UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP Faculdade de Ciências e Tecnologia - Campus de Presidente Prudente LEANDRO NIEVES RIBEIRO A TERRITORIALIDADE DISCURSIVA LIBERAL-CONSERVADORA: O caso dos think tanks ultraliberais e sua discursividade na questão agrária no Brasil Presidente Prudente/ SP 2024 LEANDRO NIEVES RIBEIRO A TERRITORIALIDADE DISCURSIVA LIBERAL-CONSERVADORA: O caso dos think tanks ultraliberais e sua discursividade na questão agrária no Brasil Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente (SP), para obtenção do título de Doutor em Geografia. Área de Concentração: Produção do Espaço Geográfico Orientador(a): Prof. Dr. Carlos Alberto Feliciano Presidente Prudente/SP 2024 R484t Ribeiro, Leandro Nieves A territorialidade discursiva liberal-conservadora: o caso dos think tanks ultraliberais e sua discursividade na questão agrária no Brasil / Leandro Nieves Ribeiro. -- Presidente Prudente, 2024 465 p. : il., tabs. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente Orientador: Carlos Alberto Feliciano 1. questão agrária. 2. territorialidade discursiva liberal- conservadora. 3. nova direita. 4. ultraliberalismo. 5. análise do discurso francesa. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente. Dados fornecidos pelo autor(a). Dedico esta tese a todos que me mantiveram motivado para finalizá-la. AGRADECIMENTOS À minha família, em especial, aos meus pais pela motivação e assistência com dedicação e afinco. À Pamela, minha namorada, que além de seu incentivo incondicional na finalização da tese, me fez reacreditar em várias coisas. Aos meus colegas do Centro de Estudos em Educação, Trabalho, Ambiente e Saúde (CEETAS) da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), campus de Presidente Prudente, São Paulo (SP), sobretudo, aqueles que tornaram a vida acadêmica mais leve. Em especial agradeço à Marcia Pertuz e Jesus por terem permitido a Brisa fazer parte da minha vida e por confiarem em mim para cuidar dela. Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Alberto Feliciano (FCT/Unesp), pela confiança, dedicação e orientação. Sem a sua leitura e orientação, esta tese não teria a mesma qualidade. Da mesma forma, estendo meus agradecimentos aos professores da banca pelas orientações. Aos professores que compuseram a minha banca de qualificação e defesa - Prof. Everaldo Santos Melazzo (FCT/Unesp), Profa. Dra. Marcia da Silva (Unicentro), Prof. Dr. Ricardo Pires de Paula (FCT/Unesp), Profa. Dra. Janaina Francisca de Souza Campos Vinha (Universidade Federal do Triângulo Mineiro) e ao Prof. Dr. Jose Gilberto de Souza (Instituto de Geociências e Ciências Exatas/Unesp) - que dedicaram seu tempo de leitura e reflexão que contribuíram para a qualidade desta tese. Também merecem o devido reconhecimento e agradecimento aos funcionários da (FCT) da Unesp, em especial: ao Ian Damaceno, arquivista multifuncional do CEETAS, que sobretudo auxiliou na transmissão online da defesa; ao Adriano Oliveira, assessor administrativo do departamento de Geografia, essencial suporte durante os estágios e experiência de docência na Graduação; à bibliotecária Alessandra Kuba Oshiro Assunção, Supervisora Técnica de Seção, e Micheli Antonia Oshima, Diretora Técnica, pelas orientações da normatização e prontidão no atendimento; e à Aline da Silva Ribeiro Muniz e Damaris Leite Costa da Seção Técnica do Programa de Pós-Graduação pela presteza nas orientações e informações. Agradeço aos coordenadores e diretores da Escola Técnica Estadual de São Paulo (ETEC), Profº Arruda Adolpho Mello e Profº Dr. Antonio Eufrásio de Toledo, por terem compreendido a necessidade de ausência de algumas aulas para me dedicar integralmente à finalização da tese. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. “A persistência é o caminho do êxito”. Charles Chaplin “Mas então vamos lá, lutar por um ideal. Se viver é resistir, então será”. Dead Fish, música “Mulheres Negras” RESUMO A TERRITORIALIDADE DISCURSIVA LIBERAL-CONSERVADORA: O caso dos think tanks ultraliberais e sua discursividade na questão agrária no Brasil Esta tese objetiva compreender o sentido produzido pelo discurso ultraliberal sobre a questão agrária no Brasil, com foco em quatro temas centrais: o agronegócio, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a propriedade rural e a reforma agrária. A análise se baseia em textos publicados pelo Instituto Liberal, um think tank ultraliberal que busca influenciar a opinião pública, no seu site entre 2013 e 2023, buscando compreender a visão de mundo e os argumentos mobilizados por essa corrente ideológica. A pesquisa adota, como escopo teórico-metodológico, com foco na compreensão dos sentidos produzidos pelo discurso ultraliberal. Pretende-se investigar como essa territorialidade discursiva se manifesta na desinformação, negacionismo e radicalidade política em relação à questão agrária, bem como compreender de que forma o discurso desses think tanks incita o ódio e a perseguição de opositores. Também se busca examinar os impactos dessa territorialidade discursiva liberal-conservadora na construção de narrativas e na polarização do debate sobre a questão agrária no Brasil. No que se refere ao agronegócio, o discurso ultraliberal o enaltece como o único caminho para o desenvolvimento rural, chegando a afirmar que este modelo é "injustiçado" e "ameaçado" por movimentos sociais como o MST. Nessa perspectiva, os obstáculos ao agronegócio seriam a infraestrutura precária, a legislação ambiental e questão indígena, a "indústria da reforma agrária" e o protecionismo estatal, no qual o Estado “atrapalha” a prosperidade do setor. Já em relação ao MST, o discurso ultraliberal o criminaliza fortemente, tratando-o como "criminoso" e "bárbaro" por suas ações de ocupação de terras. Argumenta-se que tais ações ferem o direito sagrado e natural da propriedade privada, defendendo inclusive o uso de armas pelos proprietários rurais para se protegerem. No que diz respeito à reforma agrária, o discurso a deslegitima, considerando-a um "conceito vazio" e ineficiente, além de fomentar a corrupção. Nesse discurso, a propriedade privada é um direito absoluto que não deve ser interferido pelo Estado através de políticas redistributivas. A análise do discurso ultraliberal sobre a questão agrária brasileira revela uma visão de mundo centrada na defesa intransigente do livre mercado, da propriedade privada e do agronegócio, em detrimento de políticas redistributivas e da atuação dos movimentos sociais. Ao longo da análise, foram identificadas as três teses formuladas por Hirschman (2019) - da perversidade, da futilidade e da ameaça - para compreender a lógica argumentativa do discurso ultraliberal. Essa perspectiva revela a construção de uma territorialidade discursiva liberal-conservadora, marcada pela criminalização dos movimentos sociais, defesa irrestrita da propriedade privada e enaltecimento do agronegócio. Em síntese, o sentido do discurso ultraliberal sobre a questão agrária reflete uma visão de mundo que prioriza o lucro, a propriedade privada e o agronegócio, em detrimento dos interesses e demandas dos movimentos sociais e da população rural mais vulnerável. Essa abordagem contribui para a perpetuação das desigualdades e conflitos no campo brasileiro, ao defender um modelo de desenvolvimento excludente e concentrador de riqueza e terra. Palavras-chave: Questão agrária; territorialidade discursiva liberal-conservadora; ultraliberalismo; Instituto Liberal; análise do discurso francesa. ABSTRACT THE DISCURSIVE TERRITORIALITY OF LIBERAL-CONSERVATIVE: The case of ultra-liberal think tanks and their discourse on the agrarian question in Brazil This thesis aims to understand the meaning produced by the ultraliberal discourse on the agrarian question in Brazil, focusing on four central themes: agribusiness, the Landless Workers' Movement (MST), rural property, and land reform. The analysis is based on texts published by the Instituto Liberal, an ultraliberal think tank that seeks to influence public opinion, on its website between 2013 and 2023, seeking to understand the worldview and arguments mobilized by this ideological current. The research adopts, as a theoretical- methodological scope, the French Discourse Analysis, with a focus on understanding the meanings produced by the ultraliberal discourse. It is intended to investigate how this discursive territoriality manifests itself in disinformation, denialism, and political radicalism in relation to the agrarian question, as well as to understand how the discourse of these think tanks incites hatred and persecution of opponents. It also seeks to examine the impacts of this liberal-conservative discursive territoriality on the construction of narratives and the polarization of the debate on the agrarian question in Brazil. Regarding agribusiness, the ultraliberal discourse extols it as the only path for rural development, going so far as to claim that this model is "unjustly" and "threatened" by social movements such as the MST. In this perspective, the obstacles to agribusiness would be the precarious infrastructure, environmental and indigenous legislation, the "industry of land reform," and state protectionism, in which the state "interferes" with the prosperity of the sector. Regarding the MST, the ultraliberal discourse strongly criminalizes it, treating it as "criminal" and "barbaric" for its land occupation actions. It is argued that these actions violate the sacred and natural right of private property, even defending the use of weapons by rural landowners to protect themselves. Regarding land reform, the discourse delegitimizes it, considering it an "empty concept" and inefficient, in addition to fostering corruption. In this discourse, private property is an absolute right that should not be interfered with by the state through redistributive policies. The analysis of the ultraliberal discourse on the Brazilian agrarian question reveals a worldview centered on the unyielding defense of the free market, private property, and agribusiness, to the detriment of redistributive policies and the action of social movements. Throughout the analysis, the three theses formulated by Hirschman (2019) - of perversity, futility, and threat - were identified to understand the argumentative logic of the ultraliberal discourse. This perspective reveals the construction of a liberal-conservative discursive territoriality, marked by the criminalization of social movements, the unrestricted defense of private property, and the exaltation of agribusiness. In summary, the meaning of the ultraliberal discourse on the agrarian question reflects a worldview that prioritizes profit, private property, and agribusiness, to the detriment of the interests and demands of social movements and the most vulnerable rural population. This approach contributes to the perpetuation of inequalities and conflicts in the Brazilian countryside, as it defends an exclusive model of development and the concentration of wealth and land. Keywords: Agrarian question; liberal-conservative discursive territoriality; ultra-liberalism; Liberal Institute; rench discourse analysis. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – A ideologia liberal-conservadora...................................................................... 91 Figura 2 - Território (imaterial e material) e territorialidade dos think tanks ....................... 96 Figura 3 – Print screen da publicação de um post na rede do Facebook do Instituto Liberal .......................................................................................................................................... 97 Figura 4 - Print screen da página inicial do Instituto Liberal. ........................................... 118 Figura 5 – Print screen do site do Instituto Liberal ao pesquisar “Agronegócio” (2013-2023). ........................................................................................................................................ 