UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP Faculdade de Ciências e Letras - Campus de Assis AMANDA CAROLLO RAMOS DA SILVA A VIVÊNCIA EMOCIONAL DE ADOLESCENTES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL NO CONTEXTO JUDICIÁRIO POR INTERMÉDIO DO PROCEDIMENTO DE DESENHOS-ESTÓRIAS Assis 2024 AMANDA CAROLLO RAMOS DA SILVA A VIVÊNCIA EMOCIONAL DE ADOLESCENTES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL NO CONTEXTO JUDICIÁRIO POR INTERMÉDIO DO PROCEDIMENTO DE DESENHOS-ESTÓRIAS Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras de Assis, para obtenção do título de Doutora em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia e Sociedade Orientador: Prof. Dr. Jorge Luís Ferreira Abrão Assis 2024 S586v Silva, Amanda Carollo Ramos da A vivência emocional de adolescentes vítimas de violência sexual no contexto judiciário por intermédio do Procedimento de Desenhos-Estórias / Amanda Carollo Ramos da Silva. -- Assis, 2024 147 f. : il. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Jorge Luís Ferreira Abrão 1. Adolescência. 2. Psicanálise. 3. Violência sexual. 4. Vítimas de abuso sexual - Estudo de casos. 5. Adolescentes e violência sexual. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Ao Felippe, que chegou no início desta jornada, por permanecer e trilhar a vida ao meu lado; Ao Dante, que chegou na conclusão desta jornada, por trazer um novo sentido à minha vida. AGRADECIMENTOS O trabalho de pesquisa e de escrita, embora solitário, só se faz possível pela presença de algumas pessoas durante este percurso, às quais não poderia deixar de registrar meus agradecimentos. Ao Professor Doutor Jorge Luís Ferreira Abrão, pela confiança em mim depositada desde o início e por me guiar de forma tão sábia e leve por este caminho; À Flávia Renata Bertonha Manoel Bertão, por me acolher de modo continente e me fazer enxergar a riqueza deste trabalho nos momentos de dúvidas; À Ana Carolina Fortes Paiva de Pina, pelos momentos partilhados nas supervisões de cada caso atendido; Às Professoras Doutoras Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo e Helena Rinaldi Rosa, pelas importantes contribuições durante o Exame de Qualificação; Ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na pessoa dos Magistrados Doutora Paula Micheletto Cometti e Doutor Tiago Tadeu Santos Coelho, por autorizar a realização desta pesquisa, permitindo meu aprimoramento profissional; Às adolescentes, e seus familiares, por compartilharem suas histórias, a partir das quais se fez possível o desenvolvimento desta tese. “não há nada de errado com você isso é crescimento isso é transformação decidir se proteger se perder na multidão tentar se resolver sentir que alguém te usou e não teve consideração perder a esperança ficar sem energia isso é medo isso é reflexão isso é sobrevivência isso faz parte da vida” - jornada (Rupi Kaur, Meu corpo minha casa) “as experiências a que sobrevivemos vivem dentro de nós” (Rupi Kaur, Meu corpo minha casa) RESUMO Silva, A. C. R. (2024). A vivência emocional de adolescentes vítimas de violência sexual no contexto judiciário por intermédio do Procedimento de Desenhos-Estórias (Tese de Doutorado). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis. O fenômeno da violência sexual contra o público infantojuvenil e as repercussões psíquicas dessa vivência, potencialmente traumática, são temas de complexidade, envoltos por diversas nuances. Esta pesquisa, que se desenvolveu em um contexto de intersecção entre a Psicologia e o Judiciário, tem como objetivo compreender, por intermédio do Procedimento de Desenhos- Estórias (D-E), aplicado durante a entrevista prévia ao depoimento especial, a experiência emocional de adolescentes que vivenciaram situações de violência sexual. Para seu desenvolvimento, elegeu-se o método clínico-qualitativo, utilizando como estratégia metodológica o estudo de caso à luz do referencial teórico psicanalítico e, como instrumento de pesquisa, o Procedimento de Desenhos-Estórias, uma técnica de investigação clínica que possibilita o acesso à condição psicodinâmica do indivíduo, focalizando os pontos conflitivos e turbulências emocionais. O estudo foi aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisa e teve o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo como instituição coparticipante. A aplicação do instrumento ocorreu no cotidiano profissional da autora e, para a análise de dados, foi utilizada a livre inspeção dos materiais, na qual se privilegiou o acompanhamento livre das associações entre produções gráficas e produções verbais, buscando a apreensão dos aspectos que se sobressaíam. Participaram da pesquisa cinco adolescentes do sexo feminino que sofreram abuso sexual intrafamiliar. Analisando os materiais produzidos, em conjunto com os históricos de vida acessados, foram evidenciadas situações de desproteção e o estado de desamparo em relação às figuras parentais. Para lidar com essa condição, identificou-se, a nível intrapsíquico, a mobilização de uma série de mecanismos de defesa, sendo reconhecidos, nas unidades de produção, o uso de idealização, negação, esquecimento, isolamento, controle onipotente e cisão. Observou-se, de forma geral, que inseridas em um contexto vulnerável, com falhas na proteção parental, as adolescentes não tiveram seus processos de desenvolvimento preservados, sendo levadas a assumir uma independência prematura ou uma falsa maturidade. Não obstante a isso, considerou-se que as participantes demonstraram um movimento favorável de elaboração das situações vivenciadas e de desenvolvimento de recursos internos para dar sentido às suas vivências, levando-se em conta não só a expressão de emoções, possibilitada por meio da atividade, mas também a oferta de um espaço de escuta, acolhimento e credibilização. Em relação à aplicação do D-E no atendimento psicológico em âmbito forense, pôde-se observar que se mostrou uma ferramenta eficaz tanto para propiciar ao examinando a expressão de suas emoções de forma lúdica quanto para o profissional, que tem o estabelecimento do rapport favorecido e passa a ter acesso, de forma breve e não invasiva, às experiências emocionais do indivíduo, o que leva a uma atuação mais continente e assertiva. Compreende-se que embora esta pesquisa tenha tratado de um contexto e de um público específicos, as reflexões emergentes permitiram lançar um olhar além, não só para questões relacionadas à violência sexual contra crianças e adolescentes e ao exercício profissional de Psicologia em instância judicial, mas também para a compreensão do fenômeno da violência em si, contribuindo, ainda, para a atuação de psicólogos nesses casos, independente da área em que seu trabalho é demandado. Palavras-chave: adolescência; procedimento de Desenhos-Estórias; psicanálise; psicologia jurídica; violência sexual. ABSTRACT Silva, A. C. R. (2024). The emotional experience of teenagers victims of sexual violence in the judicial context through the Drawing-Story Procedure. (Ph.D. Thesis). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis. The phenomenon of sexual violence against children and adolescents and the psych repercussions of this experience potently traumatic are terms of complexity, surround by several nuances. This research, which was develop in a context of intersection between Psychology and the Judiciary, has as an objective to comprehend, through the Procedure of Drawings-Stories (D-E), applied during a previous interview to the special testimony, the emotional experience of teenagers who experienced situations of sexual violence. To its developing, was elegit the clinic-qualitative method, using as a methodological strategy the case study, in the light of the psychoanalytic theoretical framework, and as a research tool, the Drawing-Story Procedure, conceived as a clinic investigation technique that enables the access to a psychodynamic condition of the individual, focusing on the conflict points and emotional turbulences. The study was approved by the Research Ethics Committee and had the São Paulo State's Court of Justice as a participating institution. The application of the instrument occurred in the author's professional daily life and, for the data analysis, it was used the free inspection of the materials, which privileged the free monitoring association between graphic and verbal productions, seeking to apprehend the aspects that stood out. Five female tennagers that suffered sexual abuse whitin the family setting participated in the study. Analyzing the materials produced, with their life stories, were evidenced situations of unprotection and helplessness of parental figures. To deal with this condition, it was identified the mobilization, in a intrapsychic level, of a series of defence mechanisms. In the production units were seen the use of idealization, denial, forgetfulness, isolation, omnipotent control and split. It was observed, in general, that, in a vulnerable context, with flaws in parent protection, the teenagers didn’t have their development process preserved, being led to assume a premature independence or a false maturity. Despite this, it was considered that the participants demonstrated a favorable movement of elaboration of experienced situations and the development of internal resources to give meaning to their experiences, considering not only the expression of emotions, made possible through the activity, but also the offer of a space for listening, welcoming and credibility. Regarding to the D-E’s application in psychological care in forensic scope, it proved to be an effective tool to provide for the pacient the expression of their emotions in a playful way and also provide to the professional, that has the establishment of the rapport and access, in a brief and non-invasive way, to the emotional experiences of the individual, which leads to a more continental and assertive performance. It is understood that although this research has dealt with a specific context and audience, the emerging reflections allowed to cast a look beyond, not just the questions related to sexual violence against children and teenagers, and the professional practice of Psychology in judicial proceedings, but contributing to the understanding of the phenomenon of violence itself and with the performance of psychologists to these cases, regardless of the area in which your work is demanded. Keywords: adolescence; Drawing-Story Procedure; psychoanalysis; juridical psychology; sexual violence. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Primeiro desenho de Sara no D-E .......................................................................... 56 Figura 2 – Segundo desenho de Sara no D-E .......................................................................... 58 Figura 3 – Terceiro desenho de Sara no D-E .......................................................................... 60 Figura 4 – Quarto desenho de Sara no D-E ............................................................................. 61 Figura 5 - Primeiro desenho de Dora no D-E .......................................................................... 68 Figura 6 – Segundo desenho de Dora no D-E ......................................................................... 69 Figura 7 – Terceiro desenho de Dora no D-E.......................................................................... 71 Figura 8 – Quarto desenho de Dora no D-E ............................................................................ 72 Figura 9 – Quinto desenho de Dora no D-E ............................................................................ 73 Figura 10 – Primeiro desenho de Bruna no D-E ..................................................................... 80 Figura 11 – Segundo desenho de Bruna no D-E ..................................................................... 81 Figura 12 – Terceiro desenho de Bruna no D-E ...................................................................... 