RESSALVA Atendendo solicitação da autora, o texto completo desta dissertação será disponibilizado somente a partir de 04/02/2024. BRENDA DE OLIVEIRA NONATO A construção da figura de Camilo Castelo Branco na obra Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís. ASSIS 2022 BRENDA DE OLIVEIRA NONATO A construção da figura de Camilo Castelo Branco na obra Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís. Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestra em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Orientador(a): Sandra Aparecida Ferreira Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Código de Financiamento 001 ASSIS 2022 À minha mãe Rosângela, minha maior intercessora. Ao meu companheiro Romeu, que me preenche do melhor e mais incrível amor do mundo. AGRADECIMENTOS Ao meu amor, Romeu Teixeira, por estar sempre ao meu lado nos melhores e piores momentos. Agradeço pela cumplicidade, incentivo e apoio incondicional em todas as áreas da minha vida. Sua paciência, seu amor e sua confiança em mim e em meu trabalho me amparam, dando segurança e ânimo. À minha família pelo apoio e incentivo nos momentos mais difíceis. Em especial, ao meu irmão Arthur Nonato, pelas palavras de confiança e ânimo, sempre tão oportunas e que tocam profundamente minha mente e o meu coração. Aos meus amigos, a família que eu escolhi, pelas risadas, conversas e afetos. Minha eterna gratidão por estarem sempre ao meu lado compartilhando das alegrias, conquistas, angústias e lamentações. À minha orientadora, Sandra Aparecida Ferreira, pelas leituras e correções atentas durante todo o período da pesquisa e por ter colaborado com meu crescimento e amadurecimento. Agradeço, também, os livros emprestados, visto que nesse período extenso de pandemia o acesso à biblioteca foi tão afetado. À Professora Drª Rosane Gazzola pelos riquíssimos apontamentos feitos no exame de qualificação, pelas sugestões de leitura e até mesmo pela prontidão em me oferecer materiais que contribuíram muito para este trabalho final. À Professora Drª Telma Maciel, por aceitar participar da banca de Defesa, contribuindo e compartilhando todo seu conhecimento em literatura portuguesa. Ao Professor Dr. Márcio Pereira, pelas relevantes sugestões e sabedoria demonstrada na leitura deste trabalho, por ocasião do Exame de Qualificação. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 NONATO, B. O. A construção da figura de Camilo Castelo Branco na obra Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís. 2022. 85 p. Dissertação (Mestrado em Letras). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, 2022. RESUMO Esta dissertação propõe uma análise da elaboração da figura de Camilo Castelo Branco composta no livro Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1979. Pretendemos investigar na obra da autora, de que modo a personagem criada a partir de uma história verídica e do jogo intertextual com narrativas de Camilo Castelo Branco, é trabalhada e reinterpretada a fim de se propor uma nova perspectiva dos fatos. Para tanto, busca-se demonstrar como acontece a ficcionalização da História nesta obra agustiniana a partir de recursos da metaficção historiográfica estabelecidos pela ensaísta canadense Linda Hutcheon (1990). A partir de estudos sobre as semelhanças literárias entre Agustina Bessa-Luís e Camilo Castelo Branco é possível observar como a vida e obra do romancista exerceram imenso fascínio sobre a escritora portuguesa. Nesse caso, o propósito desta dissertação é compreender como Agustina Bessa-Luís utiliza-se de mecanismos estéticos em sua narrativa para reescrever acontecimentos históricos a partir de um diálogo constante entre história e ficção. Por fim, a base teórica para a realização desta pesquisa inclui os estudos de Maria de Fátima Marinho (1998) acerca do romance histórico em Portugal e a respeito da intertextualidade, Júlia Kristeva (2005) e Tiphaine Samoyault (2008). Palavras-chave: Agustina Bessa-Luís. Fanny Owen. Camilo Castelo Branco. Ficção. NONATO, B. O. A construção da figura de Camilo Castelo Branco na obra Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís. 2022. 