___________________________________________________________________ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ___________________________________________________________________ FORMAÇÃO BIOÉTICA PARA PROFISSIONAIS DA ÁREA JURÍDICA: UM ESTUDO A PARTIR DO CASO DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS NO STF EDILSON ANTEDOMENICO Junho – 2018 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO unesp 1 EDILSON ANTEDOMENICO FORMAÇÃO BIOÉTICA PARA PROFISSIONAIS DA ÁREA JURÍDICA: UM ESTUDO A PARTIR DO CASO DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS NO STF Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ – Câmpus de Rio Claro, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Educação. Orientadora: Profa. Dra. Marcia Reami Pechula. Rio Claro 2018 2 3 4 Aos meus admiráveis pais, Antonio Carlos e Maria Helena, à minha querida esposa, Tamires Matos da Silva Antedomenico, e a nossa já amada e mais que aguardada filha, Elisa Matos Antedomenico, promessa divina. 5 AGRADECIMENTOS A Deus, pela oportunidade de completar mais esta jornada. A toda minha família, pelo profundo carinho, amor e respeito. À Profa. Dra. Marcia Reami Pechula, pela inestimável orientação e parceria, bem como aos integrantes do nosso grupo de estudos, pela prazerosa convivência. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação, pelo ambiente profícuo de aprendizagem. Aos funcionários da Biblioteca, da Secretaria Acadêmica do Departamento de Educação e da Seção Técnica de Pós-Graduação do IB, pelo suporte e auxílio. 6 RESUMO Como preparar profissionais da área jurídica que a cada dia são requisitados a se posicionar sobre questões bioéticas inusitadas? Tendo como pano de fundo o caso das pesquisas com células-tronco embrionárias no STF, a pesquisa aqui proposta voltou-se ao estudo dos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética atualmente existentes no Brasil, com o intuito de orientar quem deseja se especializar nessa nova área do conhecimento, que ainda é carente de profissionais capacitados para discutir as questões éticas trazidas pela tecnociência. Pretendemos defender nesta tese que uma formação bioética, nesse sentido, pode ajudar na resolução dos novos dilemas trazidos pelo desenvolvimento acelerado da ciência, contribuindo, assim, para uma compreensão mais plena da realidade. A importância de se estudar o assunto é devido à crescente institucionalização jurídica na área da bioética que, por estar ainda em franco desenvolvimento, está sujeita a toda sorte de interpretações e decisões judiciais, dada a falta de formação bioética específica. Palavras-chave: Bioética. Biodireito. Formação bioética. 7 ABSTRACT How to prepare professionals in the legal area who are asked each day to position themselves on unusual bioethical issues? Against the backdrop of the case of embryonic stem cell research in the STF, the research proposed here has returned to the study of the Stricto Sensu Postgraduate Programs in Bioethics currently existing in Brazil, with the intention of guiding those who wish to specialize in this new area of knowledge, which is still lacking in trained professionals to discuss the ethical issues brought about by technoscience. We intend to defend in this thesis that a bioethical formation in this sense can help in solving the new dilemmas brought by the accelerated development of science, thus contributing to a fuller understanding of reality. The importance of studying the issue is due to the growing legal institutionalization in the area of bioethics which, because it is still in full development, is subject to all sorts of interpretations and judicial decisions, given the lack of specific bioethical training. Keywords: Bioethics. Biolaw. Bioethics formation. 8 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Programas de Pós-Graduação em Bioética no Brasil..............................112 Tabela 2: Objetivos gerais do PPG em Bioética da UnB.........................................114 Tabela 3: Objetivos específicos do PPG em Bioética da UnB.................................114 Tabela 4: Linhas de pesquisa do PPG em Bioética da UnB....................................115 Tabela 5: Disciplinas do PPG em Bioética da UnB..................................................118 Tabela 6: Corpo docente do PPG em Bioética da UnB...........................................118 Tabela 7: Caracterização das potenciais atividades do egresso do PPGBIOS.......120 Tabela 8: Linhas de pesquisa do PPGBIOS............................................................121 Tabela 9: Disciplinas do PPGBIOS..........................................................................123 Tabela 10: Corpo docente do PPGBIOS.................................................................124 Tabela 11: Objetivos do PPG em Bioética da PUCPR............................................127 Tabela 12: Linhas de pesquisa do PPG em Bioética da PUCPR............................127 Tabela 13: Disciplinas do PPG em Bioética da PUCPR..........................................128 Tabela 14: Corpo docente do PPG em Bioética da PUCPR....................................129 Tabela 15: Objetivos específicos do PPG em Bioética da Univás...........................131 Tabela 16: Perfil do egresso do PPG em Bioética da Univás..................................131 Tabela 17: Linhas de pesquisa do PPG em Bioética da Univás..............................132 Tabela 18: Estrutura curricular do Mestrado em Bioética da Univás.......................132 Tabela 19: Corpo docente do PPG em Bioética da Univás.....................................133 Tabela 20: Lista dos trabalhos constituintes do corpus documental.......................135 9 LISTA DE FIGURAS Figura 1: Distribuição geográfica dos PPGs em Bioética no território brasileiro.....112 Figura 2: Área de formação dos docentes do PPG em Bioética da UnB................120 Figura 3: Área de formação dos docentes do PPGBIOS........................................126 Figura 4: Área de formação dos docentes do PPG em Bioética da PUCPR..........130 Figura 5: Área de formação dos docentes do PPG em Bioética da Univás............134 10 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ANIS Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CDH Centro de Direitos Humanos CEDH Corte Europeia de Direitos Humanos CEP Comitês de Ética em Pesquisa CF Constituição Federal CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNBS Conselho Nacional de Biossegurança CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CONEP Comissão Nacional de Ética em Pesquisa CTeh Células-Tronco embrionárias humanas CTNBio Comissão Técnica Nacional de Biossegurança CUSC Centro Universitário São Camilo DUBDH Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos ESC Embryonic Stem Cells (Células-Tronco Embrionárias) EUA Estados Unidos da América FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz FIV Fertilização In Vitro MEC Ministério da Educação MOVITAE Movimento em Prol da Vida OAB Ordem dos Advogados do Brasil OGM Organismos Geneticamente Modificados OMS Organização Mundial da Saúde PNB Política Nacional de Biossegurança PPG Programa de Pós-Graduação PPGBIOS Programa de Pós-Gradução em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva PUCPR Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCRS Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro UFF Universidade Federal Fluminense UFPR Universidade Federal do Paraná 11 UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UnB Universidade de Brasília UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNIVÁS Universidade do Vale do Sapucaí USP Universidade de São Paulo STF Supremo Tribunal Federal SUS Sistema Único de Saúde TJSP Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................14 1 O VALOR DE TER VALORES................................................................................23 1.1 Valores éticos e morais........................................................................................23 1.2 Ética, moral e direito.............................................................................................25 1.3 O retorno da ética ao direito.................................................................................30 1.4 Valores e atividade científica................................................................................33 2 BIOÉTICA E DIREITO............................................................................................39 2.1 Bioética – breve retomada do contexto histórico-social.......................................39 2.2 A bioética e sua interface com o direito: o biodireito............................................45 2.3 A força normativa dos princípios bioéticos...........................................................50 2.4 Demandas judiciais envolvendo a bioética...........................................................53 2.5 As pesquisas com células-tronco embrionárias do contexto da Lei de Biossegurança............................................................................................................57 2.6 A Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3.510/08............................................59 3 BIOÉTICA – REAPROXIMANDO A ÉTICA DA CIÊNCIA.....................................66 3.1 O controle da atividade científica.........................................................................66 3.2 A ciência é a única forma de conhecimento?.......................................................70 3.3 A ciência pode tudo?............................................................................................72 3.4 Ciência e formação ética......................................................................................73 3.5 A perspecitiva ética escolhida..............................................................................75 3.6 Cautela: a palavra de ordem................................................................................78 4 PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS .................................81 4.1 O que são células-tronco embrionárias?..............................................................81 4.2 Questões em torno do conceito do início da vida humana..................................85 4.3 Bioética do início da vida......................................................................................89 4.4 Quando começa a vida humana?.........................................................................90 4.5 Teorias jurídicas acerca do início da vida humana..............................................95 4.6 A polêmica em torno do uso das células-tronco embrionárias.............................96 5 FORMAÇÃO E EDUCAÇÃO EM BIOÉTICA.......................................................100 5.1 Educação em ciências........................................................................................100 5.2 Tecnociência e biotecnologia: carência do debate bioético...............................101 5.3 Formação bioética..............................................................................................105 6 ONDE CONSEGUIR FORMAÇÃO BIOÉTICA?...................................................110 6.1 Os Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética...........................110 6.2 PPG em Bioética do Centro Universitário São Camilo.......................................113 6.3 PPG em Bioética da Universidade de Brasília...................................................114 6.4 PPG em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS).......................120 6.5 PPG em Bioética da