82 Figura 13 – Quarto desenho de Bruna no D-E ........................................................................ 83 Figura 14 – Quinto desenho de Bruna no D-E ........................................................................ 84 Figura 15 – Primeiro desenho de Catarina no D-E.................................................................. 91 Figura 16 – Segundo desenho de Catarina no D-E.................................................................. 92 Figura 17 – Terceiro desenho de Catarina no D-E .................................................................. 93 Figura 18 – Quarto desenho de Catarina no D-E .................................................................... 95 Figura 19 – Primeiro desenho de Lara no D-E ...................................................................... 101 Figura 20 – Segundo desenho de Lara no D-E ...................................................................... 102 Figura 21 – Terceiro desenho de Lara no D-E ...................................................................... 104 Figura 22 – Quarto desenho de Lara no D-E ......................................................................... 105 Figura 23 – Quinto desenho de Lara no D-E ......................................................................... 107 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Caracterização das participantes .......................................................................... 46 Quadro 2 – Primeira estória de Sara no D-E. .......................................................................... 56 Quadro 3 – Segunda estória de Sara no D-E. .......................................................................... 58 Quadro 4 – Terceira estória de Sara no D-E. .......................................................................... 60 Quadro 5 – Quarta estória de Sara no D-E. ............................................................................. 62 Quadro 6 – Primeira estória de Dora no D-E. ......................................................................... 68 Quadro 7 – Segunda estória de Dora no D-E. ......................................................................... 70 Quadro 8 – Terceira estória de Dora no D-E. ......................................................................... 71 Quadro 9 – Quarta estória de Dora no D-E. ............................................................................ 72 Quadro 10 – Quinta estória de Dora no D-E. .......................................................................... 73 Quadro 11 – Primeira estória de Bruna no D-E. ..................................................................... 80 Quadro 12 – Segunda estória de Bruna no D-E. ..................................................................... 81 Quadro 13 – Terceira estória de Bruna no D-E. ...................................................................... 82 Quadro 14 – Quarta estória de Bruna no D-E. ........................................................................ 83 Quadro 15 – Quinta estória de Bruna no D-E. ........................................................................ 84 Quadro 16 – Primeira estória de Catarina no D-E. ................................................................. 91 Quadro 17 – Segunda estória de Catarina no D-E. ................................................................. 92 Quadro 18 – Terceira estória de Catarina no D-E. .................................................................. 94 Quadro 19 – Quarta estória de Catarina no D-E. .................................................................... 95 Quadro 20 – Primeira estória de Lara no D-E. ...................................................................... 101 Quadro 21 – Segunda estória de Lara no D-E. ...................................................................... 103 Quadro 22 – Terceira estória de Lara no D-E. ...................................................................... 104 Quadro 23 – Quarta estória de Lara no D-E. ........................................................................ 106 Quadro 24 – Quinta estória de Lara no D-E. ........................................................................ 107 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 13 2 A ADOLESCÊNCIA: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS .......................... 17 3 A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UM OLHAR PSICANALÍTICO ....................................................................................... 23 3.1 CONCEITUAÇÃO E DADOS GERAIS........................................................................23 3.2 A DINÂMICA DO ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR .................................................. 26 3.3 A VIVÊNCIA DE UM ABUSO SEXUAL PARA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE ...................................................................................................................................................................30 4 DELIMITAÇÃO DA PESQUISA .............................................................................. 37 4.1 JUSTIFICATIVA ............................................................................................................................... 37 4.2 OBJETIVOS ........................................................................................................................................ 40 4.3 MÉTODO ............................................................................................................................................. 40 4.3.1 Método qualitativo de pesquisa ...................................................................................................... 40 4.3.2 Contexto de estudo ............................................................................................................................. 43 4.3.3 Participantes ........................................................................................................................................ 45 4.3.4 Instrumento ........................................................................................................................................... 46 4.3.5 Procedimento de Coleta de Dados ................................................................................................ 48 4.3.6 Procedimento de Análise de Dados .............................................................................................. 50 4.3.7 Considerações éticas ......................................................................................................................... 53 5 RESULTADOS ............................................................................................................. 54 5.1 CASO SARA .................................................................................................................................... Z’54 5.1.1 Contextualização ................................................................................................................................ 54 5.1.2 Procedimento de Desenhos-Estórias ............................................................................................ 56 5.1.3 Análise ................................................................................................................................................... 62 5.2 CASO DORA ...................................................................................................................................... 66 5.2.1 Contextualização ................................................................................................................................ 66 5.2.2 Procedimento de Desenhos-Estórias ............................................................................................ 68 5.2.3 Análise ................................................................................................................................................... 74 5.3 CASO BRUNA .................................................................................................................................... 78 5.3.1 Contextualização.................................................................................................................................. 78 5.3.2 Procedimento de Desenhos-Estórias ............................................................................................ 80 5.3.3 Análise ................................................................................................................................................... 85 5.4 CASO CATARINA ............................................................................................................................ 89 5.4.1 Contextualização.................................................................................................................................. 89 5.4.2 Procedimento de Desenhos-Estórias ............................................................................................. 91 5.4.3 Análise ..................................................................................................................................................... 96 5.5 CASO LARA......................................................................................................................................... 99 5.5.1 Contextualização.................................................................................................................................. 99 5.5.2 Procedimento de Desenhos-Estórias ........................................................................................... 101 5.5.3 Análise ................................................................................................................................................... 108 6 DISCUSSÃO ............................................................................................................... 112 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 124 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 126 APÊNDICE A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO .. 138 APÊNDICE B - TERMO DE ASSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ....... 140 APÊNDICE C - PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA ................... 143 APÊNDICE D - AUTORIZAÇÃO PARA REALIZAÇÃO DE PESQUISA JUNTO AO TJSP .............................................................................................................................................. 