85 p. Dissertação (Mestrado em Letras). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, 2022. ABSTRACT This dissertation proposes an analysis of the elaboration of the figure of Camilo Castelo Branco composed in the book Fanny Owen, by Agustina Bessa-Luís, published in 1979. We intend to investigate in the author's work, how the character created from a true story and intertextual play with narratives by Camilo Castelo Branco, is worked and reinterpreted in order to propose a new perspective on the facts. Therefore, we seek to demonstrate how the fictionalization of History takes place in this Augustinian work, based on historiographical metafiction resources established by Canadian essayist Linda Hutcheon (1990). Based on studies on the literary similarities between Agustina Bessa-Luís and Camilo Castelo Branco, it is possible to observe how the life and work of the novelist exerted immense fascination on the Portuguese writer. In this case, the purpose of this dissertation is to understand how Agustina Bessa-Luís uses aesthetic mechanisms in her narrative to rewrite historical events from a constant dialogue between history and fiction. Finally, the theoretical basis for this research includes the studies by Maria de Fátima Marinho (1998) about the historical novel in Portugal and about intertextuality, Júlia Kristeva (2005) and Tiphaine Samoyault (2008). Keywords: Agustina Bessa-Luís. Fanny Owen. Camilo Castelo Branco. Fiction. SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................ 10 1. AGUSTINA BESSA-LUÍS: VIDA E PERCURSO LITERÁRIO ..................14 1.1 Recepção crítica, prêmios e publicações .................................................14 1.2 A relação literária entre Bessa-Luís e Castelo Branco ............................ 22 2. A (RE)ESCRITA DA HISTÓRIA ................................................................ 36 2.1 Aspectos teóricos .................................................................................... 36 2.2 Camilo escritor e Camilo personagem ..................................................... 40 2.3 Fanny Owen e a reinterpretação da escrita ............................................. 45 3. O JOGO INTERTEXTUAL ENTRE AS OBRAS NO BOM JESUS DO MONTE (1864) E FANNY OWEN (1979) ...................................................... 57 3.1 Intertextualidade e conceitos fundamentais ............................................ 57 3.2 Os elos da intertextualidade: divergências e convergências entre as perspectivas ................................................................................................... 60 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 79 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................. 83 10 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Uma das propostas essenciais do romance histórico vincula-se à ideia de se apresentar como “uma manifestação formal de um desejo de reduzir a distância entre o passado e o presente do leitor e também de um desejo de reescrever o passado dentro de um novo contexto” (HUTCHEON, 1991, p. 157). A relação entre História e ficção na literatura portuguesa contemporânea é centrada na revisitação de diversos autores acerca de acontecimentos notáveis e significativos. Certamente, a habilidade em reescrever a História foi uma das evidentes qualidades distintivas da trajetória literária da escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís (1922-2019). Agustina Bessa-Luís foi a primeira representante feminina a conquistar mais espaço e notoriedade em um ambiente majoritariamente masculino como o da literatura portuguesa. Isabel Pires de Lima, professora catedrática da Universidade do Porto, declara que Bessa-Luís é uma “escritora torrencial, com mais de meia centena de títulos (...) e tem, como motivos angulares da sua obra, o sentido da vida e da morte e os enigmas do ser, o que lhe imprime uma dimensão universalista.” (LIMA, 2011, p. 09). As mulheres escritoras sempre existiram, mas foram esquecidas e muitas vezes até mesmo ignoradas quando se falavam das grandes