o organismo dos indivíduos. Em conjunto com os demais sistemas mnemônicos, a memória de trabalho associa as relações da informação recente com as experiências já adquiridas e consolidadas (IZQUIERDO, 2018, p. 15). Essas experiências se tornam uma espécie de referência para algo novo, buscando semelhanças. Um exemplo disso é descrito por Izquierdo (2018, p.15), quando, ao observar um inseto desconhecido pela primeira vez, o córtex entorrinal procura, na base da memória, outras características semelhantes. Essas semelhanças envolvem cor, tamanho e forma. Com isso, relaciona-se com as experiências do observador e, caso não exista registro de seres semelhantes que sejam perigosos, ele poderá adotar uma atitude de indiferença ou de contemplação. A memória de trabalho não é essencial para o armazenamento de longa duração e, também, é dissociada da memória explícita de longa duração, pois ambas as memórias operam em regiões cerebrais distintas (LENT, 2010, p. 658). A Figura 8 ilustra as múltiplas relações entre a memória de trabalho e as demais memórias na visão de Lent: 49 Figura 8 - Relação da memória de trabalho com as demais memórias Fonte: Lent (2010, p. 658). Segundo Lent (2010, p. 656 e 658), acreditava-se que as informações passavam primeiramente pela memória de curta duração para depois alcançarem a memória de longa duração, em um processo linear. Para o autor, verificou-se que essa concepção mudou e o que se sabe é que o percurso da informação parte da chegada, seguindo caminhos paralelos na seleção e no esquecimento. Apenas parte das informações que chegam será processada pela memória de trabalho. Outro ponto importante da memória operacional apontado por Lent (2010, p. 658) é que ela é composta por um componente executivo central e dois componentes de apoio. O componente executivo central envolve diferentes áreas do córtex pré-frontal e controla quais informações devem entrar para os componentes de apoio. Já os componentes de apoio são compostos de um visuoespacial e outro fonológico. Estes agem na retenção das informações, por vias sensoriais visuais e auditivas. Portanto, a memória de trabalho alcança as outras áreas do córtex cerebral, do córtex entorrinal, da amígdala, do córtex parietal superior, do cingulado e do hipocampo (MACHADO, 2022, p. 257), atribuídas pelas memórias de curto prazo e longo prazo, que serão apresentadas na próxima seção. 50 Memória de curto prazo e longo prazo Conforme sua duração, a memória pode ser classificada como de curto e de longo prazo. Ambas envolvem processos paralelos e independentes, em que a memória de curta duração tem como base fundamental as alterações bioquímicas, e a memória de longa duração abrange as transformações sinápticas. Ou seja, a memória de curto prazo não se trata de uma fase inicial da memória de longo prazo, pois necessitam das mesmas estruturas nervosas, porém com mecanismos próprios e distintos (MACHADO, 2022, p. 258; IZQUIERDO, 2018, p. 23 e 24). Para Lent, (2010, p. 649), a memória de curta duração dura minutos ou horas e serve para proporcionar a continuidade do nosso sentido do presente. Em outras palavras, esse tipo de memória tem capacidade e tempo limitados, de modo a durar o tempo suficiente para a consolidação das memórias de longa duração e gerencia nosso contato com a realidade. É como construir um castelo na areia da praia, que dura o tempo suficiente para que possamos apreciá-lo, mas é apagado de acordo com a chegada das ondas. Ao contrário da memória de longo prazo, que seria o mesmo castelo construído por pedras, que duraria mais tempo, mas, também, levaria mais tempo para ser construído. Outro exemplo seria memorizar uma sequência de número de telefone, para que possa ser discado no momento presente. Ao realizar e concluir a ligação, os números vão desaparecer, permanecendo somente o tempo necessário para que se pudesse discar, ou para que possam ser salvos em algum registro. Segundo Izquierdo (2018, p. 57) o papel da