147 13 1 INTRODUÇÃO O presente estudo, que se desenvolve em um contexto de intersecção entre a Psicologia e o Judiciário, tem como propósito promover reflexões sobre a vivência emocional de adolescentes vítimas de violência sexual e trazer contribuições para a atuação do psicólogo judiciário, especialmente no contexto de atendimento ao público infantojuvenil, a partir da implantação da Lei nº 13.431 de 04 de abril de 2017. Sabe-se que o impacto emocional decorre não apenas da experiência de uma violência em si, mas também dos procedimentos a que crianças e adolescentes são submetidos, subsequentes a uma denúncia. Nesse sentido, esta pesquisa, embora se direcione com maior ênfase às questões relacionadas às repercussões emocionais decorrentes das vivências de situações de violência, acessadas por intermédio do Procedimento de Desenhos-Estórias, abarca também a dimensão da atuação técnica, compreendendo a relevância de um atendimento acolhedor, protetivo e não-revitimizante. A proposta de estudar esse tema relaciona-se ao fato de esta pesquisadora atuar como psicóloga judiciária em uma comarca do interior paulista, e desde o início dessa atuação, ter sido atribuída a ela a responsabilidade de conduzir o atendimento a casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, quando foi implantado o procedimento de depoimento especial, conforme previsto na referida legislação. Em meio aos tantos casos da Vara da Infância e Juventude e da Vara de Família, também estava a demanda da Vara Criminal. Logo, em seu primeiro mês de exercício no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), a pesquisadora passou por capacitação sobre a temática e começou a estudar com maior atenção a oitiva judicial de crianças e adolescentes. A partir do Código Penal Brasileiro, a perspectiva jurídica enquadra a violência sexual contra o público infantojuvenil como crime de estupro de vulnerável, e seu olhar se direciona para a investigação e a penalização do agressor, caso julgada a ocorrência do crime. No rito processual, as crianças e os adolescentes, vítimas ou testemunhas, têm o direito de prestar seu depoimento. Em linhas gerais, o procedimento de depoimento especial trata-se da oitiva desse público perante autoridade policial ou judiciária. É realizado em local apropriado, que garanta sua privacidade e os resguarde de qualquer contato, ainda que visual, com o suposto agressor. É filmado e transmitido em tempo real para a sala de audiência, onde se encontram os operadores de Direito (Lei nº 13.431/2017). A Lei prevê que, nesses casos, o depoimento seja conduzido por um profissional especializado e, apesar de não precisar sua formação, observa-se que os Tribunais de Justiça têm demandado tal atividade aos técnicos judiciários - psicólogos e assistentes sociais. Ou seja, 14 esses profissionais passaram a ter atribuição de facilitar o relato de crianças e adolescentes, intermediando a comunicação com o magistrado, promotor e advogado que, em instância judicial, acompanham a solenidade. No Estado de São Paulo, além da realização do depoimento especial, é ato integrante de seu protocolo a realização de uma entrevista prévia à audiência para avaliação da família e da criança e/ou do adolescente e estabelecimento de vínculo entre o técnico e o depoente (TJSP, 2021). Considera-se que, mesmo que as equipes técnicas judiciárias estejam realizando os procedimentos relacionados ao depoimento especial há cerca de seis anos, esse é um tema recente, que gera controvérsias entre as categorias profissionais. Em uma linha de pensamento, psicólogos e assistentes sociais estariam realizando atividades alheias às suas respectivas formações, assumindo a função de inquirir e produzir provas judiciais. Por outro lado, partindo-se da noção de cuidado e acolhimento, há o entendimento de que a atuação técnica estaria voltada não apenas para facilitar a comunicação, mas direcionada à proteção emocional de crianças e adolescentes em sua experiência em âmbito judiciário. Vivenciando a implantação do depoimento especial, bem como as contradições afetas ao procedimento, identificou-se um campo de interesse para pesquisa, no qual diversos aspectos poderiam ser explorados no meio acadêmico. Logo no início da pós-graduação, na fase de elaboração do projeto de pesquisa, a pesquisadora teve contato com o trabalho desenvolvido por Ana Maria Trapé Trinca com crianças em âmbito hospitalar, no contexto pré-cirúrgico – situação essa entendida como desencadeante de crise e intensificadora de defesas. A autora utilizou o Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E) como instrumento de intermediação terapêutica abreviada, com vistas a facilitar a compreensão da dinâmica emocional dos pacientes e direcionar a intervenção profissional, dentre outros objetivos. Esse trabalho foi uma das inspirações para o direcionamento da presente pesquisa, compreendendo-se que o método desenvolvido por Trinca (2003) poderia, com as devidas adaptações, ter estendida sua aplicação ao contexto judiciário, no atendimento a crianças e adolescentes, preliminar à participação em audiência. Identificou-se que o ambiente forense, tal como o hospitalar, resguardadas as suas peculiaridades, é gerador de ansiedade e promove um desgaste emocional no público atendido; quanto ao atendimento psicológico ofertado, em ambos os contextos ele se desenvolve de forma breve e pontual. Além dessas questões, considerou-se as características do instrumento eleito pela autora, o qual tem amplitude e abrangência de utilização clínica e não clínica, podendo ser facilmente empregado em diversos contextos de atuação do psicólogo. 15 A intenção inicial deste estudo consistia no aprofundamento de questões técnicas relacionadas ao exercício profissional, com objetivos de analisar a relevância da entrevista prévia ao depoimento especial e as contribuições do uso do Procedimento de Desenhos- Estórias nos atendimentos. O caminho da pesquisa estava delineado, contudo, esse processo não foi linear e simples. Ao longo do desenvolvimento do projeto, acompanhando discussões sobre o procedimento de depoimento especial e a atuação de psicólogos no judiciário, aliadas ao próprio amadurecimento profissional da pesquisadora e à aproximação com o fazer da clínica psicológica, compreendeu-se a importância de redirecionar a questão central do estudo, mantendo, no entanto, a utilização do instrumental e o contexto previamente idealizados. Considerando a potência do saber psi que, a partir da linha psicanalítica, permite o entendimento sobre a dinâmica da violência e a compreensão sobre os impactos dessa vivência na constituição psíquica do sujeito, além de proporcionar a oferta de uma escuta que conduz à elaboração de uma experiência traumática, fez-se possível ajustar os objetivos do trabalho. Parece sutil, mas essa nova perspectiva suscitou outro foco à pesquisa, potencializando o olhar da Psicologia e suas contribuições diante do fenômeno do abuso sexual infantojuvenil. O objetivo principal deste trabalho passou a ser, então, compreender, por intermédio do Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E), aplicado durante a entrevista prévia ao depoimento especial, a experiência emocional de adolescentes que vivenciaram situações de violência sexual. Ou seja, a pesquisa deixou de estar direcionada ao estudo da relevância do atendimento prévio à oitiva judicial para se configurar como o cenário em que os participantes foram acessados. O eixo passou a ser as repercussões emocionais da violência em adolescentes: o olhar clínico em ambiente forense. E por qual motivo a definição pela fase da adolescência? “Caminhante não há caminho, se faz caminho ao andar”, disse Machado de Assis. A princípio, a pesquisa previa também a participação de crianças, porém, no decorrer da trajetória deste estudo, optou-se em delimitar o público adolescente, entendendo que esta demarcação tornaria possível uma análise mais direcionada, tendo em vista as peculiaridades desse período da vida. Pesquisar e escrever uma tese de doutorado é complexo, exige tempo e uma dedicação infinita, assim como o processo de se formar e se constituir como psicóloga. Em meio a pausas, ajustes e recomeços, este trabalho se desenvolveu, mas nem sempre havendo a certeza de que estaria no caminho “certo”. Todavia, a cada caso atendido, ao se acessar um recorte da história de cada participante e de seu mundo psíquico, a disposição era revigorada e percebia-se a importância de se dar seguimento ao estudo, cujos resultados permitiram diversas reflexões, que se estendem para além do âmbito forense. 16 Agora, o leitor é convidado a acompanhar o percurso desta pesquisa. A fundamentação teórica é apresentada em dois capítulos: no primeiro, abordam-se aspectos da adolescência; já no capítulo seguinte, aprofunda-se no tema da violência sexual contra o público infantojuvenil, tratando desde a conceituação sobre o fenômeno até os possíveis impactos emocionais dessa vivência. O capítulo 4 delineia os caminhos da pesquisa – justificativa, objetivos e método – e é seguido pelo capítulo 5, em que são apresentados os casos atendidos, os desenhos-estórias produzidos e uma possibilidade de análise dos materiais. O capítulo 6 discute os resultados apresentados no capítulo anterior e o capítulo 7 traz as conclusões a que se chegou neste estudo. Por fim, são apresentadas as referências e os apêndices. Obter o título de doutora em Psicologia é muito valoroso, mas ainda mais significativo é conseguir perceber, além do aprimoramento profissional e crescimento pessoal durante a construção deste trabalho, a possibilidade de passar a oferecer um atendimento psicológico mais refinado e continente a crianças e adolescentes que, desde tão novos, vivenciaram situações de extrema desproteção. O desejo é de que a leitura desta tese visibilize o tema da violência sexual contra o público infantojuvenil, a partir da perspectiva psicológica, e promova reflexões sobre as possibilidades de atuação do psicólogo nos casos de violências diversas. 17 2 A ADOLESCÊNCIA: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS Está naquela idade incerta e duvidosa, Que não é dia claro e já é o alvorecer; Entreaberto botão, entrefechada rosa, Um pouco de menina e um pouco de mulher. Machado de Assis (1870) Este capítulo tem a intenção de abordar a adolescência, trazendo algumas considerações, a partir da perspectiva psicanalítica, a respeito desta fase do ciclo vital. Não há a pretensão de fazer uma teorização sobre o tema e tratá-lo em toda a sua complexidade, mas sim de situar o leitor sobre aspectos que se mostram relevantes para a construção deste estudo. Apresentamos, inicialmente, algumas questões gerais sobre a adolescência e, em um segundo momento, abordamos um desses pontos – o desenvolvimento da sexualidade – de forma mais específica. A adolescência, fase que se localiza entre a infância e a vida adulta, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), ocorre entre os 10 e os 19 anos de idade (World Health Organization [WHO], 2022). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por sua vez, considera adolescente a pessoa entre 12 e 18 anos de idade (Lei nº 8069/1990). Apesar dessas definições balizarem um período para a adolescência, conforme observa Outeiral (2012), na contemporaneidade, as crianças estão “adolescendo” cada vez mais cedo e permanecendo nesta fase muito além dos 20 anos de idade. A adolescência, portanto, para ser compreendida, deve ser analisada em termos psicológicos, sociológicos e biológicos (Tardivo, 2004). O início da adolescência é relacionado à puberdade, ou seja, às mudanças fisiológicas que direcionam o amadurecimento dos órgãos sexuais (Calligaris, 2000). A puberdade, de acordo com o psicanalista inglês Winnicott (1964/1994), refere-se a um estágio do processo físico de amadurecimento; a adolescência, por sua vez, seria uma fase mais ampla, de tornar- se adulto por intermédio do crescimento emocional. Winnicott (1965/2011, 1968/1999) propõe que a adolescência é um período de descoberta pessoal, que precisa ser efetivamente vivido. Segundo ele, os adolescentes “vêem-se obrigados a transpor uma espécie de zona de calmarias, uma fase em que se sentem fúteis e ainda não se encontraram” (Winnicott, 1965/2011, p. 122). Este capítulo foi iniciado com um breve trecho de Machado de Assis, que caracteriza, de forma metafórica e assertiva, a ambivalência vivenciada durante o período da adolescência: não é nem uma coisa nem outra; não é mais uma menina, mas ainda não é uma mulher. Isso nos sinaliza que a perda do corpo e do status infantil não é diretamente acompanhada pela aquisição da autonomia e da independência da vida adulta. De acordo com Corso e Corso 18 (2006), a adolescência “é tempo de um difícil equilíbrio entre as fantasias apaixonadas e as experiências reais, da exploração ambivalente da própria beleza, de oscilar entre a obsessão e a repulsa ao sexo, do medo do futuro, de achar-se potente e inválido” (p. 214). É, habitualmente, associada a uma época de acontecimentos e de escolhas, mas, conforme apontam os autores, é, antes de tudo, uma experiência de melancolia e procrastinação e, portanto, tempo de uma suspensão. Calligaris (2000), nesse mesmo sentido, propõe que apesar de o adolescente já contar com uma maturação biológica para a competição em um mundo adulto, a comunidade lhe impõe uma moratória. Sendo a adolescência um “só-depois” (Kaufmann, 