obras da história da literatura portuguesa. Além disso, foram praticamente “apagadas” para o público leitor até a revolução de 25 de abril de 1974. Desse modo, infelizmente, apesar de Agustina Bessa-Luís ter sido reconhecida por muitos críticos e estudiosos da área como uma das melhores escritoras do século XX, e até conquistar importantes premiações literárias, a autora ainda é pouco lida ou até mesmo conhecida e estudada por disciplinas de literatura portuguesa, comparada a outros grandes nomes de sua geração, como por exemplo, José Saramago (1922-2010) e a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004). O interesse por estudar a obra de Agustina Bessa-Luís surgiu da oportunidade de intercâmbio pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), através do Programa de Licenciaturas Internacionais (PLI), entre os anos de 2012 a 2014, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). Nesse período, realizei algumas disciplinas dentro do curso de Estudos Portugueses e Lusófonos, e em razão disso, tive a possibilidade de estudar mais profundamente alguns 11 escritores da literatura portuguesa e de conhecer outros de que nunca ouvira falar, como era o caso da autora Agustina Bessa-Luís. Estar na mesma cidade e ter a oportunidade de estudar na mesma faculdade onde a escritora ganhou o título de Doutora Honoris Causa, em 2005, inspirou-me a rememorar essa artista que é pouco estudada pelos pesquisadores no Brasil atualmente, apesar de sua grandeza como escritora. Outro fator relevante é o fato de haver uma gama maior de estudos apenas sobre A Sibila, obra de maior relevância dentro do acervo de Agustina Bessa-Luís, e os títulos mais conhecidos por terem sido adaptados para o cinema pelo cineasta português, Manoel de Oliveira. Desse modo, Fanny Owen apesar de ter sido bastante investigado pelo viés cinematográfico, torna-se, lamentavelmente, um livro ainda pouco pesquisado dentro do âmbito acadêmico brasileiro. Nesse sentido, o presente trabalho orienta-se pela atenção à escrita de Agustina Bessa-Luís, em que declara a forte impressão nela produzida pelas obras de Camilo Castelo Branco. A autora, que dedicou toda a sua vida para a literatura, foi uma leitora atenta do escritor e trouxe essa influência em manifestações explícitas, como é o caso da obra Fanny Owen (1979), em que Agustina Bessa-Luís converte a figura de Camilo Castelo Branco em uma personagem de sua ficção literária. Para isso, a autora recorre à colagem de textos autênticos, como os diários pessoais dos indivíduos fundamentais dos acontecimentos reais, e principalmente, das novelas camilianas em que o escritor aborda a história em questão. A obra Fanny Owen, desde a primeira vez que li, chamou muito a minha atenção, por tratar de uma polêmica, bastante conhecida na biografia de Camilo Castelo Branco e por estudiosos do escritor, apoiada em uma configuração fictícia. Esse não é um caso incomum de Agustina Bessa-Luís, já que ela dedicou-se a escrever variados romances históricos baseados em fatos e/ou personalidades importantes para a história portuguesa, como por exemplo, Florbela Espanca, D. Pedro e Inês de Castro, entre outros, como falaremos mais adiante. Assim, a proposta essencial desta pesquisa é analisar como foi construída a figura de Camilo Castelo Branco na obra Fanny Owen, publicada em 1979. Para tal, a análise incide principalmente, sobre o jogo intertextual que a narrativa agustiniana estabelece, sobretudo, com a obra No Bom Jesus do Monte (1864), de Camilo Castelo Branco. Ambas as publicações tratam do caso histórico de um possível triângulo amoroso vivido entre o romancista português, o fidalgo José Augusto Pinto 12 de Magalhães, seu amigo na época, e a jovem Fanny Owen, filha do coronel inglês, Hugo Owen, que desempenhou, na cidade do Porto, funções importantes em batalhas da Guerra Civil Portuguesa (1828 - 1834). Com isso, nessa função, trouxe sua família para viver com ele no norte de Portugal, mais especificamente, em Vilar do Paraíso. O termo “figura”, presente no título deste trabalho, advém da designação feita por Agustina Bessa-Luís em