unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP INGRID LARA DE ARAÚJO UTZIG FIC ⇄ LIVRO: FANDOM E POLISSISTEMA LITERÁRIO ARARAQUARA – SP 2021 INGRID LARA DE ARAÚJO UTZIG FIC ⇄ LIVRO: FANDOM E POLISSISTEMA LITERÁRIO Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara (FCL-Ar), como requisito para obtenção do título de Doutora em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica da Narrativa. Orientadora: Dr.ª Rejane Cristina Rocha. Coorientadora: Dr.ª Juliana Santini. Bolsa: CAPES – DINTER. ARARAQUARA – SP 2021 U93f Utzig, Ingrid Lara de Araújo Fic livro : fandom e polissistema literário / Ingrid Lara de Araújo Utzig. -- Araraquara, 2021 245 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientadora: Rejane Cristina Rocha Coorientadora: Juliana Santini 1. A Lenda de Fausto. 2. Fanfiction. 3. Estudos de Edição. 4. Polissistema literário. 5. Literatura amapaense. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. FIC ⇄ LIVRO: FANDOM E POLISSISTEMA LITERÁRIO Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara (FCL-Ar), como requisito para obtenção do título de Doutora em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica da Narrativa. Orientadora: Dr.ª Rejane Cristina Rocha. Coorientadora: Dr.ª Juliana Santini. Bolsa: CAPES - DINTER Data da defesa: 09/12/2021 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientadora: Dr.ª Rejane Cristina Rocha. Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Membro Titular: Dr.ª Luciana Salazar Salgado. Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Membro Titular: Dr. Márcio Roberto do Prado. Universidade Estadual de Maringá - UEM. Membro Titular: Dr.ª Manaíra Aires Athayde. Universidade de Coimbra - UCoimbra. Membro Titular: Dr.ª Elaine Barros Indrusiak. Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Aos meus pais — alicerces de todas as minhas quimeras —, por me ensinarem a desaprender o impossível. AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, às deusas, aos orixás, às entidades, aos meus guias, enfim, a todos os mentores espirituais que me protegem e me encaminham pelo fluxo de dádivas e bênçãos que tem invadido minha jornada neste plano. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. À minha orientadora, Prof.a Dra. Rejane Cristina Rocha, pela relação de admiração e respeito constituída através do tempo. Agradeço pelas tantas sugestões, oportunidades enriquecedoras, pelo acompanhamento, escuta e leitura atenta que auxiliaram no encaminhamento desta tese. À minha coorientadora, Prof.a Dra. Juliana Santini, por ter visto potencial na pesquisa. Infinitamente grata pelo crédito e interesse em minha proposta de trabalho. Muito obrigada por ter pego minha mão e enfrentado tal desafio junto comigo. À coordenadora operacional do DINTER, Prof.a Dra. Natali Fabiana Costa e Silva, minha querida “Natalinda”, por ter lutado com tanto afinco, competência e dignidade para que hoje a turma exista e o Estado do Amapá possa receber quinze novos doutores, o que para nossa região é um ganho imensurável. Mais que alguém a quem se dirigir para resolver questões administrativas, é uma amiga que admirarei por toda minha vida. Ao grupo de pesquisa Observatório da Literatura Digital Brasileira, pelos debates profícuos, trocas significativas, pelas leituras que estruturaram o embasamento teórico necessário e, acima de tudo, pela parceria e senso de coletividade, pois os encontros e as atividades desenvolvidas em conjunto sempre abrem novos olhares e ajudam na construção do trabalho de todos(as). À Pró-Reitoria de Pesquisa do Instituto Federal do Amapá (IFAP), à época, na pessoa da Rosana Tomazi, por ter providenciado e destinado vagas do DINTER para essa IES. Ao colegiado de Letras do IFAP, por ter me dado o incentivo necessário e aprovado com unanimidade meu afastamento, sem o qual eu não teria sido capaz de administrar o tempo para me dedicar à conclusão da tese. A todos os docentes da UNESP que ministraram as disciplinas do DINTER (profs. Drs. Cido Rossi, Tom Pires, Juliana Santini, Elizabete Sanches Rocha, João Batista Toledo Prado, Fernando Brandão dos Santos, Paulo César Andrade e Karin Volobuef), aos docentes da UFSCar e convidados que ministraram disciplinas externas ao programa (profs. Drs. Luciana Salazar Salgado, Haroldo Ceravolo Sereza, Manaíra Aires Athayde e Rejane Cristina Rocha), minha mais sincera gratidão pela formação e pelo conhecimento compartilhado. Às bancas de qualificação e defesa, compostas pelos professores drs. Elaine Barros Indrusiak, Luciana Salazar Salgado, Manaíra Aires Athayde e Márcio Roberto do Prado, pelas riquíssimas contribuições e pela leitura comprometida com a melhoria da pesquisa. Aos colegas de turma do DINTER, pelo compartilhamento das angústias, inseguranças e aprendizados no decorrer desses quatro anos. Agradeço, especialmente, à minha colega de quarto Mariana Janaina Alves, por me acompanhar no estágio em Araraquara durante o auge da pandemia de COVID-19. Obrigada pelas risadas, comidas, lives e latinhas de Original. Aos meus pais, Oli José Utzig e Ângela Irene Farias de Araújo Utzig, pelo suporte, amor incondicional, e por sempre permitirem que meus sonhos me levassem onde o sentimento de pertencimento pudesse me alcançar. À Brenda, por ser o amor que eu sempre sonhei e que não sabia que de fato existia. Obrigada por ser comigo e pela honra e pelo prazer de poder passar meus dias ao seu lado. Às minhas filhas de quatro patas: Gótica, Pantera, Suspiria e Vizinha, esses seres peludos que me preenchem de uma ternura que eu sequer me julgava capaz de nutrir. À família que me acolheu como um afago: Dona Socorro, Velho Léo e Glenda, obrigada por me abrigarem e por me aceitarem com tanto carinho. Aos meus amigos e minhas amigas. Tenho receio de nomear individualmente e acabar esquecendo alguém, mas eles(as) sabem que estão abarcados(as) e abraçados(as) neste parágrafo e na minha existência. Ao Amapá, meu berço e minha morada, por este rio que é dentro. À Samila Lages, por ceder tempo e paciência a esta humilde fã. Obrigada, principalmente, por ter escrito A Lenda de Fausto. A todas as pessoas que, direta ou indiretamente, participaram deste processo... Meu muito obrigada! O objeto literário é, mais do que as obras ou o ato inapreensível da criação, o processo sociocultural de sua elaboração, seu tráfico e as modulações em que se altera seu sentido. Chegou o momento de falar, ainda que seja em um breve apêndice, do processo mais recente: a deriva digital da literatura. (Néstor García Canclini) RESUMO A fanfiction A Lenda de Fausto, de Samila Lages, foi transformada em romance pela Editora Multifoco em 2011. A partir das considerações de Henry Jenkins, Anne Jamison, Néstor Canclini, Régis Debray, Giselle Beiguelman e outros teóricos, buscou-se discutir a mobilidade da obra de Samila, entre quatro plataformas: o Nyah!, o zine, o blog da produtora e o livro físico. Intentou-se compreender os trajetos que precederam a publicação, perpassando processos de criação, produção, reprodução, circulação, recepção, difusão e editoração d’A Lenda de Fausto. Em tal percurso, percebeu-se que a fanfiction possui (im)possibilidades estéticas específicas do meio digital, uma vez que explora algumas potencialidades/limitações impostas pela interface do Nyah! e se desdobra em spin-offs, pois além d’A Lenda de Fausto, há a pré-sequência Relatos da Queda e a sequência O Trilo do Diabo. Pretendeu-se observar a(s) poética(s) da construção desse objeto e como Samila se apropria de diferentes estratégias a fim de estabelecer-se enquanto produtora (re)conhecida dentro e fora do microcosmo otaku. Os objetivos do trabalho se concentraram em investigar se o(s) fandom(s), comunidade(s) virtual(is) organizada(s) na ressignificação do conteúdo das franquias e da indústria cultural, com regras reunida(s) em torno de uma recepção não-passiva, em um modelo de consumo produtivo, constituem-se como sistema de cultura. Para debater essas dinâmicas, utilizou-se a teoria dos polissistemas, de Even-Zohar (2017). Desenhou-se como segundo objetivo propor que A Lenda de Fausto, em sua materialidade disposta no Nyah!, estabelece-se como literatura digital, apesar de não ser uma premissa comum ao gênero fanfiction, e como a prática empreendida na plataforma foi descontinuada e até mesmo apagada do contexto exordial na transição para mídiuns ulteriores. O terceiro objetivo foi notar como os fatores literários do fandom agregaram Samila ao polissistema literário por meio da transição ao mercado editorial impresso, o que gerou uma metamorfose de status – de produtora de fics a autora –. Por fim, buscou-se entender como se dá essa dupla existência de Samila/Ryoko, em ambientes com funcionamentos distintos. A tese defendida foi de que A Lenda de Fausto evidencia a intersecção de diferentes polissistemas por meio da mudança da materialidade: enquanto fic, uma série de fatores levou à legitimação no fandom. Enquanto romance publicado em livro, passou a ter outras formas de circulação e públicos mais amplos, gerando uma dupla camada de consagração: na comunidade fã e na literatura amapaense. Palavras–chave: A Lenda de Fausto. Fanfiction. Estudos de Edição. Polissistema literário. Literatura amapaense. ABSTRACT The fanfiction A Lenda de Fausto, written by Samila Lages, was transformed into a novel by Multifoco publisher in 2011. Based on the considerations of Henry Jenkins, Anne Jamison, Néstor Canclini, Régis Debray, Giselle Beiguelman and other theorists, this research aimed to discuss the mobility of Samila's work, whose fluctuation occurred between four platforms: Nyah!, a fanzine, Samila’s blog and the book. The intention was to understand the paths that preceded the publication, going through the creation, production, reproduction, circulation, reception, diffusion and publishing processes of A Lenda de Fausto. In such way, it was noticed that the fanfiction has specific aesthetic (im)possibilities provided by the digital environment, since it explores some potentialities/limits of Nyah’s interface and it unfolds in spin-offs, because in addition to A Lenda de Fausto, there is the prequel Relatos da Queda and the sequel O Trilo do Diabo. It was intended to observe the poetic(s) in the construction of this object and how Samila appropriates different strategies in order to establish herself as a reknowned writer inside and outside the otaku microcosm. The objectives of this thesis were focused on investigating whether the fandom(s), virtual communities organized in the redefinition of franchises and cultural industry contents, with rules gathered around a non-passive reception, in a model of productive consumption, constitutes itself as a culture system. To debate these dynamics, it was used the polysystems’ theory, by Even-Zohar (2017). The second objective was to propose that A Lenda de Fausto, in its materiality displayed on Nyah!, establishes itself as e-literature, despite the fact that it is not a common premise for fanfiction as a genre, and how the practice undertaken on the platform was discontinued and even erased from the exordial context during the transition to later mediums. The third objective was to notice how the fandom’s literary factors put Samila into the literary polysystem through the transition to the printed editorial market, which generated a metamorphosis of her status - from ficwriter to author -. Finally, it was sought to understand how this double existence of Samila occurs, in systems with different behaviors. The thesis defended was that A Lenda de Fausto highlights the intersection of different polysystems through the change of materiality: as fanfiction, a series of factors led to the legitimization in fandom. As a novel published in a book, it began to have other forms of circulation and wider audiences, generating a double layer of consecration: within the fan community and in the literature of Amapá. Keywords: A Lenda de Fausto. Fanfiction. Editing. Literary polysystem. Literature of Amapá. LISTA DE QUADROS QUADRO 1 - INTERSECÇÕES ENTRE FANDOM E POLISSISTEMA LITERÁRIO .................... 