PUCPR..............................................................................126 6.6 PPG em Bioética da Universidade do Vale do Sapucaí (Univás/MG)...............130 13 7 ANÁLISE DA PRODUÇÃO ACADÊMICA DOS PPGs EM BIOÉTICA................135 7.1 A constituição do corpus documental.................................................................135 7.2 Teses e dissertações relacionadas à temática ―formação bioética‖...................137 7.3 Teses e dissertações relacionadas à temática ―demandas judiciais envolvendo a bioética‖....................................................................................................................146 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................157 REFERÊNCIAS........................................................................................................161 14 INTRODUÇÃO De um lado a ética, preocupada com a busca do bem, do justo. De outro a ciência, a quem foi dada a tarefa de buscar a verdade. Bem e verdade: dois valores imiscíveis ou a bem da verdade duas faces de uma mesma moeda? Se a resposta a essa pergunta for a de que bem e verdade devem caminhar lado a lado, não tem por que separar a ética da ciência, ou seja, não faz sentido pensar em ciência e ética como disciplinas autônomas, isoladas e independentes. Assim, como partes integrantes de um todo complexo, imprescindível se mostra a necessidade de mais estudos para melhor compreender suas interligações. Desse modo, como restabelecer a ligação entre ética e ciência? Como conciliar a busca do bem (ética) com a busca da verdade (ciência)? Como garantir uma formação que promova a reunião dessas duas áreas do saber? Como preparar profissionais da área jurídica que a cada dia são requisitados a se posicionar sobre questões bioéticas inusitadas, como as pesquisas com células-tronco embrionárias? As técnicas biotecnológicas que envolvem a manipulação de vida humana, por suas implicações éticas, necessitam de um suporte legal para ser desenvolvidas. Um tema bastante discutido no Brasil e no mundo, atualmente, refere-se ao uso das células-tronco embrionárias em pesquisas científicas. (ARAUJO et al., 2010, p. 42). Pretendemos defender nesta tese que uma formação bioética, nesse sentido, pode ajudar na resolução dos novos dilemas trazidos pelo desenvolvimento acelerado da ciência, contribuindo, assim, para uma compreensão mais plena da realidade, na medida em que a bioética propõe a integração dessas duas áreas do conhecimento, que por muito tempo ficaram isoladas. Portanto, para melhor entender o mundo em que vivemos, é premente que se promovam debates e discussões sobre as questões éticas emergentes no campo da tecnociência, e a formação bioética é o caminho para isso, pois fomenta o pensamento crítico e reflexivo, bem como faz despertar no indivíduo a consciência dos valores que direcionam e dão sentido a nossas vidas. A reflexão ética traz à luz a discussão sobre a liberdade de escolha. A ética interroga sobre a legitimidade de práticas e valores 15 consagrados pela tradição e pelo costume. Abrange tanto a crítica das relações entre os grupos, dos grupos nas instituições e perante elas, quanto à dimensão das ações pessoais. Trata-se, portanto, de discutir o sentido ético da convivência humana nas suas relações com várias dimensões da vida social: o ambiente, a cultura, a sexualidade e a saúde. (BRASIL, 1997, p. 25). Assim, quem sabe, estaremos preparados para construir uma sociedade mais humana, em que responsabilidade com o presente seja sinônimo de cuidado com o futuro, ou seja, de preservação da existência das atuais e das próximas gerações. Uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os perigos cada vez mais verossímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos temer que o século XXI termine antes de começar. (SANTOS, 2010, p. 14). A importância de se estudar o assunto é devido à crescente institucionalização jurídica na área da bioética que, por estar ainda em franco desenvolvimento, está sujeita a toda sorte de interpretações e decisões judiciais, tendo em vista que os referenciais éticos comumente adotados pelos profissionais do direito, baseados principalmente em códigos de deontologia (deveres) ou de diceologia (direitos), tais como o Código de Ética da Magistratura Nacional e o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), apesar de possuírem conteúdo ético, ―não se podem confundir com a ética, enquanto juízo ou reflexão crítica sobre valores‖. (HOSSNE, 2001, p. 117). No mesmo sentido, comparando-se o atual Código de Ética e Disciplina da OAB (2015) com o anterior (1995), nota-se que houve um retrocesso quanto à formação ética dos advogados. Enquanto que no código anterior (art. 50, II), havia certa preocupação em relação à ―organização, promoção e desenvolvimento de cursos, palestras, seminários e discussões a respeito de ética profissional, inclusive junto aos Cursos Jurídicos, visando à formação da consciência dos futuros profissionais para os problemas fundamentais da ética‖, no código atual essa preocupação deixou de existir, ficando evidente mais uma vez a predominância da ética profissional sobre a formação moral do advogado, tal como se depreende da leitura do art. 70, V: ―Compete aos Tribunais de Ética e Disciplina: V – organizar, promover e ministrar cursos, palestras, seminários e outros eventos da mesma natureza acerca da ética profissional do advogado ou estabelecer parcerias com as Escolas de Advocacia, com o mesmo objetivo‖. 16 A preocupação com a ética profissional do operador do direito parece ficar sempre em primeiro plano, o que prejudica a formação humanística pautada em valores éticos, sobretudo quando estamos a falar em bioética, um tema pouco ou quase nada abordado durante a graduação, bem como em cursos de formação/capacitação da área jurídica. No que diz respeito ao conteúdo do curso de formação inicial é necessário asseverar que deve ser dada ênfase para a ética profissional, definindo, desde o início, quais os paradigmas morais a serem seguidos pelos novos juízes, com o objetivo de se construir uma magistratura proba e comprometida com a sociedade. Assim, a primeira disciplina ministrada não pode ser outra senão a Deontologia Jurídica, baseada nos Códigos de Ética da Magistratura nacional e, também, no Código Ibero-Americano de Ética Judicial, onde serão apresentadas as virtudes judiciais (qualidades básicas do magistrado) e o seu perfil ético. (BASTOS, 2012, p. 226). Consultando-se rapidamente a estrutura curricular dos cursos de graduação em Direito das universidades estaduais paulistas (USP/SP, USP/Ribeirão Preto e Unesp/Franca), fica fácil de comprovarmos que nenhuma delas possui em seu currículo obrigatório disciplinas específicas para o ensino de bioética ou de biodireito, as quais são ofertadas somente na modalidade ―disciplina optativa‖, restando clara a pouca importância dada à formação bioética de seus alunos. O fato é que a bioética e o biodireito ainda não ocuparam assentos definitivos nas faculdades de Direito, sendo seu ensino feito de modo setorial e compartimentado (NAVES, 2002). Se o ensino da bioética para o nível educacional superior é sobretudo praticado nas faculdades de Medicina e Farmácia, parece também indispensável desenvolvê-lo nas faculdades de Biologia, assim como em outras instituições formadoras de profissionais de saúde. Além da esfera da medicina e da pesquisa seria desejável impulsionar ações de formação para esclarecer os responsáveis atuais e futuros sobre as implicações éticas de suas decisões em matéria biomédica nas faculdades de Direito, de Economia e de Ciências Humanas. (LENOIR, 1996, p. 69). A perspectiva ética proposta neste trabalho para balizar a atividade científica é a da ética da responsabilidade, de Hans Jonas, bem como a do ethos que se responsabiliza, de Leonardo Boff. 17 Questões bioéticas têm sido cada vez mais levadas a discussão perante à Corte Europeia de Direitos Humanos, levando o Tribunal a editar, em 2012, um manual sobre os principais casos julgados (―Research report: Bioethics and the case-law of the Court‖), bem como a reeditá-lo em 2016, tamanho o aumento de casos levados a juízo. O mesmo ocorrendo também perante o Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF), conforme demonstram o caso da interrupção da gravidez em fetos com anencefalia e o caso das pesquisas com células-tronco embrionárias, sendo este o pano de fundo da presente tese. O neologismo bioética demarcou um espaço, e o símbolo de uma reflexão ética e filosófica sobre questões relacionadas à vida humana atualmente atinge um matiz tecnológico, isto é, o diálogo com a técnica. A consequência é que os juízes do STF estão enfrentando questões que não são de cunho científico ou religioso, mas filosófico. Temas como a (in)constitucionalidade das pesquisas com células- troncos embrionárias e a possibilidade de autorizar-se judicialmente aborto em fetos anencéfalos devem ser fundamentados, pois atingem questões de fundos eminentemente conceituais. Nessas questões, estão em pauta muito mais do que o dilema a respeito de quando começa a vida, mas quanto ao que se deve entender por vida e o que deve ser respeitado como vida, ou seja, a discussão é eminentemente filosófica e recai sobre os fundamentos dos conceitos. Por meio da Filosofia, é possível apurar e questionar os sentidos que a legislação e a jurisprudencialização estão imprimindo à vida, aos direitos humanos e à dignidade em uma realidade de avanço da ciência e da técnica. (SILVEIRA, 2009, p. 249). Um jurista, portanto, para decidir, para tomar decisões acerca de dilemas bioéticos, precisa de formação específica. Estão nossos bacharéis em direito preparados para esse novo tipo de demanda? Essa formação implicaria no quê? No ensino da bioética como tema transversal? Na participação dos profissionais em grupos de pesquisas? Em cursos de atualização e/ou especialização? Apesar de considerarmos que a educação bioética seja necessária a toda sociedade, um enfoque especial será dado neste trabalho para a formação dos profissionais da área jurídica, dado o profundo vínculo existente entre o direito e a bioética. Direito e bioética: dois saberes que promovem a formação de indivíduos capazes de refletir e construir uma sociedade que caminha sem se deter rumo à justiça social, uma sociedade que promova a todos o vivenciar da dignidade humana. (VIEIRA, 2010, p. 76). 18 Para tanto, será feita uma análise dos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética atualmente existentes no Brasil, o que parece ser útil não somente para a formação pós-acadêmica, mas também para a educação continuada e para programas educacionais dirigidos a membros de comitês de ética em pesquisa. Por ser a Bioética um campo de discussão no qual muitos saberes e conflitos éticos estão envolvidos, considera-se que a atuação em Comitês de Ética Institucionais é indispensável à aquisição de experiência profissional. Como é de conhecimento de todos os profissionais que atuam nesse novo campo do saber, além do conhecimento de filosofia moral e cultura humanística, a vivência e a experiência prática são atributos essenciais ao perfil pessoal e profissional daqueles que se dedicam à Bioética. (FIGUEIREDO, 2011, p. 167). Mas onde buscar formação bioética? Para responder essa pergunta será feito um estudo de cinco programas de pós-graduação stricto sensu, escolhidos por serem os únicos cadastrados na Plataforma Sucupira/Capes relacionados à área de bioética no Brasil, a saber: 1) Programa de Pós-Graduação em Bioética do Centro Universitário São Camilo; 2) Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília; 3) Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva por associação entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Fundação Oswaldo Cruz, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense; 4) Programa de Pós-Graduação em Bioética da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; e 5) Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade do Vale do Sapucaí/MG. Assim, pretendemos identificar o perfil de cada curso, através de consulta aos sítios eletrônicos dos programas e de seus regulamentos, bem como de suas respectivas teses/dissertações, com o objetivo de orientar a formação bioética dos profissionais da área jurídica. Hoje, o que se nota é que a formação bioética é ainda incipiente e se limita, na maioria das vezes, à presença de disciplinas isoladas de ética/bioética em cursos de graduação e pós-graduação, conforme estudo efetuado por Aires et al. (2006, p. 285), na área da Odontologia. 