U M A B A R A T A C H E I A D E E S P I N H O S (Leitura intertextual de A Metamorfose, de Franz Kafka, e A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector) Antônio Donizeti PIRES* l-A METAMORFOSE, DE FRANZ KAFKA A novela A Metamorfose (Die Verwandlung) foi escrita por Franz Kafka (1883 - 1924) entre 17 de novembro e 7 de dezembro de 1912. Publicada primeiro na revista Die Weissen Blätter (As Folhas Brancas), em outubro de 1915, e depois na coleção expressionista Der Jüngste Tag (O Juízo Final), da editora Kurt Wolff, de Leipzig, a novela mereceu uma segunda edição (caso excepcional na vida de Kafka) em 1918. O escritor acalentou o objetivo de publicar a novela juntamente com os textos curtos O Veredicto e O Foguista, sob o título geral de Filhos (Söhne); depois, quis juntar A Metamorfose a O Veredicto c a Na Colônia Penal, cujo título seria Punições (Strafen). Todavia, procedeu às edições em separado das referidas obras: O Foguista (primeiro capítulo do romance O Desaparecido, inacabado) foi publicado em 1913; O Veredicto, em 1916; Na Colônia Penal, em 1919. A Metamorfose, em linhas gerais, é a história de Gregor Samsa, um caixeiro-viajante que certa manhã, após uma nořte de pesadelos, acorda metamorfoseado num inseto gigantesco. O primeiro parágrafo da novela já nos apresenta, de forma objetiva, a personagem central, o espaço onde será * Aluno do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - Faculdade de Ciências e Letras - UNESP - 14800-901 - Araraquara - SP. desenrolada a ação e o tempo em que se dá o estranho acontecimento: "Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso" (Kafka, 1986, p. 7). Uma descrição objetiva, vazada numa linguagem seca e exata (o alemão protocolar do então Império Austro-Húngaro), centrada num foco narrativo em terceira pessoa, em discurso indireto livre, feito por um narrador onisciente, pinta-nos o retrato do pobre rapaz-inseto: Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas inúmeras pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos. (Kafka, 1986, p. 7) A partir de então, dada a irreversibilidade de sua transformação, o rapaz toma-se brutalmente animalizado, sem o poder da fala e da comunicação, preferindo nutrir-se com restos de alimentos e adquirindo os hábitos repulsivos dos insetos: arrasta-se pelo teto e pelas paredes, acostuma- se ao lixo e ao. convívio com toda espécie de utensílios imprestáveis e, incapaz de fazer valer sua vontade, mergulha cada vez mais numa abjeta solidão, que o levará à morte. As outras personagens também são apresentadas pelo narrador logo no início do texto: os pais e a irmã do caixeiro-viajante, a empregada, o patético gerente da loja para a qual Gregor trabalha, cuja vinda ao apartamento da família pode ser vista como a instauração de um penoso processo para apurar a culpa e a responsabilidade do rapaz, a exemplo do que ocorre em O Processo e O Castelo. Com a metamorfose de Gregor, sua família, que dependia financeiramente dele, passa a se arranjar como pode: seu pai, afastado do comércio após uma falência inexplicada, é agora um mero contínuo bancário e enverga, com certa arrogância, seu uniforme azul com botões dourados; sua mãe, velha e cansada, é obrigada a costurar, até altas horas da noite, roupas íntimas de senhoras para uma loja; a irmã de Gregor é a única que entra em seu quarto para levar-lhe comida, mas acaba negligenciando sua tarefa devido ao cansaço que os estudos e os vários trabalhos lhe impõem; a empregada é despedida e a arrumação da casa é confiada a uma velha faxineira viúva e ossuda, que humilha o pobre Gregor de várias maneiras. Finalmente, para completar o orçamento doméstico, a família aluga quartos para três mqwlinos impertinentes. O espaço é claramente definido em A Metamorfose (um apartamento de classe média, localizado na rua Charlote, no coração de uma grande cidade, por certo Praga), mas o quarto de Samsa apresenta uma peculiaridade interessante: não há corredores separando-o dos outros cômodos da casa, mas três portas o ligam ao quarto dos pais, ao quarto da irmã e à sala de jantar, o que provoca uma interpenetração de intimidades extremamente inconveniente. 0 quarto do rapaz, decorado com papel de parede florido, também sofre uma espécie de metamorfose, transformando-se "...numa toca..." (Kafka, 1986, p. 50), onde se acumulam lixo, trastes inúteis e as imundícies da cozinha. O rapaz não mais reconhece o espaço que o circunda, confundindo o hospital em frente com "...um deserto, no qual o céu cinzento e a terra cinzenta se uniam sem se distinguirem um do outro" (Kafka, 1986, p. 45). O tempo, na narrativa, apresenta-se sob um duplo aspecto: há o tempo interior vivido por Gregor, no qual suas experiências passadas confundem-se com as presentes, sentidas como se os dias e os meses não tivessem passado. Isolado e sem possibilidade de comunicação, o rapaz vive à mercê de sua consciência reificada, à qual o narrador tem um acesso muito restrito. Assim, em "flash-back", lembra-se do antigo chefe e dos colegas de serviço, bem como de certa moça cortejada por ele. Como não percebe o fluir do tempo, pergunta-se angustiado: "...será mesmo que o Natal já tinha passado?" (Kafka, 1986, p. 74). Por outro lado, há a linearidade do tempo na narração, o qual transcorre pelo período de alguns meses, mais ou menos de meados do outono/inverno até a primavera seguinte. Algumas pistas oferecidas pelo narrador, aqui e ali, ajudam-nos a situar temrrøralrnente a narrativa: "...ouviam-se gotas de chuva batendo no zinco do parapeito..." (Kafka, 1986, p. 8); "...nos primeiros tempos..." (Kafka, 1986, p. 40); "...quanto mais o tempo passava" (Kafka, 1986, p. 45); "...já havia passado bem um mês desde a metamorfose de Gregor..." (Kafka, 1986, p. 46); "...no decorrer desses dois meses..." (Kafka, 1986, p. 50); "...talvez já um sinal da primavera que chegava..." (Kafka, 1986, p. 68); "Afinal já era fim de março" (Kafka, 1986, p. 83). A narrativa culmina com a morte do rapaz, para alívio da família, e as coisas tomam um novo rumo: o inseto monstruoso é atirado na lata de lixo, pela mesma faxineira ossuda e insuportável; a família decide alugar um apartamento menor após a dispensa dos mquihnos e da faxineira e, após - 1 * 7 - meses de sofrimento e transtorno, resolve sair a passeio pelo subúrbio da cidade. O senhor e a senhora Samsa, à vista da filha recem-