25 QUADRO 2 - EXEMPLOS DE FATORES LITERÁRIOS NOS FANDOMS ..................................... 42 QUADRO 3 – MÍDIUNS D'A LENDA DE FAUSTO ........................................................................ 85 QUADRO 4 – UNIVERSO FICCIONAL D’A LENDA DE FAUSTO POR SAMILA/RYOKO ...... 87 QUADRO 5 – NOMENCLATURAS UTILIZADAS COMO REFERÊNCIA AO NYAH! ................. 89 QUADRO 6 – COMPARAÇÃO ENTRE FILTROS DE PESQUISA DO NYAH! E DO +FICTION .............................................................................................................................................................. 101 QUADRO 7 - EXEMPLO DE PARATEXTO (CONT.): IMAGENS DE BELIAL ........................... 115 QUADRO 8 – COMPARAÇÃO DA ESTÉTICA YAOI DAS FANARTS D’A LENDA DE FAUSTO .............................................................................................................................................................. 116 QUADRO 9 - EXEMPLOS DE UTILIZAÇÕES DAS NOTAS NO NYAH! ..................................... 121 QUADRO 10 – TRILHA SONORA D'O TRILO DO DIABO ............................................................ 144 QUADRO 11 – PRODUTOS ARCÔNTICOS D’A LENDA DE FAUSTO ..................................... 158 QUADRO 12 – SISTEMA A LENDA DE FAUSTO POR SAMILA/RYOKO E FÃS ................... 163 QUADRO 13 – INTERSECÇÕES NA COMPOSIÇÃO DO ARQUIVO FÁUSTICO ..................... 164 QUADRO 14 – INSTÂNCIAS DE CONSAGRAÇÃO NO FANDOM ............................................. 165 QUADRO 15 – EXEMPLOS DE POSTS NO BLOG DE SAMILA LAGES ..................................... 172 QUADRO 16 — MÍDIUNS E FATORES LITERÁRIOS D'A LENDA DE FAUSTO ................... 191 QUADRO 17 — MÍDIUNS D'A LENDA DE FAUSTO E POLISSISTEMAS ............................... 193 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1- CAPTURA DE TELA: FIC LOSS, DE RYOKO-CHAN, TRADUZIDA PARA O RUSSO ... 79 FIGURA 2 – FANART POR RAY NEE ....................................................................................................... 83 FIGURA 3 – CAPTURA DE TELA DA PÁGINA INICIAL DO NYAH! ................................................... 93 FIGURA 4 – PÁGINA INICIAL DO NYAH!............................................................................................... 94 FIGURA 5 – PÁGINA INICIAL DO +FICTION ......................................................................................... 97 FIGURA 6 – PÁGINA INICIAL DO +FICTION (CONT.) .......................................................................... 98 FIGURA 7 – PERFIL DE SAMILA MIGRADO DO NYAH! PARA O +FICTION ................................. 102 FIGURA 8 – RESULTADOS DE BUSCA PARA A LENDA DE FAUSTO ........................................... 103 FIGURA 9 – REDIRECIONAMENTO DO NYAH! PARA O +FICTION ................................................ 103 FIGURA 10 – PÁGINA INICIAL DE A LENDA DE FAUSTO NO NYAH! .......................................... 105 FIGURA 11 – EXEMPLO DE DISCLAIMER............................................................................................ 106 FIGURA 12 – AVISO DE CONTROLE PARENTAL DO NYAH! ........................................................... 107 FIGURA 13 – TERMOS DE CONTROLE PARENTAL DO NYAH! ....................................................... 108 FIGURA 14 – EXEMPLO DE PARATEXTO: NOTA DO CAPÍTULO “O PADRE” .............................. 111 FIGURA 15 – EXEMPLO DE PARATEXTO (CONT.): IMAGEM DO HIPERLINK REDIRECIONADO PELA NOTA DO CAPÍTULO “O PADRE” ................................................................................................ 112 FIGURA 16 – EXEMPLO DE PARATEXTO: NOTA DO CAPÍTULO “A PUNIÇÃO” ......................... 114 FIGURA 17 – APLICAÇÕES DE PARATEXTO: APROXIMAÇÃO & FEEDBACK (CAPÍTULO “O SABBAT”) .................................................................................................................................................... 124 FIGURA 18 – APLICAÇÕES DE PARATEXTO: AVISO DE CONTEÚDO ADULTO (CAPÍTULO “O SABBAT”) .................................................................................................................................................... 125 FIGURA 19 – APLICAÇÕES DE PARATEXTO: CONTEXTUALIZAÇÃO E ESCLARECIMENTOS DE FATOS NARRADOS (CAPÍTULO “A ROSA BRANCA”) ....................................................................... 126 FIGURA 20 – EXEMPLO DE PARATEXTO: NOTA DO CAPÍTULO “O CONTRATO” ..................... 127 FIGURA 21 – EXEMPLO DE PARATEXTO (CONT.): IMAGEM DO HIPERLINK CORROMPIDO, REDIRECIONADO PELA NOTA DO CAPÍTULO “O CONTRATO” ..................................................... 128 FIGURA 22 – EXEMPLO DE PERSONALIZAÇÃO EM UMA “FIC INTERATIVA” ........................... 133 FIGURA 23 – EXEMPLO DE GAMIFICAÇÃO EM UMA FIC ............................................................... 134 FIGURA 24 – EXEMPLO DE PARATEXTO: RETIRADA DE CONTEÚDO DO AR NO CAPÍTULO “A ROSA NEGRA” ............................................................................................................................................ 138 FIGURA 25 – PÁGINA INICIAL DE RELATOS DA QUEDA ................................................................ 140 FIGURA 26 – PÁGINA INICIAL D’O TRILO DO DIABO ...................................................................... 142 FIGURA 27 – EXEMPLO DE PARA/HIPERTEXTO: NOTAS & MULTIMODALIDADE NO CAPÍTULO “1º MOVIMENTO – O PIERROT” ......................................................................................... 143 FIGURA 28 – EXEMPLO DE NOTAS COM HIPERLINKS DE PRODUÇÕES FÃ ............................... 147 FIGURA 29 – PÁGINA INICIAL DA FIC DE RELATOS DA QUEDA .................................................. 148 FIGURA 30 – PÁGINA INICIAL DA FIC D’O TRILO DO DIABO ........................................................ 149 FIGURA 31 – FANART DA PERSONAGEM LÚCIFER, POR RAY NEE .............................................. 150 FIGURA 32 – FANART DA PERSONAGEM ASMODAI, POR RAY NEE ............................................ 151 FIGURA 33 – EXEMPLO DE SHIPPER D’A LENDA DE FAUSTO ..................................................... 153 FIGURA 34 – FÃ-IDOL: O CASO DE LEONA_EBM .............................................................................. 156 FIGURA 35 – PÁGINA INICIAL DA FIC D'A LENDA DE FAUSTO ................................................... 157 FIGURA 36 – CAPA DO ZINE D’A LENDA DE FAUSTO .................................................................... 168 FIGURA 37 — SORTEIOS ON-LINE D'A LENDA DE FAUSTO NO TWITTER ................................ 175 FIGURA 38 — CAPA DO ROMANCE A LENDA DE FAUSTO ........................................................... 183 FIGURA 39 — FICHA TÉCNICA D'A LENDA DE FAUSTO ................................................................ 184 FIGURA 40 — SUMÁRIO DO ROMANCE A LENDA DE FAUSTO ................................................... 187 FIGURA 41— PERFIL DA EDITORA MULTIFOCO NO INSTAGRAM ............................................... 197 FIGURA 42 — SELOS DA EDITORA MULTIFOCO .............................................................................. 198 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 14 1 O(S) FANDOM(S) COMO POLISSISTEMAS ......................................................................... 25 1.1 FATORES LITERÁRIOS DO(S) FANDOM(S) .................................................................... 33 1.1.1 Instituição: relações de poder no(s) fandom(s) ............................................................. 34 1.1.2 Fic: um dos repertórios do(s) fandom(s) ....................................................................... 35 1.1.3 Fãs: produtores & consumidores .................................................................................. 37 1.1.5 Mercado: a economia de dádiva no(s) fandom(s) ......................................................... 39 1.1.6 Produtos na cultura fã .................................................................................................... 41 2 FANDOMS: REINOS POLISSISTÊMICOS ............................................................................ 44 2.1 FÃS-ARCONTES: FANDOM & MERCADO EDITORIAL ................................................. 50 2.2 FETICHES & FEITIÇOS: AUTORIA FEMININA NO FANDOM BL/YAOI ....................... 66 2.3 DE FUJOSHI A FICWRITER: O LUGAR DE SAMILA NOS POLISSISTEMAS .............. 75 2.4 LENDA CORROMPIDA: O MITO FÁUSTICO YAOI ......................................................... 79 3 FACES & INTERFACES: A LENDA DE FAUSTO NO NYAH! ........................................... 84 3.1 FIC & PLATAFORMIZAÇÃO DA LITERATURA .............................................................. 88 3.1.1 Nyah!: (im)possibilidades estéticas .............................................................................. 104 3.2 A LENDA DE FAUSTO & A “DESPROGRAMAÇÃO DA TÉCNICA” ............................ 107 3.2.1 Paratexto para que? ...................................................................................................... 110 3.2.2 A fic entre links e cliques .............................................................................................. 130 3.3 RELATOS DA QUEDA ....................................................................................................... 140 3.4 O TRILO DO DIABO ........................................................................................................... 142 3.5 FANARTS, RETOMADAS E SHIPPERS: PROCESSOS DE LEGITIMAÇÃO NO(S) FANDOM(S) ................................................................................................................................ 146 4 A FIC DEPOIS DA FIC: A LENDA DE FAUSTO E(M) OUTROS MÍDIUNS .................. 167 4.1 O ZINE .................................................................................................................................. 167 4.2 O BLOG ................................................................................................................................. 170 4.3 O LIVRO ............................................................................................................................... 179 4.3.1 Outro mídium, outra obra ........................................................................................... 182 4.3.2 O perfil da editora ......................................................................................................... 193 4.3.3 Fic, romance de gênero ou romance de entretenimento? .......................................... 202 CONSIDERAÇÕES IMINENTES .............................................................................................. 209 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................ 215 APÊNDICES .................................................................................................................................. 230 APÊNDICE 1 – ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM SAMILA ....................................... 230 APÊNDICE 2 – TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA COM SAMILA .................................. 