A CiropediA de Xenofonte Um romance de formação na antigUidade EMERSON CERDAS A ciropediA de xenofonte CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Responsável pela publicação desta obra Adalberto Luis Vicente Maria Célia de Moraes Leonel Márcia Valéria Zamboni Gobbi Karin Volobuef EMERSON CERDAS A ciropediA de xenofonte UM ROMANCE DE fORMAçãO NA ANtigUiDADE © 2011 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 — São Paulo — SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.culturaacademica.com.br feu@editora.unesp.br Editora filiada: CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ C392c Cerdas, Emerson A Ciropedia de Xenofonte : um romance de formação na Antiguidade / Emerson Cerdas. – São Paulo : Cultura Acadêmica, 2011. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7983-175-1 1. Xenofonte. Ciropedia - Critica e interpretação. I. Título. 11-6216. CDD: 888 CDU: 821.14’02 Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró- -Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) A meus pais, Cláudio e Filomena. AgrAdecimentos À profa. dra. Maria Celeste Consolin Dezotti, pela formação helenista e humana, pela confiança e apoio, e, sobretudo, pela amizade. À profa. dra. Márcia V. Zamboni Gobbi, à profa. dra. Wilma Patrícia M. Dinardo Maas e ao prof. dr. Cláudio Aquati, pelas valiosíssimas leituras que renderam grandes contribuições, e pela generosidade de seus comentários. Ao prof. dr. Henrique Cairus e à profa. dra. Maria Aparecida de Oliveira Silva, pelas contribuições precisas. Aos professores Fernando, Edvanda, Anise e, em especial, à professora Cláudia, pela formação e encaminhamento nesta via sem volta que é a paixão pela Hélade. À minha mãe, Filomena, pela eterna dedicação à família e aos cuidados prestimosos. Ao meu pai, Cláudio, que primeiro me apresentou o mágico mundo da leitura com seu exemplo de lei- tor – saudades eternas. Aos meus irmãos Viviane, Anderson e Eliane, principalmen- te pela compreensão da ausência, e em especial, à minha irmã Luciene e ao Brunno, pela hospedagem intelectual nos meus anos de graduação. 8 EMERSON CERDAS À Patrícia, presente e auxiliante nos momentos mais difíceis, e pelo incentivo seguro e sincero, agradeço profundamente. À Fapesp, cujo financiamento deste trabalho possibilitou que ele se desenvolvesse tal qual o desejado. Aos amigos César Augusto, César Henrique, Itamar, João, Daniele, César, Erasmo, Priscila, Marco Aurélio... sempre presentes. O historiador e o artista, ao relatarem uma época, têm finalidades completamente diferentes [...]. A diferença torna-se mais sensível e essencial quando se trata de descrever acontecimentos. O historiador considera os resultados de um acontecimento; o artista o próprio acontecimento. Leon Tolstoi A única coisa que devemos à história é a tarefa de reescrevê-la. Oscar Wilde sumário Introdução 13 1 Introdução à Ciropedia 23 2 Reescrevendo o passado: ficcionalizando a história 61 3 Ciropedia: um Romance de Formação na Antiguidade 115 4 Imagem e evolução do herói da Ciropedia 181 Considerações finais 215 Tradução 221 Referências bibliográficas 267 introdução Redescobrir uma obra literária que tem sido desvalorizada pela crítica é uma tarefa árdua a que o estudioso está sujeito, porém uma tarefa intensamente gratificante. O presente livro trata da Ciropedia de Xenofonte que, se na Antiguidade e no Renascimento foi muito apreciada, nos dois últimos séculos tem sido rotulada de obra tediosa, graças, principalmente, ao seu caráter idealista. O interesse pela Ciropedia de Xenofonte nasceu em virtude das relações da obra com a origem do gênero do romance. Pare- ceu-me que a Ciropedia apresentava importantes inovações no campo da narrativa ficcional do Ocidente. Além disso, alguns críticos, como Lesky (1986) e Bakhtin (2010), a classificam como um romance de formação, um dos principais subgêneros do ro- mance moderno. Apesar disso, a obra não tem recebido atenção dos estudiosos do romance e, mesmo no âmbito da literatura an- tiga, a obra não tem dispertado o interesse dos pesquisadores. Observa-se que, em língua portuguesa, não há estudos a respei- to de Xenofonte. A crítica norte-americana, no entanto, a partir do estudo de Higgins (1977) mostrou uma nova postura em relação às obras 14 EMERSON CERDAS de Xenofonte como um todo. Sobre a Ciropedia podemos citar os importantes trabalhos de Tatum (1989), Due (1989) e Gera (1993). Os trabalhos destes três autores são relevantes, pois to- mam a Ciropedia