1993/1996), qual seria o objetivo desse período de vida? Segundo Outeiral (2008), dentre tantas tarefas desenvolvimentais, o propósito fundamental da adolescência é o da organização da identidade em seus aspectos sociais, temporais e espaciais. Blos (1979/1996), por sua vez, entende a adolescência como um processo de individuação, no qual se faz presente uma urgência de mudanças na estrutura psíquica, que ocorrem em convergência ao impulso maturacional. Considerada por Blos (1979/1996) como a segunda individuação no ciclo vital – sendo a primeira concluída no terceiro ano de vida –, inclui mudanças do ego que se relacionam ao desligamento emocional dos objetos infantis. Aberastury (1970/1992) identifica a adolescência como um “período de contradições, confuso, ambivalente, doloroso, caracterizado por fricções com o meio familiar e social” (p. 13), no qual se observa uma flutuação entre dependência e independência extrema – quadro este muitas vezes confundido com estados patológicos. Blos (1979/1996), complementando essa visão, aponta que a adolescência é o único período em que a regressão do ego e do impulso são componentes do desenvolvimento normal. Knobel (1970/1992) assinala que no processo de estabilização da personalidade seria inevitável a presença de certo grau de conduta patológica, sendo esta “normal” para a etapa da adolescência; o “anormal”, segundo ele, seria haver um equilíbrio estável durante esse período de vida. O autor propõe, então, uma “síndrome normal da adolescência” apontando as seguintes características: 1) busca de si mesmo e de sua identidade; 2) tendência grupal; 3) necessidade de intelectualizar e fantasiar; 4) crises religiosas; 5) deslocalização temporal; 6) evolução sexual manifesta; 7) atitude social reivindicatória; 8) contradições sucessivas na conduta, dominada pela ação; 9) separação progressiva dos pais; e 10) constantes flutuações do humor e do estado de ânimo. Aberastury et al. (1970/1992) indica que uma nova identidade começa a surgir a partir da aceitação simultânea dos aspectos de criança e de adulto. Nesse processo, o adolescente 19 “tem que deixar de ser através dos pais para chegar a ser ele mesmo” (p. 66), o que implica também, para os próprios pais, uma elaboração do luto e uma aceitação quanto ao movimento de independência do filho. Winnicott (1968/1999) aponta a imaturidade como uma parte essencial da adolescência, sendo ela um indicador de saúde para esse período de vida – a “cura” da imaturidade, ou da adolescência, conforme propõe o autor, se daria através da passagem do tempo e do consequente e gradativo crescimento para a maturidade. Outro traço característico elencado pelo psicanalista, entendido como curioso e intrigante, é uma mistura de rebeldia e dependência. A teoria winnicottiana traz a importância que o ambiente - aqui relacionado às figuras parentais - desempenha nos processos de desenvolvimento. No estágio da adolescência, da mesma forma, Winnicott (1965/2011) enfatiza a relevância do papel exercido pelo ambiente, supondo a continuidade da existência e do interesse dos familiares, que devem manejar a dupla exigência do adolescente: ser tolerado e ser cuidado. O crescer é, na fantasia inconsciente, relacionado à agressividade, uma vez que se associa a tomar o lugar dos pais. Nesse contexto, o autor indica que o melhor que os pais têm a fazer é “sobreviver”. O processo de desenvolvimento, durante a adolescência, não pode ser agilizado ou postergado, mas segundo Winnicott (1965/2011), pode ser invadido ou destruído. Ele relaciona, ainda, algumas dificuldades pelas quais passam os adolescentes, por vezes requerendo intervenção profissional, às más condições ambientais. O autor aponta, por exemplo, que é comum observar a ocorrência do desenvolvimento púbere sem estar acompanhado da vivência da adolescência, isto é, sem haver o processo de desenvolvimento emocional. Se as figuras parentais abdicam de suas responsabilidades, os adolescentes se direcionam para uma falsa maturidade, perdendo a possibilidade de experienciar a liberdade de ideias e de agir por impulso (Winnicott, 1968/1999). A adolescência é, de acordo com Vannucchi (2004), um período difícil, em que está presente o medo do desconhecido e do novo, principalmente pelas questões pulsionais. Como vimos, há a emergência de um corpo repleto de transformações e necessidades, o que impõe um intenso trabalho psíquico. Nesse contexto, passaremos, a partir de agora, a nos debruçar a respeito de um tema focal da vida do adolescente: a sexualidade. Freud (1905/2016), o precursor da psicanálise, trata em sua obra o desenvolvimento da sexualidade, que tem início na infância, desde a tenra idade, e evolui até a vida adulta. Para se compreender a sexualidade na adolescência, abordaremos brevemente o processo de desenvolvimento da sexualidade infantil: nos primeiros anos de vida, há a vivência do 20 complexo de Édipo, apontado por Freud (1924/2011) como o fenômeno central do período sexual da primeira infância. É definido como o “conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais [...] o apogeu do complexo de Édipo é vivido entre os três e cinco anos, durante a fase fálica” (Laplanche & Pontalis, 1991, p. 77). Nesse período, há a definição das relações que a criança estabelece com as figuras parentais, constituindo, de forma inconsciente, as representações e os afetos – o complexo de Édipo desempenha, assim, um papel estruturante da personalidade, do desejo humano e da sexualidade futura. Freud (1912-1913/2012) indica que, para a psicanálise, os primeiros impulsos sexuais dos seres humanos são de caráter incestuoso. O menino se identifica com o pai, mas, ao mesmo tempo, rivaliza e deseja substitui-lo junto à mãe. O processo de identificação é permeado por uma ambivalência entre a ternura e a eliminação (Freud, 1921/2011). A mesma ambivalência seria observada na menina em relação à mãe. O declínio do complexo de Édipo se daria pela entrada no período da latência, momento no qual as tendências libidinais próprias desse período são dessexualizadas e sublimadas em parte. A fase fálica não continuaria a se desenvolver até a organização genital definitiva (Freud, 1924/2011). Segundo Winnicott (1965/2011), “o menino e a menina chegam à puberdade com todos os seus padrões predeterminados pelas experiências de infância; muita coisa permanece guardada no inconsciente” (p. 117). O problema sexual do adolescente estaria, então, relacionado ao ressurgimento da problemática edipiana, porém, agora, com uma genitalidade madura (Outeiral, 2008). Na adolescência, o complexo de Édipo se reedita, havendo a possibilidade de as fantasias sexuais serem realizadas, ou seja, de ser concretizado o incesto, o que causa ao adolescente ansiedade e mobiliza uma ação defensiva. A vida sexual infantil, de acordo com Freud (1905/2016), é essencialmente autoerótica, isto é, tem seu objeto no próprio corpo, e é composta por instintos parciais desconexos e independentes, que se direcionam para a obtenção de prazer. Com as mudanças advindas da puberdade, há a definição de um objeto sexual e as zonas erógenas se sujeitam ao primado da zona genital, ocorrendo a passagem da bissexualidade (infantil) para a heterossexualidade (adulta). O autor indica que, na realidade, a escolha do objeto se configura como uma redescoberta, considerando que, na vivência edípica original, ela já foi estabelecida, porém, suspensa. Diante da revivência do triângulo edípico, o adolescente, conforme aponta Knobel (1970/1992), tem de recorrer a mecanismos de defesa mais persistentes e enérgicos a fim de evitar o incesto. Assinala que, caso ele de fato ocorresse, haveria um problema no processo de 21 individualização; sem o desprendimento do filho em relação à figura parental, não haveria uma definição sexual real. Corso e Corso (2006), nesta direção, ao abordar a intensidade de emoções dirigidas aos pais com o fim da latência, colocam que é esperado do adolescente, dentro de certos limites, um afastamento da família e, ao mesmo tempo, uma aproximação e engajamento a grupos sociais. Esse movimento seria necessário para haver crescimento. Marcelli e Braconnier (1983/2007) colocam que, no plano econômico, “a puberdade confronta o jovem com uma excitação que o ameaça permanentemente de transbordamento, solicitando de maneira ativa seu funcionamento psíquico mediante a capacidade de desinvestimento, deslocamentos, reinvestimentos, sublimação, etc” (p. 141). Quanto aos mecanismos de defesa na adolescência, os autores examinam a intelectualização e o ascetismo, a clivagem e a atuação, por entenderem que sejam mais específicos e frequentes nessa fase de desenvolvimento, não obstante estejam presentes também outros meios de defesa. Sobre a intelectualização e o ascetismo, referenciando Anna Freud, os autores propõem que eles estariam relacionados ao controle das pulsões em nível corporal, isto é, dos desejos sexuais. A clivagem e os mecanismos associados, por sua vez, teriam o objetivo de proteção do adolescente em relação ao conflito de ambivalência, focalizado na ligação com as imagos parentais. A evocação da clivagem dispersaria os desejos genitais, evitando a ameaça do incesto. Por fim, a atuação, ou passagem ao ato – com preponderância no campo comportamental – estaria relacionada a uma proteção contra o conflito interiorizado e o sofrimento psíquico, mas que, ao se repetir, travaria o processo de maturação progressiva. O acesso à sexualidade genital, segundo Marcelli e Braconnier (1983/2007), relaciona- se a uma organização satisfatória da identidade sexual e de suas identificações, construída gradativamente ao longo das etapas progressivas da infância e da adolescência. Segundo Freud (1905/2016), não só a configuração normal da vida sexual seria determinada pelas manifestações infantis da sexualidade, mas os desvios de ordem psicossexual também teriam origem nesse período. O autor aponta que perturbações dos laços infantis com os pais, influências externas de sedução e vivências infantis acidentais podem levar a sérias consequências para a vida sexual após a maturação. Indica ainda que, dentre os efeitos dos fatores prejudiciais ao desenvolvimento sexual está a regressão, ou seja, o retorno a uma etapa anterior do desenvolvimento. No que se refere às instigações da sexualidade infantil, em decorrência da sedução por outras crianças ou adultos, estas, de acordo com Freud (1905/2016), “fornecem o material que [...] pode se tornar fixado como distúrbio duradouro” (p. 171). A intensidade dos conflitos na adolescência, conforme alude Aberastury (1971), será possivelmente acentuada quanto 22 maiores tiverem sido os pontos de fixação e características regressivas durante a infância. Esse e outros assuntos serão abordados no próximo capítulo, quando se tratará especificamente sobre a experiência de um abuso sexual para a criança e o adolescente. Aqui está esboçado, então, um panorama sobre a adolescência, as características particulares dessa fase e a importância de sua vivência, que tem como foco principal a organização da identidade, inclusive no aspecto da sexualidade. A seguir, será apresentada a violência sexual contra o público infantojuvenil, tema central desta pesquisa. 23 3 A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UM OLHAR PSICANALÍTICO Acontece algo totalmente inesperado para essas meninas, meninos ou adolescentes (...) Como é possível continuar vivendo com essa pressão na cabeça e essas sensações estranhas no corpo? Susana Toporosi (2022) Este capítulo aborda a violência sexual contra o público infantojuvenil, trazendo, principalmente, a visão psicanalítica sobre o tema. Considerou-se importante, inicialmente, caracterizar o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes para, então, a partir da perspectiva psicanalítica, realizar o aprofundamento nas questões sobre a dinâmica abusiva, o trauma e os possíveis efeitos de uma vivência traumática no psiquismo de quem a experencia. Observa-se que, em geral, a literatura sobre a violência sexual aborda a infância e a adolescência de forma conjunta, sem fazer uma clara distinção sobre a violência em cada uma dessas fases. Embora aqui também seja tratado dessa forma, isso não altera o foco para o público adolescente. 