232 14 INTRODUÇÃO Esta tese foi desenvolvida através de reflexões realizadas no âmbito do Repositório da literatura digital brasileira de que trata o processo CNPq n. 405609/2018-3. Aludido projeto tem como principais objetivos o mapeamento, catalogação, armazenamento, preservação e compreensão da literatura digital produzida no Brasil e foi elaborado para execução em diversas etapas que ainda se encontram em andamento, tendo se iniciado com o site do Atlas1, cuja execução total se encontra sob a coordenação da Professora Dra. Rejane Cristina Rocha, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e que culminou no lançamento do site do Ctrl + S: Observatório da Literatura Digital Brasileira2, em maio de 2021. Uma das características do estudo da literatura digital, em seu atual estágio, destaca a necessidade propositiva de estabelecer categorias de análise que vão dando conta da produção literária do hoje, construindo, através do olhar transitório do em-curso, do emergente, a tentativa de elaboração de uma “teoria do presente” (MANOVICH, 2005, p. 51), com o que Mieke Bal chama de conceptos viajeros, ou seja, que logo também serão obsolescência diante de novos fenômenos. Chegou-se até o Observatório3 depois da entrada na linha “Literatura, Linguagens e Meios”, dentro do grupo Literatura & Tempo Presente4 (LiTemp), liderado pelas orientadoras, as professoras Dras. Rejane Cristina Rocha e Juliana Santini (UNESP). Nesse entrecruzamento de áreas de interesse abarcadas pelo fazer da contemporaneidade, este trabalho, em específico, nasceu previamente à adesão ao grupo, uma vez que a proposta de debater A Lenda de Fausto já existia desde o começo do curso de doutorado, mas a pesquisa surgiu e ganhou mais forma e corpo no decorrer do desenvolvimento das discussões conjuntas na linha “Sistema Literário no contexto digital”, onde se consolidou uma certa diferenciação dos conceitos de literatura digital x literatura em contexto digital. Inicialmente, a fanfiction, como repertório da comunidade fã, assentar-se-ia em uma perspectiva de literatura em contexto digital, a considerar o típico caráter massivo (KOZAK, 2019) dessa produção cuja propagação foi impulsionada pós-advento das novas mídias (MANOVICH, 2005) e da web 2.05, tanto pelo fato de ser elaborado a partir da indústria cultural 1 Disponível em: https://atlasldigital.wordpress.com/. 2 Disponível em: https://www.observatorioldigital.ufscar.br/. 3 Espelho do grupo disponível em: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/9501948717602278. 4 Espelho do grupo disponível em: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/8310702039128556. 5 Termo criado por O’Reilly em 2005, através das ideias de What is web 2.0: design patterns and business models for the next generation of software. De acordo com Primo (2007, p. 2), a "Web 2.0 é a segunda geração de serviços https://atlasldigital.wordpress.com/ https://www.observatorioldigital.ufscar.br/ http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/9501948717602278 http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/8310702039128556 15 e retroalimentado por ela, quanto pela quantidade de textos disponibilizados nas plataformas de autopublicação direcionadas a essa finalidade. Ao se considerar que as formas de produção e circulação literárias incidem em novos modelos de inscrição, leitura e valoração da literatura (ROCHA, 2016), em um esforço por parte do leitor (AARSETH, 1997), o que demanda caminhos que vão além de apenas passar páginas (GAINZA, 2016, p. 236; ROCHA, 2020), Hayles (2008) conceitua a literatura eletrônica como aquela que exclui a literatura impressa digitalizada, como livros escaneados, por exemplo; sua característica primordial é de ter ‘nascido digitalmente’, no sentido de ter sido criada em um computador geralmente feita para ser lida em computador também. Para Gainza (2016), a literatura digital [s]e refere a um tipo de escrita e textualidade criada para ser lida na tela de um dispositivo eletrônico. Nesse sentido, [...] não estamos falando de textos impressos digitalizados para leitura em formato digital, que geralmente obedecem ao formato de e-book. [...] Ao contrário, a literatura digital aponta para uma experimentação com a linguagem [...], uma escrita em código que se desdobra na forma de textos escritos, imagens, animações e sons, que, na grande maioria dos casos, estão dispostos em formas não lineares (GAINZA, 2016, p. 235-236, grifos meus6). Gainza foca em diferenciar as potencialidades multimodais do computador, prevendo a experimentação com o código e com o meio. Rocha (2020), ao se debruçar sobre as particularidades da literatura digital brasileira, destacando as características de um país latino- americano, periférico, que passou por um processo de colonização e está à margem do desenvolvimento tecnológico em comparação às grandes potências, chama novamente a atenção para a possibilidade de experimentação com o meio, uma vez que o artista digital nem sempre possui amplo conhecimento de programação para manipular o código com plena proficiência: online e caracteriza-se por potencializar as formas de publicação, compartilhamento e organização de informações, além de ampliar os espaços para a interação entre os participantes do processo. A Web 2.0 refere-se não apenas a uma combinação de [...] um conjunto de novas estratégias mercadológicas e a processos de comunicação mediados pelo computador". O’Reilly (apud PRIMO, 2007) afirma que, além do aperfeiçoamento da “usabilidade”, a web 2.0 prioriza o desenvolvimento de uma “arquitetura de participação”, em que o sistema informático incorpora recursos em prol da interconexão e do compartilhamento. Isso se aproxima das definições dos “sete princípios da web 2.0”, apontadas por Halmann; Argollo; Aragão (2009): plataformização; inteligência coletiva; gestão da base de dados como competência básica; fim do ciclo de atualizações de versões do software; modelos de programação rápida e simplificada; expansão do software para mais de um dispositivo; e experiências significativas para os usuários. 6 Tradução disponibilizada por Taciana Gava Menezes no corpo do artigo de conclusão de iniciação científica (IC) Literatura digital brasileira: remidiação e especificidades (2020). 16 A definição proposta por Gainza tem o mérito de prever uma importante especificidade das criações digitais brasileiras recentes, que podem ser analisadas à luz do que Leonardo Flores (2017) identifica como a 3a geração da literatura digital, aquela que se caracteriza pelo aproveitamento de interfaces já estabelecidas, caracterizadas pelo grande número de usuários, como as redes sociais, p. ex. Isso porque, na definição da estudiosa, distinguem-se as obras que experimentam com o código, criando, simultaneamente à obra, a plataforma/programa que lhe dá formalização material, das obras que fazem uso de plataformas de uso massivo, que não foram criadas com finalidades estético/literárias, mas que são apropriadas e “desprogramadas” pelos autores que, ao fazê-lo, também reconfiguram os gêneros literários estabelecidos pela cultura impressa. A pertinência da distinção está relacionada com o fato de que em países em desenvolvimento, como o Brasil, em que a educação digital se dá informalmente e se limita ao uso das ferramentas, uma vez que a desigualdade no acesso a equipamentos e à formação especializada é enorme, o não reconhecimento desse uso criativo inviabilizaria o reconhecimento de grande parte da produção literária digital desses países (ROCHA, 2020, p. 83-84, grifos meus). Rocha (2020) direciona um olhar que trata as plataformas como interfaces pré-prontas que propiciam testes e usos criativos que não dependem de uma vasta capacidade e formação técnica para operacionalização. Pensando no meio, e não somente no código, Kozak (2019) encontra algumas convergências entre literatura digital e fanfiction. As divergências são bastante evidentes: a primeira é mais conceitual, experimental e frequentemente trabalha com imagem, som, texto e movimento. A segunda é massiva e quase sempre considerada nada além do que literatura em contexto digital, pois as histórias podem, muito bem, existir analogicamente. No entanto, Kozak (2019) diagnostica que o apropriacionismo é um procedimento comum da cultura digital em ambas as escrituras, facilitado pelo copy&paste. A comparação entre literatura experimental e fanfiction poderia parecer estranha. Contudo, existem já trabalhos críticos que a abordam. Assim, Darren Wercshler, artista associado à corrente de escrita conceitual, publicou um artigo intitulado “Conceptual Writing as Fanfiction”. Entre os aspectos que merecem atenção, ele assinala que tanto a escrita conceitual como a fanfiction se estabelecem em relação com comunidades interpretativas específicas que tiveram um rápido crescimento nas redes de meios digitais e que, assim como a fanfiction traslada e modifica sobretudo os personagens das histórias frente a outros cenários, a escrita conceitual faz o mesmo não com personagens, mas sim com textos trasladados a outros contextos discursivos (Werschler 2013) (KOZAK, 2019, p. 15, tradução minha, grifos meus)7. 7 Do espanhol: “La comparación entre literatura experimental y fanfiction podría parecer algo extraña. Con todo, existen ya trabajos críticos que la abordan. Así, Darren Wercshler, artista asociado a la corriente de escritura conceptual, ha publicado [...] un artículo titulado “Conceptual Writing as Fanfiction”. Entre los aspectos que merecen su atención señala que tanto la escritura conceptual como la fanfiction se establecen en relación con comunidades interpretativas específicas, han tenido un rápido crecimiento al calor de las redes de medios digitales y que, así como la fanfiction traslada y modifica sobre todo personajes de las historias base a otros 17 Para Kozak (2019), a experimentação da literatura digital e toda a manipulação de linguagem verbal e não-verbal, inovações de instalações próprias e usos não-habituais dos dispositivos eletrônicos e tecnológicos em performances são ideias que desafiam as concepções cristalizadas a respeito do literário mas que não são acessadas por um grande público, o que já não ocorre com as fics, que possuem um considerável número de leitores e um elevado envolvimento em torno das comunidades virtuais construídas ao redor de determinada narrativa. E é neste ponto que a pesquisadora encontra uma lacuna, como se pode ver no excerto abaixo: [...] a literatura digital ainda está em busca de seus leitores. Algo que a fanfiction tem de sobra. Mas se pensamos a distância entre ambas, em vez de brecha ou ponte, poderíamos considerar empréstimos ou intercâmbios produtivos. Poderia existir, assim, fanfic estritamente digital, que incorpore procedimentos desautomatizadores que a literatura digital conhece muito bem, mas conservando as histórias e mundos imaginários que tanta gente desfruta. Por que não? (KOZAK, 2019, p. 20, tradução minha, grifos meus)8. A partir desse questionamento estabelecem-se inúmeras inquietações provocadas pelo presente objeto de estudo, em que algumas são mais recorrentes: como essas interfaces já estabelecidas, como as plataformas de autopublicação (neste caso, o Nyah!), podem ser “desprogramadas” (MACHADO, 2007), de maneira a ressignificar o meio em uma experimentação que desestabiliza gêneros literários preexistentes? É possível fazer fanfiction e literatura digital, simultaneamente? Se sim, como as plataformas servem a esse tipo de manifestação artística? Qual o lugar da fanfiction na tradição literária digital brasileira (ainda em formação), e como essas potencialidades de produção da comunidade fã podem ser reconhecidas e incorporadas em outros circuitos de difusão, como o do mercado editorial, de uma maneira que valorize esses encontros, trocas e intersecções? Quando falo de mercado editorial, estou falando de uma peça fundamental no polissistema literário brasileiro (EVEN-ZOHAR, 2017), fruto da cultura do impresso. Estou escenarios, la escritura conceptual hace lo propio no con personajes sino con la textos trasladados a otros contextos discursivos” (Werschler, 2013) (KOZAK, 2019, p. 15). 8 No original: “la literatura digital está aún en busca de sus lectores. Algo que la fanfiction tiene de sobra. Pero si pensamos la distancia entre ambas, a la vez como brecha y como puente, podríamos considerar préstamos o intercambios productivos. Podría existir así fanfic estrictamente digital que incorpore procedimientos desautomatizadores que la literatura digital experimental conoce muy bien, pero conservando [...] las historias y mundos imaginarios que tanta gente disfruta. ¿Por qué no?” (KOZAK, 2019, p. 20). 