119 Figura 6 – Mundialização de think tanks por região (2020) ............................................. 134 Figura 7 – Quantidade de Think Tanks na América Latina. ............................................ 136 Figura 8 – Esquerda e direita a partir da igualdade versus desigualdade ....................... 169 Figura 9 - Linha do tempo de galeria dos presidentes do Instituto Liberal (1983-2024) .. 212 Figura 10- Organograma da hierarquia do Instituto Liberal ............................................. 213 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Etapas de seleção dos textos do Instituto Liberal para análise do discurso sobre agronegócio, MST, propriedade rural e reforma agrária (2013-2023) .............................. 120 Tabela 2 – Think tanks na América Latina Global To Think Tanks 2019 ......................... 136 LISTA DE QUADROS Quadro 1 -Principais valores e crenças do liberalismo ..................................................... 44 Quadro 2 - Tensões do liberalismo clássico versus liberalismo moderno ......................... 47 Quadro 3 - Teoria do liberalismo clássico ......................................................................... 49 Quadro 4 - Teoria do liberalismo moderno ....................................................................... 67 Quadro 5 – Principais características do Conservadorismo .............................................. 70 Quadro 6 – Diferença entre o conservadorismo paternalista e libertário ........................... 76 Quadro 7 – 09 textos do Instituto Mises Brasil e seus discursos sobre a Pandemia do Covid- 19. ..................................................................................................................................... 81 Quadro 8 – Principais diferenças entre Nova Direita Liberal e Conservadora................. 189 Quadro 9 – Síntese e exemplo das três teses do discurso liberal-conservador de Hirschman (2019) sobre o Estado do bem-estar social ..................................................................... 196 Quadro 10 – Síntese dos discursos de Pondé (2012), Rosenfield (2012) e Coutinho (2012) ........................................................................................................................................ 199 Quadro 11 – Quadro de personalidades do Instituto Liberal e descrição ........................ 213 Quadro 12 – Características do PQA e do PCA ............................................................. 256 Quadro 13 – Materiais analisados do Instituto Liberal sobre agronegócio (2013-2023) .. 274 Quadro 14 - Materiais analisados do Instituto Liberal sobre o MST (2013-2023) ............ 290 Quadro 15 - Materiais analisados do Instituto Liberal sobre propriedade rural (2013-2023) ........................................................................................................................................ 305 Quadro 16 – Materiais analisados do Instituto Liberal sobre reforma agrária (2013-2023) ........................................................................................................................................ 315 Quadro 17 – Síntese do discurso de Santoro (2013) e Brito (2023) ............................... 333 Quadro 18 – Síntese do discurso de Batista (2023) e Berlanza (2023) .......................... 334 Quadro 19 – Síntese dos discursos de Batista (2023) e Bordin (2017)........................... 336 Quadro 20 – Síntese dos discursos sobre a reforma agrária de Og Leme (2015) e Mauad (2018). ............................................................................................................................ 337 Quadro 21 – Síntese das paráfrases do discurso ultraliberal sobre a questão agrária, formação discursiva e ideológica. ................................................................................... 340 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABECE ......................................... Associação Brasileira de Empresas de Comércio Exterior AC ........................................................................................................ Análise de Conteúdo AD .......................................................................................................... Análise do Discurso AGE RIO .................................................................. Agência de Fomento do Rio de Janeiro AIE ..................................................................................... Aparelhos Ideológicos do Estado alt-right ......................................................................... Alternative Right (Direita Alternativa) ANS ...................................................................... Agência Nacional de Saúde Suplementar APH ....................... Aparelhos Privados de Hegemonia, Aparelhos Privados de Hegemonia APPs ............................................................................. Áreas de Preservação Permanente BM ................................................................................................................. Banco Mundial CAPES .................. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil CEBRI ............................................................. Centro Brasileiro de Relações Internacionais CEDES ............................................. Câmara de Estudos e Debates Econômicos e Sociais CEETAS ............................. Centro de Estudos em Educação, Trabalho, Ambiente e Saúde CEPAL ................................................. Comissão Econômica para América Latina e Caribe CIA .................................................................................... Centro de Inteligência Americana CIEEP ........................................... Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista CNBB ................................................................. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil Conaq ............................................................... Movimento das Comunidades Quilombolas, CPI ................................................................................. Comissão Parlamentar de Inquérito DASP .........................................................Departamento Administrativo do Serviço Público DEM ................................................................................................................... Democratas DIEESE .................. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-econômicos EEA .......................................................................................... escola econômica austríaca EEAR ...................................................................... Escola de Especialistas de Aeronáutica Embrapa ....................................................... Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária EPL ............................................................................................. Estudantes pela Liberdade ESG ............................................................................................ Escola Superior de Guerra ESP ................................................................ Escola de Sociologia e Política de São Paulo ETEC ..............................................................................................Escola Técnica Estadual FBSP ....................................................................... Fórum Brasileiro de Segurança Pública FCT .............................................................................. Faculdade de Ciências e Tecnologia FD ........................................................................................................ Formação Discursiva FESPSP ......................................... Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo FGV .............................................................................................. Fundação Getúlio Vargas FI ......................................................................................................... Formação Ideológica FMI ....................................................................................... Fundo Monetário Internacional FPA ................................................... Fundação Perseu Abramo, Fundação Perseu Abramo GTPI .........................................................Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual IBAD ...................................................................... Instituto Brasileiro de Ação Democrática IBRI ................................................................ Instituto Brasileiro de Relações Internacionais IEE .................................................................................... Instituto de Estudos Empresariais iFHC ........................................................................... Instituto Fernando Henrique Cardoso IL .................................................................................................................. Instituto Liberal IL-RS........................................................................................................ Instituto Liberdade IMB ..................................................................................................... Institutos Mises Brasil IMIL ........................................................................................................... Instituto Millenium INCRA ................................................. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IPEA ................................................................... Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPES ...................................................................... Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais ISEB ...................................................................... Instituto Superior de Estudos Brasileiros ITL ................................................................................... Instituto de Transporte e Logística JK ........................................................................................................ Juscelino Kubitschek MAB ....................................................................... Movimento dos Atingidos por Barragens MBL .................................................................................................. Movimento Brasil Livre ME .................................................................................................... Mainstream economics MMC Brasil .............................................................. Movimento das Mulheres Camponesas MPA .......................................................................... Movimento dos Pequenos Agricultores MPP ..................................................... Movimento dos Pescadores e Pescadoras do Brasil MST ..........................................................Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra NEV USP ............................................................................ Núcleo de Estudos da Violência NFL ........................................................................................... Núcleo de Formação Liberal NSA .................................................................................... Agência Nacional de Segurança OCDE ............................ Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico OMS .................................................................................... Organização Mundial da Saúde OTAN ................................................................. Organização do Tratado do Atlântico Norte PCA ................................................................................ Paradigma do Capitalismo Agrário PP ......................................................................................................... Partido Progressista PPGLM .....................................................Programa de Pós-graduação Lógica e Metafísica PQA ......................................................................................Paradigma de Questão Agrária PSB ........................................................................................... Partido Socialista Brasileiro PSL ...................................................................................................... Partido Social Liberal PSOL ................................................................................... Partido Socialismo e Liberdade PUC-RJ ............................................................................... Pontifícia Universidade Católica RBPI ................................................................... Revista Brasileira de Política Internacional SiCAR ......................................................... Sistema Nacional do Cadastro Ambiental Rural SP ......................................................................................................................... São Paulo TCIs .................................................................. Tecnologias de Comunicação e Informação TCU ......................................................................................... Tribunal de Contas da União TFP ............................. Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade UDN ......................................................................................... União Democrática Nacional UDR ......................................................................................... União Democrática Ruralista UERJ .................................................................. Universidade do Estado do Rio de Janeiro UFJF .......................................................................... Universidade Federal de Juiz de Fora UFPR ............................. Universidade Federal do Paraná, Universidade Federal do Paraná UFRJ....................................................................... Universidade Federal do Rio de Janeiro UNB ................................................................................................ Universidade de Brasília Unesp ........................................... Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” USP ........................................................................................... Universidade de São Paulo SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 18 CAPÍTULO 1. TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE LIBERAL-CONSERVADORA 30 1.1.Conceito de território e territorialidade no contexto da pesquisa ........................ 30 1.2. Ideologia e discurso liberal-conservador........................................................... 38 1.3 Tensões do discurso liberal-conservador .......................................................... 77 1.4 Território e territorialidade discursiva liberal-conservadora ................................ 90 CAPÍTULO 2. A ANÁLISE DO DISCURSO FRANCESA COMO TEORIA E MÉTODO ................................................................................................................................... 99 2.1 A Análise do Discurso (AD) francesa ................................................................. 99 2.2. A AD na prática .............................................................................................. 112 2.3. O procedimento de AD nesta pesquisa .......................................................... 114 2.4. Procedimentos para seleção de materiais e AD ............................................. 117 CAPÍTULO 3. TEORIA E REFLEXÕES SOBRE OS THINK TANKS ....................... 122 3.1. Think tanks: origem, conceitos e principais discussões .................................. 125 3.2 Evolução e mundialização dos think tanks ...................................................... 134 3.3.Think tanks no Brasil ....................................................................................... 137 3.4. A reprodução do consenso e discursos (neo)liberal ....................................... 143 3.5. Poderes, marxismo cultural, metapolítica e a guerra híbrida: instrumentos para territorialidade discursiva liberal-conservadora ...................................................... 144 CAPÍTULO 4. A NOVA DIREITA E A ASCENSÃO DOS THINK TANKS ULTRALIBERAIS ..................................................................................................... 162 4.1 Definindo a Direita e a Nova Direita ................................................................. 163 4.2 A retórica da intransigência ............................................................................. 189 4.3 O contrapúblico ultraliberal e a territorialidade liberal-conservadora ................ 203 4.4 Os think tanks da Nova Direita ultraliberal ....................................................... 209 4.4.1. Instituto Liberal (IL) .................................................................................. 209 4.4.2. Instituto de Estudos Empresariais (IEE) ................................................... 218 4.4.3. Instituto Millenium (IMIL) .......................................................................... 225 4.4.4. Instituto Ludwig Von Mises no Brasil (IMB) .............................................. 228 4.5. A rede de persuasão ultraliberal e territorialidade ........................................... 233 4.6. A territorialidade discursiva liberal-conservadora: das redes à rua e da rua ao poder ..................................................................................................................... 239 CAPÍTULO 5. QUESTÃO AGRÁRIA ....................................................................... 248 5.1 Refletindo sobre a questão agrária .................................................................. 248 5.2. Conceituando a questão agrária ..................................................................... 254 CAPÍTULO 6. O DISCURSO ULTRALIBERAL SOBRE A QUESTÃO AGRÁRIA ... 272 6.1. O discurso ultraliberal sobre a questão agrária............................................... 272 6.1.1. Discurso sobre o agronegócio .................................................................. 273 6.1.2. Discurso sobre o MST.............................................................................. 289 6.1.3. Discurso sobre a propriedade rural .......................................................... 305 6.1.4. Discurso sobre a reforma agrária ............................................................. 314 6.2. O sentido do discurso ultraliberal sobre a questão agrária e a territorialidade discursiva liberal-conservadora ............................................................................. 332 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 344 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 355 ANEXO 1: TEXTOS DO INSTITUTO LIBERAL SOBRE O AGRONEGÓCIO .......... 380 Protejam o agro, ele é a Salvação ......................................................................... 381 Uma grave ameaça às cadeias produtivas integradas do agronegócio ................. 384 Como burocratas do governo prejudicaram o agronegócio ................................... 390 STF aprova imposto ilegal sobre o agronegócio .................................................... 393 Integrante da equipe de transição de Bolsonaro é crítica severa do agronegócio . 397 O agronegócio e o futuro do país .......................................................................... 401 Marina e a realidade do agronegócio .................................................................... 405 ANEXO 2: TEXTOS DO INSTITUTO LIBERAL SOBRE O MST .............................. 409 O MST de Bolsonaro ............................................................................................. 410 O novo ataque do MST e o poder destrutivo da estupidez .................................... 414 Denúncia: Araupel e Quedas do Iguaçu pedem socorro contra invasões do MST 417 Quando o povo reage aos terroristas do MST ....................................................... 421 Evo Morales, MST e FBI: novos capítulos da saga do autoritarismo latino-americano .............................................................................................................................. 426 Defender a sua terra dos criminosos do MST não é radicalismo ........................... 431 O MST é uma doença da Nova República ............................................................ 435 O MST e Dilma ...................................................................................................... 438 MST: um movimento equivocado – Luis Fernando Pessoa Alexandre .................. 439 MST entra no mercado capitalista: O governo começa a formar mais um campeão nacional ................................................................................................................. 440 ANEXO 3: TEXTOS DO INSTITUTO LIBERAL SOBRE A PROPRIEDADE DE TERRA ................................................................................................................................. 443 A propriedade privada e as invasões pelo MST .................................................... 444 Ladrões de gado fazem criadores abandonarem o campo: e o direito à propriedade privada? ................................................................................................................ 447 Pais dos absurdos! – invasões de propriedades rurais .......................................... 451 O Brasil em dados – invasões de propriedades rurais ........................................... 452 A propriedade é um direito inegociável.................................................................. 453 ANEXO 4: TEXTOS DO INSTITUTO LIBERAL SOBRE A REFORMA AGRÁRIA .. 459 Reforma agrária? .................................................................................................. 460 A ilusão da Reforma Agrária, um conceito vazio e irresponsavelmente utilizado ... 461 Por que Bolsonaro precisa encerrar o programa de reforma agrária? ................... 464 18 INTRODUÇÃO A origem desta tese nasceu com uma inquietação obtida em 2016, no “chão da sala de aula” de uma escola particular na cidade de Rancharia (SP), uma cidade interiorana com aproximadamente 30 mil habitantes, no qual um grupo de alunos do ensino básico me questionava sobre as teses de Ludwig Von Mises e de demais seguidores e conceitos da Escola Austríaca, inclusive se eu concordava com Olavo de Carvalho ou se o “imposto é roubo”. Em sala de aula e no contato fora das salas, era comum debates, juízos de valores e questionamentos dos alunos sobre temas das aulas de geografia e de política, o que me fez pesquisar maiores informações sobre esses ideais. Na época, os temas me eram em sua maioria desconhecidos e por isso me inquietava saber de onde estes estudantes se instruíam sobre o assunto. Conversando com eles, descobri as matérias de textos divulgadas na internet, como as publicadas por institutos de pesquisa, supostamente isentos, como Institutos Mises Brasil (IMB) e Instituto Liberal (IL) nas redes sociais. Nesse momento, comecei a investigar sobre esses institutos que reproduziam o discurso ultraliberal, da Escola Austríaca, bem como, das redes de persuasão oriundas de think tanks, isto é, instituto de pesquisa persuasora da opinião pública1. Fora da escola, o contexto político brasileiro também se inclinava para o avanço das ideias ultraliberais e da Nova Direita. Como será explorado nesta tese, este contexto político contribuiu para a expansão de movimentos, organizações e políticos ultraliberais desde 2013 nas “Jornadas de junho”. Depois das manifestações, o país vivenciou intensas e radicais tensões políticas como o golpe-impeachment de 2016, a greve dos 1 Augras (1970, p.9) afirma que a “opinião pública é o sentimento do povo”, o que significa ser uma expressão de pensamento geral de um grupo (e não de todos os indivíduos). Olicsheis (2006) explica que “[...] a opinião tem sua origem nos grupos e esses grupos transformam-se em públicos quando se organizam em torno dos temas de discussão e de interesse público. Assim, eles discutem e procuram uma atitude comum” (Olicsheis, 2006, p.92) e que a “opinião pública nada mais é do que a opinião de um determinado grupo” (Olicsheis, 2006, p.95). 