19 Dos 87 programas, 48 apresentaram disciplina de Ética/Bioética. Trinta e oito por cento dos programas com conceitos 5, 6 e 7 da CAPES mantêm disciplinas de Bioética, enquanto 62% dos programas com conceitos 3 e 4 apresentaram conteúdos de Bioética. Desta forma, os resultados deste estudo representam um alerta para os educadores envolvidos em ensino da pesquisa odontológica. Estes resultados também mostraram que a instrução em bioética ainda é incipiente nos programas de pós-graduação em Odontologia no Brasil, ainda que a resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde tenha sido publicada há dez anos. Por este motivo, seria necessário assegurar uma pedagogia ética na formação do jovem pesquisador. Mas como formar em bioética? Ensinar bioética ou educar em bioética? A nossa preocupação aqui não é a de criar mais uma disciplina no já tão sobrecarregado currículo acadêmico. Também não é pensar tão somente na transmissão de conhecimentos em bioética. É, acima de tudo, capacitar e formar pessoas, ampliar horizontes, ofertar possibilidades para reflexão e deliberação sobre os avanços da tecnociência, como bem defendido por Hossne (2006a, p. 148): ―Em bioética é preciso educar-se‖. A ética é um componente essencial da educação. E educar é essencialmente formar. A ciência moderna, fruto do positivismo filosófico, manteve durante muito tempo a intenção de ser uma atividade objetiva, neutra e para o progresso da humanidade. O positivismo filosófico foi fruto de uma idealização do conhecimento científico, uma crença romântica e onipotente de que os múltiplos domínios da indagação e da atividade intelectual pudessem ser regidos por leis naturais, invariáveis, independentes da vontade e da ação humana. O homem chegara à sua maioridade racional e tudo passara a ser ciência: o único conhecimento válido, a única moral, até mesmo a única religião. O universo, conforme divulgado por Galileu, teria uma linguagem matemática, integrando-se a um sistema de leis a serem descobertas, e os métodos válidos nas ciências da natureza deviam ser estendidos às ciências sociais. (BARROSO, 2001, p. 28). Dentro das humanidades, ainda de acordo com Barroso (2001), quem mais recebeu a influência do positivismo filosófico foi o Direito, que elaborou uma teoria própria, o positivismo jurídico. Se de um lado o positivismo filosófico criou um abismo entre a ciência e a ética, por outro lado o positivismo jurídico apartou a ética do direito, tudo isso para ganhar o status de ―ciência jurídica‖. 20 O positivismo jurídico foi a importação do positivismo filosófico para o mundo do Direito, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica, com características análogas às ciências exatas e naturais. A busca de objetividade científica, com ênfase na realidade observável e não na especulação filosófica, apartou o Direito da moral e dos valores transcendentes. Direito é norma, ato emanado do Estado com caráter imperativo e força coativa. A ciência do Direito, como todas as demais, deve fundar-se em juízos de fato, que visam ao conhecimento da realidade, e não em juízos de valor, que representam uma tomada de posição diante da realidade. (BARROSO, 2001, p. 29). Nessa busca imparcial da verdade, a ciência acabou se transformando na forma preponderante de conhecimento, e deixamos de lado velhas legitimações sociais, a exemplo da filosofia (ética), e passamos a viver em uma grave crise mundial de valores, notadamente nos séculos XX e XXI, quando se começou a perceber que, ao lado das benesses da ciência, havia também um grande risco de subjugação do ser humano. O desenvolvimento desenfreado da modernidade cedeu espaço à insegurança, a certeza do progresso deu margem a dúvidas, e o medo do desconhecido tolheu a nossa capacidade de sonhar. Assim, Edgar Morin (2000, p. 79) chama a atenção para o fato de que ―os séculos precedentes sempre acreditaram em um futuro, fosse ele repetitivo ou progressivo. O século XX descobriu a perda do futuro, ou seja, a sua imprevisibilidade‖. Para combater essa problemática, no início da década de 1970, surgiu nos Estados Unidos da América (EUA) uma nova área do conhecimento, a bioética, que visava trazer para perto da ciência o mundo dos valores. Desde então, a bioética vem se preocupando com os efeitos da atividade científica sobre os seres vivos e o meio ambiente, sobressaindo daí questões como aborto, eutanásia, pesquisas com células-tronco embrionárias, reprodução assistida, eugenia, transgenia e poluição ambiental. A bioética, portanto, trouxe a possibilidade de romper os limites entre a ciência e a ética, reaproximando essas duas áreas do saber. A época fecunda da não-pertinência dos julgamentos de valor sobre a atividade científica terminou. Disse fecunda porque houve uma fecundidade no fato de a ciência criar, no século 17, uma autonomia diante da religião, do Estado e das consequências morais que o próprio conhecimento provoca. A ciência precisava emancipar seu 21 imperativo ético próprio e único, "conhecer por conhecer", quaisquer que fossem as conseqüências. (MORIN, 2005, p. 126). Ocorre que em alguns setores a bioética é vista como uma área do conhecimento já bastante consolidada, porém, no campo educacional ela ainda é pouco conhecida e estudada. Durante nossa pesquisa de mestrado, pudemos diagnosticar que entre os fatores que mais afetam a evolução da bioética e de seu desdobramento com o campo jurídico (o biodireito), destacam-se: o distanciamento da ética e do direito; e a falta de uma educação voltada à bioética. Constata-se uma intermediação entre a ética e o direito na regulação do agir científico. A ética ocupa-se daquilo que diz respeito à fundamentação moral, cuidando o direito do aspecto da legalidade. Essa unidade nutre uma ordem jurídica que se baseia na dignidade humana para justificar os valores protegidos constitucionalmente. Ao se valer da ética, o direito não a torna secundária, mas, ao contrário, torna-a evidente na realidade. (CAMPOS JUNIOR, 2012, p. 223). Assim, a formação bioética de profissionais da área jurídica parece ser importante para a resolução desses problemas, pois ela possibilita a reaproximação da ética com o direito, bem como aponta caminhos para uma educação bioética. A formação bioética, portanto, constitui hoje vetor insubstituível para o enfrentamento dos novos valores impostos pela tecnociência, pois não é com a ―solução de problemas técnicos que se determinará o nosso futuro, mas sim os problemas éticos, já que nossa sociedade degrada a pessoa humana e sacraliza as coisas‖. (BARCHIFONTAINE, 2006, p. 214). Desse modo, esperamos que uma formação bioética possa trazer uma nova dimensão ética e cultural da educação humana, já que a bioética nos permite fazer uma reflexão atualizada dos novos valores com que a humanidade se depara (ZANCANARO, 2006). De cunho teórico e de natureza qualitativa, a presente pesquisa consistirá na análise de documentos relacionados aos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu acima referidos, tais como normas e diretrizes, propostas, estruturas curriculares, teses e dissertações, os quais serão acessados por meio dos respectivos sítios eletrônicos. Como instrumento para a análise documental será adotada a ―análise de conteúdo‖, tal como proposta por Bardin (2009). 22 Nessa perspectiva, o primeiro capítulo, intitulado ―O valor de ter valores‖, busca demonstrar a importância dos valores na vida em sociedade, chamando a atenção para a necessidade de a ética caminhar lado a lado com o direito e com a ciência. Já o segundo capítulo, intitulado ―Bioética e direito‖, consistiu em revisão bibliográfica dos aspectos teóricos e epistemológicos da bioética e do biodireito, para compreensão das novas demandas judiciais que envolvem questões bioéticas. O terceiro capítulo (―Bioética: reaproximando a ética da ciência‖) remete ao problema de como a bioética pode enfrentar o mito da neutralidade da ciência, implantado pelo positivismo, já que ―ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra‖. (FREIRE, 1996, p. 30). O quarto capítulo (―Pesquisas com células-tronco embrionárias‖) traz um panorama das questões éticas envolvidas nesse tipo de pesquisa e aponta para a necessidade de uma ―formação bioética‖ em relação aos dilemas éticos trazidos pela tecnociência, tal como discutida no quinto capitulo. No sexto capítulo, intitulado ―Onde conseguir formação bioética‖, é feito um mapeamento dos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética atualmente existentes no Brasil. Por fim, no sétimo capítulo, intitulado ―Análise da produção acadêmica dos PPGs em Bioética‖, estabelecemos relações, a partir das categorias de análise ―formação bioética‖ e ―demandas judiciais envolvendo a bioética‖, entre o corpus documental e o referencial teórico adotado. 23 CAPÍTULO 1: O VALOR DE TER VALORES 1.1 Valores éticos e morais O que deve orientar nossas vidas? Talvez essa seja a pergunta mais repetida ao longo da história. De todas as possíveis respostas, a ética parece ser a mais comumente encontrada. Dentre todas as preocupações que motivaram a reflexão desde os primórdios da cultura ocidental, é bem possível que a Ética tenha sido a primeira. Por tudo o que se conhece da civilização grega em seus períodos mais arcaicos, sabe-se que as elaborações místicas, as religiões, a poesia, a tragédia, a organização da vida política e outras manifestações do pensamento ocupavam-se intensamente com o significado ético da vida humana. Quando nos voltamos para as primeiras tentativas de ordenação do pensamento em função da explicação do mundo e do lugar que o homem nele ocupa, notamos imediatamente a mescla dos objetivos de compreensão do cosmos, como ordem física, com a preocupação em atingir os princípios de caráter ético que fundamentam e governam a organização do universo. Tanto é assim que não se pode separar com exatidão o conhecimento físico da reflexão acerca dos valores intrinsecamente ligados à dinâmica do mundo natural. (SILVA, 1993, p. 7). Para que o convívio social seja possível e harmonioso é preciso que as pessoas reflitam constantemente sobre a sua postura em relação a seus pares, devendo por isso ter sempre em mente a seguinte pergunta: como devemos agir perante ou outros? Essa é a questão central da ética e da moral (BRASIL, 1998). Esses dois termos, ética e moral, têm significados muito próximos, motivo da enorme confusão gerada entre eles, mas, em geral, referem-se a conjuntos de princípios e padrões de conduta que regulam a vida em sociedade. A ética, portanto, é a parte da filosofia que estuda a moral, que reflete sobre a moralidade humana (BRASIL, 2007). A ética vem a ser o conjunto de princípios que ilumina, na prática, a conduta moral de um