18 pensando no mercado editorial como um dos inúmeros agentes integrantes desse polissistema. Como define Chieregatti (2018): [...] para pensar em mercado editorial é necessário, antes de tudo, pensá-lo enquanto um mercado, que se caracteriza por ser sempre um ambiente de trocas [...], um ambiente de produção e distribuição de bens simbólicos, por isso não é possível pensar em mercado editorial sem considerar que se trata, fundamentalmente, da circulação de objetos de valor simbólico e pecuniário. Assim, tomamos o livro como ponto de partida, pois ainda hoje, em meio a tantas novas e diferentes tecnologias e possibilidades (de materialidade, circulação, etc.), o livro impresso segue sendo legitimador de um escritor, youtuber, blogueiro, etc. (CHIEREGATTI, 2018, p. 22). Entretanto, o livro é legitimador pela lógica centralizada nos parâmetros da cultura do impresso que "produziu tria­gens, hierarquias, associações entre formatos, gê­neros e leituras" (CHARTIER, 1998, p. 139). Tendo como base a teoria de Even-Zohar (2017), que mais adiante será melhor abordada, percebe-se que a consagração trazida pelo livro no reconhecimento de um produtor está diretamente relacionada ao olhar que toma o polissistema literário hegemônico como ponto de partida. Em outros polissistemas que o encontram, como o fandom, tal consagração se constrói de outras formas em comparação à referida cultura do impresso, predominantemente. Por isso, "pode-se supor que, na cultura que lhe será complementar ou concorrente por nume­rosos decênios, isto é, o texto eletrônico, os mes­mos processos estejam em funcionamento" (CHARTIER, 1998, p. 139). Nesta tese, a posição defendida é de que a atualização do polissistema literário operacionalizada pelas práticas da comunidade fã não ocorre em uma posição de subordinação, mas a partir de uma localização distinta, porque o(s) fandom(s) é/são polissistema(s) outro(s) que faz(em) diversas intersecções com o literário em uma retroalimentação, sendo assimilado(s) sem que haja desnível entre ambos. Estou partindo da fic para o livro, não do livro para a fic. Do fandom para o polissistema literário, não do polissistema literário para o fandom. Isso dito, cabe falar de legitimidades, no plural. Ao investigar trabalhos anteriores no catálogo de teses e dissertações da CAPES, verificou-se que, no Brasil, já há muitos estudos concentrados na fanfiction como tema central da pesquisa. No mesmo passo, a maioria dos resultados encontrados no Google Acadêmico apontam para uma considerável produção de artigos sobre o assunto, seja em periódicos ou anais de eventos. Até o presente momento, na consulta ao banco de dados da CAPES, foram encontrados 52 (cinquenta e dois) resultados relacionados ao tema. Na filtragem, detectaram- 19 se 7 (sete) teses, e dentre elas, apenas 3 (três) estão vinculadas a programas de pós-graduação de Literatura, uma vez que grande parcela dos textos foi desenvolvida dentro das áreas de Comunicação e Educação, em títulos voltados à aplicação em sala de aula. As três teses mencionadas são: Ficções e Traduções de Fãs na Internet: um estudo sobre reescrita, colaboração e compartilhamento de fanfictions (2017), de Fabiola do Socorro Figueiredo dos Reis; Ler Machado/acessar Machado: reinvenção do clássico machadiano no ciberespaço (2017), de Marina Leite Gonçalves; e Fanfiction — Reescritas arcônticas (2018), de Luciana da Silva Ribeiro. O interesse por A Lenda de Fausto iniciou-se há pelo menos dez anos. No trabalho de conclusão de curso (TCC), defendido em 2013, tracei um breve histórico da literatura gay e homoerótica no Brasil. Entre muitas décadas, autores e personagens, houve um momento de deter a atenção sobre obras amapaenses, em um caminho do global para o local. Foi a primeira vez que citei Samila em um artigo acadêmico, posto que a referida pesquisa foi publicada no e- book Ensino, discursos e relações sociais: o fazer da linguística na contemporaneidade, a posteriori. A vontade de direcionar um olhar mais atento a essa história me acompanhou. No primeiro projeto de doutorado, antes de reformulá-lo, a ideia era analisar o mito fáustico sob a perspectiva queer em Samila, através de uma metodologia comparada com outras narrativas, focando no conteúdo e nas relações com Goethe e Thomas Mann, principalmente. No entanto, com o tempo, foi se alicerçando um debate mais profícuo a considerar o contexto de produção dessa manifestação da cultura fã, seara na qual a noção textocêntrica se apresentou como limitada diante de todas as potencialidades de discussão a respeito dos processos envolvidos na produção, circulação, recepção, divulgação, publicação e legitimação da referida fic que se tornou um romance. Até porque "no sistema literário, os textos, mais que desempenhar um papel nos processos de canonização, são o resultado desses processos"9 (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 18, tradução minha, grifos meus). Nesse sentido, ao analisar os conteúdos triangulados visualizados na plataforma Nyah!, o zine e o blog (dentro do que ainda está disponível para acesso), é problemático considerar como “produto” — na concepção de polissistema literário de Even-Zohar (2017) — tão somente o livro impresso, tido como destino derradeiro de um fenômeno muito mais abrangente 9 Do espanhol: "En el sistema literario, los textos, más que desempeñar un papel en los procesos de canonización, son el resultado de estos procesos" (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 18). 20 do que esse objeto “final”. O livro foi apenas mais um dos produtos concebidos no andamento do acontecimento/processo/obra A Lenda de Fausto. Os objetivos deste trabalho se concentram, portanto, em investigar se o(s) fandom(s), como comunidade(s) virtual(is) organizada(s) na ressignificação do conteúdo das franquias e da indústria cultural, com regras e com um funcionamento particular, reunido(s) em torno de uma forma específica de recepção não-passiva, em um modelo de consumo produtivo, constituem-se como um polissistema. Para isso, utilizar-se-á a já mencionada teoria, no intuito de debater essa possibilidade. Também se desenha como segundo objetivo propor que A Lenda de Fausto, em sua materialidade disposta na plataforma Nyah!, utiliza-se de recursos como o hipertexto e a multimodalidade, apesar de não ser uma premissa tão comum à fanfiction, no geral, como já mencionado anteriormente, e como a estética empreendida na plataforma foi descontinuada e até mesmo apagada de seu contexto exordial de produção na transição para outros mídiuns ulteriores. Eis a relevância de analisar cada caso individualmente, sem generalizar que essas duas manifestações inseridas no seio da cultura contemporânea não se relacionam de forma alguma. Além disso, por fim, o terceiro objetivo é notar, a partir dessa mesma vertente teórica, como os fatores do fandom agregaram Samila ao polissistema literário, causando ingerências intersistemas por meio da transição ao mercado editorial impresso, o que gerou uma metamorfose de posição – de produtora de fics a "autora". Por fim, busca-se entender como se dá essa dupla existência Samila/Ryoko-chan, em espaços com audiências e públicos distintos. Em A Lenda de Fausto, a dita "consagração" não se deu somente quando a obra saiu da tela e da plataforma de autopublicação para o papel: ela já existia (a questão é essa prévia existência em outro polissistema de cultura). O que aconteceu, com o lançamento do livro, foi a abertura de uma nova circulação: na "literatura amapaense", com a obra discutida no âmbito de universidades locais, mas continuando afastada do centro mainstream do polissistema literário brasileiro e próxima do mainstream do fandom e da literatura do Amapá. A tese aqui defendida é de que A Lenda de Fausto evidencia a intersecção de diferentes polissistemas por meio da mudança da materialidade: enquanto fic, uma série de fatores levou à legitimação no fandom. Enquanto romance publicado em livro, passou a ter outras formas de circulação e públicos mais amplos, gerando uma dupla camada de consagração: na comunidade fã e na literatura amapaense. Tem-se como hipótese que, ao considerar o produto como um fator literário dentro de um polissistema, também é necessário pensar na materialidade desse produto, posto que os 21 diferentes formatos de um texto articulam e alteram a dinâmica da existência de uma obra junto a produtores, consumidores, repertórios, instituições e mercados. Quanto ao modo como será organizada a tese, o primeiro capítulo é uma apresentação de dimensão metodológica pela qual o fandom será tratado. Após a introdução, essa parte do trabalho intenciona propor uma visão que examina o fandom e sua estrutura à luz da teoria dos polissistemas (EVEN-ZOHAR, 2017), base desta pesquisa. O segundo capítulo faz, não de uma maneira que busca exaurir o tema, mas na tentativa de realizar uma contextualização mais abrangente, uma breve abertura sobre o que é o fandom e suas principais características constitutivas, historicizando como a comunidade fã se estabeleceu diante da cultura digital, discutir a fanfiction como expressão narrativa dos fãs, para então apresentar o caso, A Lenda de Fausto, bem como o gênero ao qual este texto pertence (o yaoi) e, por fim, a produtora Samila Lages. O terceiro capítulo tem uma dupla funcionalidade, que servirá tanto para fins analíticos quanto descritivos para a preservação de arquivo digital, pois ocupa-se de tentar pensar as poéticas cíbridas d’A Lenda de Fausto e seus spin-offs10 pré-publicação, dispostos na plataforma Nyah!, bem como apresentar a produção dos fãs de Samila, o que transformou a narrativa em um arquivo outro com existência própria, sendo, portanto, uma obra com desdobramentos em que houve até mesmo fics da fic. A descrição como escolha metodológica se dá por dois motivos: a necessidade de apresentar o objeto para poder caracterizá-lo, uma vez que A Lenda de Fausto não possui estudos anteriores, portanto, os caminhos de leitura possíveis ainda não foram dispostos, e para documentá-lo, posto que, a considerar a natureza passageira de obras digitais, que podem sair do ar e desaparecer a qualquer momento. Debray (1993, p. 229) questiona: “como fazer memória com aquilo que é fugitivo? Como dar longevidade ao que é efêmero”? Beiguelman (2017) problematiza a falta de retrospectiva da internet, permeada por links que expiram em error 404 – página não encontrada. Fics vêm e vão e são deletadas sem aviso prévio. Imagens são retiradas do ar. Essa é uma realidade volátil das produções dispostas e dispersas on-line, em geral. 10 Em uma tradução livre, o termo spin-off seria como um sinônimo de "subproduto". Optou-se por manter o nome em inglês porque o prefixo "sub", em língua materna, dá uma ideia de inferioridade. Assim, nos meios de comunicação, entende-se por spin-off qualquer narrativa criada por derivação, podendo ser (mas não necessariamente) uma sequência, até porque alguns spin-offs podem ser lidos separadamente dos demais sem prejuízo de compreensão. Um spin-off geralmente salienta, mais detalhadamente, um aspecto do universo ficcional central (como um personagem ou evento em particular). 