19 caminhoneiros e eleições de políticos conservadores em 2018 e até a eleição presidencial de Jair Bolsonaro. Através desta experiência, tanto no magistério como no cenário político brasileiro, inquietei a desenvolver uma pesquisa geográfica sobre os formadores de opinião ultraliberais. Com o título “A TERRITORIALIDADE DISCURSIVA LIBERAL- CONSERVADORA: O caso dos think tanks ultraliberais e sua discursividade na questão agrária no Brasil, esta tese foi, em sua maioria, desenvolvida ao longo de uma inesperada pandemia sanitária do Covid-19 (Sars-Cov-2), entre 11 de março de 2020 e 05 de maio de 20232. Esse período de 1.1150 dias marcados por incertezas, angústias e desafios na minha vida pessoal e profissional. No âmbito da pesquisa, a pandemia também potencializou minhas preocupações sobre a expansão das ideias ultraliberais com discursos antagônicos em relação ao uso de máscaras, distanciamento social, vacinas e entre outras medidas para conter o avanço da pandemia3. O objetivo geral desta tese é compreender o sentido do discurso dos think tanks ultraliberais sobre a questão agrária no Brasil4. Para isso, os objetivos específicos incluem analisar a construção da territorialidade discursiva liberal-conservadora promovida por esses institutos em relação a temas como o agronegócio, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a reforma agrária e a propriedade de terra. Compreende-se territorialidade discursiva como a cristalização das relações sociais de grupos liberal-conservadores através da produção de discursos (território imaterial) e ações no seu processo de territorialização. O território, a territorialidade e o discurso são considerados como indissociáveis (Morais, H., 2017). Também se pretende investigar como essa territorialidade discursiva se manifesta na desinformação, negacionismo e radicalidade política em relação à questão agrária, bem como compreender de que forma o discurso desses think tanks incita o 2 Período de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). 3 Para conferir sobre os discursos ultraliberais na pandemia, cf Ribeiro (2021a). 4 A escolha do recorte da questão agrária se deve à proximidade do pesquisador com o assunto, tendo investigado os movimentos sociais do campo. 20 ódio e a perseguição de opositores nas redes sociais e nas ruas. Além disso, a pesquisa buscará examinar os impactos dessa territorialidade discursiva liberal-conservadora na construção de narrativas e na polarização do debate sobre a questão agrária no Brasil. Para compreender o discurso, adotamos a análise do discurso francesa como escopo teórico-metodológico que permitirá a compreensão do sentido produzido pelo discurso ultraliberal. Esta corrente de análise fornece ferramentas imprescindíveis ao considerar que o discurso possibilita a reprodução de relações de poder por meio de um efeito de sentido. A escolha da escola francesa de análise do discurso calhou-se na necessidade de encontrar uma referência teórica e metodológica sólida que fornecesse ferramentas e instrumentos conceituais para compreender o discurso. Sem a referência, a análise do discurso poderia enfraquecer. O discurso será desconstruído através de materiais textuais do Instituto Liberal, com um recorte temporal de 10 anos, entre 2013 e 2023. A justificativa desse período é porque inclui-se os contextos políticos propícios para a territorialidade discursiva, como a Jornada de Junho de 2013, as manifestações pró o golpe-impeachment da Dilma Roussef (2015-2018), greve dos caminhoneiros (2018), eleição e governo de Bolsonaro (2018-2022), eleição e início do governo de Lula e instalação da CPI do MST (2023). Esta tese foi organizada em 6 capítulos. No Capítulo 1, o objetivo principal foi de apresentar os conceitos fundamentais que sustentam a tese, com ênfase no território, territorialidade e nas ideologias do liberalismo e conservadorismo. A discussão sobre o território parte das contribuições de Claude Raffestin (1993), que o entende como um espaço modificado pelas relações sociais de poder. Nessa perspectiva, o território é multidimensional e multiescalar, sendo constituído tanto pela dimensão material quanto pela dimensão imaterial (Raffestin, 1993). Autores como Bernardo Mançano Fernandes (2008, 2009) e Marcelo Lopes de Souza (2008) aprofundaram a compreensão do território, destacando sua relação dialética com o espaço geográfico e a importância dos conflitos e tensões na sua 21 produção. A noção de territorialidade é central para entender a produção do território liberal-conservador. Segundo Saquet (2007), a territorialidade se refere à cristalização das relações sociais em um espaço geográfico. Nesse sentido, Morais (2017) contribui com o conceito de "territorialidade discursiva", que se refere à manifestação da ideologia e do discurso no processo de territorialização de grupos liberal-conservadores. Para compreendermos as características da ideologia conservadora, recorre- se às análises de Heywood (2010), que a define pela defesa da tradição, hierarquia, autoridade e propriedade. Essa ideologia é contrastada com os princípios do liberalismo, que prioriza o individualismo, a liberdade negativa e o mercado autorregulado (Heywood, 2010; Dardot; Laval, 2016). A partir dessa diferenciação, discute-se as tensões entre o liberalismo clássico e o liberalismo moderno, que incorpora a noção de liberdade positiva e a necessidade de intervenção estatal para promover a justiça social. Demonstra-se como essas duas ideologias se fundiram na formação da ideologia liberal-conservadora, que combina elementos econômicos liberais com valores sociais conservadores. Essa ideologia liberal-conservadora, presente em diversos países, inclusive no Brasil, promove a territorialidade liberal-conservadora por meio de práticas como o clientelismo, patrimonialismo e oligarquismo (Silva, M., 2007). Essas relações de poder limitam a participação democrática e favorecem a manutenção de tradições e hierarquias sociais, configurando um território simbólica e materialmente conservador (Silva, M., 2007). Portanto, a análise da territorialidade liberal-conservadora revela as dinâmicas de poder que moldam o território, evidenciando como a ideologia e o discurso se materializam no espaço geográfico e nas relações sociais. Compreender essa territorialidade é fundamental para entender as disputas e contradições presentes na sociedade brasileira. No Capítulo 2, a Análise do Discurso (AD) francesa é apresentada como o referencial teórico-metodológico adotado na tese. Nesta seção, são destacadas as principais características, conceitos e diferenças dessa corrente em relação a outras 22 abordagens. Os conceitos centrais da AD francesa abordados incluem a formação ideológica (FI) e a formação discursiva (FD) (Brandão, 2012). A FI relaciona a superestrutura ideológica com o modo de produção dominante, compreendendo o conjunto de atitudes e representações ligadas a posições de classe em conflito. Já a FD é o conjunto de enunciados marcados pelas mesmas regularidades e regras de formação, determinando "o que pode e deve ser dito" a partir de um lugar social historicamente situado. Outro par de conceitos relevantes são o interdiscurso e a memória discursiva (Barros, 2015; Orlandi, 2002). O interdiscurso compreende o entrelaçamento de diferentes discursos de distintos momentos históricos e lugares sociais, enquanto a memória discursiva refere-se à inscrição de enunciados e formulações que se repetem, são refutados e transformados em novos significados. Esses conceitos permitem compreender como o discurso se constitui a partir de uma rede interdiscursiva e de uma memória que condiciona os sentidos possíveis. Também é abordada a noção de sujeito do discurso, que se diferencia do sujeito empírico (Grigoletto, 2005). Enquanto o sujeito empírico é o indivíduo concreto, o sujeito do discurso é aquele que se inscreve em determinadas formações discursivas, carregando marcas do social, ideológico e histórico. Essa distinção é fundamental para a AD, que compreende o sujeito como um lugar de inscrição de diferentes posições discursivas. Ao final do capítulo, são detalhados os procedimentos metodológicos adotados para a análise de discurso, seguindo as etapas sugeridas por Souza ([2021?]), bem como os critérios e procedimentos para a seleção dos materiais do Instituto Liberal a serem analisados, considerando o recorte temporal de 2013 a 2023 e as palavras-chave relacionadas à questão agrária. O Capítulo 3 apresenta uma análise teórica e conceitual sobre os think tanks, instituições de pesquisa que buscam influenciar a opinião pública e as políticas públicas. Iniciamos discutindo a imprecisão conceitual em torno desses institutos, com autores como Hauck (2015) e Rigolin e Hayashi (2012) destacando as dificuldades em defini-los 23 e diferenciá-los de outras organizações. Em seguida, o capítulo aborda a evolução e mundialização dos think tanks, trazendo dados sobre a expansão desses institutos, especialmente nos países centrais como os Estados Unidos (Nye Junior, 2002, 2004; McGann, 2021). Um dos temas centrais do capítulo é a reprodução do consenso e discursos (neo)liberais pelos think tanks. Nesse sentido, o texto relaciona esses institutos a conceitos importantes, como o de poder brando (Nye Junior, 2002, 2004), marxismo cultural, metapolítica (Teitelbaum, 2020) e guerra híbrida (Korybko, 2015). O conceito de poder brando, proposto pelo cientista político Joseph Nye Jr. (2002, 2004), se refere à capacidade de um país, grupo ou organização de influenciar ou persuadir outros através de sua cultura, valores políticos e políticas externas, em contraste com o poder duro, baseado na coerção militar e econômica. Nesse sentido, os think tanks podem ser vistos como instrumentos do poder brando, buscando disseminar sua ideologia e visão de mundo. Outro conceito abordado é o de marxismo cultural, uma teoria da conspiração que atribui a intelectuais de esquerda a intenção de subverter a sociedade ocidental ao atacar seus valores morais e culturais tradicionais. Esse conceito, relacionado à ascensão da nova direita, ajuda a compreender como os think tanks ultraliberais buscam combater o que consideram uma ameaça à "civilização judaico-cristã". Também foi discutido o conceito de metapolítica, desenvolvido por Benjamin Teitelbaum (2020). Esse conceito se refere à estratégia de ativistas e militantes da direita de injetar suas mensagens em canais culturais existentes ou criar seus próprios canais alternativos para disputar a hegemonia ideológica. Nesse sentido, os think tanks seriam atores-chave nessa disputa metapolítica. Além disso, relacionamos os think tanks ao conceito de guerra híbrida, proposto pelo analista político russo Andrew Korybko (2015). Esse conceito descreve conflitos que combinam estratégias militares convencionais e não-convencionais, incluindo a disseminação de desinformação, para desestabilizar governos. Nesse contexto, os think 24 tanks poderiam atuar como instrumentos dessa guerra híbrida, contribuindo para a desestabilização política e social. Esses conceitos evidenciam como os think tanks podem ser compreendidos como instrumentos geopolíticos de persuasão e disputa territorial, que buscam reproduzir o consenso e discursos (neo)liberais, atuando na desestabilização de governos através da (des)informação e da conflitualidade social. Portanto, a análise teórica e conceitual realizada neste capítulo demonstra a relevância de compreender os think tanks como importantes atores na formação da opinião pública e na disputa por hegemonia, especialmente no caso dos institutos ultraliberais no Brasil. O Capítulo 4 deste trabalho se propõe a discutir o tema da Nova Direita e sua relação com a ascensão do ultraliberalismo no Brasil. Para tanto, o texto se estrutura em quatro partes principais. Na primeira são apresentadas as definições de "direita" e "esquerda" a partir das reflexões de Bobbio (2011) e Cepêda (2018). Esses autores destacam a dificuldade em conceituar esses termos, argumentando que eles devem ser compreendidos em seus contextos específicos e em sua pluralidade. Em seguida, são analisadas as diferenças entre a "velha" e a "nova" direita, com base nas contribuições de Pierucci (1987), Dreifuss (1981) e Cepêda (2018). Nesse sentido, Bobbio (2011) argumenta que a principal diferença entre esses espectros políticos reside no binarismo da igualdade versus desigualdade. Enquanto a esquerda concebe a igualdade como um ideal a ser alcançado, a direita percebe a desigualdade como um fator natural da sociedade. Cepêda (2018) complementa essa análise, ressaltando que a direita é um campo político amplo e heterogêneo. Ela abrange desde posições mais radicais e reacionárias até variantes mais progressistas do liberalismo clássico. Essa diversidade de correntes torna complexa a tarefa de definir e caracterizar a "direita" de forma unívoca. 