3.1 CONCEITUAÇÃO E DADOS GERAIS A OMS define a violência sexual como o envolvimento de uma criança em atividades sexuais, que ela não compreende em sua totalidade, para a qual não é capaz de dar seu consentimento, não está preparada em termos de desenvolvimento ou, ainda, que viola leis ou tabus da sociedade (WHO, 2006). É um fenômeno de grande ocorrência no escopo de violência contra crianças e adolescentes, considerando que se configura por uma diversidade de práticas sexuais. A Lei nº 13.431/2017, em seu artigo 4º, inciso III, caracteriza-a da seguinte forma: III - violência sexual, entendida como qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda: a) abuso sexual, entendido como toda ação que se utiliza da criança ou do adolescente para fins sexuais, seja conjunção carnal ou outro ato libidinoso, realizado 24 de modo presencial ou por meio eletrônico, para estimulação sexual do agente ou de terceiro; b) exploração sexual comercial, entendida como o uso da criança ou do adolescente em atividade sexual em troca de remuneração ou qualquer outra forma de compensação, de forma independente ou sob patrocínio, apoio ou incentivo de terceiro, seja de modo presencial ou por meio eletrônico; c) tráfico de pessoas, entendido como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da criança ou do adolescente, dentro do território nacional ou para o estrangeiro, com o fim de exploração sexual, mediante ameaça, uso de força ou outra forma de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, aproveitamento de situação de vulnerabilidade ou entrega ou aceitação de pagamento, entre os casos previstos na legislação. A violência sexual, de acordo com Eloy (2023), pode ser “sutil, explícita, clandestina, intrafamiliar, extrafamiliar, com ou sem agressividade e até mesmo com afetividade, quando envolve a patologia do agressor” (p. 14). Ela está presente em toda a sociedade, não havendo limites geográficos, socioeconômicos ou culturais para sua manifestação. Em relação à caracterização da relação abusiva, há uma situação de poder hierárquica superior, na qual o agressor exerce controle sobre a vítima, objetivando sua gratificação sexual, sendo possível também a busca pelo prazer do abusado. Segundo Gabel (1992/1997): “o abuso sexual supõe uma disfunção em três níveis: o poder exercido pelo grande (forte) sobre o pequeno (fraco); a confiança que o pequeno (dependente) tem no grande (protetor); e o uso delinqüente da sexualidade” (p. 10). Araújo (2002), por sua vez, em um sentido complementar, aponta que o abuso sexual infantil é uma forma de violência que envolve poder, coação e/ou sedução, abarcando duas desigualdades básicas: a de geração e a de gênero. Isto é, crianças e adolescentes pertencem à categoria sujeita ao poder do mais velho sobre o mais novo e do masculino sobre o feminino. Em geral, a violência ocorre sem o uso de força física, sem deixar marcas visíveis, o que desafia sua comprovação, especialmente quando envolve crianças pequenas. Segundo Ribeiro et al. (2004), a violência sexual contra crianças e adolescentes não se restringe a uma violação sexual, mas aos direitos humanos e aos direitos particulares de pessoa em desenvolvimento. É violada a liberdade da criança e do adolescente em dispor de seu corpo e a busca para ser um indivíduo autônomo. 25 Quanto a estatísticas, Serafim et al. (2011) assinalam que estudos realizados em diferentes partes do mundo sugerem que 7,4% de meninas e 3,3% de meninos já sofreram algum tipo de abuso sexual. Já os dados da Organização Mundial de Saúde indicam 20% das meninas e 8% dos meninos (WHO, 2019). Em relatório apresentado em junho de 2019 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), é apontado que a violência sexual atinge, no mundo, 15 milhões de adolescentes do sexo feminino entre 15 e 19 anos de idade, e que em 28 países, 9 em cada 10 dessas vítimas indicam o agressor como alguém próximo ou conhecido. No contexto brasileiro, esse relatório indica que o estupro é o tipo de violência mais atendido em unidades de saúde na faixa etária entre 0 e 13 anos de idade, e que em 70% dos casos, os agressores são familiares próximos da vítima, amigos ou conhecidos. Apesar da subnotificação desse tipo de violência, entre os anos de 2011 e 2017, houve, no Brasil, um aumento de 83% nas notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes (UNICEF, 2019). Entre os anos de 2017 a 2020, a UNICEF e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021) apontam que foram registrados, no país, 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos de idade. Destes, 81% tinham até 14 anos de idade, o que significa 36 mil estupros de meninas e meninos até essa faixa etária por ano – cerca de cem por dia. Nesse panorama sobre a violência, é indicado que a grande maioria das vítimas de violência sexual é de meninas – quase 80% do total – sendo a idade mais frequente entre 10 e 14 anos (47%). A maioria dos casos ocorre no ambiente doméstico e, nos registros em que há identificação do autor da violência, 86% eram conhecidos das vítimas. A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, serviço do atual Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, apresenta dados referentes às denúncias registradas através de seus canais, dentre eles, o Disque 100. Durante o ano de 2023 foram registradas 31.252 mil denúncias de violações sexuais contra crianças e adolescentes (Brasil, 2024), sendo que apenas no primeiro quadrimestre desse ano foram registrados mais de 17 mil violações sexuais, físicas e psíquicas, contra o público infantojuvenil, o que representa, de acordo as estatísticas, um aumento de 68% em relação ao mesmo período do ano anterior. Destes registros, consta que cerca de 14 mil ocorreram na casa da vítima (Brasil, 2023). Em relação aos anos anteriores, no ano de 2020 foram registradas o total de 95.247 denúncias de violações de direitos de crianças e adolescentes em todo o Brasil, sendo destas 14.621 referentes a abuso sexual físico, estupro e exploração sexual (Brasil, 2021). No ano de 2019, foram registradas o total de 86.837 denúncias, sendo destas 17.029 referentes à violência sexual. No que se refere ao vínculo entre o suspeito da agressão e a vítima, os dados indicam que em 63% das denúncias havia uma relação familiar entre eles, sendo que em 40% dos casos 26 os pais e os padrastos foram os denunciados. 82% das vítimas eram do sexo feminino e 87% dos suspeitos eram do sexo masculino (Brasil, 2020). Durante o ano de 2020, pôde-se observar, de modo geral, uma queda no número de denúncias de violência sexual se comparado a anos anteriores, entretanto, Bohnenberger e Bueno (2021) pontuam que tal dado não significa uma redução da violência, mas possivelmente uma diminuição dos registros de denúncias desses casos em função do cenário da pandemia de Covid-19. Segundo aponta o relatório da UNICEF e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), “fica claro que há uma queda brusca no número de registros entre os meses de março e maio, período em que as medidas de isolamento social foram mais restritivas” (p. 41). Nos meses subsequentes, os registros voltaram a níveis próximos da média dos três anos anteriores, observando-se, inclusive, conforme apontado, que nos anos seguintes, o número de denúncias cresceu ainda mais, devido a uma maior mobilização da população ao denunciar essa violência (Brasil, 2023). A seguir, será lançado o olhar para a dinâmica do abuso sexual intrafamiliar, considerando a sua incidência e complexidade. Tem-se o entendimento de que essa vivência impacta de forma significativa a criança e o adolescente em sua constituição subjetiva, possivelmente de modo muito diferenciado se comparada à experiência de uma violência ocorrida em âmbito extrafamiliar. 3.2 A DINÂMICA DO ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR Segundo Freud (1912-1913/2012), um fenômeno considerado ‘tabu’ traz em si um sentido de algo inabordável, sendo expresso em proibições e restrições. Logo, se é um tabu, deve ser mantido em segredo. De acordo com o precursor da psicanálise: “As mais antigas e importantes proibições ligadas aos tabus são as duas leis básicas do totemismo: não matar o animal totêmico e evitar relações sexuais com membros do clã totêmico do sexo oposto” (p. 27). Ao abordar o tema da violência sexual intrafamiliar, faz-se necessário considerar a complexidade do tema, envolto por sentimentos múltiplos e ambíguos. Na contemporaneidade, a família é conhecida como instituição básica para formação do indivíduo, cabendo aos pais os cuidados e a proteção dos filhos para o seu desenvolvimento integral. Diante dessa premissa, pareceria um contrassenso afirmar que a violência estaria presente nas relações familiares. 27 De acordo com Tardivo et al. (2019), “a violência intrafamiliar se refere não apenas ao excesso de força física, sexual, verbal contra o outro, mas também à ausência de um investimento no cuidado, na preocupação com o outro, que necessita de acolhimento emocional e cuidados físicos” (p. 103). Tratando-se especificamente do abuso sexual, aponta-se para uma desorganização do funcionamento familiar, com falhas em sua organização psicológica e estrutural. Segundo Ribeiro et al. (2004), ocorre uma “violação ao direito de uma convivência familiar protetora e uma ultrapassagem dos limites estabelecidos pelas regras sociais, culturais e familiares” (pp. 461 – 462). Isto é, há uma ineficácia do papel das relações familiares e uma confusão de funções: quem deveria, por obrigação, cuidar e proteger, está agredindo e violando os direitos, muitas vezes de forma mascarada por atos de carinho e sedução. A criança, confusa, oscila entre calar ou denunciar (Araújo, 2002; Pacheco & Malgarim, 2012). O abuso sexual intrafamiliar, conforme apontam as estatísticas (Brasil, 2023, 2020; UNICEF, 2019; UNICEF e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021), é mais prevalente se comparado àquele perpetrado por pessoas sem vínculos com a vítima. Remete, portanto, ao incesto, que se trata do relacionamento sexual entre membros de uma mesma família, considerando aqui não apenas a consanguinidade, mas a função social exercida pelas pessoas desse grupo (Eloy, 2023). Nesses casos, Araújo (2002) assinala que o autor do abuso sexual impõe a lei do seu desejo e transgride a lei cultural, que proíbe relações incestuosas. Corso e Corso (2006) apontam para a importância do desejo paterno para o amadurecimento sexual da menina, retomando a vivência do complexo de Édipo e a rivalização empreendida, em nível de fantasia, pela menina com a mãe, na disputa pelo pai. No entanto, esse amor precisa ser interditado. O amor do pai, nesse sentido, é conveniente como exercício de hipótese, se tornando traumático “se o pai se dispuser a atuá-lo e consumá-lo, tomando a filha como objeto de desejo sexual. Desejar ser desejada não redunda na vontade de ser consumida” (p. 99). Nos casos em que não há essa interdição, em que o pai induz a realização das fantasias edipianas, a menina, segundo Toporosi (2022), torna-se definitivamente órfã e vivencia uma angústia além do tolerável. A respeito das seduções incestuosas, Ferenczi (1933/1992) observa haver uma “confusão de línguas” entre o adulto e a criança. Aponta que, em geral, a dinâmica abusiva ocorre da seguinte forma: [...] um adulto e uma criança amam-se; a criança tem fantasias lúdicas, como desempenhar um papel maternal em relação ao adulto. O jogo pode assumir uma forma erótica mas conserva-se, porém, sempre no nível da ternura. Não é o que se passa com 28 adultos se tiverem tendências psicopatológicas, sobretudo se seu equilíbrio ou seu autodomínio foram perturbados por qualquer infortúnio, pelo uso de estupefacientes