22 Trata-se portanto de uma arte intrinsecamente ligada a uma fruição do/em trânsito. Obras que só se dão a ler enquanto estiverem em fluxo, transmitidas entre computadores e interfaces diversas. Do ponto de vista da criação, essas condições implicam lidar com uma estética do imponderável e do imprevisível e pensar em estratégias de programação e publicação que tornem a obra legível, decodificável, sensível. Do ponto de vista da preservação, essas mesmas condições impedem a possibilidade de manutenção da obra no seu todo, haja vista que o contexto que as modelizava [...] é irrecuperável (BEIGUELMAN, 2017, p. 26). Nesse percurso descritivo, ao lidar com as perdas e ganhos do registro na internet, entende-se que não será possível recuperar integralmente todos os vínculos e acessos, uma vez que anos já se passaram e alguns redirecionamentos já se encontram indisponíveis. Ainda assim, dentro do que ainda está aberto para navegação, intenta-se compreender as possibilidades e limitações presentes nessa materialidade inscricional que é a plataforma Nyah!, aqui entendida a partir de um macro-operador que é o "mídium", ou seja, as “mediações através das quais ‘uma ideia se torna força material’” (DEBRAY, 1993). Apresentando esse conceito, Debray (1993) compreende que "mídium" não é tão somente o meio ou um instrumento usado para transmissão do discurso; é também seu “modo de existência material: modo de ‘suporte/transporte e de estocagem, logo, de memorização’” (MAINGUENEAU apud SALGADO; DORETTO, 2018). Uma obra não é imaterial. Ou desmaterializada. Portanto, não pode ser analisada sem ser associada às próprias formas de transmissão e às cadeias de comunicação, que não são neutras ou isentas. A internet não se resume a cabos, não se resume a usuários e não se resume a uma rede que armazena conteúdos. É tudo isso junto. E nessa junção de técnica e cultura, caracteriza-se como uma "ideologia normativa e prescritiva" (DEBRAY, 1997, p. 124, tradução minha11). Nesse sentido, “as mediações materiais não vêm acrescentar-se ao texto como ‘circunstância’ contingente, mas intervêm na própria constituição de sua ‘mensagem’” (MAINGUENEAU apud SALGADO; DORETTO, 2018). Como ironiza Debray (1997): As Letras não são um lugar propício para o estudo das tecnoestruturas da letra, nem a teoria literária para o conhecimento da livraria. Aos escritores, a pergunta "por que escreve"? lhes parece mais valorizada que um vulgar "com o quê escreve"? (tipos de papel, caneta ou computador, horários e lugares) (DEBRAY, 1997, p. 152, tradução minha12). 11 Do espanhol: "Internet es una ideologia, normativa y prescriptiva" (DEBRAY, 1997, p. 124). 12 Do espanhol: "Las Letras no son un lugar propicio para el estudio de las tecnoestructuras de la letra, ni la teoría literaria para el conocimiento de la librería. A los escritores, la pregunta ¿"Por qué es- cribe"? les parece más valorizadora que un vulgar ¿"con quê escribe"? (tipos de papel, estilográfica o computadora, horarios y lugares)" (DEBRAY, 1997, p. 152). 23 Concordando com o sarcasmo de Debray (1997), as Letras podem e devem ser esse tal lugar propício para estudar com o quê se escreve e o que se escreve nas comunidades fã. Para sintetizar, a opção por determinado mídium implicará em como o texto é transmitido, e terá impacto direto na recepção dele, afinal, como já mencionado, ele é manifestação material do enunciado (forma “física” da textualização e disseminação do discurso). O mídium não pode ser ingenuamente visto como um meio inerte ou neutro de transmissão (CHIEREGATTI, 2018): Um objeto técnico, portanto, é a formalização material do mídium, a inscrição material dos textos, e sua lógica aponta para as formas de circulação que suscita, viabiliza ou mesmo requer, portanto as formas de transmissão dos discursos (Cf. Debray, 2000). [...] a noção de mídium, que amalgama os meios de circulação e suportes de inscrição para estudo da produção dos sentidos, inclui a recepção (CHIEREGATTI, 2018, p. 55). Nesses mídiuns recorrentes na cultura digital, cuja materialidade é evanescente, interessa entender, no penúltimo capítulo, de que maneira A Lenda de Fausto possui diferentes modos de existência material em diferentes polissistemas, com foco em apresentar, também, a plataforma Nyah!, em que a fic se hospeda, e como ocorreram multimodalidades e possibilidades para narrativas de fãs que façam uso do hipertexto, a considerar a aplicação de paratextos que apontam para links externos, configurando-se talvez, então, de maneira incipiente, como uma prática que denuncia potencialidades que demonstram como a fic pode se aproximar da literatura digital e não somente da literatura em contexto digital. Em seguida, para finalizar, no quarto capítulo, serão citados os outros mídiuns utilizados por Samila (o fanzine e o blog) antes da mediação editorial institucionalizada, afinal, "um texto que sai dessas plataformas colaborativas para o livro impresso, terá uma circulação diferente nos dois mídiuns, assim como será outro texto" (CHIEREGATTI, 2018, p. 53, grifo meu). Muda-se a materialidade, muda-se a obra. Essa seção em tom de encerramento provisório propõe um debate acerca do livro como objeto técnico13 e como ele abriu um protocolo diferente de leitura, e que nessa formalização material (FLUSSER, 2017) em particular, quase todo o contexto de criação no fandom foi apagado para se tornar um romance impresso. Tendo isso em mente, cabe dizer que fic e livro 13 De acordo com Salgado apud Aisawa (2021, p. 15), "objetos técnicos [...] supõem uma cadeia criativa e uma cadeia produtiva, nas quais técnicas e normas são administradas por diferentes atores, com vistas à formalização material de uma síntese de valor sígnico, que enseja uma circulação pública, apontando para uma autoria". 24 não são a mesma obra, mas são componentes de um sistema: A Lenda de Fausto é mais que uma obra, é um processo que retrata o trânsito entre dois polissistemas – fandom e literário. A obra não é somente o volume físico, mas um sistema-dentro-de-sistemas, composto por todos esses mídiuns: produtos de Samila e produtos de fãs, congregando um repertório comum, que é a linguagem trabalhada nos fandoms, e como esse repertório tem sido absorvido pelo polissistema literário. Utilizando teóricos como Roger Chartier, buscar-se-á debater como o livro serve como instrumento de legitimação no polissistema literário, mas, no fandom, essa legitimação é construída de outras maneiras (mas que também incluem o livro). Assim, o debate será em torno dos fluxos entre a circulação de Samila no fandom e no polissistema literário, no intuito de interpretar a realidade desta bifurcação que implica em uma distinção que gera binômios convergentes como romance & fanfiction, fã & produtora, Ryoko-chan & Samila Lages, comunidade virtual & público consumidor mais amplo, fandom & polissistema literário. Para abarcar todos esses objetivos e melhor entender as complexidades de tantas posições flutuantes geradas a partir dessa dupla existência, foi realizada uma entrevista. Diante do exposto, o presente trabalho visa elaborar uma análise que enxergue o objeto literário não só na imanência do texto, mas que compreenda a literatura de uma maneira sistêmica, em rede, processual, dinâmica, viva e com materialidades várias que não somente o livro, que é apenas um objeto editorial diante dos inúmeros mídiuns possíveis de serem vetores de sensibilidade e matrizes de sociabilidade (DEBRAY, 1993). Na somatória de intenções, busca-se colaborar na divulgação de um estudo de caso que ainda não foi alvo de olhares acadêmicos antes e também, acima de tudo, encontrar confluências transdisciplinares possíveis neste limiar entre os Estudos Fã, os Estudos Literários e de Edição e a digitalidade. 25 1 O(S) FANDOM(S) COMO POLISSISTEMAS A análise será desenvolvida em uma perspectiva de delimitação do objeto que percebe o fandom como parte do polissistema de cultura (que engloba o polissistema literário também) composto pela atividade de fãs e, consequentemente, com múltiplas intersecções, simbioses e encontros com o polissistema literário, mas com o pressuposto de que possui funcionamentos particulares e processos de legitimação específicos que levam à produção de seus próprios mecanismos de consagração. O gráfico abaixo ilustra essa relação: QUADRO 1 - INTERSECÇÕES ENTRE FANDOM E POLISSISTEMA LITERÁRIO FONTE: elaborado pela autora. Esta tese busca reconhecer um pensamento relacional14 e dar atenção para o fenômeno que é a possibilidade de coexistência e interrelacionamento entre os polissistemas (OLIVEIRA, 1996) que compõem o polissistema de cultura e observar esses processos e trocas entre fandom & polissistema literário, os pontos onde se interseccionam e se aproximam (quadro 1) e onde se distanciam, focando nos mecanismos de transmissão, que aqui são chamados de mídiuns (DEBRAY, 1993). O autor da teoria que serve como pressuposto metodológico define que: 14 Segundo a lógica relacional, para compreender as obras de arte canônicas, faz-se necessário colocá-las em correlação com as não-canônicas, que incluem também as formas que assumem diretamente seu caráter comercial, com gêneros como faroeste ou pornográfico, além de outros tipos de discurso, como o jornalístico ou o político (MARTÍNEZ, 2014, p. 30). FANDOM POLISSISTEMA LITERÁRIO POLISSISTEMA DE CULTURA 26 [...] qualquer sistema semiótico (como a linguagem ou a literatura) é apenas um componente de um (poli)sistema maior - o da "cultura", ao qual é subordinado e com o qual é isomórfico - e, portanto, está correlacionado com esse todo maior e seus outros componentes. A teoria do polissistema fornece hipóteses menos simplistas e reducionistas do que outras quando confrontada com a complicada questão de como a literatura se correlaciona com a linguagem, sociedade, economia, política, ideologia, etc. [...] As intrincadas correlações entre esses sistemas culturais, se vistos como isomórficos por natureza e como funcionais apenas dentro de um todo cultural, podem ser observados com base em suas trocas mútuas, que muitas vezes ocorrem obliquamente, isto é através de mecanismos de transmissão, e muitas vezes através de periferias (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 22, tradução minha, grifos meus)15. Assim, a teoria dos polissistemas permite construir modelos sistêmicos baseados em estudos de casos específicos. Como localiza Even-Zohar (2017, p. 12), é preciso deixar de lado questões de gosto pessoal e/ou juízos de valor ao estudar a literatura por esse viés: [...] deve-se aceitar também que o estudo histórico dos polissistemas não pode se limitar às chamadas "obras-primas", ainda que alguns as considerem o único motivo inicial para os estudos literários. Esse tipo de elitismo não é compatível com uma historiografia literária, da mesma forma que a história geral não pode mais ser a narração da vida de reis e generais (tradução minha, grifos meus16). Murakami (2016) vai mobilizar concepções de Bourdieu sobre campo literário para definir o fandom também como um campo, argumentando ser um espaço que não está isento das relações de poder. A pesquisadora compreende que não é adequado que existam interferências de agentes externos regulando o conteúdo das fics porque isso cercearia a liberdade de expressão dos produtores, que muitas vezes tratam de assuntos sensíveis para alguns públicos, que “normalmente não seriam aceitos no mercado” (MURAKAMI, 2016, p. 15 Do espanhol: "cualquier (poli)sistema semiótico (como la lengua o la literatura) no es más que un componente de un (poli)sistema mayor --el de la "cultura", al que está subordinado y con el que es isomórfico y está correlacionado, por tanto, con este todo mayor y sus otros componentes. La teoría de los polisistemas proporciona hipótesis menos simplistas y reduccionistas que otras ante la complicada cuestión de cómo se correlaciona la literatura con la lengua, la sociedad, la economía, la política, la ideología, etc. [...] Las intrincadas correlaciones entre estos sistemas culturales, si se los contempla como de naturaleza isomórfica y como funcionales sólo en el seno de un todo cultural, pueden observarse sobre la base de sus intercambios mutuos, que a menudo ocurren de modo oblicuo, esto es por medio de mecanismos de transmisión, y a menudo através de periferias" (EVEN- ZOHAR, 2017, p. 22). 16 Do espanhol: "ha de aceptarse también que el estudio histórico de polisistemas históricos no puede circunscribirse a las llamadas "obras maestras", incluso aunque algunos las consideren la única razón de ser inicial de los estudios literarios. Este tipo de elitismo no es compatible con una historiografía literaria, del mismo modo que la historia general no puede ya ser la narración de las vidas de reyes y generales" (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 12). 