sua obra Camilo: Gênio e Figura (1994), na qual dedica-se a contornar diversos aspectos da vida e obra de Camilo Castelo Branco. O vocábulo referido, que invoca tanto à questão da personagem quanto da representação simbólica de algo ou alguém, traz sinteticamente à luz o eixo central desta pesquisa. É possível identificar, por meio desse conceito, características da metaficção historiográfica, pelo fato de atuar de maneira híbrida, em razão da ligação entre eventos históricos e ficcionais, permitindo também atestar como Agustina Bessa-Luís desenvolve em sua escrita diversos enfoques e propósitos na representação dos aspectos relacionados à vida e à obra de Camilo Castelo Branco. De forma a atingir o objetivo e melhor estruturar as etapas do trabalho, a dissertação foi organizada em três capítulos. De início, no primeiro, destacamos a biografia e a importante trajetória literária que Agustina Bessa-Luís desenvolveu em mais de meio século de carreira como escritora. Com uma vida dedicada exclusivamente as letras, a autora deixou de herança para a literatura portuguesa, uma extensa lista de exemplares publicados. O capítulo aborda também, a relação literária entre Agustina Bessa-Luís e Camilo Castelo Branco, indicando as principais referências em que a autora portuguesa se inspirou e utilizou nas composições de suas obras, exemplificadas em duas obras que ela dedicou ao romancista: Camilo: Gênio e Figura (1994) e Fanny Owen (1979), objeto principal deste trabalho. Para esse momento de análise, exploramos os estudos e considerações relevantes que as professoras Maria Alzira Seixo (1981) e Isabel Allegro de Magalhães (1995) tecem sobre Agustina Bessa-Luís. Após a digressão histórica necessária para um maior entendimento da importância da escrita de Agustina Bessa-Luís, o segundo capítulo dedica-se sobre os mecanismos estéticos utilizados pela escritora portuguesa e a comparação da figura de Camilo Castelo Branco tanto quanto escritor, como personagem, desenvolvido por diversos escritores da literatura portuguesa. Inclusive, o próprio romancista compõe um narrador-personagem para elucidar em primeira pessoa 13 detalhes sobre si mesmo e sobre sua efetiva participação nos acontecimentos descritos, visto que suas narrativas sobre o caso são escritas no formato de relato pessoal. Nesse sentido, a recriação moderna de algo clássico a partir de diferentes ângulos e pontos de vista são averiguados e explorados os aspectos singulares da personalidade imensamente complexa que Camilo Castelo Branco possuía. Nesse momento, serão utilizados como base os pressupostos teóricos de Linda Hutcheon (1991) acerca da metaficção historiográfica e Maria de Fátima Marinho (1998) sobre o romance histórico em Portugal. Por fim, no último capítulo, consideramos algumas das principais semelhanças e diferenças entre as narrativas com o propósito de explorar a capacidade estética e reflexiva da construção da personagem de Camilo na obra de Agustina Bessa-Luís. Para isso, dedicamos mais especificamente a análise do texto literário da obra Fanny Owen e o jogo intertextual realizado entre a escrita agustiniana e as obras de Camilo Castelo Branco, em especial, No Bom Jesus do Monte, de 1864. Utilizamos os conceitos teóricos difundidos a respeito da intertextualidade das críticas literárias, Júlia Kristeva (2005) e Tiphaine Samoyault (2008). Além disso, recorremos a Carlos Reis (1988), necessário para a compreensão sobre o ato de narrar e as teorias acerca do ponto de vista dentro da narrativa. 