indivíduo. Ela é, de acordo com Bittar (2011), como uma balança, na qual devem ser pesadas as diferenças de comportamentos, de condutas, de pontos de vista, para medir-lhes a utilidade, a finalidade e as consequências. Pelo fato de a distinção entre os termos moral e ética ser muito tênue, Aranha (1996) adverte que eles, embora sejam diferentes, são com frequência usados como 24 sinônimos. A etimologia dos termos é semelhante: moral vem do latim ―mos‖, ―moris‖, que significa maneira de se comportar regulada pelo uso, daí costume, e de ―moralis‖, ―morale‖, o que é relativo aos costumes. Ética vem do grego ―ethos‖, que tem o mesmo significado de ―costumes‖. Em geral, na visão de Pessalacia (2009), a ética relaciona-se à reflexão sobre as questões fundamentais do agir humano (sentido da vida, natureza do bem e do mal, valor da consciência moral etc.), enquanto que a moral é designada como a aplicação, ao concreto, à ação. A ética, portanto, é a teoria e a moral é a prática, ou seja, são os princípios éticos que orientarão o comportamento moral que deveremos tomar em uma dada situação fatídica, em um caso concreto. A ética é um conjunto de princípios e valores que guiam e orientam as relações humanas. Constitui uma reflexão teórica e generalizada sobre a ação humana, tendo como função explicar a realidade. Ela busca definir, por exemplo, o que é o bem, por que o homem deve praticá-lo ao invés de fazer o mal, o sentido da felicidade, assim por diante. Já a moral, nesse contexto seria o princípio particular que rege o comportamento humano, estando ligada a situações concretas. Os valores morais nascem da prática comportamental e tendem a estimular a ação das pessoas na sociedade. (CAMILO, 2007, p. 30-31). Cortina e Martínez (2005) nos ensinam que tanto a moral quanto a ética pretendem orientar o homem em suas ações, mas há uma sutil diferença: enquanto a moral pergunta ―o que devemos fazer?‖, a ética pergunta ―por que devemos fazer?‖. Dessa forma, temos que a ética preocupa-se com as justificativas razoáveis das condutas morais, ou seja, de nossas tomadas de posição diante da realidade. Ela explica por que é certo e por que é errado agir em determinado caso concreto. Chauí (1997) destaca ainda que a moral corresponde ao conjunto de valores instituídos por uma cultura e sociedade e válidos para todos os seus membros, sendo que esses valores referem-se à condução correta das ações, ao que é o bem e o mal, ao que é aceito e o que não é aceito (permitido). Nesse sentido, a ética corresponde à reflexão crítica sobre os valores morais (GOMES; MOURA; AMORIN, 2006). Assim, a importância de estudarmos a ética reside no fato de que a existência de um código moral não garante a co-existência de uma ética, ou seja, de uma reflexão sobre os significados morais (PUPLAKSIS, 2011). 25 Como vimos, a origem das palavras ética e moral sempre esteve ligada à ideia de costume, sendo essa, possivelmente, o motivo da confusão existente entre os termos. Ainda que etimologicamente ética e moral retirem seu sentido de costume (ethos, em grego, e mos, em latim) e este, por sua vez, do habitat, da moradia habitual, estrutura modal dos seres vivos de habitar o mundo, o conceito quer designar, no categorial filosófico, uma qualidade do sujeito humano como ser sensível aos valores, com um agir cuja configuração se deixe marcar por esses valores a que sua consciência subjetiva está sempre se referindo. Sensibilidade axiológica que, do ponto de vista de sua experiência pelo sujeito, é análoga à sensibilidade epistêmica da razão. Característica específica dos seres humanos, ela precisa ser cultivada e sustentada, pois, tanto quanto o conhecimento, essa experiência não é fruto da ação exclusiva das forças vitais e instintivas do ser vivo. (SEVERINO, 2006, p. 623). E a educação é o caminho para a construção de valores, pois acreditamos que a ética pode ser adquirida ou ensinada, e não que ela dependa apenas de virtudes inerentes à natureza humana. A ética foi uma das questões centrais de filósofos da antiguidade, de forma mais explícita pelo menos desde Sócrates, seguido por Platão, e, deste, por Aristóteles, em seu livro Ética a Nicômaco (CRUZ; GUERRA FILHO, 2000). Assim, de acordo com a ética aristotélica, marcada por um forte senso teleológico, toda ação humana tende a um fim último, a felicidade – bem supremo procurado por todos nós (SILVA, 1998). Desse modo, o que pode existir de mais valioso na vida, quer dos indivíduos, quer das sociedades, senão alcançar a plena felicidade? É essa a preocupação da ética (COMPARATO, 2006). Conforme leciona Castro Filho (2001), a ética nos permite uma visão total do homem como um ser social e histórico, criador e transformador, estando relacionada a diversos conceitos, tais como liberdade, necessidade, valor, consciência, responsabilidade e direito. 1.2 Ética, moral e direito De acordo com Miguel Reale (2002a), estamos aqui diante de um dos problemas mais difíceis e dos mais fascinantes da filosofia jurídica, o da diferença entre a ética, a moral e o direito. 26 O direito não deve prescindir da ética e da moral, pois delas dependem a coesão e a sobrevivência da sociedade, já que o nosso cotidiano é repleto de momentos em que temos que fazer uma escolha e, para não causarmos nosso próprio sofrimento (não exclusivamente subjetivo, mas em relação à humanidade), precisamos buscar referenciais que justifiquem tal escolha (CORTINA, 2003). Nesse sentido, Lima Vaz (2002, p. 242) destaca que a resposta para a crise das sociedades políticas contemporâneas está na questão mais decisiva que lhes é lançada, a da significação ética do ato político ou a da relação entre ética e direito, enfatizando que a resposta a ser encontrada irá depender o destino das sociedades justas, que é o sentido original do termo sociedade política; caso contrário, essas sociedades sofrerão a influência de imensos sistemas mecânicos, que eliminarão a liberdade e regularão – ―apenas só modelos sempre mais eficazes e racionais do arbítrio dos indivíduos, já então despojados de sua razão de ser como humanos ou como portadores do ethos‖. O debate acerca da relação entre ética e direito é uma das mais antigas preocupações da filosofia prática. Pelo menos desde Platão e Aristóteles tem havido esforços da filosofia ocidental para abordar essa questão complexa, a qual tem sido objeto de estudo de vários filósofos contemporâneos do direito, a exemplo de Dworkin, Kaufmann e Miguel Reale, e com o advento da bioética, essa questão voltou à tona (BILLER-ADORNO, 2008). É, pois, na complexidade das relações pós-modernas, advindas das interferências recíprocas entre direito, ética e moral, que se situa a problemática ética trazida pelo progresso técnico-científico (BARRETTO; SUBTIL, 2010). Reale (2002a) evidencia que a ética, quando apreciada em função da intencionalidade do agente, do valor da subjetividade do autor da ação, visando à plenitude de sua individualidade, assume o nome de moral; já quando apreciada em função das relações intersubjetivas, do valor da coletividade em que o indivíduo atua, a ética assume duas denominações distintas: a da moral social (costumes e convenções sociais), e a do direito. Todos os homens procuram alcançar o que lhes parece ser o ―bem‖ ou a felicidade. O fim que se indica com a palavra ―bem‖ corresponde a várias formas de conduta que compõem, em conjunto, o domínio da Ética. Esta, enquanto ordenação teórico-prática dos comportamentos em geral, na medida e enquanto se destinam à realização de um bem, pode ser vista sob dois prismas 27 fundamentais: a) O valor da subjetividade do autor da ação; b) O valor da coletividade em que o indivíduo atua. No primeiro caso, o ato é apreciado em função da intencionalidade do agente, o qual visa, antes de mais nada, à plenitude de sua subjetividade, para que esta se realize como individualidade autônoma, isto é, como pessoa. A Ética, vista sob esse ângulo, que se verticaliza na consciência individual, toma o nome de Moral, que desse modo, pode ser considerada a ética da subjetividade, ou do bem da pessoa. Quando, ao contrário, a ação ou conduta é analisada em função de suas relações intersubjetivas, implicando a existência de um bem social, que supera o valor de bem de cada um, numa trama de valorações objetivas, a Ética assume duas expressões distintas: a da Moral Social (Costumes e Convenções Sociais); e a do Direito. (REALE, 2002a, p. 39). Assim, relata Vázquez (2002) que, de todas as formas de comportamento humano, o jurídico ou legal (direito) é o que mais intimamente se relaciona com a moral, porque os dois estão sujeitos a normas que regulam as relações do homem. Destaca o autor espanhol que a moral e o direito possuem elementos comuns e mostram, por sua vez, diferenças essenciais, mas essas relações, que ao mesmo tempo possuem um caráter histórico, baseiam-se na natureza do direito como comportamento humano sancionado pelo Estado e na natureza da moral como conduta valorativa de cunho subjetivo e voluntário. Desse modo, a moral distingue-se do direito pelo fato de que suas normas não têm como as normas jurídicas o caráter coercitivo. O direito só pode ser distinguido essencialmente da moral quando (...) se concebe como uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto que as suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer em consideração o emprego da força física. (KELSEN, 1999, p. 44). Assim, podemos dizer que a moral é o mundo da conduta espontânea, do comportamento que encontra em si próprio a sua razão de existir. O direito é a ordenação bilateral atributiva das relações sociais, na medida do bem comum. Existe entre o direito e a moral, portanto, uma diferença básica que podemos indicar com esta expressão: a moral é incoercível e o direito é coercível. Logo, o que distingue o direito da moral é a coercibilidade, inequívoca relação existente entre direito e força (REALE, 2002a). 28 Tradicionalmente, de acordo com o filósofo do direito Chaïm Perelman, os estudos consagrados às relações entre o direito e a moral insistem, dentro de um espírito kantiano, naquilo que os distingue: O direito rege o comportamento exterior, a moral enfatiza a intenção, o direito estabelece uma correlação entre os direitos e as obrigações, a moral prescreve deveres que não dão origem a direitos subjetivos, o direito estabelece obrigações sancionadas pelo poder, a moral escapa às sanções organizadas. (PERELMAN, 2005, p. 298-299). Assim, na visão do autor polonês (PERELMAN, 2005, p. 299), Os juristas, descontentes, com uma concepção positivista, estadística e formalista do direito, insistem na importância do elemento moral no funcionamento do direito, no papel que nele desempenham a boa e a má-fé, a intenção maldosa, os bons costumes, a equidade, e tantas outras noções cujo aspecto ético não pode ser desprezado. E conclui dizendo que: Tanto é verdade a aproximação da moral com o direito que a regra geral, ou pelo menos a presunção, é a conformidade entre as regras morais e a regras jurídicas. É por essa razão que o estudo do direito, ao reconhecer para a moral sua pertinência costumeira, impedirá o teórico de lançar-se em simplificações exageradas. (PERELMAN, 2005, p. 305). Significando dizer que ―existe mais do que uma relação complementar entre direito e moral, mas um entrelaçamento simultâneo entre ambos‖. (HABERMAS, 1992, p. 62). Segundo Kaufmann (2004), a doutrina da total separação do direito em face da moral liga-se principalmente aos nomes de Kant, Thomasius e Fichte. Em tempos mais recentes foi defendida, de forma particularmente bem marcada, na ―Teoria Pura do Direito‖ de Kelsen, conhecida como positivismo jurídico. Por