27 77), concluindo que o referido campo “coloca-se em oposição aos dos produtores culturais por carregar conteúdos que não seriam aceitos no mainstream” (MURAKAMI, 2016, p. 79). A questão, todavia, é que, frequentemente, mesmo com as mediações e edições na preparação dos originais, fics têm sido transformadas em livro e passado a ocupar posições de destaque no cerne do polissistema literário hegemônico, ou seja, publicadas por grandes corporativas no mercado editorial tido como mainstream. Esta tese investiga exatamente esses movimentos centrípetos, fenômenos da aceitação do mercado para esse tipo de conteúdo produzido por fãs, bem como deslocamento nos eixos de margem e centro. Murakami (2016) delimita o fandom não somente como agrupamento de fãs, mas como modo de recepção específico dos objetos culturais, que constrói conexões graças ao interesse compartilhado e cujas negociações devem se dar em nível interno no campo. A dissertação da pesquisadora, em consonância com as premissas de Bourdieu, encaminha o fandom para um espaço de disputas em que os agentes buscam um prêmio: o reconhecimento/prestígio social. Ela aponta que na luta por capital simbólico existem muitas desavenças, e que o fandom não é “tão lindo como [...] pensam” (MURAKAMI, 2016, p. 96). De fato, ao tratar sobre as principais características das fics, será possível identificar a existência de normas e convenções consolidadas que norteiam a escrita perante essas plataformas de autopublicação específicas para fãs. Não importa tanto circunscrever se a fic é uma performance, um repertório, uma prática social, literatura ou tudo isso junto, mas importa descrever o aparato que a faz funcionar e como os procedimentos do fandom se somam aos fenômenos de desenvolvimento e/ou manutenção do polissistema literário. Muitas escrituras do presente estão dentro e fora do que tradicionalmente se entende como "literário" e o fandom possui um caráter híbrido, que transita entre diversas áreas como mídia, crítica, marketing, arte, cultura, entre outras. As atividades no/do fandom são muito mais abrangentes do que somente a produção de fics. Os fãs são performers, fantasiam-se de acordo com os personagens fictícios que se identificam (como cosplayers17 e lolitas18), fazem eventos, criam fóruns, são do audiovisual, youtubers. Fics são apenas um recorte de muitas práticas que envolvem as áreas de publicidade, jornalismo e a literatura existe mediante muitas outras 17 Termo em inglês que designa a junção das palavras costume + role play; configura-se como um hobby no qual os cosplayers se fantasiam de acordo com personagens da cultura pop. 18 Iniciada entre as décadas de 70 e 80, a moda lolita é baseada no estilo vitoriano, rococó e a cultura kawaii (palavra japonesa para coisas fofas) e com roupas que remetem a bonecas. 28 manifestações, em meio a tantos repertórios característicos desse sistema (fanvids19, fansubs20, fanarts21 e assim por diante). Inseridos “nos meios de comunicação, espaços urbanos, redes digitais e formas de participação social” (CANCLINI, 2016, p. 24, grifo do autor), o(s) fandom(s) pode(m) se configurar como polissistema(s) a partir do momento em que, como “proliferação de invenções em espaços circunscritos” (DE CERTEAU, 1998), constroem pontos de vista que desenvolvem muitas opções de reflexão sobre a recepção dos bens culturais, sendo a fic uma dessas criações. Por isso, Even-Zohar (2017, p. 36, tradução minha, grifos meus) comenta que as condicionantes do polissistema não podem ser interpretadas em uma chave de "entorno" ou "adjacência", posto que o "sistema literário" compreende, como "interno" e não "externo", todos os fatores envolvidos no conjunto de atividades às quais o rótulo "literário" pode ser aplicado de forma mais conveniente do que nenhuma obra. O “texto” já não é o único, nem necessariamente o mais importante para todos os efeitos, dos aspectos, ou mesmo produtos, deste sistema22. Por essa abordagem crítica, o texto não é o produto exclusivo no cerne do polissistema, apenas mais um dos elementos que o compõem. Por isso, este trabalho busca visualizar um conjunto de fatores que constituem o fandom em um panorama de visão mais amplo que permita a compreensão das práticas que acontecem e como elas se articulam em transferências23 para o polissistema literário hegemônico, cada vez mais desemoldurado e aberto para que práticas culturais relativamente periféricas se infiltrem nesse processo enérgico de interpenetrações, ainda que a natureza desses contatos seja diferente para cada um dos polissistemas. Graças a essa compreensão da literatura como um “sistema de sistemas” (MARTÍNEZ, 2014), a presente análise inclui desde a estrutura interna d'A Lenda de Fausto 19 Vidding é o trabalho de fãs que consiste em criar clipes a partir de uma ou mais fontes de mídia visual. 20 Termo em inglês que designa a junção das palavras fan (fã) + subtitle (legenda). Ou seja, um grupo de fãs que produzem e distribuem legendas para filmes ou série de TV de outra língua, frequentemente sem autorização dos criadores. Esse fãs buscam dar acesso ao material antes da chegada/disponibilização do material traduzido para a língua alvo do país. 21 Ilustrações baseadas em personagens e mundos ficcionais de obras canônicas, feitas por outros fãs que também são artistas e/ou designers, expandindo-se para além dessa tradição de homenagem para serem oriundas de fics e não somente dos cânones em si. 22 Do espanhol: "el 'sistema literario' comprende, como 'internos, más que como 'externos', todos los factores implicados en el conjunto de actividades a las que la etiqueta "literarias" puede aplicarse con mayor conveniencia que ninguna obra. El 'texto' ya no es el único, ni necesariamente el más importante a todos los efectos, de los aspectos, o incluso productos de este sistema" (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 36). 23 A transferência é o processo de integração dos bens importados ao repertório, acompanhada das consequências que derivam dessa ação (EVEN-ZOHAR, 2017). 29 até as relações estabelecidas com outras obras literárias e com outros polissistemas linguísticos e culturais. A ideia de campo demonstra que o fandom possui características que o compõem em sua existência, mas só é possível pensá-lo como organismo estruturado pela interdependência, tendo em vista como a interdisciplinaridade das produções fãs ultrapassa e atravessa diversos limiares em que usuários da web 2.0 tornam-se produtores. Como Canclini resume ao analisar a compreensão de campo proposta por Bourdieu, “[...] a independência e autocontenção [...] que delimitavam quem tinha legitimidade para dizer o que é arte, desvaneceram-se” (CANCLINI, 2016, p. 38). A considerar o fandom como um dos indícios das “fortes mudanças nas condições de produção, circulação e recepção da arte” (CANCLINI, 2016, p. 55), é urgente pensar em uma teoria de análise que se ocupe dessas “pertenças e das localizações móveis de atores que exibem a arte ao mesmo tempo nos museus, na mídia, no ciberespaço e nas ruas” (CANCLINI, 2016, p. 55) e seguir esses percursos. Por isso, parece interessante incorporar a ideia de fandom na referida perspectiva (poli)ssistêmica. Even-Zohar (2017, p. 29), que é da área da tradução e vinculado à Escola de Tel Aviv, aprimorando as raízes introduzidas pelo formalismo russo e o estruturalismo tcheco – reformulando os pressupostos de Shklovski, Eijembaum, Jakobson e sobretudo de Tynianov, tido por Even-Zohar como o "pai" dos estudos sistêmicos em literatura – apresenta os polissistemas de cultura como "redes de relações dinâmicas que possuem fenômenos observáveis". Essas redes são estruturas semióticas heterogêneas, abertas, múltiplas e multiformes, que operam, em interdependência, com mútuas interseções e sobreposições. É uma teoria funcionalista que se diferencia da herança dos trabalhos prévios justamente por ver os polissistemas como entes dinâmicos em constantes interações assimétricas, e não sistemas estáticos e fechados, como no enfoque sincronístico, além de não possuir a mesma concepção imanentista do texto. Essa é a razão pela qual Even-Zohar (2017) opta pelo termo "polissistema": é raro que exista um monossistema. Os polissistemas são abundantes e multifacetados, mas funcionam como um único todo estruturado, cujos membros são interdependentes. Para Even-Zohar (2017), os produtos literários são condicionados por essa intrincada teia, onde se dão as tensões e intercâmbios entre repertórios canonizados e não-canonizados, gerando o equilíbrio regulador 30 manifesto pela oposição de estratos. Essa teoria é muito válida para assimilar a relevância do estudo dos fandoms para a área do Estudos Literários, uma vez que para a teoria dos polissistemas, é um objetivo principal, e uma possibilidade ao seu alcance, enfrentar as condições particulares em que uma literatura pode interferir na outra, a partir das quais certas propriedades são transferidas de um polissistema para outro. [...] é por meio da estrutura polissistêmica das literaturas envolvidas que podemos explicar os vários e intrincados processos de interferência. Por exemplo, ao contrário da crença comum, a interferência geralmente ocorre através das periferias. Quando esse processo é ignorado, simplesmente não há explicação para o surgimento e funcionamento de novos elementos no repertório. [...] todos aqueles estratos ignorados nos estudos literários atuais - são objetos de estudo indispensáveis para entender adequadamente como e por que as transferências ocorrem, dentro dos sistemas, bem como entre eles24 (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 25, tradução minha, grifos meus). Isso quer dizer que um mesmo repertório pode ser periférico mediante o polissistema literário que dá prestígio à cultura "oficial" das classes dominantes, mas pode, simultaneamente, ser canonizado em outro polissistema. Se "cânone" é uma obra reconhecida no centro de um polissistema, do ponto de vista do fandom, A Lenda de Fausto é um repertório canonizado do yaoi no Brasil, especialmente se considerarmos a definição dada por Even-Zohar (2017). As transferências que ocorrem entre fandom(s) e polissistema literário são retratos desse estímulo proporcionado pela pressão centros x periferias (posições também plurais e móveis), o que permite que os polissistemas não se estanquem, mantendo a vitalidade desses complexos de atividades. O estudo dessa dialética ajuda a clarificar não só as mutações de um polissistema, mas também a sua sobrevivência, devido ao fornecimento, da periferia não-canonizada, de alternativas para a sua adaptação às circunstâncias da sociedade em determinado momento histórico (MARTÍNEZ, 2014). 24 Do espanhol: "para la teoría de los polisistemas, es un objetivo principal, y una posibilidad a su alcance, enfrentarse a las particulares condiciones en que una literatura puede interferir con otra, como resultado de lo cual ciertas propiedades se transfieren de un polisistema a otro. [...] es por medio de la estructura polisistémica de las literaturas implicadas como podemos dar cuenta de los varios e intrincados procesos de interferencia. Por ejemplo, en contra de la creencia común, la interferencia tiene lugar a menudo por medio de las periferias. Cuando se ignora este proceso, simplemente no hay explicación para la aparición y funcionamiento de nuevos elementos en el repertorio. [...] todos aquellos estratos ignorados en los estudios literarios actuales- son objetos de estudio indispensables para entender adecuadamente cómo y por qué ocurren las transferencias, dentro de los sistemas tanto como entre ellos" (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 25). 