25 A segunda parte do capítulo se aprofunda nas características da Nova Direita, recorrendo ao conceito de "aparelho privado de hegemonia" de Casimiro (2018) para analisar a criação de uma elite orgânica e de seus aparelhos no recrudescimento desse grupo político. Sustentado na teoria de Gramsci, esses aparelhos são entendidos como organismos coletivos da burguesia que buscam manter ou disputar a dominação na sociedade civil, atuando de forma política e ideológica. Na terceira seção, a análise se volta para a "retórica da intransigência" de Hirschman (2019), que identifica três teses centrais no discurso conservador: a perversidade, a futilidade e a ameaça. Essas teses são fundamentais para compreender a retórica utilizada pela Nova Direita para contestar e deslegitimar as políticas sociais e econômicas progressistas. A tese da perversidade argumenta que qualquer esforço de transformação social terá efeitos negativos e prejudiciais. Já a tese da futilidade afirma que as tentativas de mudança serão infrutíferas e não alcançarão os resultados desejados. Por fim, a tese da ameaça questiona que os custos das reformas propostas seriam altos demais, colocando em risco valores morais, sociais, econômicos e políticos. Outro conceito fundamental é de "contrapúblico ultraliberal" de Rocha (2019), sendo utilizado para revelar o aumento de grupos radicais por meio das redes sociais e a expansão da concepção ultraliberal por meio de think tanks e intelectuais. É nesse sentido que a nova direita é compreendida como a atuação desses grupos, organizações e institutos defensores dos interesses da elite burguesa, embora apresentem uma heterogeneidade ideológica. Na quarte parte discute a atuação dos principais think tanks ultraliberais que contribuíram para a ascensão da Nova Direita no Brasil, como o Instituto Liberal (IL), o Instituto de Estudos Empresariais (IEE), o Instituto Millenium (IMIL) e o Instituto Ludwig Von Mises no Brasil (IMB). Esses think tanks ultraliberais desempenharam um papel fundamental na formação de um contrapúblico ultraliberal e na territorialidade discursiva 26 liberal-conservadora no Brasil, contribuindo para a ascensão da Nova Direita e para a radicalização política no país. Na quinta parte do capítulo abordaremos a rede de persuasão e a territorialidade discursiva liberal-conservadora construída pelos think tanks ultraliberais no Brasil. Segundo a análise, esses institutos, por meio de suas redes de influência, funcionam como instrumentos para a disputa territorial, paradigmática e geopolítica. Rocha (2018) destaca que a Atlas Network e o Cato Institute foram responsáveis por impulsionar e articular a criação de novos think tanks ultraliberais, como o Instituto Ordem Livre no Brasil. Essa rede de instituições, com o apoio de financiadores como os irmãos Koch, contribuiu para a formação do contrapúblico ultraliberal no país. Esse contrapúblico, formado principalmente por meio da internet e das redes sociais, difundiu os pensamentos liberais com a defesa de projetos sociais necropolíticos, como medidas de austeridade, reformas trabalhistas e flexibilização ambiental. Essa territorialidade discursiva liberal-conservadora, presente desde as manifestações de 2013, canalizou o golpe-impeachment de Dilma Rousseff e influenciou as políticas econômicas dos governos de Temer e Bolsonaro. Portanto, a análise evidencia como a rede de think tanks ultraliberais, por meio de sua territorialidade discursiva, contribuiu para a ascensão da Nova Direita e para a radicalização política no Brasil contemporâneo. No Capítulo 5, buscaremos apresentar uma conceituação abrangente da questão agrária, destacando sua relevância para o desenvolvimento rural no país. Analisaremos as diferentes perspectivas teóricas sobre o tema, explorando os paradigmas do Capitalismo Agrário (PCA) e da Questão Agrária (PQA), bem como a evolução histórica da estrutura fundiária brasileira. Por fim, discutiremos os impactos da concentração de terras e a necessidade de implementar políticas públicas, como a reforma agrária, para enfrentar esses problemas estruturais. 27 A compreensão da questão agrária envolve a análise de diferentes paradigmas teóricos que orientam a interpretação do desenvolvimento rural no Brasil (Campos, 2012). O PCA, representado por autores como Ricardo Abramovay (2007), enfatiza a modernização da agricultura e a integração dos produtores ao mercado, compreendendo o campesinato como uma categoria em metamorfose rumo à agricultura familiar. Em contrapartida, o PQA, baseado em teóricos como Kautsky (1968), Lenin (1985) e Chayanov (1981), analisa as contradições e conflitos inerentes ao desenvolvimento capitalista no campo, defendendo a persistência e recriação do campesinato (Campos, 2012). Essa divergência paradigmática revela diferentes compreensões sobre a organização do espaço rural, o uso, a posse e a propriedade da terra, bem como os problemas agrários enfrentados no Brasil. A conceituação multidimensional da questão agrária, envolvendo essas condições complementares, é fundamental para analisar os desafios e promover mudanças estruturais no campo brasileiro. Além disso, a evolução histórica da propriedade da terra no Brasil, desde o período colonial até a Constituição Federal de 1988, evidencia a consolidação da estrutura fundiária desigual e a necessidade de políticas públicas, como a reforma agrária, para enfrentar esses problemas estruturais (Girardi, 2022; Souza Filho, 2021). A concentração da propriedade da terra, fruto da transformação da terra em mercadoria privada, gera graves consequências sociais, econômicas e ambientais, reforçando a importância da luta pela terra e da implementação de uma reforma agrária efetiva (Carter, 2010; Girardi, 2022). Portanto, a conceituação multidimensional da questão agrária, a análise dos paradigmas teóricos e a discussão sobre a estrutura fundiária e a reforma agrária são elementos essenciais para compreender os desafios e promover mudanças estruturais no campo brasileiro. O capítulo 6 analisa o discurso ultraliberal sobre a questão agrária brasileira, com foco em quatro temas centrais: o agronegócio, o Movimento dos Trabalhadores 28 Rurais Sem Terra (MST), a propriedade rural e a reforma agrária. A análise se baseia em textos publicados pelo Instituto Liberal entre 2013 e 2023, buscando compreender a visão de mundo e os argumentos mobilizados por essa corrente ideológica. No que se refere ao agronegócio, o discurso ultraliberal o enaltece como o único caminho para o desenvolvimento rural, chegando a afirmar que este modelo é "injustiçado" e "ameaçado" por movimentos sociais como o MST (Santoro, 2013; Brito, 2023). Nessa perspectiva, os obstáculos ao agronegócio seriam a infraestrutura precária, a legislação ambiental e indígena, a "indústria da reforma agrária" e o protecionismo, devendo o Estado reduzir sua atuação para permitir a prosperidade do setor. Já em relação ao MST, o discurso ultraliberal o criminaliza fortemente, tratando- o como "criminoso" e "bárbaro" por suas ações de ocupação de terras. Argumenta-se que tais ações ferem o direito sagrado e natural da propriedade privada, defendendo inclusive o uso de armas pelos proprietários rurais para se protegerem (Batista, 2023; Berlanza, 2017, 2023). No que diz respeito à reforma agrária, o discurso a deslegitima, considerando- a um "conceito vazio" e ineficiente, além de fomentadora de corrupção. Nessa visão, a propriedade privada é um direito absoluto que não deve ser interferido pelo Estado através de políticas redistributivas (Leme, 2015; Mauad, 2018). A análise do discurso ultraliberal sobre a questão agrária brasileira revela uma visão de mundo centrada na defesa intransigente do livre mercado, da propriedade privada e do agronegócio, em detrimento de políticas redistributivas e da atuação dos movimentos sociais. Ao longo da análise, foram identificadas as três teses formuladas por Hirschman (2019) - da perversidade, da futilidade e da ameaça - para compreender a lógica argumentativa do discurso ultraliberal. Essa perspectiva revela a construção de uma territorialidade discursiva liberal-conservadora, marcada pela criminalização dos movimentos sociais, defesa irrestrita da propriedade privada e enaltecimento do agronegócio. 29 Em síntese, o sentido do discurso ultraliberal sobre a questão agrária reflete uma visão de mundo que prioriza o lucro, a propriedade privada e o agronegócio, em detrimento dos interesses e demandas dos movimentos sociais e da população rural mais vulnerável. Essa abordagem contribui para a perpetuação das desigualdades e conflitos no campo brasileiro, ao defender um modelo de desenvolvimento excludente e concentrador de riqueza e terra. 30 CAPÍTULO 1. TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE LIBERAL- CONSERVADORA O objetivo deste capítulo consiste em apresentar os conceitos de território, territorialidade, conservadorismo e territorialidade conservadora que sustentam esta tese. Estes conceitos, conforme demonstraremos, são relevantes para fornecer a concepção teórica-analítica da geografia por meio da análise do poder dos institutos ultraliberais e de sua expansão territorial através dos seus discursos produzidos. Este capítulo se divide em dois tópicos gerais. No primeiro fundamentaremos os conceitos de território e territorialidade através das contribuições de Raffestin (1993), Saquet (2013), Bernardo Fernandes (2008; 2009), Souza (2008), Coca (2011) e de outros autores pertinentes. No segundo tópico, abordaremos os conceitos de conservadorismo, território liberal-conservador e territorialidade conservadora. Vale advertir que a finalidade desta tese não almeja desenvolver um estudo aprofundado sobre os referidos conceitos, sendo que a nossa intenção está em apresentar as principais discussões e reflexões que auxiliarão as delimitações teóricas e que sustentarão a tese. 1.1. Conceito de território e territorialidade no contexto da pesquisa A principal concepção teórica de território desta tese advém, do geógrafo suíço Claude Raffestin, que revolucionou a percepção de território com a publicação do livro Por uma geografia do poder (1993). Marco Aurélio Saquet (2013), ao analisar as diferentes abordagens e concepções teóricas do território, desponta a relevância de Raffestin. De acordo com o autor, Raffestin é identificado como um dos estudiosos que mais contribuiu com a geografia no Brasil, sendo as suas contribuições teóricas do 31 conceito de território descritas como “inegáveis e inovativas” (Saquet, 2013, p.77). Como explica o autor, [...] Claude Raffestin, nessa obra escrita durante os anos 1976 e 1980, destaca o caráter político do território, porém, de maneira bastante distinta da de Friedrich Ratzel, da abordagem que fez Jean Gottmann e da que fará Robert Sack [...]