ou de substâncias tóxicas. Confundem as brincadeiras infantis com os desejos de uma pessoa que atingiu a maturidade sexual, e deixam-se arrastar para a prática de atos sexuais sem pensar nas consequências. (Ferenczi, 1933/1992, pp. 101 – 102) Ou seja, a criança se utiliza da linguagem lúdica, da ternura, mas recebe do adulto uma resposta condizente ao amor sensual. Nesse ponto, retorna-se a Corso e Corso (2006), que colocam a importância da mãe (ou outra mulher) permanecer viva no desejo do pai, a fim de que a filha possa fantasiar sem o temor de ser abusada. Observa-se que os abusos, em geral, ocorrem inicialmente de forma sutil, de modo que a criança não consiga ter discernimento de estar sendo submetida a uma situação de violência, ou de acordo com Alvarez (2020), ela pode não ter a noção de não-abuso. A criança que cresce sendo abusada sexualmente pode demonstrar um sentimento ambíguo em relação ao abusador, pois aquela pessoa é ao mesmo tempo uma figura parental, que inspira também confiança, proteção e afeto. A autora aponta que a criança “pode temer o abusador muito mais do que teme o abuso. Pode ainda sentir amor profundo pela figura do abusador e esse amor pode ser mais forte do que o medo do abuso ou desgosto por ele. Ou pode ter todas essas dificuldades” (Alvarez, 2020, p. 242). Ainda nesse sentido, Alvarez (2021) propõe que mesmo considerando homens adultos como perigosos, eles seriam, para a criança abusada, poderosos e interessantes, diferente da figura feminina adulta, que mesmo podendo ser gentil e amável, seria considerada fraca, inútil e não-protetora. Segundo Gabel (1992/1997), o abuso sexual é uma das violências que mais se ocultam, pois “a criança tem medo de falar e, quando o faz, o adulto tem medo de ouvi-la” (p. 11). No caso do abuso sexual intrafamiliar, de acordo com Araújo (2002), a criança ou o adolescente vive uma situação conflituosa, envolta por sentimentos diversos: medo, raiva, prazer, culpa e desamparo. Pode ter raiva da mãe por não tê-la protegido e pode ter medo de contar, por receio de ser considerada culpada ou de não a credibilizarem. Toporosi (2022) aponta que seria inevitável o sentimento de culpa da própria criança, uma vez que suas pulsões são convocadas e colocadas em jogo, isto é, há uma sensação de participação subjetiva. A “síndrome do silêncio” que envolve a violência sexual infantil relaciona-se não apenas às possíveis ameaças do agressor para a criança não falar sobre o que se passa, mas à reação dos membros da família, que ao ter conhecimento sobre os abusos, optam, por vezes, em manter aquilo em segredo, como um pacto familiar. A forma como os familiares acolhem 29 o relato da criança, o que falam a respeito e como a tratam após a denúncia impactam diretamente em sua subjetivação. Correa (2000) propõe que: “no espaço do grupo familiar, encontramos movimentos opostos que oscilam entre guardar, esconder e reter, de um lado, e a tendência à expulsão, a compartilhar e deixar sair escondido, de outro” (pp. 107 - 108). As ideias apresentadas por esta autora vão ao encontro do que se observa no cotidiano profissional: crianças e adolescentes vítimas de violência sexual intrafamiliar se mostram divididas entre se libertar das situações abusivas e se manter nessa situação, a fim de evitar o rompimento familiar. Nessa perspectiva, o silêncio estaria à serviço da manutenção do vínculo e da malha familiar, enquanto a denúncia estaria relacionada a um ataque destrutivo ao vínculo, implicando a remalhagem (Benghozi, 2010). Uma situação de abuso sexual intrafamiliar, quando passa a ser de conhecimento dos serviços de segurança pública e dos serviços socioassistenciais, leva necessariamente a uma reorganização familiar. Segundo Rovinski e Pelisoli (2019), a revelação do abuso, em geral, produz uma crise imediata na família. E, mesmo figurando-se como vítima, é comum, de acordo com Toporosi (2022), crianças e adolescentes se sentirem responsáveis por estarem rompendo um ideal de união familiar. Colocam-se como ambivalentes em relação à denúncia “não apenas em virtude de suas próprias fantasias e desejos que a deixam culpada, mas também porque essa pode ser a causa de deixarem de ver o pai, de quem sentem ter recebido, juntamente com o abuso, atenção e afeto” (Toporosi, 2022, p. 191). A autora aponta que a formalização de uma denúncia possibilita que o direito social atue onde a lei simbólica falhou. A denúncia tem um efeito de verdade que desarticula o ambiente de negação em que o abuso ocorreu. Interrompe os encobrimentos e, no longo prazo, é sempre uma intervenção subjetivante para a menina e a família, embora de imediato implique uma grande comoção, rupturas familiares, etc. A marca simbólica deixada pelo fato de que alguém tenha acreditado e rompido o pacto de silêncio e ocultação proposto pelo agressor ao torná-lo público em uma denúncia é um passo muito importante na elaboração do trauma individual da menina ou adolescente. (Toporosi, 2022, p. 75) Toporosi (2022), a respeito do processamento psíquico da experiência abusiva vivenciada, além do registro da denúncia, chama a atenção para a importância da condenação de quem provocou o sofrimento. Esse processo, contudo, não ocorre isento de um medo de vingança - a figura agressora pode se tornar, na percepção da criança e do adolescente, um perseguidor que se vingará após cumprir sua pena. 30 Partindo-se da concepção de que a vivência da violência sexual na infância e na adolescência, na maioria dos casos, tem efeitos traumáticos (Toporosi, 2022), passa-se a abordar, na sequência, a relação entre a experiência do abuso sexual e a configuração de um trauma, bem como as possíveis repercussões dessa vivência para o psiquismo infantojuvenil. 3.3 A VIVÊNCIA DE UM ABUSO SEXUAL PARA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE De acordo com Corso e Corso (2006), “abusar é confrontar a criança com algo muito maior do que ela possa elaborar [...] o assédio sexual do adulto sobre uma criança materializa algo que, na mente infantil, não passa de um conglomerado confuso de hipóteses, imagens, fantasias e sensações” (p. 100). Diante da impossibilidade de elaboração, a vivência de um abuso sexual remete a um trauma. Para compreensão das repercussões emocionais da vivência dessa violência, serão apresentados, primeiramente, como os autores clássicos da psicanálise enunciam o conceito de trauma, para, em seguida, a partir de pesquisadores e psicanalistas contemporâneos, serem feitas associações entre a violência sexual contra crianças e adolescentes e o trauma. Este é o ponto central deste subcapítulo. Laplanche e Pontalis (1991) definem trauma como um: “acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica” (p. 522). Analisando os trabalhos de Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, observa-se que a questão do trauma e a evolução de seu entendimento a respeito do tema permeia toda a sua obra. Inicialmente, para o autor, o trauma estava relacionado à vivência precoce de um evento de caráter sexual, que permanecia registrado no inconsciente, no entanto, sem estar dotado de um significado, uma vez que o sujeito que sofreu a sedução era imaturo para compreendê-la. Em um momento posterior, a vivência de uma outra situação, não necessariamente sexual, se ligaria àquela experiência inicial, fazendo emergir os afetos inconscientes e, consequentemente, sintomas e angústia. O trauma, portanto, se daria a posteriori. (Freud, 1950[1895]/1996). Ao longo de seu trabalho, Freud renuncia à teoria da sedução infantil traumática, entendendo haver uma realidade psíquica permeada pelo mundo pulsional. Isto é, o autor amplia seu entendimento sobre o trauma, não sendo este necessariamente decorrente de uma 31 vivência real, mas podendo ser fruto de fantasias (Freud, 1933/2010). Na configuração de um trauma, o precursor da psicanálise indica uma confluência de fatores externos e internos. Em Conferências Introdutórias (1917/2014), Freud aponta para o aspecto econômico dos processos mentais. A inabilidade em manejar um estímulo excessivo, em curto um período de tempo, provocaria perturbações, “(...) assim, a neurose poderia equivaler a uma doença traumática, e apareceria em virtude da incapacidade de lidar com uma experiência cujo tom afetivo fosse excessivamente intenso” (p. 24). Em Além do princípio do prazer (1920/2010), Freud prossegue, nesse sentido, fazendo uma analogia do traumático ao rompimento de um “escudo protetor”. As forças externas seriam tão poderosas a ponto de o aparelho psíquico não conseguir se defender. Haveria o rompimento de uma barreira e o psiquismo ficaria, assim, inundado. Em Inibições, sintomas e angústia (1926/2014), o autor aponta que tal “escudo” existiria apenas em relação aos estímulos externos, não havendo relação com as exigências pulsionais. Neste trabalho, Freud relaciona a incapacidade para manejar os estímulos ao estado de desamparo original, sendo este o protótipo da situação traumática e que desencadeia a ansiedade. O nascimento seria a primeira vivência traumática (Freud, 1933/2010) e, portanto, o trauma seria inerente à condição humana. Segundo Paim Filho e Machado (2005): “o trauma, em Freud, sempre permanece ligado a uma quantidade pulsional não assimilável pela psique. Assim, nas origens de um ser desamparado em termos biológicos e psíquicos, é inevitável que o pulsional seja sempre traumático” (p. 33). Sándor Ferenczi, importante psicanalista contemporâneo a Freud, refere-se ao trauma como produto de uma comoção psíquica a partir do acontecimento de uma situação inesperada, com a qual o sujeito não detém recursos emocionais para lidar. O “choque”, tal como propõe o autor, seria equivalente à anulação do sentimento de si, suspendendo as capacidades de resistir, agir, pensar e, consequentemente, de se defender. Assim, faz uma analogia deste evento “inesperado, não preparado e esmagador” como sendo um anestésico, que paralisa o indivíduo, deixando-o passivo e sem resistência, ao mesmo tempo suspendendo todo o tipo de atividade psíquica. Estando inativados a percepção e os sentidos sensoriais do sujeito, o autor aponta que as origens do choque se tornam inacessíveis a nível consciente. De qualquer modo, a consequência imediata do traumatismo é a angústia (Ferenczi, 1934/1992). Na constituição de um trauma, além da vivência do evento potencialmente traumático, Ferenczi (1934/1992) propõe que o comportamento dos adultos, diante da criança que sofreu o traumatismo, integra o modo de ação psíquica do trauma. Observa que atitudes positivas levam à superação dos eventos vivenciados: “Tem-se mesmo a impressão de que esses choques 32 graves são superados, sem amnésia nem sequelas neuróticas, se a mãe estiver presente, com toda a sua compreensão, sua ternura e, o que é mais raro, uma total sinceridade” (Ferenczi, 1933/1992, pp. 79-80). Por outro lado, atitudes de incompreensão, desconsideração e punição agem no sentido de produzir e consolidar o trauma: a criança, desmentida, permanece confusa, não sendo capaz de simbolizar a experiência vivida. Nesse contexto, o que o infante diz passa a ser entendido como mentira absoluta. Osmo e Kupermann (2012), ao analisar a obra de Ferenczi, apontam que o trauma patogênico é constituído em dois tempos: o choque e o desmentido. Elucidam que, para o autor, o trauma não se restringe à experiência individual do sujeito, mas se considera, nesse processo, o importante papel do ambiente, ou a “indiscernibilidade entre o bebê e o ambiente que o acolhe” (p. 338). É nesse sentido, enfatizando a função do ambiente, que Donald Winnicott, psicanalista inglês, concebe a noção de trauma. Diferente da noção freudiana que relaciona o trauma a magnitudes pulsionais e à economia psíquica do sujeito, para o autor, o trauma é explicado em termos relacionais: “a idéia de trauma envolve uma consideração de fatores externos; em outras palavras, é pertinente à dependência. O trauma é um fracasso relativo à dependência” (Winnicott, 1965/1994, p. 