31 O que distingue, então, a teoria dos polissistemas em comparação à epistemologia unissistema, é o fato de que a visão de sistemas estáticos considera a produção e o movimento das "periferias" como práticas extra-sistêmicas. Todavia, uma das causas da fossilização gradual das atividades canonizadas é exatamente a falta do estímulo de uma "subcultura" forte. Como aponta Even-Zohar (2017), "os primeiros passos para a fossilização se manifestam em um alto grau de fechamento e um estereótipo crescente dos vários repertórios". Nesse sentido, a pesquisa intenta compreender as causas iniciais pelas quais ocorre uma transferência, as mediações na passagem de um polissistema ao outro, causadas pela tentativa de minimizar esses estereótipos, além das razões para transferências específicas e como elas são feitas. A canonicidade não é algo intrínseco à tessitura do texto literário; não existe nenhum valor inerente no próprio repertório ou produto que dispense toda essa união de elementos já elencadas, que constroem determinado status em torno de uma obra, como aponta o supracitado teórico: aquelas normas e obras literárias (ou seja, tanto modelos como textos) que nos círculos dominantes de uma cultura são aceitas como legítimas e cujos produtos mais sobressalentes são preservados pela comunidade para que formem parte de uma herança histórica. "Não canonizado" significa, ao contrário, aquelas normas e textos que esses círculos rejeitam como ilegítimos e cujos produtos, a longo prazo, a comunidade muitas vezes esquece (a menos que seu status mude). Canonicidade, portanto, não é um traço inerente às atividades textuais em qualquer nível: não é um eufemismo para "boa literatura" x "má literatura". O fato de que em certos períodos certas características tendem a se agrupar em torno deste ou daquele status não implica que tais características sejam "essencialmente" relevantes para um determinado status (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 14, tradução minha, grifos meus25). Nesse sentido, a “literatura como uma instituição sociocultural, semi-independente separada só pode ser sustentada, pois se o polissistema literário, como qualquer outro sistema sociocultural, for concebido como simultaneamente autônomo e heterônimo em relação a todos os demais cossistemas” (EVEN-ZOHAR, 2013, p. 16). 25 Do espanhol: "aquellas normas y obras literarias (esto es, tanto modelos como textos) que en los círculos dominantes de una cultura se aceptan como legítimas y cuyos productos más sobresalientes son preservados por la comunidad para que formen parte de la herencia histórica de ésta. "No-canonizadas" quiere decir, por el contrario, aquel las normas y textos que esos círculos rechazan como ilegítimas y cuyos productos, a la larga, la comunidad olvida a menudo (a no ser que su status cambie). La canonicidad no es, por tanto, un rasgo inherente a las actividades textuales a nivel alguno: no es un eufemismo para "buena literatura" frente a "mala literatura". El hecho de que en ciertos períodos ciertos rasgos tiendan a agruparse en torno a este o aquel status no implica que tales rasgos sean "esencialmente" pertinentes a un status determinado" (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 14). 32 Nessa relação autônoma-heterônoma, existem transferências que ocorrem entre o polissistema fandom e o polissistema literário e vice-versa. A presente tese busca encontrar algumas dessas contínuas contaminações. Assim como os sistemas não são estáticos, mas dinâmicos, assim também o é a canonicidade. Através de tal teoria, pode-se pensar em investigar de maneira mais ampla, por exemplo, como se dão os processos de assimilação de uma literatura em outra, como resultado de transferências de um polissistema a outro, no intuito de compreensão dos complexos níveis de interferências entre os estratos, bem como se torna possível formular hipóteses acerca de como operam os diversos agregados semióticos em níveis intra e inter-sistêmicos (EVEN-ZOHAR, 2013). A fic como tema de pesquisa já vem se consolidando, principalmente em estudos sobre letramento digital, ensino de língua materna e estrangeira. Note-se que diferentes teóricos vêm reconhecendo o funcionamento sistêmico do fandom: Esta característica do fandom — sua forma de integrar pessoas e produtos em torno de uma obra específica — é o que nos leva a compreendê-lo como um sistema digital online. Um sistema que reproduz todas as instâncias do sistema literário impresso, mas na perspectiva de uma recepção produtiva e virtual. Se o sistema literário tradicional se constitui de obras (onde o texto é o elo entre o autor e o leitor), mercado (que medeia autor/texto/leitores) e crítica acadêmica (que medeia o mercado e a sociedade), no fandom, apesar destas funções estarem menos definidas, podem ser verificadas e cada participante pode assumir todas estas funções (MIRANDA, 2009, p. 4-5, grifos meus). Miranda (2009, p. 136) compara o fandom a um “espelhismo do cânon e uma nova abordagem da tradição e da recepção”, com fãs que exercem “multifunções narrativas (comentaristas, críticos, tradutores e revisores)”. Acredito, todavia, que cada sistema possui mecanismos de produção, recepção e circulação particulares, então há uma “urgência de pensar a literatura como rede” (MAROZO, 2018). Apesar dos fãs serem agentes que executam papéis cambiantes, flutuantes e acumuláveis no fandom, os ritos editoriais não são reproduzidos em absolutamente "todas as instâncias", como apontou Miranda (2009), porque as dinâmicas e interações do mercado não são pautadas pela mesma lógica das comunidades fã, principalmente no que diz respeito ao mercado, aos processos de produção e consumo e à construção da valoração/legitimidade de determinado produto. Como o "sistema literário impresso" é tão dominante, o fandom é influenciado pelo funcionamento dessa cultura e herda diversos elementos da cadeia de transmissão do livro, mas 33 também é permeado pela cultura digital, que é a cultura participativa, do compartilhamento de informações, da múltipla autoria e do trabalho coletivo, que não são, necessariamente, características marcantes do pensamento gutemberguiano. 1.1 FATORES LITERÁRIOS DO(S) FANDOM(S) As "multifunções" previamente apontadas por Miranda (2009) configuram-se no que Even-Zohar (2017) denomina fatores literários. Para o teórico israelense, existe uma série de elementos constitutivos dos sistemas semióticos: Instituição (contexto) Repertório (código) Produtor (emissor; escritor) Consumidor (receptor, leitor) Mercado (contato; canal) Produto (mensagem) Em comparação ao sistema proposto por Antonio Candido (1961) em Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, para Even-Zohar existem mais agentes enumeráveis, além da tríade “autor-obra-público”. Esses elementos se afetam de maneira bastante variável e “todos os fatores que direta ou indiretamente influem no conjunto de atividades denominadas de literárias devem ser compreendidos como internos”. A diferença mais significativa dessa adaptação é a inserção da ‘instituição’, que em Jakobson aparecia como ‘contexto’ (MAROZO, 2018, p. 12). Essas relações dinâmicas permitem, por exemplo, que um(a) mesmo(a) fã execute múltiplas funções de maneira cumulativa, pois é simultaneamente produtor, consumidor, e assim por diante. E é assim que o “consumidor pode consumir um produto de um produtor, mas que para esse produto possa ser gerado deve existir um repertório comum, cuja utilização está delimitada, determinada ou controlada por uma instituição e um mercado que permita sua transmissão” (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 127, grifo do autor). A seguir, com base na descrição de cada um dos fatores literários, buscarei trazer cada uma dessas funções movediças e voltívolas, para então relacioná-las com os agentes presentes na cultura fã. 34 1.1.1 Instituição: relações de poder no(s) fandom(s) Assumindo que a instituição se perfaz na dinâmica de manutenção da literatura como atividade sociocultural, sabe-se que ela impõe regras que ditam também quem e quais produtos ficarão gravados na memória da comunidade no decorrer do tempo (EVEN-ZOHAR, 2017). Direcionando o olhar para essa parte dos polissistemas, a instituição é composta por: pelo menos uma parcela de produtores, críticos (de qualquer classe), casas editoriais, periódicos, clubes, grupos de escritores, órgãos públicos (como gabinetes ministeriais e academias), instituições educativas (escolas de qualquer nível, incluindo universidades), meios de comunicação em massa, dentre outros (EVEN-ZOHAR, 2017, tradução minha)26. Nesse sentido, no fandom, os próprios fãs se organizam de forma a se agrupar e ocupar essas posições que executam a regência sobre a natureza da produção e do consumo, que é o papel exercido pela instituição. A comunidade faz comentários nas fics, ripagens27, possui um controle (às vezes cruel) com fics que apresentam inadequações ortográficas, gerando uma seleção que demonstra como o poder (e a coerção) da instituição remunera (mas também penaliza) produtores e agentes, determinando os produtos que serão recordados pela comunidade ao longo do tempo (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 40). Fãs integrantes da instituição produzem resenhas, listas, recomendações, indicam, resumem, analisam, na internet (bloggers, booktubers) e fora dela. Faz parte da instituição, também, a academia. Destaca-se, portanto, o papel dos aca-fãs, que são fãs acadêmicos, ou seja, que também são pesquisadores e têm como objetos de estudo os fandoms. São eles que trazem às universidades esse debate e fortalecem a área dos estudos fã nas IES e nas escolas, tentando levar o trabalho com as fics às salas de aula. Boa parte da bibliografia desta tese é composta por esses agentes. 26 Do espanhol: “al menos parte de los productores, "críticos" (de cualquier clase), casas editoras, publicaciones periódicas, clubs, grupos de escritores, cuerpos de gobierno (como oficinas ministeriales y academias), instituciones educativas (escuelas de cualquier nivel, incluyendo las universidades), los medios de comunicación de masas en todas sus facetas, y más” (EVEN-ZOHAR, 2017). 27 Substantivo oriundo do verbo ripar, deriva da expressão inglesa RIP (Rest in Peace). Murakami (2016) explica que a ripagem consiste em fazer comentários extremamente depreciativos e negativos sobre fics que não agradaram, e enfatizam os “erros gramaticais” e inadequações ortográficas cometidas pelo alvo/produtor de fic. A prática divide opiniões no fandom, pois há dois raciocínios: o que considera uma correção para a língua padrão, no fim das contas, ainda que feita de maneira agressiva, e o argumento que julga essa abordagem desencorajante para quem deseja continuar escrevendo, e que ripadores estão cometendo cyberbullying. 35 Em suma, entende-se por obras, produtores ou sistemas canonizados (centrais) aqueles que obtêm o apoio de instituições [...]. Obras canonizadas são preservadas como patrimônio da sociedade, enquanto obras não canonizadas (periféricas), como a chamada literatura baixa ou literatura comercial, parecem destinadas ao esquecimento (MARTÍNEZ, 2014, p. 32, tradução minha, grifos meus)28. O grupo que ocupa o papel da instituição, portanto, está diretamente associado aos poderes socioeconômicos e busca promover consenso a respeito de certas propriedades (ou as modifica, se necessário), junto ao repertório do polissistema (MARTÍNEZ, 2014, p. 56). Uma fic canonizada ou um(a) produtor(a) legitimado(a) é aquele(a) que obtém apoio das instituições do fandom e, eventualmente, de instituições de outros polissistemas, como o literário. No entanto, essa interferência pode passar despercebida para as instituições, já que muitas vezes se produz por vias periféricas (MARTÍNEZ, 2014). Levando em consideração que "não é possível compreender o comportamento de qualquer sistema humano sem estudar suas normas de valoração" (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 12, tradução minha, grifos meus29), o terceiro capítulo, além de falar sobre A Lenda de Fausto, também buscará enumerar e analisar como essas normas que garantem a legitimidade no fandom se organizam através da mediação realizada pela interface da plataforma Nyah!, mídium que organiza e articula todos os fatores literários aqui elencados, ocupando-se, também, de compreender como a instituição opera em ambos os polissistemas que a obra transita. 