. Claude Raffestin elabora uma explicação da realidade material, entendendo que o objeto de estudo da geografia é formado pelas relações sociais, efetivadas entre os sujeitos e o objeto, ou seja, as relações que se concretizam no território e significam territorialidades. E é questionando e criticando concepções que privilegiam o poder do Estado, na geografia política, que problematiza sua argumentação em favor da multidimensionalidade do poder, do território e da territorialidade, em vez de centrar sua abordagem no conceito de espaço. Esse autor tinha, naquele momento, como questão principal, a necessidade de proposição de uma abordagem renovada, interdisciplinar e material do território e da territorialidade, porém, incorporando aspectos semiológicos... (Saquet, 2013, p.75). Dentre a principal inovação teórica de Raffestin (1993), ressaltamos a sua consideração de que o território e a territorialidade se formam a partir da concretização das relações sociais. Ao fundamentar-se em Foucault, Raffestin (1993) pondera que o poder se forma nas variadas formas e dimensões de relações sociais, logo, concebendo como indissociável ao território. Para isso, o autor rompe com a visão unidimensional do poder da Geografia Política Clássica, sendo que esta baseia-se na teoria ratzeliana que restringia o Estado como uma entidade todo-poderoso e que não reconhecia a complexidade dos múltiplos poderes e relações existentes. Dizer que o Estado é a única fonte do poder é, como dissemos, uma confusão, mas também um discurso metonímico. Ou o Estado detém o poder e é o único a detê-lo, ou é o poder superior e é preciso construir a hipótese de poderes inferiores que podem agir com ele. Com efeito, a geografia política de Ratzel é uma geografia do Estado, pois veicula e subentende uma concepção totalitária, a de um Estado todo- poderoso [...]. De certa forma, trata-se de uma geografia unidimensional, o que não é aceitável na medida em que existem múltiplos poderes que se manifestam nas estratégias regionais ou locais (Raffestin, 1993, p.16-17). Além do exposto acima, essa visão clássica também não compreendeu o funcionamento do poder nas demais escalas geográficas (local, regional, nacional, 32 mundial) e dimensionais. O território, ao constituir-se como além do espaço de governança, caracteriza-se como multidimensional. Bernardo Fernandes (2008; 2009) assevera que a multidimensionalidade e a multiescalaridade são componentes dos territórios. Coca (2011, p.120) nos explica que a multidimensionalidade se trata das dimensões social, cultural, econômica e ambiental, relacionando-se dialeticamente pelo “princípio da totalidade nos territórios”. A multiescalaridade do território incide para “além do espaço de governança, considerando os territórios do território” (Coca, 2011, p.120). Outra diferença teórica relevante do autor trata-se da distinção dos termos espaço e território, compreendidos como esferas diferentes e complementares. Como explica Raffestin (1993, p.146), Espaço e território não são termos equivalentes. Por tê-los usado sem critério, os geógrafos criaram grandes confusões em suas análises, ao mesmo tempo que, justamente por isso, se privavam de distinções úteis e necessárias. [...] É essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator “territorializa” o espaço. A citação acima alude ao conceito de espaço geográfico como preexistente ao território, sendo o espaço preexistente (a priori) e o território (a posteriori) como produto das relações sociais. Com suporte teórico de Henri Lefebvre, Raffestin (1993, p.146- 147) delimita o espaço como local “[...] onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por consequência, revela relações marcadas pelo poder”. Por sua vez, o território constitui o espaço formado pelas relações sociais, sendo que... Do Estado ao indivíduo, passando por todas as organizações pequenas ou grandes, encontram-se atores sintagmáticos que "produzem" o território. De fato, o Estado está sempre organizando o território nacional por intermédio de novos recortes, de novas implantações e de novas ligações. O mesmo se passa com as empresas ou outras organizações, para as quais o sistema precedente constitui um conjunto de fatores favoráveis e limitantes. O mesmo acontece com um indivíduo que constrói uma casa ou, mais modestamente ainda, para aquele que arruma um apartamento. Em 33 graus diversos, em momentos diferentes e em lugares variados, somos todos atores sintagmáticos que produzem "territórios". Essa produção de território se inscreve perfeitamente no campo do poder de nossa problemática relacionai. Todos nós combinamos energia e informação, que estruturamos com códigos em função de certos objetivos. Todos nós elaboramos estratégias de produção, que se chocam com outras estratégias em diversas relações de poder (Raffestin, 1993, p.153- 154). De forma dialética, o poder conecta o território às relações sociais como um produto das ações humanas. O território, como espaço geográfico, possui os elementos da natureza e o espaço produzido por esta relação, constitui uma totalidade limitada pela intencionalidade que o designou (Raffestin, 1993). Conforme asseveram Saquet (2013), Coca (2011) e Souza (2012) há uma concepção limitada de espaço e território de Raffestin. Para este teórico, o espaço “praticamente reduz o espaço ao espaço natural” (Souza, 2012, p.97), que o trata como “[...] palco, matéria-prima, sem levar em consideração fatores como a interferência da sociedade, os patrimônios construídos, as redes etc” (Coca, 2021, p.118). Nessa concepção, de acordo com Souza (2013, p.97), Raffestin não rompe com a concepção da Geografia Política clássica, pois identifica o território com o seu substrato material ou “quase [como] [...] sinônimo de espaço social”. Logo, como explica o autor Isto empobrece o arsenal conceitual à nossa disposição. Em que pese a sua crítica à unidimensionalidade do poder na Geografia Política clássica, Raffestin não chega a romper com a velha identificação do território com o seu substrato material, ou seja, com aquela espécie de “hipostasiamento” [...]. A diferença é que Raffestin não se restringe ao “solo pátrio”, ao Boden ratzeliano. Essa materialização do território é tanto mais lamentável quando se tem em mente que Raffestin pretendeu desenvolver uma abordagem relacional adequada à sua Geografia do poder, entendida de modo frutiferamente mais abrangente do que como uma Geografia do Estado. Ao que parece, Raffestin não explorou suficientemente o veio oferecido por uma abordagem relacional, pois não discerniu que o território não é o substrato, o espaço social em si, mas sim um campo de forças, as relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial (Souza, 2012, p.97). Nesse sentido, concordamos com Souza (2012, p.78) ao compreender o território, não como um espaço social em si, pois este é um “espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder”, sobre um substrato referencial. 34 Dialogando com a reflexão de Raffestin, Saquet (2013, p.75-76, grifo do autor) determina o território, como o espaço modificado pelo trabalho e pelas relações de poder, de modo que a territorialidade cristaliza as relações sociais, de poder e dominação. O território é um espaço modificado pelo trabalho e revela relações de poder [...] O território, dessa maneira, é objetivado por relações sociais, de poder e dominação, o que implica a cristalização de uma territorialidade, ou de territorialidades no espaço, a partir das diferentes atividades cotidianas. Isso, de acordo com Raffestin, assenta-se na construção de malhas, nós e redes, delimitando campos de ações, de poder, nas práticas espaciais e constituem território, como materialidade. O trecho acerca da concepção de território de Raffestin destaca dois fatos fundamentais para a tese. O primeiro trata sobre o poder, “[...] que visa o controle e a dominação sobre os homens e sobre as coisas” (Raffestin, 1993, p.58), e que se figura como elementar na produção das relações sociais e de poder. Souza (2012, p.79), afirma que o território é essencialmente um “instrumento de exercício de poder”, sendo relevante questionar “quem domina ou influencia quem nesse espaço, e como?”. Raffestin (1993) contribui para compreender a relação do poder com o saber. Sendo toda relação um lugar de poder, isso significa que o poder está ligado muito intimamente à manipulação dos fluxos que atravessam e desligam relação, a saber, a energia e a informação. Manipulação? Isso quer dizer formação, acumulação, combinação e circulação da energia e da informação implicadas pela existência de um campo relacional, qualquer que seja. A energia, com a informação, se forma, se acumula, se combina e circula. Uma coisa é certa: a energia e a informação sempre estão presentes simultaneamente em toda relação. A troca verbal, a relação oral, não é puramente informacional, pois é necessário uma quantidade de energia para que a comunicação tenha lugar. O laço entre o poder e o saber é evidente (Raffestin, 1993, p.53- 54). Para o autor, os fluxos atravessam a energia, ao ser transformada em informação, transforma-se em “saber”, o que vincula o poder ao saber. Nota-se que para Foucault e Deleuze, ‘todo ponto de exercício do poder é ao mesmo tempo um lugar de formação do saber’. Essa ligação entre saber e poder é atestada por muitos autores. A energia pode ser transformada em informação, portanto em saber; a informação pode permitir a liberação da energia, portanto de força. O poder também é, nessas condições, um lugar de transmutação (Raffestin, 1993, p.56). 35 Consequentemente, esse saber se transforma numa fonte de poder. Como afirmou Francis Bacon5, “saber é poder”, logo, os agentes propagadores e divulgadores de ideias, como os think tanks, são cruciais para as reproduções das relações de poder, bem como, do território. Portanto, o poder, saber e território vinculam-se e se relacionam. O segundo fato fundamental do trecho em questão do Raffestin centraliza-se na afirmação de que as relações sociais, culturais, econômicas e políticas, ao se reproduzirem no espaço geográfico, cristalizam territorialidades. Estas territorialidades convivem com outras territorialidades num mesmo espaço geográfico, podendo se conflitar por relações de poder. Coca (2001) nos ajuda a refletir que a territorialidade, ao ser moldada por diferentes fatores de poder e dinâmicas sociais em contextos variados, se constitui como um reflexo das interações entre indivíduos, grupos e instituições dentro de um determinado espaço. Para exemplificar, destaca-se as diferentes territorialidades no território dos assentamentos rurais, com a territorialidade do camponês, do capital e do Estado (Coca, 2001). No mesmo sentido, Ross (2009), compreende que a monopolização do território pelo capital (Oliveira, 1987; 2001) concebe a territorialidade capitalista no território camponês. Retornando ao território, Bernardo Fernandes (2005) aprofunda a reflexão da diversidade dessas relações de sociais e de poder afirmando que, além de criarem a multiterritorialidade, produzem diferentes tipos de territórios. 5 Francis Bacon compreendeu que “saber é poder” no sentido de que se utiliza o conhecimento para modificar ou dominar a natureza em prol da humanidade (Chauí, 2015). 