79 CONSIDERAÇÕES FINAIS A vida e trajetória literária de Agustina Bessa-Luís encontra-se intimamente associada à do escritor Camilo Castelo Branco. Leitora assídua e assumida do romancista, a autora portuguesa revela essa influência, desde as evidências explícitas, como é o caso das suas obras Fanny Owen (1979) e Camilo: Génio e Figura (1994), até os indícios mais sutis, como o estilo irônico e a construção psicológica de suas personagens. Além disso, os principais temas - como a desilusão amorosa, a memória e a utilização de casos e cenários do norte de Portugal, revelam as correspondências e interesses nos quais Agustina Bessa-Luís se inspirou para a elaboração de suas criações literárias. A sua característica investigação em meios autênticos, como diários, cartas, poemas, discursos, entre outros, instigou ainda mais o seu interesse por Camilo Castelo Branco, contribuindo para sua concepção literária e resultando em obras biográficas, como é o caso de Eugénia e Silvina (1989).19 Eugénia, conforme Agustina Bessa-Luís assegura em Camilo: Génio e Figura, teria sido uma paixão de Camilo Castelo Branco. Segundo Maria de Fátima Marinho (1999), “é em Fanny Owen que Agustina inaugura uma série de romances que apresentam como heróis e heroínas figuras que tiveram existência histórica.” (MARINHO, 1999, p. 174) Em Fanny Owen, a transfiguração de Camilo como uma pessoa/personagem não foi novidade da escritora portuguesa. Como já visto anteriormente, antes de se tornar personagem na narrativa de Agustina Bessa-Luís, Camilo Castelo Branco se apresentou dessa mesma forma, em suas próprias obras. O que se altera são as perspectivas: a escrita em primeira pessoa e em formato de diário que – principalmente no capítulo “sete de junho de 1849” de Duas Horas de Leitura [1857] e no capítulo intitulado “1854”, de No Bom Jesus do Monte – faz com que a efetiva participação e obsessão de Camilo seja camuflada. Já em Fanny Owen, o narrador omnisciente agustiniano insere a personagem na sua esfera de observação, revelando sua intenções mais particulares: Camilo deixa entrever as fontes donde soube a história íntima desses dois infelizes; e vai mais longe, contagiado pela morbidez desse caso clínico e como tal irrelevante, mas, ao mesmo tempo, um momento de grande expectativa na alquimia das relações que se entrechocam 19 “Já no fim da vida, Camilo encontrou Eugênia e apaixonou-se por ela” (BESSA-LUÍS, 1994, p.65) 80 procurando substituições das suas angústias e prazos de vida que escapam ao estigma da impersonalidade. Camilo chegou não só a consultar migos comuns a que Fanny porventura se confiava, como a investigar juntos dos próprios criados de José Augusto. (BESSA- LUÍS, 2011, p. 236.) Dessa forma, para recriar esse acontecimento histórico, por vezes pouco conhecido e comentado na biografia do escritor canônico, Agustina Bessa-Luís não apenas aprofundou seus conhecimentos acerca da história para demonstrar inquestionável autoridade, mas também ousou ao incluir singulares considerações a respeito da personagem de Camilo, antes nunca exploradas dentro da literatura portuguesa. Agustina Bessa-Luís altera a posição de Camilo no relato, tornando-o objeto de análise e não mais condutor da história, como acontecia anteriormente. Nesse sentido, Camilo se torna protagonista e não apenas mero espectador (como ele próprio se representava) e atua com as outras personagens que fazem parte da narrativa. A admiração e fascínio que Camilo Castelo Branco exerce sobre Agustina Bessa-Luís exerce não a intimidou e nem a impediu de explorar a condição humana mais complexa do escritor, revelando suas máculas, fraquezas e defeitos. Consequentemente, a biografia do romancista, repleta de polêmicas, acaba por fortalecer as descrições feitas em Fanny Owen, “porque Camilo afrontava todo o mundo quando se lhe varriam do coração as contemplações de amizade, e o tédio tomava o lugar do espírito.” (BESSA-LUÍS, 2011, p. 104) De acordo com Maria Fátima Marinho (1999), A biografia das várias figuras aparece, assim, filtrada pela ideologia dos seus criadores, que frequentemente, pretendem demostrar uma teoria através do relato da vida de uma personagem, servindo esta mais como pretexto do que como fim em si mesma. (MARINHO, 1999, p. 173) Sendo Fanny Owen uma narrativa muito maior que a composta por Camilo Castelo Branco em No Bom Jesus do Monte, Agustina Bessa Luís constrói uma versão que acompanha a cronologia dos fatos ocorridos por se tratar de um romance histórico, mas garantindo à obra seu estatuto de ficção. O romance agustiniano abre espaço para mais diálogos e situações que não ganharam espaço na escrita do romancista sendo possível perceber que o romance Fanny Owen 81 revela