memória de curta duração é servir como uma memória efêmera da memória principal, para que o indivíduo possa ler, manter conversas e dar sequência a episódios no momento presente. Ela mantém a informação circulando em forma de arquivos nas estruturas do cérebro, até que seja consolidada ou não pela memória de longa duração. Por formar arquivos, essa memória se diferencia da memória de trabalho. Por sua vez, a memória de trabalho não deixa registros, pois faz análise e comparação das informações que chegam com aquelas já arquivadas. No entanto, na memória de curto prazo não há um processo de gerenciamento ou análise das informações, como na memória de trabalho. O que ocorre de diferente na memória de curta duração é a formação de arquivos e bases bioquímicas. Esse tipo de memória permite a retenção das informações durante uma ação, que permanecem até que sejam armazenadas na memória de longo prazo (MACHADO, 2022, p. 258; IZQUIERDO, 2018, p. 53). 51 Para Izquierdo (2018, p. 23 e 31), as memórias não são assimiladas de maneira instantânea. Até que se consolidem, elas são suscetíveis a interferências, modificações e a perdas durante o processo de aquisição de novas memórias. Estresse, que gera hormônios como corticoides e adrenalina, traumas, o consumo de substâncias ou o fato de surgirem outras memórias podem deturpar ou cancelar a consolidação das memórias de longo prazo. Nos primeiros momentos da formação das memórias, que podem ocorrer durante ou após o processo de aquisição, as regiões cerebrais que atuam são o hipocampo, o giro denteado, a amígdala basolateral e outras regiões corticais. Nessa fase inicial, o hipocampo tem o envolvimento mais fundamental, até a consolidação. Na fase de evocação, que se trata do resgate das memórias, o hipocampo participa também, porém as outras áreas corticais, citadas acima, são mais necessárias (p. 33). As memórias de curto prazo e de longo prazo dependem do hipocampo, que atua como uma espécie de catalisador, e de outras estruturas encefálicas. Dependem igualmente da memória de trabalho e de um bom funcionamento do córtex pré-frontal, que processa as informações previamente, para determinar quais e quantas informações serão estabelecidas ou não nos sistemas de curta e longa duração (MACHADO, 2022, p. 258; IZQUIERDO, 2018, p. 55). A outra classificação de memória, que estabelece traços duradouros (dias, semanas e até mesmo anos) é denominada memória de longa duração. Por apresentar uma maior capacidade de informações registradas, ela requer mecanismos mais complexos, o que leva mais tempo para que as informações sejam arraigadas. Para Lima (2013, p. 32), as memórias de longa duração ficam conservadas em sinapses, modificadas após a consolidação, que ocorrem em inúmeras áreas do cérebro, a princípio no hipocampo, local onde são registradas a maior parte das memórias. Depois de alguns dias, “cópias” dessas memórias são transferidas e consolidadas em outras regiões, como córtex pré-frontal, córtex entorrinal e parietal, enquanto a memória original é apagada gradualmente do hipocampo (p. 32). Sua formação requer processos metabólicos no hipocampo e em outras estruturas, por volta de três a seis horas, o que, para Izquierdo (2010, p. 31), torna as memórias de longa duração lábeis, até que sejam consolidadas. No entanto, o autor afirma que as memórias de longa duração podem durar dois ou três dias, semanas, ou anos após a consolidação, a depender de um fator que pode regular a persistência das memórias: o “alerta emocional” (p. 59). De acordo com Izquierdo, uma forte 52 intensidade no alerta emocional influencia na maior permanência de tempo e detalhes das reminiscências. Em resumo, a memória de longa duração serve para armazenar informações por longos intervalos de tempo, e se divide em dois grupos, que são as memórias declarativas e as memórias não declarativas, que serão abordadas a seguir. Memórias declarativas (explícitas) e não declarativas (implícitas ou