113). Winnicott (1965/1994) sustenta a premissa de que a família fornece à criança uma proteção quanto ao trauma. Considerando, no entanto, que a concepção de trauma está relacionada às interações humanas e à constituição do sujeito, a qual é permeada por estas relações ao longo dos anos de vida da criança, supõe-se que a família estaria, ao mesmo tempo, implicada no estabelecimento do trauma ao falhar no exercício de sua função. A ocorrência de falhas ambientais, sutis ou grosseiras promoveriam a distorção do processo de amadurecimento, interrompendo a continuidade do ser. Segundo o autor, “o ego não pode se organizar contra o fracasso ambiental, na medida em que a dependência é um fato de vida” (Winnicott, 1963/1994, p. 71). Para Winnicott (1965/1994), conforme o estágio de desenvolvimento emocional da criança, há uma variação no significado do trauma, e seu estudo deve ser conduzido pela análise do meio ambiente do indivíduo. O autor indica que, durante o processo de desenvolvimento da criança, tem-se uma evolução gradual do estágio de dependência absoluta em direção à independência relativa. Falhas iniciais no atendimento às necessidades básicas do bebê levariam a traumas mais sérios, pois “esse tipo de falha prejudica a realização das tarefas básicas do processo de amadurecimento: a integração temporal e espacial do bebê, o 33 estabelecimento da parceria psique-soma e a constituição do si mesmo” (Fulgencio, 2004, p. 265). Durante o processo de desenvolvimento, é esperado que o meio ambiente seja, inicialmente, adaptativo e, depois, de acordo com o amadurecimento do indivíduo, passe a ser gradualmente desadaptivo. Nesse sentido, Winnicott (1965/1994) postula haver um aspecto normal do trauma: “a mãe está sempre “traumatizando”, dentro de um arcabouço de adaptação” (p. 114). Esse processo de adaptação-desadaptação, ou adaptação relativa, é necessário no curso do desenvolvimento normal. Para Winnicott (1965/1994), a partir da previsibilidade do ambiente, a criança torna-se capaz de “acreditar”. Quando nesse estágio se instala o fracasso ambiental, estabelece-se um outro tipo de trauma: a criança pode exigir que o ambiente volte a ser confiável, atacando-o, ou em uma outra direção, mais grave, ocorre uma perda de confiança e esperança (Fulgencio, 2004), ou como diz Winnicott (1965/1994), “uma quebra da fé” (p. 114). O psicanalista concebe que quanto mais a criança alcança a integração, menor a possibilidade de que falhas ambientais levem a traumas. De acordo com Dias (2006), uma falha traumática em uma etapa posterior de desenvolvimento, estando já estabelecida a identidade unitária, não paralisará o processo de amadurecimento, embora traga sofrimento para o indivíduo. Winnicott (1965/1994) propõe ainda mais um significado para o trauma, como sendo: “a destruição da pureza da experiência individual por uma demasiada intrusão súbita ou impredizível de fatos reais, e pela geração de ódio no indivíduo, ódio do objeto bom experienciado não como ódio, mas delirantemente, como sendo odiado” (p. 114). Em linhas gerais, percebe-se que o trauma para o pensamento winnicottiano se relaciona ao conjunto de uma intrusão ambiental e à reação do indivíduo a ela. Observa-se um caráter temporal, ou seja, situações com potencial traumático são vivenciadas de diferentes formas, considerando o estágio de desenvolvimento de quem o vivencia. De posse das concepções de trauma para a psicanálise, passa-se a tratar, a seguir, especificamente a respeito da vivência do abuso sexual e as possíveis implicações emocionais para quem o experencia. De acordo com Pacheco e Malgarim (2012), “as crianças que vivenciaram o abuso sexual estão inscritas sob um excesso pulsional” (p. 621). As excitações que a situação abusiva desperta, que invadem o psiquismo e não são possíveis de serem representadas psiquicamente, podem configurar um trauma. Para a perspectiva psicanalítica, como se viu, o trauma está relacionado não somente a um evento externo, mas principalmente em como a vivência dele se relaciona aos aspectos internos do sujeito e como foi percebido pelo indivíduo (Malgarim & Benetti, 2010). Encontra- 34 se, assim, elucidação para a prerrogativa de uma mesma situação afetar e trazer consequências emocionais em intensidades diferentes para cada indivíduo: o impacto psicológico é muito particular, variável e subjetivo. A percepção do abuso sexual e os efeitos decorrentes variam conforme a idade da vítima, a duração do abuso, o grau de violência, a relação entre vítima e agressor, ameaças que tenha sofrido, a presença de referências parentais protetoras, dentre outros (Malgarim & Benetti, 2010). De qualquer forma, tais autores apontam que, em casos de abuso sexual, “é possível identificar que vivências concretas de experiências sexuais abusivas [...] são situações extremamente traumáticas e com consequências importantes no processo de desenvolvimento psíquico do sujeito” (Malgarim & Benetti, 2010, p. 131), considerando que os atos abusivos envolvem violência, sedução e quebra de valores universais (Pacheco & Malgarim, 2012). Cara e Neme (2016), em um estudo com crianças vítimas de violência sexual, apontam a prevalência de indicadores de comprometimento emocional relacionados à angústia, depressão, ansiedade e sintomas psicossomáticos, que sugerem transtorno de estresse pós- traumático (TEPT). Habigzang et al. (2010), na mesma direção, indicam o transtorno de estresse pós-traumático com elevada incidência em crianças e adolescentes que passaram por abuso sexual. Conforme expõe Minchoni (2010), a experiência de sofrer violência sexual impacta o processo de constituição da identidade, considerando que esse processo se dá na relação com o outro. Algumas características subjetivas comumente citadas pela literatura são sentimentos de desvalorização, baixa autoestima, medo, tristeza, ansiedade e dificuldade em confiar. A autora elenca também a distorção da autoimagem, o sentimento negativo em relação a si e ao próprio corpo e o quanto a vivência abusiva impacta nas relações interpessoais da criança e no estabelecimento de novas relações, uma vez que os sentimentos de segurança e confiança foram abalados. Nesse mesmo sentido, Almeida-Prado e Ferres-Carneiro (2005) indicam que a quebra de confiança favorece rupturas e distorções da autonomia do ego. Scortegagna e Villemor-Amaral (2012) apontam que, a partir da incapacidade de a criança suportar a percepção de sua realidade e do sofrimento advindo dela, sua capacidade de simbolizar torna-se precária. Malgarim e Benetti (2011) elucidam, a partir de estudos de casos incestuosos, que vivências traumáticas afetam a capacidade simbólica dos sujeitos, uma vez que tornam o processo identificatório marcado pela ambivalência entre amor e agressão ao objeto, impedindo uma internalização coesa das figuras parentais. As autoras afirmam que, devido à experiência real de violência, “a qualidade dissociativa do funcionamento psíquico reflete a cisão do objeto internalizado, aspectos associados aos sentimentos de amor e agressão 35 vividos, experiência que coloca a criança num estado confusional no qual representações do self e dos demais ficam distorcidas” (p. 512). Em relação ao aparelho psíquico, Davies e Fawley (1994) indicam que a experiência traumática do abuso sexual se relaciona a sérias dificuldades nas relações primárias ou vinculares, a vivências altamente ansiogênicas e a um funcionamento psíquico desorganizado, levando, assim, a falhas estruturais importantes. Anne Alvarez (2020, 2021), psicanalista canadense contemporânea que desenvolve um trabalho com crianças e adolescentes violentados, indica que o trauma pode se presentificar em uma diversidade de aspectos da personalidade do indivíduo. Baseando-se em estudos de neurocientistas, a autora aponta que a vivência de um trauma na primeira infância traz impactos comportamentais e psíquicos, podendo levar a pessoa a um caminho de desenvolvimento emocional e cognitivo desviante, que interfere inclusive no crescimento do cérebro. Considera, então, que a trajetória de desenvolvimento de crianças que sofreram abuso difere significativamente de crianças mais protegidas. Um dos pontos trazidos por Alvarez (2020) é o de que a criança pode vivenciar um “deslocamento” do trauma original diante de qualquer sinal de intrusão, mostrando-se assim maior sensibilidade e irritabilidade. A autora aponta que “o processo de aprender a aceitar a dor, a perda, o trauma ou o abuso é complicado, longo, nem sempre visível e certamente não necessariamente verbalizado” (Alvarez, 2020, p. 241). Ela postula que, nesse processo, há diferenças entre a criança moderadamente traumatizada e a mais danificada, cujo trauma é mais severo: enquanto a primeira, que teve afetada a personalidade em nível neurótico, pode precisar lembrar o trauma para poder esquecê-lo, a segunda pode, inicialmente, precisar esquecer o trauma para posteriormente ser capaz de lembrar. Torna-se, assim, importante identificar a condição psíquica do indivíduo, a fim de adotar o manejo adequado diante de cada caso. Entendendo o desenho e a brincadeira como formas de expressão inconsciente, Alvarez (2020), em atendimento a crianças carentes e cronicamente deprimidas, observa a dificuldade de usarem a imaginação, de desenhar ou brincar, indicando que “muitas são bastante incapazes de imaginar, mesmo em sua brincadeira, que a vida poderia ser diferente ou que poderiam exercer muito mais controle de seu destino” (pp. 260 – 261). A psicanalista argentina Susana Toporosi (2022), também contemporânea, traz importantes contribuições ao se dedicar, em sua atuação, a reconhecer o traumatismo sexual no psiquismo de crianças e adolescentes, além de favorecer a reapropriação de uma posição subjetiva digna e que se direcione à elaboração das vivências traumáticas. A autora chama atenção para a diferenciação entre o trauma e o acontecimento: este promove movimentos complexos para os quais o sujeito não dispõe de teorias para lhe dar sentido. Ela explica que 36 “o trauma surge porque permanece um resquício de angústia que não pode ser representado por palavras, ou seja, não pode ser simbolizado” (Toporosi, 2022, p. 51). A psicanalista indica que, diante de um acontecimento gerador de um trauma, produz- se uma alteração na forma de fazer relações na psique – a atividade simbólica permanece fraturada. Toporosi (2022) faz uma analogia dos efeitos do trauma com a passagem de um vendaval, que deixa pedaços quebrados, espalhados e esparramados. Ela aponta ainda que, no atendimento a essas crianças e adolescentes, na maioria dos casos não haverá um relato, uma brincadeira ou um desenho da experiência traumática como simbolização do ocorrido. No entanto, presentificam-se os “pedaços” que permanecem remoinhando, tal como se o vendaval continuasse soprando a partir de dentro do aparelho psíquico. A autora identifica que, de acordo com o lapso temporal entre a vivência da situação abusiva e o momento em que ocorre o atendimento psicológico há diferenças no tipo de acesso possível. Observa que quando a consulta é realizada pouco tempo após o acontecimento, a criança está sob o efeito desorganizador do trauma. Passado algum tempo, se faz possível identificar a organização de defesas pelo psiquismo – sendo este um processo fundamental para a criança continuar sua vida. Toporosi (2022) cita que, através dos mecanismos de recalque, pode haver um rompimento com as representações, que desaparecem da consciência: a criança violentada pode não lembrar do que aconteceu ou não conseguir contá-lo. Nesse sentido, a partir da experiência clínica, a psicanalista indica que os efeitos traumáticos do abuso sexual infantojuvenil podem emergir como uma multiplicidade de sintomas ou como um encapsulamento, de modo que a vivência da violência permaneça isolada. De qualquer forma, afirma que o contato emocional dos sujeitos com seus próprios impulsos, em geral, tem uma profunda alteração. Diante do conteúdo apresentado, percebe-se a complexidade e as nuances não só do fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes em si, mas também das repercussões psíquicas de uma vivência potencialmente traumática. Delineados, aqui, os fundamentos teóricos do estudo, que percorreram os temas da adolescência e do abuso sexual infantojuvenil, passa-se, neste momento, à delimitação da pesquisa. 