meio dessa teoria, que recebeu forte influência do positivismo filosófico de Augusto Comte, para que o direito ganhasse o status de ciência, ele deveria incorporar o método das ciências naturais. Entre um fato social e um jurista, portanto, para garantir a neutralidade e a objetividade da dogmática jurídica, existiria 29 somente a letra fria da lei, não havendo espaço para o juízo ou a reflexão crítica sobre valores (ética). O positivismo tornou-se, nas primeiras décadas do século XX, a filosofia dos juristas. A teoria jurídica empenhava-se no desenvolvimento de idéias e de conceitos dogmáticos, em busca da cientificidade anunciada. O Direito reduzia-se ao conjunto de normas em vigor, considerava-se um sistema perfeito e, como todo dogma, não precisava de qualquer justificação além da própria existência. Com o tempo, o positivismo sujeitou-se à crítica crescente e severa, vinda de diversas procedências, até sofrer dramática derrota histórica. A troca do ideal racionalista de justiça pela ambição positivista de certeza jurídica custou caro à humanidade. (BARROSO, 2001, p. 30). Mascaro (2012a) destaca que a partir do século XIX o Estado, dominado pela burguesia, começa a regulamentar exaustivamente, por meio de suas leis, o interesse burguês e as formas de exploração capitalistas. Por esse motivo, desde então, começa haver, no pensamento jurídico, uma insistente proposta de se entender o direito apenas como um conjunto de normas postas pelo Estado, chamando-se esse movimento de compreensão do direito de positivismo jurídico ou juspositivismo. A ideologia do positivismo jurídico é sempre muito interessante às classes dominantes, porque apregoa o cumprimento da ordem imposta pelo Estado sem contestações estruturais. As classes burguesas controlam o Estado e estipulam por meio das normas estatais os seus interesses. Por isso a ideologia das classes dominantes começa a apregoar que todas as regras a serem seguidas pela sociedade deverão ser apenas as regras postas pelo Estado. Essa ideologia, chamada de positivismo (a palavra positivismo vem de ―posto‖, ou seja, a lei imposta pelo Estado), não dá margem à contestação da ordem, sendo eminentemente conservadora e, portanto, favorável aos interesses burgueses. (MASCARO, 2012a, p. 24). Nesse sentido, salienta Kaufmann (2004) que a identificação entre direito e moral é afirmada pela maioria das doutrinas de direito natural (jusnaturalismo) e, não por acaso, pelas ditaduras contemporâneas; o que gera forte insegurança jurídica. Considerado metafísico e anticientífico, o direito natural foi empurrado para a margem da história pela ascensão do positivismo jurídico, no final do século XIX. Em busca de objetividade jurídica, o positivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o da filosofia e de 30 discussões como legitimidade e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeira metade do século XX. Sua decadência é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, regimes que promoveram a barbárie sob a proteção da legalidade. Ao fim da 2ª Guerra, a ética e os valores começam a retornar ao Direito. (BARROSO, 2004, p. 31). Assim, podemos dizer que nenhuma daquelas concepções (o positivismo jurídico e o jusnaturalismo) considerava devidamente a estrutura relacional que existe entre ética e direito, a sua polaridade, no sentido duma oposição meramente relativa que não exclui, e antes supõe uma estreita conexão. A ética e o direito são, sob muitas perspectivas, realidades distintas, mas não desligadas entre si, urgindo desse modo a necessidade de um novo paradigma para a compreensão do fenômeno jurídico (KAUFMANN, 2004). O grande problema do positivismo jurídico surge da sua pretensão em negar todo o questionamento filosófico, mediante a construção de verdades definitivas. O século XXI lega um (re)pensar paradigmático, pois se o paradigma positivista atual restringe a produção de racionalidades à racionalidade legal, é tempo de (re)criar o paradigma; a dificuldade para o novo entrar persiste enquanto o velho estiver presente. (SILVEIRA, 2009, p. 249). Portanto, não há outra forma de compreender o fenômeno jurídico em sua inteireza se continuarmos insistindo no legado deixado pelo positivismo, o da completa apartação da ética e do direito. Logo, é preciso abrir alas para que o novo possa entrar. 1.3 O retorno da ética ao direito Um novo paradigma passou a ser formado com o pensamento do brasileiro Miguel Reale, com a sua Teoria Tridimensional do Direito, a qual destaca que a palavra direito deve ser apreciada, por abstração, em tríplice sentido, segundo três perspectivas dominantes: 1) o Direito como valor do justo, estudado pela Filosofia do Direito na parte denominada Deontologia Jurídica, ou, no plano empírico e pragmático, pela Política do Direito; 2) o Direito como norma ordenadora da conduta, objeto da Ciência do Direito ou Jurisprudência; e da Filosofia do Direito no plano epistemológico; 3) o Direito como fato social e histórico, objeto da História, da Sociologia 31 e da Etnologia do Direito; e da Filosofia do Direito, na parte da Culturologia Jurídica. (REALE, 2002b, p. 497). Assim, antes de fazermos o enquadramento de um caso concreto à norma legal em abstrato, é preciso, primeiro, passarmos por um juízo de valoração, de ponderação sobre os motivos determinantes que convergiram para a ocorrência do fato. Dessa forma, podemos concluir que a teoria proposta pelo jurista brasileiro é a de que o direito possui uma estrutura tridimensional, visto como o elemento normativo, que disciplina os comportamentos individuais e coletivos, e que pressupõe sempre uma dada situação de fato, referida a valores determinados. De acordo com Nader (2001), toda experiência jurídica para Miguel Reale: Pressupõe sempre três elementos: fato, valor e norma, ou seja, ―um elemento de fato, ordenado valorativamente em um processo normativo‖. O Direito não possui uma estrutura simplesmente factual, como querem os sociólogos; valorativa, como proclamam os idealistas; normativa, como defendem os normativistas. Essas visões são parciais e não revelam toda a dimensão do fenômeno jurídico. Este congrega aqueles componentes, mas não em uma simples adição. Juntos vão formar uma síntese integradora, na qual cada fator é explicado pelos demais e pela totalidade do processo. (NADER, 2001, p. 459). A Teoria Tridimensional do Direito é uma teoria jurídica muito original e conhecida internacionalmente, na qual Reale teria superado o mero normativismo jurídico que prevalecia nos meios acadêmicos e jurisprudenciais de sua época, demonstrando que o fenômeno jurídico decorre de um fato social, recebe inevitavelmente uma carga de valoração humana (ética), antes de se tornar norma. Assim, fato, valor e norma em seus diferentes momentos, mas interligados entre si, explicariam a essência do fenômeno jurídico (GONZALES, 2007). Portanto, a concepção tridimensional do direito, que assinala um esforço de superamento ou de síntese de explicações unilaterais da vida do direito, pois seus três elementos, longe de se justaporem, ordenam-se na unidade de um processo visando o filósofo, o sociólogo e o jurista, respectivamente, o valor, o fato e a norma, em razão dos dois outros fatores inerentes à juridicidade (MONTORO, 2009). Diante do exposto, percebe-se que o relacionamento entre o direito e a ética é deveras antigo e constitui, certamente, um dos grandes celeumas do pensamento jusfilosófico de todas as eras. 32 Conduzindo o problema a nossa realidade é comum verificar, no antro dos corredores escolásticos, a famosa concepção positivista de Direito como conjunto de normas, impostas coativamente pelo Estado, que regem a vida em sociedade. Mas estará ainda essa compreensão de Direito apta a açambarcar todos os valores éticos que precisam estar inclinados na norma jurídica? Principalmente em face do aumento da estima dada à interpretação principiológica, própria do pós-positivismo? Onde estão a Ética e a busca pela Justiça? A importância cega à normatividade conduz ao império da lei e, em regra, da interpretação exegética simples – a subsunção do fato à norma – prática que, comprovadamente, já nos causou tantos males no século passado. A solução separatista kelseniana induz a uma norma jurídica desprovida de apelo ético e, portanto, pouco preocupada com a justiça. (LIMA JÚNIOR, 2010, p. 62). Após o pensamento do jurista brasileiro, no final da segunda metade do século XX, surgiu um novo movimento que buscava compreender o fenômeno jurídico a partir de uma perspectiva axiológica. Muitos denominam essa nova junção do direito e da ética de pós-positivismo ou neocontitucionalismo, embora não haja consenso ao redor dessa nomenclatura. John Rawls, Ronald Dworkin, Robert Alexy e Jürgen Habermas, entre tantos outros pensadores, cada qual ao seu modo, criaram escolas para uma espécie de reintrodução da ética no fenômeno jurídico (MASCARO, 2012b). A partir do momento de reflexão necessária com o pós-guerra, o direito se depara com a necessidade de repensar toda a ideia de uma teoria ―pura‖ e avalorativa nos moldes positivistas propostos até então. O modelo estatal resultante desse momento assume toda a carga axiológica já esboçada em época de constitucionalismo social e adiciona, como valor fundamental, a questão da democracia. Surge, então, o Estado Democrático de Direito fundado na dignidade da pessoa humana. É nesse ambiente de necessária reformulação teórica que começam a surgir as reflexões que mais tarde serão agrupadas sob o rótulo – ainda em construção – de neoconstitucionalismo. (MAIA, 2009, p. 29). A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma 33 teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo neste paradigma e construção incluem-se a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a filosofia. (BARROSO, 2004, p. 31). Portanto, uma reaproximação do direito com a ética se faz necessária, sobretudo quando falamos em bioética. Não há outra saída a não ser retomar o elo com a Filosofia e com a Ética, buscando um espaço de diálogo para a construção de fundamentos racionais sobre valores culturais. A atenção deve voltar- se às convicções de uma pós-modernidade imersa em uma falta de referenciais. (SILVEIRA, 2009, p. 250). Nas últimas décadas, temos visto uma trajetória de aproximação entre o direito e a ética com vistas à superação do isolamento causado pelo positivismo jurídico, o que vem renovando a relação entre os sistemas de normas e o sistema de valores da sociedade, abrindo caminho para o pós-positivismo, também conhecido como neoconstitucionalismo, o qual abriga um conjunto difuso de ideias que incluem a volta dos valores ao direito, a formulação de uma teoria da justiça e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana, de modo que direito e ética enfrentem juntos os desafios das novas descobertas científicas, que deram ao homem o poder de interferir em processos antes privativos da natureza (BARROSO, 2013). 