procedurais) Quanto ao conteúdo, Izquierdo (2018, p. 17) classifica as memórias como declarativas (explícitas) e não declarativas (implícitas ou procedurais), por registrarem fatos, acontecimentos ou conhecimentos. Segundo Baddeley (2011, p. 22), ambas fazem parte das memórias de longo prazo, como apresentado na Figura 9 a seguir. Fonte: Baddeley (2011, p. 22). O autor usa a classificação proposta pelo pesquisador Larry Ryan Squire, que faz uma distinção entre as memórias explícitas e implícitas, provenientes da memória de longa duração. Para ele, as memórias explícitas servem para relembrar eventos específicos, envolvendo situações em que podemos evocar intencionalmente nossas recordações de eventos pessoais ou de alguns fatos ocorridos. Essas memórias estão divididas em duas categorias: memórias semânticas e memórias episódicas, que serão apresentadas na próxima seção. Já as memórias implícitas se subdividem em memória emocional e de procedimento, que se apresentam por meio do desempenho do que aprendemos ou guardamos na memória de longa duração, em forma de Figura 9 - Memória de longa duração Memória de longa duração Explícita (Memória declarativa) Memória episódica Memória semântica Implícita (Memória não declarativa) Condicionamento, habilidades, priming, etc. 53 comportamentos, habilidades, priming27 ou de forma inconsciente (BADDELEY, 2011, p. 22 e 23). As memórias declarativas registram fatos, eventos ou conhecimentos, nos quais “podemos declarar que existem e descrever como as adquirimos” (IZQUIERDO, 2018, p. 17). Trata-se do saber consciente e espontâneo, que armazena e evoca as informações provenientes das vias sensoriais externas e de processos internos do cérebro. Um exemplo desse tipo de memória é quando nos perguntam: Qual o seu nome? Quantos anos você tem? E sabemos responder prontamente. Elas são responsáveis pela associação de dados, dedução e criação, e levam a evocações ao nível consciente. Essas memórias podem ser subdivididas em episódicas, relativas a eventos, específicas de cada indivíduo, e semânticas, que envolvem conceitos atemporais e mais gerais, compartilhadas por muitas pessoas, sendo parte de uma cultura (IZQUIERDO, 2018, p. 17; BRAZ, 2013, p. 75; LENT, 2010, p. 649). Segundo Lombroso (2004, p. 208), as memórias explícitas resultam de pensamento consciente, nas quais somos capazes de falar e são processadas no hipocampo, responsável pela formação de novas memórias permanentes. Assim, lesões ocorridas nessa região impedem a aquisição de novas memórias, sendo possível recuperar apenas memórias explícitas armazenadas antes da lesão. Para Braz (2013, p. 75), esse é um tipo de memória flexível e adaptável a novos contextos, e que requer mais processos. Tais processos necessitam que as informações sejam sujeitas à repetição, obtenham um conhecimento anterior do indivíduo, sejam organizadas, que tenham importância (valor para o indivíduo) e que envolvam a emoção. Já as memórias implícitas registram memórias de capacidades motoras e/ou sensoriais, habilidades intelectuais e de condicionamento. Elas ocorrem de forma inconsciente, como tarefas automáticas, que chamamos de “hábitos”, e se formam pela repetição. Essas são frequentemente memórias de procedimento ou associativas adquiridas inconscientemente, que dependem do aprendizado de habilidades motoras específicas. Elas comumente requerem repetições, como tocar um instrumento musical, visto que precisamos da ativação dos gânglios da base e de circuitos associados para que seja possível aprender as habilidades motoras inerentes ao dedilhado ao piano, por exemplo (IZQUIERDO, 2018, p. 17 e 18). 27Tipo de memória baseada em “dicas”, em que a apresentação de um item pode influenciar a evocação de um item subsequente (IZQUIERDO, 2018, p. 21; BADDELEY, 2011, p. 25). 54 Lent (2010, p. 649 e 650) afirma que as memórias explícitas são formadas e perdidas facilmente, ao contrário da memória implícita, que requer mais tempo e treinamento pa