36 Os territórios são países, estados, regiões, municípios, departamentos, bairros, fábricas, vilas, propriedades, moradias, salas, corpo, mente, pensamento, conhecimento. Os territórios são, portanto, concretos e imateriais. O espaço geográfico de uma nação forma um território concreto, assim como um paradigma forma um território imaterial. O conhecimento é um importante tipo de território, daí a essencialidade do método que são espaços mentais (imateriais) onde os pensamentos são elaborados (Fernandes, B., 2005, p.28). Esses tipos de territórios, conforme já abordado, são multiescalares (corpo, bairro, local, regional, nacional), multiterritoriais e multidimensionais (política, social, econômica, cultural...), criando uma rede de territórios. Como exposto no trecho, o território pode ser concreto ou imaterial. Se o concreto se relaciona ao que é físico, palpável ou real, o imaterial consiste no conhecimento, pensamento e paradigma. Bernardo Fernandes (2008a, p.210-211) ao analisar o território imaterial, complementa que: O território imaterial está presente em todas as ordens de territórios. O território imaterial está relacionado com o controle, o domínio sobre o processo de construção do conhecimento e suas interpretações. Portanto, inclui teoria, conceito, método, metodologia, ideologia etc. O processo de construção do conhecimento é, também, uma disputa territorial que acontece no desenvolvimento dos paradigmas ou correntes teóricas. Determinar uma interpretação ou outra, ou várias, convencer, persuadir, induzir, dirigir faz parte da intencionalidade na elaboração conceitual [...] A produção material não se realiza por si, mas na relação direta com a produção imaterial. Igualmente, a produção imaterial só tem sentido na realização e compreensão da produção imaterial. Essas produções são construídas nas formações socioespaciais e socioterritoriais. Os territórios materiais são produzidos por territórios imateriais. O território imaterial pertence ao mundo das ideias, das intencionalidades, que coordena e organiza o mundo das coisas e dos objetos: o mundo material. A importância do território imaterial está na compreensão dos diferentes tipos de território material. Nós transformamos as coisas, construímos e produzimos objetos na produção do espaço e do território. Penso o território imaterial a partir da mesma lógica do território material, como a determinação de uma relação de poder. Essa determinação deve ser compreendida como definir, significar, precisar a ideia ou pensamento, de modo a delimitar seu conteúdo e convencer os interlocutores de sua validade. As múltiplas relações de poder, bem como os tipos de território, se materializam nas ações quando a informação potencializa a disputa de forças, tensões e conflitualidades. Logo, os territórios concretos (materiais) e imateriais são indissociáveis. 37 O autor também explica que o território imaterial não se limita ao campo da ciência, estando presente na política e nas políticas públicas. O imaterial é a base de sustentação de todos os territórios, sendo construídos e disputados por diferentes sujeitos, grupos e think tanks (Fernandes, B., 2005; 2008a). O território imaterial não se limita apenas ao campo da ciência, mas pertence ao campo da política. E pode ser utilizado para viabilizar ou inviabilizar políticas públicas, por exemplo. Exemplos concretos são as políticas de cotas nas universidades. Estas são produzidas como um território imaterial, cuja intencionalidade é promover a inclusão de sujeitos por meio de processos qualificados. Essas políticas rompem com os processos seletivos genéricos que de fato escondem outras condições políticas de acesso à universidade. Os exames universais de seleção para as universidades, mantêm os privilégios dos mais abastados que são perdidos nos exames seletivos por cotas. É assim que um território imaterial, uma idéia, uma política se materializa em condição real de acesso à universidade e de mudança de destino de muitas pessoas. Essa mudança não se realizaria sem a criação do território imaterial que materializou o novo rumo das vidas dos sujeitos. [...] Os territórios imateriais são as bases de sustentação de todos os territórios. São construídos e disputados coletivamente. As disputas territoriais são alimentadas pelas organizações e seus think-tanks. É impossível, pensar os diversos territórios sem pensar os territórios imateriais, as pessoas e os grupos que pensam e formam esses os territórios (Fernandes, B., 2008a, p.211-212). A afirmação acima é relevante por reconhecer que o conhecimento constitui um importante tipo de território, no qual compreendemos que os think tanks, e suas redes de organizações, são instrumentos dessa disputa territorial, paradigmática e geopolítica. No caso do paradigma, Kuhn (2007, p.13) em um determinado momento o define como “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”6. Nesse pensamento, o paradigma constitui uma visão de mundo com um conjunto de conhecimento das práticas científicas de um grupo, podendo determinar os caminhos e os limites do pensar. 6 Thomas Kuhn (2007) é criticado pela polissemia ou equivocidade na definição do conceito de paradigma na obra, A estrutura das revoluções científicas (Mendonça, 2012). Logo, esta tese assenta-se na interpretação de que o paradigma seria uma visão de mundo. 38 Através dessa compreensão, Campos (2012) avaliou as temáticas dos grupos de pesquisa em Geografia Agrária do estado de São Paulo pelos Paradigma do Capitalismo Agrário (PCA) e o Paradigma de Questão Agrária (PQA)7 e concluiu em seu estudo que os diferentes grupos de pesquisa estão em disputas paradigmáticas e territoriais (materiais e imateriais) ao defenderem modelo de desenvolvimento e visões de mundo diferente. Antes de prosseguir sobre os territórios e sua territorialidade liberal- conservadora, necessitamos aborda a ideologia liberal e conservadora, com o objetivo de evidenciar as características que compõem esse espaço geográfico material e imaterial. 1.2. Ideologia e discurso liberal-conservador Nesta seção objetivamos apresentar e refletir o conceito de ideologia, buscando caracterizar e diferenciá-las para identificar seus discursos. Posteriormente, relacionaremos os conceitos já discutidos de território e territorialidade com o caso do território e territorialidade liberal-conservadora. O termo ideologia utilizado nesta tese, dentre seus vários significados8,está associado com a definição de Japiassú e Marcondes (2006, p.141), como um “conjunto de ideias, princípios e valores que refletem uma determinada visão de mundo, orientando uma forma de ação, sobretudo uma prática política”. Em outros termos, a ideologia associa-se a um conjunto de ideias e valores e normas de conduta que servem 7 Os paradigmas citados serão analisados no Ccapítulo 05. De qualquer maneira, vale adiantar que: o Paradigma do Capitalismo Agrário (PCA) associa-se ao desenvolvimento do capitalismo na agricultura seja pelo agronegócio como pela agricultura familiar; já o Paradigma de Questão Agrária (PQA), compreende a questão agrária como produto do movimento desigual e combinado do capitalismo e defende que a luta pela terra e pela reforma agrária possibilita a criação e recriação do campesinato. 8 Heywood (2010) ao discutir sobre ideologia reflete que o termo tem uma “história estranha” ao modo que, se por um lado, é inseparável da experiencia política do mundo moderno”, por outro, poucos teóricos relevantes no campo da ciência política a defendem. um dos mais difiicis de serem estudados considera Cf. Heywood (2010). 39 para explicar racionalmente temas concernentes à sociedade, além de oferecer o sentimento de identidade social. Além dos autores, nos sustentamos com Chauí (2001, p.131), ao revelar que a ideologia fornece normas ou regras que indicam e prescrevem “[...] o que devem pensar e como devem agir, o que devem valorizar, o que devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer”. Portanto, este termo revela as condutas e práticas morais de um grupo, bem como as estratégias e relações de poder (Chauí, 2001; Heywood, 2010). No mesmo sentido, Antonio Gramsci (1971) auxilia a compreender que o sistema de classe capitalista é sustentado pelo poder político, econômico e da hegemonia das ideias e teorias burguesas. Heywood (2010), na obra Ideologias políticas: do liberalismo ao fascismo, originalmente publicado em 1992, analisou as principais ideologias presentes na sociedade como o liberalismo, conservadorismo, socialismo, nacionalismo, anarquismo e fascismo. O autor salienta que a ideologia, mesmo que estivesse entendida como superada pelo mundo pós-moderno e globalizado, está “destinada a sobreviver” (Heywood, 2010, p.13), qualquer que seja a forma assumida. Diz ainda que A política [...] destituída de ideologia está fadada ao fracasso simplesmente porque não dá às pessoas um motivo para acreditar em algo maior que o interesse material individual, e porque as narrativas pessoais só fazem sentido quando situadas em narrativas históricas mais amplas (Heywood, 2010, p.13). O autor explica que todos nós usamos pensamentos políticos, de forma consciente ou não, e que estabelece metas e inspira a ação política sendo a “principal fonte de significação e idealismo na política” (Heywood, 2010, p.13). Considera que as ideias e ideologias influenciam a vida política de várias maneiras, como a visão de mundo, não como tal mundo constitui-se, mas como “esperam que sejam”. As pessoas não veem o mundo tal como é, mas apenas como esperam que seja: em outras palavras, elas veem o mundo através de um véu de pressupostos, opiniões e crenças arraigados. Conscientemente ou não, todos apoiam algum conjunto de crenças e valores políticos que 40 guiam seu comportamento e influenciam sua conduta. Assim, as ideias e ideologias políticas estabelecem: metas que inspiram a ação política. Para Heywood (2010), as ideias e ideologias políticas funcionam como uma forma de “cimento social”, no qual fornece um conjunto de crenças e valores unificando os grupos sociais ou a sociedades inteiras. Portanto, o autor converge com o pensamento exposto por Japiassú e Marcondes (2006) e Chauí (2001) e justifica a relevância de caracterizarmos essas ideologias. A seguir destacaremos a diferença entre as ideologias políticas do liberalismo e conservadorismo. Heywood (2010) alerta que embora o liberalismo e conservadorismo tenham origens e características próprias, ambas ideologias possuem aspectos comuns que se confundem (Heywood, 2010). Essa diferenciação, conforme apresentaremos, será relevante para destacar e compreender as características específicas de cada ideologia. Sobre a origem do liberalismo, Heywood (2010) afirma que existência da palavra liberal aparece desde o século XIV, que derivava do termo latino líber. A palavra “liberal” é usada desde o século XIV, mas sempre teve grande variedade de significados. O termo latino líber referia-se a uma classe de homens livres; em outras palavras, homens que não eram servos nem escravos. Significava pródigo ou generoso, ou, em referência a atitudes sociais, pressupunha abertura ou mente aberta. Também passou a ser cada vez mais associado a ideias de liberdade e escolha (Heywood, 2010, p.37). O trecho acima alude que o termo liberal possui na sua origem uma vasta variedade de significados, tendo sempre em sua concepção a defesa da liberdade. No mesmo sentido, Losurdo (2006) afirmar que a origem do termo “liberal” geralmente se estabelece com as lutas políticas que se desenvolveram na onda da revolução de 18129. Além disso, Losurdo (2006), numa espécie de “vicissitude semântica” afirma que neste momento, a palavra “liberal”, utilizada como adjetivo, transformou-se em 9 Losurdo (2006) se refere a onda revolucionária o movimento que levou à Constituição de Cádiz na Espanha que, por um lado, havia os liberais espanhóis defensores da Constituição, e do outro, “os adversários rotulados como ‘servis’ pelos primeiros” (Losurdo, 2006, p.255). De acordo com Bezerra (2013), essa revolução, que culminou na Constituição de Cádiz, está situada como resistência do povo espanhol a invasão francesa de Napoleão Bonaparte e que o desejo do povo espanhol era a sua soberania e de não submeter-se à “nenhuma outra autoridade, nem monárquica, nem republicana” (Bezerra, 2013, p.91). 