1.4 Valores e atividade científica Qual a ciência que queremos para o século XXI? Digo queremos porque a ciência faz parte de nossas vidas e, como tal, ela precisa ser discutida por todos nós, não sendo ela matéria exclusiva dos cientistas, da comunidade científica. ―Eu diria que o problema das pesquisas com células-tronco embrionárias é tão sério que não pode ficar na mão de cientistas‖. Essas foram as palavras do ministro do STF Cesar Peluso para justificar seu voto sobre a Lei de Biossegurança, 34 que resultou numa acalorada discussão sobre ética na pesquisa científica (GUILHEM; DINIZ, 2014). Mas estamos preparados para discutir os dilemas éticos que a ciência pode desencadear? Compostos químicos capazes de melhorar a produção agrícola, mas que podem se transformar em armas de destruição (―armas químicas‖). Descobertas genéticas promissoras que podem propiciar a cura de diversas doenças, mas que podem se transformar em armas de destruição (―armas biológicas‖). E muito mais... Ao longo da história, a atividade científica insistiu em sua inocência e boa vontade, que tornariam supérflua toda interferência moral ou restrição de sua liberdade. Essa imunidade ficou difícil de sustentar na medida em que os cientistas participam de projetos militares, invadem fronteiras críticas do saber – genética, nanotecnologia – ou escolhem áreas e temas de pesquisa por serem economicamente promissoras. As respostas oficiais em diversas nações têm sido ceder a pressões da sociedade civil e proporcionar o controle ético mediante proibição ou negativa de financiamento público a pesquisas em animais não-humanos, ao uso de células embrionárias, à clonagem reprodutiva ou a outras áreas moralmente críticas. (KOTTOW, 2008, p. 15). Basta lembrarmos, para tanto, que o desenvolvimento da ciência ocorreu sobremaneira em épocas de guerra. Novas armas, novas fontes de geração de energia e novas teorias para explicar a matéria que, se distantes dos devidos aspectos axiológicos, podem colocar em risco a sobrevivência humana e causar um ―mal-estar na civilização‖.1 E, nesse sentido, a formação em bioética desempenha um papel estratégico – não militar, mas humanístico e democrático – para a formação dos cidadãos, que estão imersos num mundo cada vez mais influenciado pelo ―avanço‖ científico e tecnológico e que, por isso, precisam desenvolver competências e habilidades para tomadas de decisões frente aos novos e complexos desafios postos pela ciência. A Bioética na educação atuaria, então, como contraponto imprescindível para frear esse processo e lançar as bases de uma sociedade harmônica, pois seria uma ponte entre os conhecimentos científicos e os valores humanos universais. (OLIVEIRA, 2013, p. 7). 1 Somente após setenta e um anos do lançamento da bomba atômica em Hiroshima é que um presidente norte-americano visitou a cidade japonesa destruída durante a Segunda Guerra Mundial. 35 A educação assegura a formação, a divulgação e a disseminação do saber, fazendo brotar as primeiras sementes em um terreno que ainda não conhecemos bem as suas propriedades. A cada nova prospecção em busca da compreensão do real, surge uma nova indagação ética antes que se tome uma atitude proativa, como bem ilustra a cautela atual com o uso de organismos geneticamente modificados e com a liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias (LEPARGNEUR, 2006). A educação assume, assim, a tarefa conscientizadora, e ao mesmo tempo, os educandos assumem um papel protagonista em uma sociedade que requer mudanças mais democráticas de distribuição de conhecimento e de modelos de tomadas de decisões que envolvem a vida e a saúde humana. (GRAND, 2012, p. 6, tradução nossa)2. Ainda mais na atualidade, em que a ciência passou a ser uma forma de conhecimento eminentemente ligado ao mercado e ao capital (tecnociência), fonte importantíssima de poder, cujo domínio está nas mãos de poucos. Assim o conhecimento científico, ao invés de estar a serviço da emancipação do homem, suprindo suas necessidades efetivas, voltou-se cada vez mais para os fins de mercado da sociedade capitalista. Que fins são estes? O sistema capitalista, embora fundado na racionalidade científica, coloca fins irracionais: progresso ao infinito, visando ao enriquecimento cada vez maior de uma parcela cada vez menor da humanidade, por meio da dominação da natureza e do outro ser humano a qualquer custo. (CARDOSO, 1998, p. 4). A tecnociência tem sido parte da preocupação de diversos autores da contemporaneidade, a exemplo do sociólogo Boaventura de Sousa Santos; do filósofo e educador Edgar Morin; do antropólogo, sociólogo e filósofo Bruno Latour e do filósofo da ciência Hugh Lacey, trazendo este último a seguinte questão ao centro da agenda da pesquisa científica: Como deve ser conduzida a pesquisa científica, por quem e com quais prioridades, e utilizando quais tipos de metodologias, mas como (em colaboração com quais movimentos e instituições) deve 2 La educación toma así la tarea concientizadora, y al mismo tiempo los educandos asumen un rol protagónico en una sociedad que requiere cambiar hacia formas más democráticas de distribución del conocimiento y de modelos de toma de decisiones que involucren la vida y la salud humana. 36 ser o conhecimento científico utilizado, as tecnologias desenvolvidas e administradas, de modo a assegurar que a natureza seja respeitada, que seus poderes regenerativos não sejam solapados, e que sejam restaurados sempre que possível, e que os direitos e o bem-estar de todos e as condições para a participação construtiva numa sociedade democrática sejam fortalecidos em todo o mundo? (LACEY, 2013, p. 1). Dessa maneira, pretendemos trazer à tona a discussão da responsabilidade ética e social no campo da ciência, mostrando que a tecnociência, quando bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, mas, para isso, ética e ciência devem caminhar lado a lado (PAPA FRANCISCO, 2015). Precisávamos aqui de um aporte teórico que pudesse estabelecer um diálogo entre ciência e religião e, por esse motivo, escolhemos nos apoiar na doutrina da Igreja Católica, não somente por convicção religiosa, mas pela relação controvertida que ela sempre teve com a ciência, bem como para entender a influência dos argumentos bíblicos no discurso jurídico-político. A Igreja Católica, no seu interesse em conhecer, servir e evangelizar acompanha a sociedade de nossos dias em sua contínua transformação. A partir do Concílio Vaticano II, assume o diálogo como o caminho para estar em contato com o mundo em que vive. Tem consciência de que a reflexão deve ser desenvolvida num âmbito interdisciplinar, atenta ao evoluir das situações. Realiza isso a partir da experiência de fé, captando o sentido teologal presente nas diversas realidades e acontecimentos. Acompanha o avanço das ciências, hoje em especial a Bioética, num interesse embasado na Ética e numa escuta atenta das interpelações de Deus nos sinais dos nossos tempos. Fé e ciência passam a travar um diálogo necessário, numa relação de apreço e entendimento, uma podendo oferecer à outra uma contribuição enriquecedora e complementar. (AGOSTINI, 2013, p. 185). Apoiamos, portanto, o avanço da tecnociência orientado pela ética, pelo senso de responsabilidade, de cuidado e de respeito ao próximo e ao meio ambiente. E, nesse sentido, as ciências de baixa tecnologia, tal como a educação, podem ajudar na discussão, na reflexão e na formação de uma consciência mais humanitária e capaz de lidar com os novos desafios da convivência contemporânea. A reflexão sobre a dimensão pedagógica da responsabilidade nos remete ao pensar ético e à sistematização dos seus fundamentos, que são a base da educação, pois explicitam fundamentos como 37 dignidade humana, qualidade de vida, bem-estar e justiça. (ZANCANARO, 2006, p. 170). Por isso, insistimos na necessidade de uma formação bioética como forma de reaproximar a ciência da ética, bem como o direito da ética, na qual a difusão da racionalidade científica e a dimensão axiológica do fenômeno jurídico sejam acompanhadas do nascer de uma nova consciência – impregnada de ideais, valores e perspectivas futuras – para a construção de um mundo verdadeiro e bom, mais belo e justo para todos nós. Para que haja a convivência de todas as formas de vida é preciso que ciência e ética se reconciliem, superando as mútuas desconfianças e rejeições. Por séculos, desde Gallileu, a ética e a religião quiseram decidir o que o cientista podia fazer e dizer. A ciência, por sua vez, proclamou sua autonomia e se deu um critério de honestidade que consiste em obedecer aos métodos de pesquisa, apresentar os resultados (ou insucessos) à comunidade científica, para que os aprecie, unicamente, em sua qualidade científica, excluídas as interferências metafísica, ética, política ou religiosa. (PEGORARO, 2002, p. 13). Por essa razão, é mister que entendamos como a ciência funciona, o que a motiva e quais são seus objetivos, já que uma das ideias centrais do debate sobre o papel da ciência no mundo contemporâneo refere-se à natureza social do conhecimento científico, implicando na necessidade de analisar a ciência por meio dos interesses, crenças e critérios de validade compartilhados, que orientam a atividade dos cientistas e sua interação com outros atores sociais (LIMA, 1994). E, ao mesmo tempo, não podemos deixar de considerar os limites éticos dessa atividade humana, que é uma forma de poder com grandes riscos e fortes interesses (PAPA FRANCISCO, 2015). A ausência de cuidado com referência ao poder da tecnociência que construiu armas de destruição em massa e de devastação da biosfera e da própria sobrevivência da espécie humana nos está levando a um impasse sem precedentes. Ou cuidamos ou perecemos. (BOFF, 2014, p. 48). Pereceremos, sim, se nada fizermos diante das novas e incessantes descobertas científicas. Se por um lado elas representam tecnologias de ponta, de 38 última geração, de vanguarda; por outro, elas precisam de retaguarda ética para ser utilizadas de forma consciente, segura e saudável. Só por meio de uma nova ética (bioética), pela qual ainda não fomos educados, que aponte valores para uma sociedade cada vez mais tecnológica, é que poderemos decidir, com responsabilidade, os rumos que a ciência deverá tomar. Ao lado da reflexão bioética, temos também um importante aliado no combate aos riscos da tecnociência, o biodireito. 39 CAPÍTULO 2: BIOÉTICA E DIREITO 2.1 Bioética – breve retomada do contexto histórico-social A Segunda Guerra Mundial foi o grande laboratório de manipulação do ser humano. De pessoas, passamos a simples objetos de pesquisa. Fomos aviltados, humilhados, transformados em coisas. Saímos das ―condições normais de temperatura e pressão‖ para sermos submetidos a situações aviltantes. Entre as maiores atrocidades realizadas com os prisioneiros de guerra nos campos de concentração, podemos destacar alguns experimentos feitos em sua grande maioria por médicos nazistas, tudo em nome da ciência: estudo do efeito de certos gases sobre o corpo humano; lesões na cabeça por meio de marteladas para descobrir quantos golpes o crânio era capaz de aguentar; pesquisa de métodos para esterilização de mulheres; exposição a temperaturas e pressão extremas a períodos prolongados de tempo; infecção de diversas doenças, como tifo e malária, para testes de drogas e vacinas; administração de venenos para estudar seus efeitos letais; aplicação de corantes químicos na tentativa de mudar a cor dos olhos; experiências genéticas com gêmeos... No final da década de 40, o mundo ocidental ainda tentava se recuperar do pesadelo que fora a Segunda Guerra Mundial, quando o Tribunal de Nuremberg, responsável pelo julgamento de criminosos de guerra, traz à tona a monstruosidade de alguns experimentos realizados em seres humanos vulneráveis, na Alemanha nazista. (LOPES, 2014, p. 265). Por conta disso, lideranças do regime nazista foram julgadas pelos crimes cometidos, sendo produzido em consequência o primeiro documento sobre ética e ciência, que abordava especificamente os problemas relacionados com a pesquisa envolvendo seres humanos, o Código de Nuremberg. A partir de então, toda pesquisa com seres humanos deveria seguir expressamente as diretrizes estabelecidas no Código de Nuremberg: I) O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial; II) O experimento deve ser tal