1.1.2 Fic: um dos repertórios do(s) fandom(s) Repertório, dentro da concepção de Even-Zohar (2017), é o conjunto de leis e modelos que regem a produção. É através desse agregado de regras e unidades que é possível elaborar um conhecimento compartilhado que permite tanto o entendimento como a produção de textos específicos, além de outros produtos do polissistema literário. Esse repertório não é algo herdado, mas algo construído no transcurso histórico de acordo com as necessidades de cada período. 28 No original: "En resumen, se entiende por obras, autores o sistemas canonizados (centrales) aquellos que obtienen el apoyo de las instituciones [...]. Las obras canonizadas son conservadas como patrimonio de la sociedad, mientras que las no canonizadas (periféricas), como la llamada baja literatura o literatura comercial, parecen destinadas al olvido" (MARTÍNEZ, 2014, p. 32). 29 Do espanhol: "[n]o es posible comprender el comportamiento de ningún sistema humano sin estudiar tales normas de valoración" (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 12). 36 Destarte, Even-Zohar (2017) define que o repertório é essa gama de opções utilizadas por grupos ou membros individuais. No caso da mobilização de determinado repertório por parte de um certo grupo, o pesquisador esclarece que as entidades culturais, na realidade, sempre dependeram dos repertórios para se organizarem. No entanto, o teórico frisa que não há nada intrínseco no repertório em si capaz de designá-lo como potencialmente canonizado ou não, e que ele é apenas um dos elementos parciais da literatura. Da mesma maneira que as distinções entre "padrão", "alto" e "vulgar" são adjetivos circunscritos às diretrizes sociais que geram status de certas unidades em detrimento de outras, a seleção dos repertórios canonizados também é externa a esses agregados (EVEN- ZOHAR, 2017). Nos próximos capítulos, haverá a retomada e o aprofundamento da discussão sobre fandom e polissistema literário e como essas funções podem ser detectadas na organização da comunidade fã. A tarefa do produtor inserido nesta realidade é o de encontrar a linguagem própria do meio, sendo a fic uma dessas manifestações, como repertório que gera produtos. A estrutura desses repertórios específicos [...] pode ser definida em três níveis distintos: o nível dos elementos individuais, dos sintagmas e dos modelos. O nível dos elementos individuais inclui os elementos simples como morfemas e lexemas; o nível dos sintagmas refere-se às combinações no nível das orações sintagmáticas (modos de fala, expressões, modismos, etc); e, por último, o nível dos modelos que corresponde ao conceito de gêneros. Por outro lado, se os textos são o produto mais evidente da literatura, o repertório é o complexo de normas e elementos sem os quais não se produzem nem se consomem textos considerados literários. Portanto, se um sistema literário possui vários níveis (um nível renovador, um nível conservador), para cada um desses níveis existe um repertório literário específico. Dessa forma, o produto, é aqui entendido como qualquer conjunto de signos verbais realizados (ou realizáveis), o que muitas vezes nem sempre coincide com textos – ou textos integrais. No entanto, para além dos textos, escritos ou orais, inteiros ou fragmentários, há outro produto do sistema literário do qual os textos [...] são apenas um veículo: um determinado conjunto de normas, opiniões e conhecimentos desejáveis (EVEN-ZOHAR, 2015, p. 40). Os fandoms possuem o que Even-Zohar (2017) entende como inventários e "repertórios mínimos" que se proliferam, pré-requisitos básicos para o funcionamento de um polissistema. Tomando os repertórios como criações espontâneas de sociedades específicas (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 136) e assumindo que os fandoms são essas entidades que desenvolveram a coesão necessária para fixar novo(s) repertório(s), interessa a esta pesquisa observar as dinâmicas de legitimação de uma fic, bem como os processos de transferência e incorporação de um repertório do fandom para o polissistema literário e, nesse ponto de encontro, como se dá a 37 atuação dos agentes em tal rede de relações, posto que, para Even-Zohar (2017), a pluralidade de repertórios garante o conflito que leva ao choque entre os polissistemas e, consequentemente, a transformações. Ainda discutindo a questão, Even-Zohar (2017) distingue dois projetos de fabricação de repertório: um que se ocupa de elaboração de novos repertórios, bem como do esforço para distribuição, e outro que se firma na criação de novas entidades sociopolíticas em que ditos repertórios prevaleceriam. Percebe-se que ambos os casos se assentam nos fandoms. Na adoção de uma linguagem artística característica, “é cada vez mais crescente a onda de fãs de outros fãs. Ou seja, a audiência conquistada pelo fã produtor de conteúdo e seu próprio capital social movimenta o fandom” (DE JESUS; RIBEIRO, 2018, p. 24). Isso justifica o porquê de haver tantas fanarts. Tal fenômeno de obra fã em diálogo com outra obra fã acontece com A Lenda de Fausto também, como será acentuado novamente adiante. Assumindo que “todo repertório permite [...] combinação de elementos concretos e modelos já existentes” e que a “instância de produção se move entre uma [...] prática de modelos conhecidos e preestabelecidos por um lado, e a inovação por outro” (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 139), entende-se que a fic se propõe a ser (um dos) repertórios que pertencem aos universos dos fandoms. No entanto, julgando que "[o]s textos e o repertório são apenas manifestações parciais da literatura, manifestações cujo comportamento não pode ser explicado por sua própria estrutura"30 (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 17, tradução minha, grifos meus), a fic será apenas um dos elementos da análise proposta. 1.1.3 Fãs: produtores & consumidores Martínez (2014), explicando a teoria dos polissistemas, diferencia que a principal característica tocante ao produtor é a capacidade de “ativar” um produto no mercado, em oposição à capacidade de “decifrá-lo”, correspondente ao papel do consumidor. Todavia, como Jenkins (2015) aponta, esses papéis de ativação/deciframento não são concorrentes, especialmente na cultura participativa que é, na realidade, um novo modelo de consumo. Com os meios em mãos, os consumidores, perante a facilidade proporcionada pela era digital, passaram a interferir na recepção passiva das narrativas de grandes franquias dentro 30 Do espanhol: "[l]os textos y el repertorio son sólo manifestaciones parciales de la literatura, manifestaciones cuyo comportamiento no puede explicarse por su propia estructura" (EVEN-ZOHAR, 2017, p. 17). 38 de suas próprias casas e começaram a expandir os universos ficcionais existentes, propondo versões alternativas além do material-fonte. Em 1980, Alvin Toffler inaugurou o termo prosumer, aportuguesado para “prossumidor”, para denominar os indivíduos que, ao mesmo tempo que consomem, são produtores. Bezerra aponta que “essa geração de produtores de conteúdo cria nos ambientes digitais uma maior diversidade de informações, desmassificando a comunicação emitida pelos veículos tradicionais” (2014, p. 4). Fãs são esses prossumidores, agentes que acumulam funções móveis e muitas vezes até mesmo incompatíveis. Nesse sentido, Para compreender o papel dos produtores, devemos ter em mente que nem sempre devemos considerar os textos como o produto por excelência da literatura [...]. Por outro lado, para alguns produtores, a efetiva “produção de textos” pode até ser um fator secundário, se comparado à participação nas demais atividades do sistema [...]. Na verdade, os produtores às vezes são pressionados pela própria inércia do sistema a desempenhar uma série de funções que podem até ser incompatíveis entre si (MARTÍNEZ, 2014, p. 62, tradução minha, grifos meus)31. Emprestando uma expressão de Michel de Certeau, Jenkins (2014) chamou tais interventores de “invasores do texto”32. Os invasores constroem dentro das lacunas que circulam comercialmente, mesclam alta cultura e cultura popular, e isso tem gerado uma mudança permanente nas relações com as editoras, por exemplo. Como ele resume, “fãs possuem não apenas restos emprestados retirados da cultura de massa, mas sua própria cultura construída a partir das matérias-primas semióticas fornecidas pela mídia” (JENKINS, 2014, p. 43). O autor reconhece que fãs não são os únicos invasores do texto, mas pontua que foram eles que desenvolveram mais profundamente a invasão como forma de arte. 31 No original: "Para entender el papel de los productores, hay que tener presente que no siempre hemos de considerar a los textos como el producto por excelencia de la literatura, pues como tal también pueden considerarse los modelos que subyacen a los mismos o los valores contenidos en ellos, según el nivel de análisis. Por otra parte, para ciertos productores, la efectiva “producción de textos” puede pasar incluso por un factor secundario, en comparación con la participación en el resto de actividades del sistema [...]. De hecho, en ocasiones los productores son empujados por la propia inercia del sistema a desempeñar una serie de funciones que pueden llegar a ser incluso incompatibles entre sí" (MARTÍNEZ, 2014, p. 62). 32 Assim foi traduzido o termo textual poacher. Poaching carrega a ideia do ato de “caçar”; poacher, portanto, tem o peso semântico de “caçador”. Em francês, De Certeau utiliza essa metáfora, diferindo escritor e leitor e tendo como base duas figuras presentes no ritual da caçada: o chasseur e o reconneur, respectivamente. O chasseur é quem está em uma posição privilegiada: o dono da terra, quem idealiza esse evento, possui as armas e o status. O reconneur (em tradução livre, seria algo como "reconhecedor") é o participante sem posses, que auxilia com poucas ferramentas à disposição. O fã/prossumidor, portanto, é esse reconneur que se vale de seus recursos reduzidos para criar a partir do que lhe oferecem em terras que não lhe pertencem. A expressão "invasão", portanto, foi inserida na tradução para o português. 39 Um ponto a ser rebatido na concepção de Certeau, no entanto, é a diferenciação entre escritor e leitor. Ao pensar na rotina dos fandoms, fica evidente que se derrubam divisórias outrora estáveis, de maneira que já não cabe desagregação, pois se trata de uma experiência de consumo de mídia que resulta na criação de novos textos (JENKINS, 2014). Em termos do que propõe Even-Zohar (2017), então, fãs ocuparão múltiplas funções, pois já não existe uma separação nítida entre produção e consumo: esses processos são simultâneos. No(s) fandom(s), portanto, "não apenas encontramos produtores individuais no sistema, mas eles são frequentemente agrupados em verdadeiras comunidades sociais organizadas e estreitamente relacionadas, que por sua vez devem ser consideradas parte tanto da instituição quanto do mercado"(MARTÍNEZ, 2014). Para a teoria literária clássica, o leitor é este ente imaginário e ideal para o qual a literatura é produzida. Para Even-Zohar (2013), o consumidor (e o produtor) pode mover-se em vários níveis como participante das atividades literárias, não somente a leitura. E esse comportamento vai ser um ativador das intersecções: como será perceptível, o grupo de fãs (o "público") será um dos principais fatores implicados na articulação com o polissistema literário. 1.1.5 Mercado: a economia de dádiva no(s) fandom(s) Even-Zohar (2017, p. 41) compreende o fator literário "mercado" na seguinte chave: é o agregado dos fatores envolvidos na venda de produtos literários e na promoção de formas de consumo. Isso inclui não apenas instituições abertamente dedicadas ao intercâmbio de bens, como livrarias, clubes do livro ou bibliotecas, mas também todos os fatores que participam do intercâmbio semiótico ("simbólico") em que estão envolvidos, juntamente com outras atividades relacionadas (tradução minha, grifos meus33). Assim, o mercado de um polissistem