muito mais sobre o caso histórico do que o que romancista português escreveu. Camilo Castelo Branco escolhe seu ângulo de composição de modo a omitir situações ou manipular a história como lhe convém. A obra de Agustina Bessa-Luís, pelo contrário, propõe-se a reinventar as informações de forma detalhada e expositiva, todavia, por meio de um caráter ficcional. Desse modo, as informações com fontes e interpretações são totalmente simuladas, mas com a possibilidade de compor inúmeras cenas e diálogos mais vivificantes da história verídica, amplamente redimensionada pelas múltiplas camadas constitutivas da ficção. Apesar da transfiguração por Agustina Bessa-Luís do caso histórico passado no século XIX, em Portugal, comprometer-se com a autenticidade dos fatos, como indicado em seu prefácio, sucede que a autora remodela e modifica muitos elementos da história, elaborando um novo enredo para a narrativa. Esse jogo entre o real e o fictício caracteriza o grande talento narrativo da escritora, que não almeja a versão verdadeira sobre o caso reconhecido e, por isso, seu único compromisso é com a literatura. A partir do diálogo entre Fanny Owen e No Bom Jesus do Monte foram produzidos importantes aspectos intertextuais no romance de Agustina Bessa- Luís, capazes de rememorar algo do passado, de uma forma completamente sofisticada. A forma ousada e subversiva como a autora portuguesa aborda uma polêmica em torno da biografia de um autor canônico da literatura portuguesa demonstra a sua segurança e propriedade para tratar de assuntos complexos e elaborar uma escrita que até se inspira em seus antepassados literários, mas de uma maneira totalmente original. Além disso, fica evidente a intenção de fazer desacreditar o discurso de Camilo Castelo Branco, principalmente no que se refere a imagem da jovem Fanny. Por muito tempo, as mulheres não tiveram voz e os homens falavam por elas, impondo suas verdades e perspectivas sobre as situações. Os seus dotes de ironista são uma poderosa arma de subversão no romance só aparentemente convencional que é o seu. Pela via irônica, caminha na denúncia, central na sua obra, do poder patriarcal e falocêntrico que domina as muitas mulheres que a povoam. O tempo das mulheres assumirem a palavra ainda não chegou, mas os homens, ineptos e indolentes, são já objeto do poder subversor e conspirativo delas – sibilas, videntes, fúrias – que, senhoras duma linguagem simbólica e mergulhadas num tempo 82 hermético, transportam e disseminam a subversão. (LIMA, 2011, p. 10) Sendo assim, tanto no romance de Agustina Bessa-Luís como nas obras de Camilo Castelo Branco, percebe-se a construção de universo próprio em que os acontecimentos foram arquitetados e dissimulados, isto é, cada obra produz seus próprios efeitos de sentido. Por isso, saber o que é verdadeiro ou não nas narrativas não é o que realmente interessa, mas sim compreender como cada personagem é destacado, quais ações tornam-se relevantes para cada perspectiva, assim como cada narrador distingue-se e posiciona-se. Percebe-se, portanto, que o jogo intertextual utilizado por Agustina Bessa- Luís em Fanny Owen, ao mesmo tempo que critica ironizando as características principais da escrita camiliana, também tem como objetivo homenageá-la, conforme pudemos concluir a partir das considerações feitas por Linda Hutcheon (1991) sobre a paródia pós-moderna. Desse modo, Agustina Bessa-Luís gera maior intensidade para os aspectos narrativos produzidos por Camilo Castelo Branco, enriquecendo com matizes, pormenores, cenários, personagens e diálogos uma fabulação significativa para a história literária de Portugal, que, graças ao romance Fanny Owen, tornou-se ainda mais importante. 83 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Manuela de. Camilo e Fanny – comédia dramática em três actos e cinco quadros. Lisboa: Expansão Cultural, 1957. BAECQUE. Antoine de, e Jacques Parsi. Conversas com Manoel de Oliveira. Trad. Henrique Cunha. Lisboa: Campo das Letras, 1996. BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética. 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