37 4 DELIMITAÇÃO DA PESQUISA Neste capítulo aborda-se o delineamento da pesquisa. É apresentada, primeiramente, a justificativa, trazendo dados de estudos científicos recentes, a partir dos quais se depreende a relevância de se traçar intervenções psicológicas para o público infantojuvenil vitimizado. São apresentados os objetivos, geral e específicos, da presente pesquisa e, na sequência, as questões afetas ao método eleito para o estudo, incluindo aspectos teóricos e práticos concernentes à sua operacionalização. 4.1 JUSTIFICATIVA A demanda por atendimentos, no contexto judiciário, a adolescentes que passaram por situações de violência sexual é contínua e crescente. De acordo com dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, serviço do atual Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o Estado de São Paulo se figura, ao longo dos anos, como a localidade com maior número total de denúncias de violência contra crianças e adolescentes. No ano de 2023, através dos canais de denúncias, dentre eles, o Disque 100, foram 65.664 registros de violência contra o público infantojuvenil, sendo 6.942, relativas à violência sexual (Brasil, 2024). Ainda, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, neste mesmo ano, foram registrados 11.141 mil boletins de ocorrência de estupro de vulnerável – cerca de 31 casos por dia (São Paulo, 2023). Apesar de ser ainda um crime subnotificado, com real incidência difícil de ser conhecida, em razão de tabus e de preconceitos relacionados à sexualidade (Eloy, 2023), observa-se que a alta ocorrência de casos tem levado pesquisadores a direcionar o olhar para este fenômeno. Segundo Miyahara (2018), “o abuso sexual [...] é uma das violências contra crianças e adolescentes no seio de suas famílias que mais tem suscitado debates e desafios no que se refere às estratégias de intervenção” (p. 14). Tardivo (2016), em um estudo sobre a violência doméstica em crianças e adolescentes, aponta que, para além da identificação do fenômeno, é “indispensável a compreensão das vivências emocionais que decorrem da experiência da violência” (p. 14). E é nessa mesma direção que a presente pesquisa se orienta: a despeito das estatísticas, que por si só são alarmantes, o estudo pretende olhar para além dos números e lançar o olhar para as singularidades, isto é, para a dinâmica psíquica de adolescentes que passaram por situações de 38 abuso sexual. Qual o impacto da vivência da violência sexual no psiquismo do público juvenil? Como é vivenciada e elaborada? De acordo com Tardivo (2016), a experiência de violência doméstica afeta o desenvolvimento afetivo-emocional, podendo trazer severas consequências para o presente e o futuro dessas vítimas. Indica a importância de que mais pesquisas, empregando o uso de técnicas projetivas, sejam realizadas na área, com o objetivo não só de compreender a vivência emocional, mas também de desenvolver formas de proteger as crianças e atenuar possíveis consequências da violência em si. Miyahara (2018), em sua tese de doutorado, faz um aprofundamento reflexivo sobre o trabalho de escuta dos sujeitos envolvidos na trama incestuosa. Pontua que a experiência da violência sexual aparece inscrita no psiquismo dos sujeitos afetados, e que é necessário pensar em abordagens psicológicas, que ofereçam possibilidades de ressignificação de tal vivência. A autora evidencia a importância de se discriminar no sujeito singular os impactos psíquicos da violência. Os estudos desenvolvidos por Souza (2012), Cara e Neme (2016) e Pohl e Neves (2020) apontam a gravidade dos possíveis desdobramentos da vivência do abuso sexual durante a infância. Os resultados, segundo Cara e Neme (2016), permitem compreender que “a violência sexual contra crianças e adolescentes é um fenômeno complexo que envolve dimensões psicológicas, sociais e jurídicas e que gera consequências negativas importantes para as vítimas, como alterações cognitivas, comportamentais e emocionais” (pp. 397 – 398). Os autores colocam a relevância da construção de pesquisas que, além de abordar intervenções clínicas e colaborar com o tratamento dos sujeitos, ampliem as possibilidades de atuação dos profissionais, na prevenção, na proteção e no cuidado. Em relação ao uso do Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E) no contexto da avaliação de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, Brito (2017) propõe que essa técnica permite conhecer, de forma ampla e profunda, sentimentos de abandono, usualmente responsáveis pelo “desmoronamento” do ego desses sujeitos. Cuoghi e Barbieri (2017), ratificando essa proposição, identificaram, em um estudo de caso, que o conjunto das unidades de produção retratava um intenso sofrimento da criança, no qual se presentificavam sentimentos de solidão e desamparo. Nesse caso, a percepção das autoras é de que tais sentimentos se relacionavam mais à falta de um ambiente acolhedor e facilitador do desenvolvimento emocional, do que necessariamente à vivência do abuso sexual. Não obstante a isso, também se fez possível identificar que a criança apresentava recursos internos para continuar a se desenvolver. Torres (2014), por sua vez, em pesquisa na qual utilizou, dentre 39 outros instrumentos, os Desenhos de Família com Estórias (DF-E), indicou que a mensagem latente era a de que as participantes, apesar da violência a que estavam expostas, mostravam o desejo de sair dessa situação e serem felizes: mesmo diante das vivências traumáticas, conseguiam desejar uma saída positiva. Tratando-se do cenário em que se desenvolve a presente pesquisa – a entrevista prévia ao depoimento especial – Faizibaioff e Tardivo (2021) indicam a importância da avaliação psicológica prévia a uma oitiva judicial, que possibilita a predição de danos psíquicos associados ao depoimento especial, além de evitar a revitimização da criança e do adolescente. Apresentam um modelo de avaliação psicológica, com o uso das técnicas CAT-A, TAT e Procedimento de Desenhos-Estórias, que busca identificar possíveis danos psíquicos associados ao relato, em âmbito judicial, da suposta violência sofrida por crianças e adolescentes. Em relação à dimensão intrapsíquica do dano, apontam que tais técnicas permitem apreciar os seguintes constructos: “os perigos fantasiados, as ansiedades deles decorrentes e os mecanismos de defesa [grifo dos autores] empregados pela criança para equalizar o nível de tensão ansiogênica” (p. 160). Os autores chamam a atenção, neste contexto, sobre o cuidado dos atores judiciários a fim de buscar evitar a ocorrência de novos danos psíquicos às vítimas, que seriam caracterizados como advindos de violência institucional. Como se vê, os estudos recentes sobre o tema, além da experiência profissional no atendimento a este público, indicam a importância de se pensar em estratégias de intervenção psicológica, que visem à proteção, ao cuidado e à ressignificação das vivências abusivas. Considera-se que o momento da entrevista prévia, em âmbito judiciário, remonta a experiência do abuso sexual e é mobilizador de angústias, mas, ao mesmo tempo, entende-se que o atendimento psicológico, com o uso de técnicas de investigação clínica, possibilita o início da elaboração simbólica da vivência de violência, à medida em que os sujeitos se expressam através de formas indiretas e de sua escolha (Scortegagna & Villemor-Amaral, 2012). A realização do Procedimento de Desenhos-Estórias, tal como proposto neste estudo, propicia aos participantes o contato com suas emoções inconscientes, permitindo inclusive haver efeitos terapêuticos advindos da execução da atividade, e, ademais, possibilita ao profissional uma conduta mais assertiva. Ao se buscar compreender a experiência emocional de adolescentes que passaram por situações de abuso sexual e como essa vivência permeia a constituição subjetiva, o estudo pretende trazer contribuições para a ciência psicológica e para atuação profissional, especialmente nos contextos jurídico e clínico. Elencados os pontos, que justificam a realização da pesquisa, passa-se a apresentar os seus objetivos. 40 4.2 OBJETIVOS Objetivo geral - Compreender a experiência emocional de adolescentes que vivenciaram situações de violência sexual por intermédio do Procedimento de Desenhos-Estórias (D-E), aplicado em contexto judiciário durante a entrevista prévia ao depoimento especial. Objetivos específicos - Analisar as repercussões emocionais decorrentes das vivências de situações de violência sexual, que emergem a partir do D-E; - Identificar as contribuições do uso do D-E no atendimento psicológico preparatório à participação do público infantojuvenil em oitivas judiciais; - Promover reflexões sobre o uso do D-E como instrumento que possibilita a elaboração das situações de violência, vivenciadas por adolescentes. 4.3 MÉTODO 4.3.1 Método qualitativo de pesquisa A produção do conhecimento científico se dá pela busca de articulação entre teoria e realidade empírica. Compreende-se que o método, tal como um conjunto de regras e procedimentos, ou simplesmente um “caminho” a ser seguido, viabiliza, em um determinado contexto, a obtenção de dados, que apoiam nas elucidações dos constituintes do mundo (Turato, 2003). O método de pesquisa, segundo Minayo (2007), tem o papel essencial de “tornar plausível a abordagem da realidade a partir de perguntas feitas pelo investigador” (p. 54). Para o desenvolvimento da presente pesquisa elegeu-se o método clínico-qualitativo, utilizando como estratégia metodológica o estudo de caso à luz do referencial teórico psicanalítico. Antes de se adentrar às peculiaridades do método, cabe fazer uma breve consideração a respeito das investigações qualitativas, também chamadas de compreensivo- interpretativas (Chaui, 2000; Turato, 2003). 41 O método qualitativo é definido por Minayo (2007) como o que “se aplica ao estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam” (p. 57). Chaui (2000) indica que em uma abordagem compreensiva-interpretativa os objetos de estudo são os sentidos dos comportamentos, das práticas e das instituições estabelecidas pelos seres humanos. Assim, por meio de variadas técnicas, busca-se interpretar os fenômenos humanos e suas relações de significações para o indivíduo e para o grupo, ou seja, o que as pessoas dizem, fazem ou como lidam com eles (Turato, 2003). Proposto como um refinamento dos métodos qualitativos clássicos das ciências humanas, o método clínico-qualitativo tem suas bases não apenas na sociologia compreensiva e na antropologia cultural, mas também na prática clínica e na psicanálise. O referido método se sustenta, segundo Turato (2003), a partir de três pilares: a atitude existencialista, a atitude clínica e a atitude psicanalítica. Para o pesquisador, tais atitudes se relacionam, respectivamente, à valorização de angústias e ansiedades, apresentadas tanto pelo sujeito a ser estudado quanto pelo pesquisador em seu processo de busca pelo conhecimento; à acolhida dos sofrimentos emocionais da pessoa, movida pelo desejo e hábito de ofertar uma ajuda terapêutica; à incorporação de concepções psicanalíticas básicas na construção e aplicação dos instrumentos de pesquisa, na relação com o participante, bem como na interpretação dos conteúdos trazidos (Turato, 2003). As pesquisas clínico-qualitativas partem tanto de saberes teóricos quanto das próprias experiências e percepções do pesquisador. Desenvolvido em settings de Saúde, englobando a discussão sobre um conjunto de técnicas e procedimentos, o autor define o método clínico- qualitativo como: [...] um meio científico de conhecer e interpretar as significações – de nat