que produza resultados vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos de estudo, mas não podem ser feitos de maneira casuística ou desnecessariamente; 40 III) O experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; dessa maneira, os resultados já conhecidos justificam a condição do experimento; IV) O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento e danos desnecessários, quer físicos, quer materiais; V) Não deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez, quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento; VI) O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o pesquisador se propõe a resolver; VII) Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que remota; VIII) O experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas; IX) O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento; X) O pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação do experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os participantes. Parecia, portanto, que nenhum ser humano teria mais a sua dignidade agredida quando fosse submetido a algum tido de experimento científico. Parecia! Novos acontecimentos, entretanto, deixaram claro que as ―violações éticas não eram coisas do passado nem exclusividade do nazismo. A confiança na ética dos médicos e cientistas se abalara novamente‖. (LOPES, 2014, p. 268). Diversos relatos de abusos em pesquisas com seres humanos surgiram no pós-guerra, sendo a maioria deles nos Estados Unidos da América (EUA), tais como: o caso Tuskegge, um estudo sobre a sífilis, realizado de 1932 a 1972, no qual negros sifilíticos eram avaliados com o intuito de se observar a evolução da doença, apesar de já existir tratamento eficaz com a penicilina; em 1963, num hospital de Nova York, 22 enfermos idosos receberam injeções de células cancerígenas vivas, sem consentimento deles ou de seus responsáveis legais; entre 1950 a 1970, também em Nova York, em um estudo no Hospital Estatal de Willowbrook – 41 instituição para doentes mentais – pesquisadores infectaram crianças recém- nascidas com o vírus da hepatite A, com o propósito de desenvolver uma vacina dirigida à proteção da doença (MOTTA; VIDAL; SIQUEIRA-BATISTA; 2012). Esse contexto evidencia que a ética profissional dos médicos, em princípio beneficente, não é sempre confiável, tampouco a consciência moral do investigador é suficiente como limite seguro para o controle da experimentação. Abalam-se simultaneamente o paternalismo médico e a suposta neutralidade da ciência. (LOPES, 2014, p. 265). Infelizmente, durante os primeiros vinte anos de existência do Código de Nuremberg, suas diretrizes éticas não foram capazes de sensibilizar médicos e pesquisadores para o respeito necessário no uso de seres humanos em pesquisas clínicas (DINIZ; CORRÊA, 2001). Diante disso e do considerável aumento da atividade científica, sobretudo na área biomédica, tornou-se logo evidente que se deveria elaborar uma regulamentação ética mais completa do que a oferecida pelo Código de Nuremberg, o que veio a acontecer em 1964, quando a Associação Médica Mundial (AMM) elaborou o diploma internacional mais importante concernente ao controle ético das pesquisas com seres humanos, a declaração de Helsinque (KOTTOW, 2008). Tal declaração representou a tradução e a incorporação, pelas entidades médicas de todo o mundo, dos princípios éticos instituídos pelo Código de Nuremberg, definindo um limiar ético mínimo necessário às pesquisas com seres humanos. Ao contrário de Nuremberg, que se ateve ao julgamento dos crimes cometidos em nome da ciência, a Declaração de Helsinki preocupou-se com o futuro, trazendo um guia ético de conduta para todos os pesquisadores (DINIZ; CORRÊA, 2001). A Declaração de Helsinque foi considerada mais útil e mais ampla, principalmente por sua preocupação com o consentimento informado dos participantes ou de seus representantes legais, no caso de pessoas incapazes, e com a distinção entre ensaios terapêuticos e não-terapêuticos. (KOTTOW, 2008, p. 12). Não restava dúvida, portanto, que o mundo da ciência necessitava e carecia de aproximar-se do mundo das humanidades. Que um cientista, ao analisar um fato, não o fazia de forma objetiva e neutra, mas perpassava por uma complexa rede de 42 relações de saber/poder. Era a ética sendo requisitada novamente para nos guiar, agora em um ambiente desconhecido da maioria das pessoas e habitado por ―experts‖, até então considerado hermeticamente fechado e livre de interferências mundanas. Era o mundo dos valores se aproximando da ―vida de laboratório‖. Foi então que, na década de 1970, começou-se a pensar em uma ética que promovesse a incorporação de valores à atividade científica, a bioética. No termo bioética (do grego ―bios‖, vida, e ―ethos‖, ética) ―bio‖ representa o conhecimento biológico, a ciência dos sistemas vivos, e ―ética‖ representa os valores humanos (PESSINI, 2006). A doutrina majoritária atribui a invenção do neologismo bioética ao bioquímico e oncologista norte-americano, Van Rensselaer Potter, com a histórica publicação de um artigo intitulado Bioethics, science of survival (Bioética, ciência da sobrevivência) e, logo após, do livro Bioethics: Bridge to the Future (Bioética: ponte para o futuro), em Madison (Wisconsin), no ano de 1971. Entretanto, existe outro fato que marcou oficialmente o nascimento do termo e conceito de bioética, a criação do Instituto Kennedy de Reprodução Humana e Bioética na Universidade Georgetown (Washington, D.C.), em 1971, pelo médico holandês André Hellegers, com o apoio do político e ativista norte-americano Sargent Shriver e da Família Kennedy (HOSSNE et al., 2010). O emprego do termo bioética, ética aplicada à vida, teria ocorrido quase que concomitantemente e de maneira inédita por dois pesquisadores nos Estados Unidos da América. Em janeiro de 1971, foi à vez de Potter. Seis meses depois, foi à vez de Hellegers (NEVES, 1996). Enquanto que o primeiro utilizou a palavra bioética no sentido de discutir as questões relativas à sobrevivência da humanidade, aproximando os conhecimentos biológicos dos valores humanos, o outro se limitou à discussão das questões éticas relacionadas estritamente com as pesquisas biomédicas (GARRAFA; MARTORELL; NASCIMENTO, 2016). Portanto, no momento de seu nascimento, a bioética tem uma dupla paternidade e um duplo enfoque. Temos duas perspectivas bem distintas, de um lado problemas de macrobioética, com inspiração na perspectiva de Potter, de outro, problemas de microbioética ou bioética clínica, com clara inspiração no legado de Hellegers. Potter não deixou de expressar sua decepção em relação ao curso que a bioética seguiu. Reconheceu a importância da perspectiva de Georgetown, afirmando porém que ―minha própria visão da bioética exige uma visão muito mais ampla‖. Pretendia que a bioética fosse 43 uma combinação de conhecimento científico e filosófico (o que mais tarde chamou de Global bioethcs), e que não fosse simplesmente um ramo da ética aplicada, como foi entendida em relação à medicina. (PESSINI, 2006, p. 12). Todavia, é importante registrarmos aqui que bem antes de Potter e Hellegers/Shriver, em 1927, o alemão Fritz Jahr já teria utilizado o termo bioética, porém, isso só foi reconhecido recentemente. Em 1997, o professor Rolf Lother, da Universidade Humboldt de Berlim, em conferência em Tübingen, menciona Fritz Jahr como o primeiro a ter cunhado a palavra Bio-Ethik em 1927 (GOLDIN, 2006; PESSINI, 2013). Recentes pesquisas no âmbito da bioética trazem novas informações em relação as suas origens. Somos levados a recuar no tempo e na Historia e encontrar, em 1927, em Halle an der Saale, na Alemanha, Fritz Jahr, pastor protestante, filósofo e educador que publicou, no influente periódico cientifico alemão Kosmos, artigo intitulado ―Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos em relação aos animais e plantas‖ (Bio-ethics: a review of the ethical relationships of humans to animals and plants). Nessa publicação, Jahr propôs o ―imperativo bioético‖, ampliando o imperativo moral de Kant – Age de tal modo que consideres a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa dos outros, sempre como fim e jamais como simples meio – para todas as formas de vida. Em seu entender, o imperativo bioetico seria: Respeite todo ser vivo como princípio e fim em si mesmo e trate-o, se possível, enquanto tal. (PESSINI, 2012, p. 380). Sendo assim, podemos dizer que Potter, Hellegers/Shriver e Fritz Jahr, cada qual com suas especificidades, lançaram o neologismo bioética. Bioética é uma palavra etimologicamente formada por dois étimos gregos: bio(s) e ethike. A esse neologismo foi imputada uma tríplice paternidade e um triplo local de nascimento: Van Rensselaer Potter em Wisconsin; Shriver e Hellegers, em Washington; e Fritz Jahr, em Halle an der Saale (Alemanha). Potter se preocupava, em princípio, com o meio ambiente e a sustentabilidade da vida humana no planeta; o grupo de Washington, principalmente com os problemas e desafios éticos impostos à Medicina pelas novas tecnologias; e Fritz Jahr, com as relações éticas dos humanos com animais e plantas. (LOPES, 2014, p. 262). Desde então, o termo bioética passou a referir-se a temas relacionados aos efeitos da atividade científica sobre os seres vivos e o meio ambiente, entre os quais 44 se destacam questões como aborto, eutanásia, pesquisas com células-tronco embrionárias, eugenia e poluição ambiental (DINIZ, 2011). Sendo assim, a emergência das questões ligadas à vida, sobretudo no contexto da sociedade técnico-científica, permite-nos afirmar a necessidade de debates bioéticos relacionados à nossa vida e ao futuro da vida no planeta (PESSINI, 2010). A evolução inimaginável da ciência nas últimas décadas vem abrindo caminhos, criando possibilidades que levam à reflexão sobre o sentido e os limites da ciência na sociedade, exigindo a contribuição da bioética (NOGUEIRA; LOUREIRO; SILVA, 2004), visto que os recentes progressos científicos e avanços tecnológicos criaram possibilidades novas de interferência na vida humana, que podem significar vantagens ou, contrariamente, riscos e graves prejuízos (DALARI, 2008). A cada momento histórico o homem se depara com novos problemas. E para lidar com cada um deles, um novo horizonte ético se faz necessário. Entretanto, no campo das ciências da vida, notamos um descompasso entre a evolução da ciência e o devido acompanhamento moral. Existindo as condições técnicas para sua solução, a possibilidade de resolvê-los torna-se uma opção, um dever, isto é, uma questão bioética. ―Assim, se o saber tende a saber tudo (ciência-pesquisa), a ética dá o limite, a medida certa, tornando-se a ciência do justo e da medida‖. (NOSELLA, 2008, p. 258). Entretanto, a bioética sozinha não tem sido suficientemente forte para proteger os direitos fundamentais quando os avanços científicos são aplicados aos seres humanos, sendo o direito chamado a agir (VILA-CORO, 2005). É, então, nesse contexto de situações novas e polêmicas e de intensa evolução biotecnológica, somadas a uma sociedade cada vez mais ciosa de seus direitos e de se ver respeitada em sua condição protagonista de ser humano e em sua dignidade, que se lançaram as bases da Bioética e do que se veio a chamar posteriormente, em sua interação com o mundo jurídico, de Biodireito. (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 93) Ainda mais quando levamos em conta os relatos históricos de experimentos perversos e abusivos que envolveram pessoas em situações de flagrante vulnerabilidade (prisioneiros de guerra, presidiários, enfermos, crianças, recém- 45 nascidos, pessoas com deficiência mental etc.), nas quais o biodireito surge como mecanismo de proteção aos hipossuficientes, pois estes, na condição fragilizada em que se encontram, não dispõem de livre discernimento para emitir consentimento voluntário que o autorizem a serem sujeitos de pesquisas científicas. O direito, responsável por regular as relações humanas, estabelecendo os limites da conduta de cada indivíduo e sanções no caso de descumprimento das leis, também guarda estreita relação com as questões bioéticas, o que fez surgir um novo ramo da ciência jurídica, denominado biodireito, responsável por regulamentar essa interação. (MABTUM; MARCHETTO, 2015, p. 133). Portanto, dado que à bioética lhe falta a força (coercitividade) para fazer valer suas premissas, o biodireito passa a ser o instrumento legítimo para regular a matéria, ―uma vez que ética sem direito perde coercitividade e direito sem ética perde legitimidade‖. (RIVABEM, 2017, p. 283). Em que pese a falta de força coercitiva da bioética, entendemos que o biodireito não deve ser entendido como o fim último da bioética, muito pelo contrário, o seu estudo fornece ao operador do direito uma visão sistemática, de abrangência planetária, para lidar com os novos desafios postos em juízo, que vai muito além da singela análise balizada pela lei, fornecendo todo um arcabouço axiológico para legitimação de decisões judiciais. 