41 substantivo. Isso é, ao invés de apenas qualificar ou caracterizar, “liberal” começou a representar uma ideologia e, portanto, de representar um conjunto de ideias, princípios e valores refletindo e normalizando uma visão de mundo. De acordo com Heywood (2010), a palavra só se tornou ideológica a partir do século XIX, com a crise do feudalismo, que marcou a transição ao capitalismo comercial e da era de acumulação primitiva do capital. Este contexto, marcado pela forte intervenção estatal na esfera econômica e individual justamente pela política absolutista10 e mercantilista11, foi crucial para forjar o liberalismo. Em sequência, a ideologia liberal foi hegemônica no século XIX, tanto é que este período foi denominado de “século liberal” em decorrência do expressivo desenvolvimento capitalista industrial e da expansão do mercado mundial (Heywood, 2010). O século XIX foi, em muitos aspectos, o século liberal. Conforme a industrialização se disseminava pelos países ocidentais, as ideias liberais triunfavam. Os liberais defendiam uma ordem econômica de mercado e industrializada, “livre” da interferência do governo, em que as empresas podiam visar lucros e as nações eram encorajadas a comercializar livremente umas com as outras. Tal sistema de capitalismo industrial se desenvolveu primeiro no Reino Unido, a partir de meados do século XVIII, e já no início do século XIX estava bem estabelecido. Em seguida, espalhou-se pela América do Norte e por toda a Europa — a princípio, na parte Oeste do continente e depois, de forma mais gradativa, pela Europa oriental. (Heywood, 2010, p.38). A partir do século XX, o capitalismo industrial expandiu-se através do imperialismo e neocolonização para regiões da África, Ásia e América Latina, fornecendo as bases liberais e de desenvolvimento social e político (Losurdo, 2006), “definido em termos essencialmente ocidentais” (Heywood, 2010, p.38). Kalina Silva e Maciel Silva (2009), ao tratar historicamente sobre o liberalismo, explicam que a base social do pensamento liberal era idealizada pela burguesia, que 10 O absolutismo foi um regime político que um monarca detinha o poder sem limites de interferência (Japiassú; Marcondes, 2006, p.1). 11 O mercantilismo foi um conjunto de ideias e práticas econômicas com forte intervenção estatal, protecionismo comercial e incentivos as indústrias manufatureiras e de companhias comerciais (Arruda, 1977, p.71). 42 ascendeu economicamente na Idade Moderna pelo mercantilismo e ambicionava conquistar o poder político. Comentam também que, após o iluminismo, o liberalismo dividiu-se em econômico e político. Economicamente, o liberalismo é uma teoria capitalista, que defende a livre-iniciativa e a ausência de interferências do Estado no mercado. O liberalismo político, por sua vez, emergiu como uma nova forma de organizar o poder, contrária ao Absolutismo (Silva; Silva, 2009, p.258). Imbuído dos ideais iluministas, o liberalismo constituiu-se como uma reação radical da classe média aos governos absolutistas e mercantilistas em defesa da liberdade individual. As ideias liberais eram radicais: visavam grandes reformas e, às vezes, até mesmo mudanças revolucionárias. A Revolução Inglesa do século XVII e as revoluções Americana e Francesa do final do século XVIII incluíam elementos marcadamente liberais, ainda que a palavra “liberal” não fosse usada, na época, com um sentido político. Os liberais desafiavam o poder absoluto da monarquia, que estaria ancorado na doutrina do “direito divino dos reis”. No lugar do absolutismo, eles defendiam o governo constitucional e, mais tarde, o governo representativo. Também criticavam os privilégios políticos e econômicos da aristocracia rural e a injustiça de um sistema feudal em que a posição social era determinada pelo “acidente do nascimento”. Além disso, questionavam a autoridade da Igreja e apoiavam os movimentos que lutavam pela liberdade de consciência religiosa. (Heywood, 2010, p.38). Retornando à Silva e Silva (2009), os autores refletem que os liberais reivindicavam direitos diante do Estado para que se rompesse com a Igreja, que constituía o cerne do absolutismo. Além disso, o liberalismo consistiu como uma tradição associada, no aspecto político, antiabsolutista e anticlerical, e econômico, antimercantilista. Nesse contexto, as ideias liberais radicais se diferenciam em um primeiro momento dos conservadores, isso é, daqueles que buscavam (de forma genérica) a conservar a ordem. Ao longo das revoluções citadas, como a Americana e Francesa, ser liberal significou lutar contra opressão, injustiça e autoridades, representando-se como radical, revolucionária, democrática ou libertária. Todavia, a transformação da ideologia liberal após este período desprendeu-se da característica revolucionária, e 43 inclusive até da qualidade de democrática, fundindo-se ao conservadorismo ou reacionarismo na Nova Direita. Considerando democracia como “[...] arranjos políticos por meio dos quais um povo governa a si mesmo. tenham sido separados” (Brown, 2019, p.34), há diversos exemplos sobre como o liberalismo e democracia se separava e conflituavam. Domenico Losurdo (2006) ao explorar a contra-história do liberalismo resgata diversos contextos históricos de contradição do liberalismo, desde o apoio a escravidão desde a Revolução Francesa até o golpe de Estado em países latino-americanos desde o século XX. O movimento de independência dos Estados Unidos, embora tivesse fundamentos liberais e democráticos, também conservou interesses escravocratas e manteve restrições aos direitos de indígenas e mulheres. Na América Latina, o liberalismo funcionou sem a inclusão popular, mantendo privilégios elitistas e a própria escravidão, como no Brasil do século XIX (Silva; Silva, 2009). De forma semelhante ocorreu com as variações das versões liberais levam a questionar a associação entre liberalismo e democracia12. Silva e Silva (2009, p.257) elucidam que o liberalismo político assumiu ao longo do tempo “faces variadas, mais ou menos radicais” através dos casos dos liberais Montesquieu, Rousseau e Voltaire. Montesquieu, opositor do Estado Absoluto e defensor do regime monárquico, defendeu em O espírito das leis a separação de poderes para evitar a tirania, propondo equilibrar o poder e limitando o soberano, com os três poderes (executivo, legislativo e judiciário). Em contrapartida, o caso do liberalismo rousseauniano teve um cunho mais democrático, no qual o filósofo valorizava a soberania popular e a “vontade geral”, no sentido de que a “soberania deveria obedecer a um contrato social e estar submetida à vontade geral” (Silva; Silva, 2009, p.259), o que inspirou movimentos democráticos como as independências da 12 Naomi Klein (2008) explica sobre como o neoliberalismo (liberalismo neoclássico), que abordaremos posteriormente, se impôs como política econômica em países da América Latina, via “tratamento de choques”, enquanto Wendy Brown (2019) aborda como a “racionalidade neoliberal” mobilizou e legitimou forças antidemocráticas e de extrema direita na segunda década do século XXI. 44 América Latina. No entanto, outras vertentes liberais eram antidemocráticas, como a de Voltaire, que defendia a liberdade de pensamento, mas não via a participação do povo na política como algo desejável (Silva; Silva, 2009). A ideologia liberal incorpora no seu compromisso moral um conjunto específico de valores e crenças que se fundamenta no “[...] compromisso com o indivíduo e o desejo de construir uma sociedade em que as pessoas possam se realizar e satisfazer seus interesses pessoais” (Heywood, 2010, p.37). Os mais importantes valores e crenças são o indivíduo, a liberdade, a razão, a justiça e a tolerância. Organograma 1 – Valores e crenças do liberalismo Fonte: Elaborado pelo autor (2024) a partir de Heywood (2010). Estes valores e crenças correspondem a visão de mundo da ideologia liberal, estando presente na territorialidade discursiva dos atores e sujeitos. Em cada corrente do liberalismo, há uma variação sobre a concepção de cada um, na qual representamos de forma sintética no Quadro 1 os principais valores e crenças do liberalismo. Quadro 1 -Principais valores e crenças do liberalismo Indivíduo A transição do feudalismo para as sociedades centradas no mercado promoveu aos indivíduos maior destaque, no sentido de estes possuírem mais opções de escolhas e possibilidades sociais. Nessa nova atmosfera, houve uma valorização da singularidade de cada pessoa, entendida como única e dotada de um valor especial. Isso implicou tensões na ideologia liberal entre as ideias antagônicas de singularidade e igualdade. Algumas correntes identificaram-se com o atomismo, uma crença que a sociedade é formada por um conjunto de indivíduos (ou átomos) autossuficientes e que eram motivados para os próprios interesses. Em consequência, o indivíduo nessa percepção leva a inexistência coletiva em favor da autonomia individual extrema, sendo associado ao "individualismo possessivo" de Crawford Macpherson, que considera que o indivíduo, ao ser proprietário de si mesmo ou de suas capacidades, não deve nada à sociedade. Os liberais modernos defendiam a visão mais otimista da natureza humana, pois estavam mais predispostos a acreditar que o egoísmo fosse moderado pelo “senso de responsabilidade social”, em especial daqueles incapazes de cuidar de si mesmos. Liberdade 45 A fé na importância suprema do indivíduo leva naturalmente a um compromisso com a liberdade individual, que é o valor político mais essencial e o princípio unificador da ideologia liberal. Para os primeiros liberais (ver liberalismo clássico), a liberdade seria um direito natural, isso é, requisito fundamental para uma existência humana verdadeira (liberdade negativa). Os liberais posteriores (liberalismo moderno) concebiam a liberdade como a única condição em que as pessoas são capazes de desenvolver suas habilidades e talentos e realizar seu potencial e, diferente dos primeiros, concebia que a liberdade não era absoluta (liberdade positiva). Razão Através do iluminismo, a defesa liberal da liberdade está intimamente relacionada com uma crença na razão, cujo projeto iluminista buscou libertar a humanidade da superstição e ignorância. Pensadores como Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant, Adam Smith e Jeremy Bentham foram influenciados pelo racionalismo iluminista, o qual fortaleceu a fé no indivíduo e na liberdade. Para os liberais, a razão capacita os seres humanos para tomar responsabilidade por suas vidas e decidir seus destinos. Além disso, é enfatizada a importância da educação como meio de promover o desenvolvimento pessoal e avanço histórico. Justiça A justiça, sob a perspectiva liberal, está relacionada à distribuição de recompensas e punições, especialmente no que se refere à igualdade e ao mérito individual. Os liberais acreditam em uma igualdade fundacional, formal e de oportunidades, rejeitando os privilégios sociais baseados em sexo, raça, cor, credo ou origem social. Defendem que as desigualdades devem refletir méritos, talentos ou fatores fora do controle humano, como a sorte. A meritocracia é vista como essencial, julgando os indivíduos conforme seu talento e disposição para trabalhar. No entanto, há divergências entre os liberais clássicos e modernos quanto à aplicação prática desses princípios de justiça. Tolerância A ética liberal, enraizada no princípio do individualismo e pressupõe a singularidade humana, caracteriza-se pela aceitação e celebração da diversidade moral, cultural e política. A preferência liberal pelo pluralismo (o poder político deve ser distribuído de forma ampla e imparcial), se associa à tolerância, expressa na memorável declaração de Voltaire sobre defender o direito de expressão mesmo discordando das opiniões. O compromisso com a tolerância representa um ideal ético e um princípio social que surgiu no século XVII com escritores como John Milton e John Locke em defesa da liberdade religiosa. A tolerância deve ser estendida aos assuntos considerados "privados", pois envolvem questões morais individuais. Fonte: Elaborado pelo autor (2024) a partir de Heywood (2010). A primazia liberal do indivíduo se baseia na concepção da sociedade como um “conjunto de indivíduos”, no qual cada um procura “[...] satisfazer um conjunto de as próprias necessidades e interesses” (Heywood, 2010, p.41). Os seres humanos são indivíduos dotados de razão, o que significa que todos devem “desfrutar da máxima liberdade compatível com uma liberdade similar para