2.2 A bioética e sua interface com o direito: o biodireito Como a bioética repousa sobre uma racionalidade pluralista, dialógica, inter, multi e transdiciplinar, ela pressupõe uma relação comunicacional com o direito (BORBA, 2010). O direito e a ética enfrentam situações derivadas do desenvolvimento tecnológico e científico, os (bio) riscos, que podem decorrer (dos abusos) da investigação científica e das técnicas que tratam da vida e da saúde. Daí o surgimento de uma disciplina, o biodireito, que se envolve diretamente com a genética, a biotecnologia e a bioengenharia. (CAMPOS JUNIOR, 2012, p. 224). A interface entre bioética e direito pode ser constatada por meio de diversos documentos jurídicos em escala nacional e internacional, que visam proteger o ser 46 humano diante dos dilemas trazidos pelo avanço técnico-científico, possibilitando, assim, maior segurança jurídica a essas questões, o que vem sendo chamado de biodireito (CASINI, 2004). Tem-se, então, que a bioética aponta questões emergentes e sugere soluções éticas. Ao direito cabe dar soluções jurídicas aos conflitos bioéticos, visando à proteção do ser humano em sua integralidade, fixando sistema de princípios e valores que possam ser tidos como universais e vinculativos. Daí a integração entre bioética e direito, pois o objeto é comum: o interesse sobre a vida em suas variadas dimensões; as ciências biomédicas e a tecnociência e seus reflexos no ser humano. O que os diferencia é a lente sob a qual analisam os assuntos. (RIVABEM, 2017, p. 284). Diante dos avanços quase ilimitados da tecnociência, começamos a perceber que o ser humano precisava de proteção. A certeza da ciência cedeu espaço a dúvidas. A objetividade da regra jurídica cedeu espaço à valoração, demonstrando uma vez mais que o biodireito não pode se prender apenas ao discurso legal. Em virtude da rapidez com que as novidades biotecnológicas se apresentam, é ramo do direito que não pretende ter respostas únicas, mas respostas que possam ser construídas a partir do caso concreto, não se limitando, portanto, apenas ao discurso legal (Positivismo). O biodireito busca organizar a conduta de cada um na sociedade biotecnológica, propondo respeito e promoção de valores que servem de base a toda humanidade (presente e futura), organizando liberdades e educando para a preservação de valores essenciais. (RIVABEM, 2017, p. 288). O biodireito, de índole claramente pós-positivista, estabelece nova ordem jurídica sobre assuntos decorrentes da tecnociência e sua intervenção sobre a vida humana em seus mais diversos aspectos (RIVABEM, 2017). O biodireito é um subsistema jurídico em desenvolvimento acelerado, voltado para o estudo e disciplina dos fenômenos resultantes da biotecnologia e da biomedicina, como reprodução assistida, a clonagem terapêutica e reprodutiva, a mudança de sexo, as pesquisas com células-tronco embrionárias. A Lei n° 11.105/05 representa um esforço meritório de trazer a justiça, a segurança jurídica e a busca pelo bem-estar social para este domínio. A bioética, por sua vez, tem por objeto a demarcação das possibilidades e limites dos progressos científicos nesses domínios, à luz da filosofia moral, dos valores a serem preservados por cada sociedade e pela humanidade em geral. (BARROSO, 2013, p. 402). 47 Assim, se inúmeras são as indagações relativas à bioética, multiplicam-se quando há referência ao biodireito, havendo mesmo corrente que nega sua existência. Mas, o que é biodireito? Podemos dizer, em um primeiro momento, que o biodireito é o ramo do direito que trata da teoria, da legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta humana em face dos avanços técnico- científicos (BARBOZA, 2000). Inicialmente, precisamos esclarecer que ainda não existe consenso ao redor dessa nomenclatura. Alguns autores preferem denominar o novel ramo do conhecimento jurídico de ―biodireito‖. Ao reconhecer o biodireito como ramo autônomo não se propõe setorizar a discussão, limitando-a a espaços estanques. Ao contrário, ao se propor a construção de um biodireito, defende-se a permanência da dialética entre direito e bioética, preservando-se a natural elasticidade entre eles existente. Não se trata de limitar o estudo do direito às questões da vida e existência humana, mas de se estabelecer debate jurídico sobre repercussões jurídicas das questões bioéticas. (RIVABEM, 2017, p. 288). E outros, contrariamente, preferem a nomenclatura ―bioética e direito‖. Hooft (2004) considera mais adequado recorrer à expressão ―bioética e direito‖ ao invés do vocábulo ―biodireito‖ pelos seguintes motivos: a) O neologismo ―biodireito‖ carece da rica e frutífera tradição histórica que o termo bioética carrega. Por conseguinte, sua utilização apresentaria o risco de se perder o fecundo diálogo inter, multi e transdisciplinar da bioética; b) A criação de um terceiro gênero (―biodireito‖) originaria dificuldades disciplinares no momento de considerar as relações da bioética com ramos particulares do direito que gozam de assumida tradição acadêmica, como o direito civil e o direito penal; c) O termo ―biodireito‖ de certo modo fragmentaria a discussão bioética na medida em que poderia acarretar uma excessiva formalização jurídica; d) Um equilíbrio harmônico entre os elementos jurídico-formais e os valores e princípios envolvidos seria mais facilmente alcançável na formulação de vínculos entre bioética e direito, do que com a criação de um terceiro gênero como elo intermediário, que poderia comprometer uma leitura ética mais contextualizada, dado o demasiado tecnicismo-jurídico; e) E, por último, se a questão se resume a criação de uma nova opção, esta seria a favor do aprofundamento entre bioética e direitos humanos, como forma de ampliar o marcante encontro entre bioética e direito, sem necessidade de se recorrer, portanto, ao termo ―biodireito‖. 48 No mesmo sentido, a opinião de Volnei Garrafa, coordenador da Cátedra UNESCO de Bioética da Universidade de Brasília (2000, p. 174). As carreiras mais envolvidas quantitativamente com a Bioética no Brasil são a Medicina e o Direito. Contudo, contraditoriamente, apesar de serem as duas áreas que mais têm mostrado avanços, são também aquelas onde as resistências são também maiores: no lado da Medicina, principalmente pela confusão que grande número de professores e profissionais fazem entre a bioética e a ética profissional, legalista e codificada; com relação ao Direito, o problema acontece pelo fato de alguns grupos insistirem em utilizar o neologismo ―Biodireito‖ ao invés da expressão usual que se refere à ―Bioética e Direito‖. Como a Bioética não surgiu para dar respostas acabadas aos conflitos, com base no respeito à secularização e ao pluralismo moral, o ―Biodireito‖ tenta resolver todas as questões pelo viés estritamente jurídico, o que empobrece irreversivelmente a proposta original da bioética ao priorizar o legalismo e o estreitamento das discussões em prejuízo da legitimidade e amplitude que o verdadeiro estatuto epistemológico da disciplina generosamente proporciona. Pelo fato dessas diferenças nominais não interferirem diretamente no escopo deste trabalho, optamos por utilizar a expressão ―biodireito‖, pois acreditamos que a palavra direito comporta diversos significados, não ficando restrita à noção positivista do termo, formulada, sobretudo, por Hans Kelsen (1999), que encarava o direito apenas a partir das normas jurídicas, ou seja, um complexo de leis impostas pelo Estado. O direito pode ser compreendido também como a faculdade ou a possibilidade de alguém exigir algo que lhe é devido, tornando-se, assim, um sujeito de direitos. Quando alguém exige que tais direitos sejam respeitados e luta para que novos direitos sejam alcançados, como é o caso do biodireito, inicia-se a transformação de indivíduos em cidadãos, e a educação bioética pode contribuir para essa transformação. Assim, como a criação de um novo ramo do direito para tratar das questões ambientais, o ―direito ambiental‖, assim denominado ao invés da expressão ―direito e meio ambiente‖, trouxe maior amplitude às discussões ambientais, justamente porque ele não ficou pautado em um viés estritamente jurídico, mas propiciou um enfoque interdisciplinar entre as diversas áreas do saber, abrindo espaço para a criação da educação ambiental, é que pensamos que o biodireito, entendido como um direito subjetivo de que toda pessoa seja protegida em sua dignidade face aos 49 avanços da ciência, concentrará esforços no sentido de que todos tenham direito a uma formação bioética, incumbindo ao Poder Público e a sociedade em geral manter atenção permanente à educação em valores, atitudes e habilidades que propiciem a atuação individual e coletiva voltada para prevenção, identificação e solução dos problemas bioéticos. Assim, é necessário entendermos que, segundo a filosofia da ciência de Gérard Fourez (1995), o biodireito encontra-se em fase de construção, estando em um período caracterizado pela inconsistência de práticas disciplinares precisas e pela inexistência de formações universitárias específicas. Nesse momento, ainda não há a formação de especialistas na disciplina, que provêm de outras áreas do conhecimento (BORBA; HOSSNE, 2010). Chegando Norberto Bobbio (1992, p. 13) a definir o biodireito como direito de quarta geração, ―cujo objeto é justamente, regular os efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, acompanhado as transformações sociais em curso e buscando prevenir e solucionar todos os conflitos dela decorrentes‖. A esfera do Biodireito é um campo que se caminha sobre o tênue limite entre o respeito às liberdades individuais e a coibição de abusos contra a pessoa ou a espécie humana. O Biodireito engloba os denominados direitos de quarta geração, cujas exigências estão concentradas nos efeitos dos avanços tecnológicos na biomedicina, nos quais se quer fundamentar a esperança de construção de uma nova humanidade. Após os direitos individuais (de 1ª geração), os direitos sociais (de 2ª geração) e os direitos ecológicos (de 3ª geração), vivemos os de 4ª geração, cujas exigências estão concentradas nos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo. (BOBBIO, 1992, p. 06). Desse modo, Borba (2010, p. 45) defende que cabe ao biodireito a ―tarefa de resguardar o pluralismo po