como objeto de estudo literário, nem histórico nem filosófico. Por esse viés, os trabalhos revelam um escritor muito superior àquele que a crítica da História do início do sé- culo XX quis apresentar. Pretende-se, portanto, analisar a Ciro- pedia como uma obra literária, mais especificamente, como uma narrativa ficcional. Ressalto que, a meu ver, um estudo aprofun- dado desta obra pode ajudar a compreender melhor as origens do romance moderno. Xenofonte viveu e produziu suas obras na Grécia do sécu - lo IV, período de profundas mudanças sociais, políticas e cul- turais, que assistiu tanto à decadência do Século de Ouro de Péricles quanto à pavimentação de um solo fértil para o surgi- mento do helenismo (Glotz, 1980, p.240). No helenismo, os ideais cívicos e coletivos do século V a.C. foram substituídos por um individualismo novo, cuja preocupação maior era com a vida particular do indivíduo. Xenofonte foi um precursor do helenis- mo tanto por suas posturas na vida pública, quanto pela sua pro- dução literária. Pode-se dizer que foi um homem de vanguarda, que se distanciou das ideias do século anterior e, pelas novidades que apresentou, foi muito admirado pelos escritores do helenis- mo. No Capítulo 2, Introdução à Ciropedia, serão apresentadas algumas informações biográficas a respeito de Xenofonte e a respeito do contexto histórico em que ele viveu e produziu suas obras. Além disso, será mostrada a questão da prosa ficcional na Grécia clássica e como a Ciropedia se insere nesta tradição. Uma das principais dificuldades que se põe ao estudioso da Ciropedia é classificar a obra quanto ao gênero. A intensa po- lêmica sobre o enquadramento genérico da Ciropedia deve-se, principalmente, ao fato de a obra tratar de um tema histórico (a vida de Ciro, o Velho) com liberdade, manipulando ficcional- mente o material histórico conhecido. A partir disso, a obra tem A CIROPEDIA DE XENOFONTE 15 sido designada de diversas maneiras: historiografia, biografia, história romanceada, biografia romanceada, romance filosófico, romance didático, tratado de educação e obra socrática. Neste livro, fez-se uma análise literária da Ciropedia, no que tange seus aspectos romanescos, procurando argumentar que, por meio de tais aspectos, a obra de Xenofonte pode ser lida como um ro- mance, ou um protorromance.1 Classificar a obra por um determinado viés significa, ne- cessariamente, rejeitar as outras classificações propostas pe- los críticos. Porém, não significa que na tessitura narrativa da obra os elementos discursivos daqueles outros gêneros não estejam presentes. Todavia, a presença, por exemplo, de ele- mentos historiográficos não é o fator determinante de caracte- rização da obra, uma vez que eles estão romancizados nela, ou seja, estão a serviço de uma proposta ficcional, que difere dos objetivos do texto historiográfico. Constituem, portanto, como traços estilísticos que adornam a narrativa, mas que não a enformam, não a determinam. A argumentação de que a Ciropedia pode ser lida como um romance deve, então, levar em conta a anacronia do uso termi- nológico do romance. A palavra romance data do século XII d.C. e referiu-se, primeiramente, às produções literárias em lín- guas românicas, em oposição às obras literárias produzidas em línguas clássicas. Nesse contexto, o termo romance designava tanto narrativas em prosa quanto narrativas em verso. Apenas no século XV o termo passa a designar narrativas de ficção em prosa. Nesse sentido, o romance tem sido teorizado como um fenômeno estritamente moderno, próprio das sociedades bur- guesas. Para Lukács (1999), a forma do romance estabelece uma 1 A falta de uma terminologia entre os antigos para definir as obras de fic- ção em prosa torna necessário o uso anacrônico do termo “romance”. Ressalta-se que tal uso deve levar em conta determinadas ressalvas, para que não pareçamos ingênuos ao efetuar tal classificação anacrônica. 16 EMERSON CERDAS oposição entre indivíduo e sociedade, entre os impulsos daquele diante das imposições desta. O herói romanesco, portanto, é o herói problemático, que, contestando os valores impostos pela sociedade, inicia uma querela interna ou externa contra essa opressão. Estes aspectos, segundo Lukács (1999), são próprios da sociedade burguesa e, portanto, o romance é um fenômeno artístico dessa sociedade. A teoria do romance proposta por Bakhtin tem o mérito, en- tre muitos outros, de ampliar essa visão lukacseana do romance. Bakhtin não nega o caráter moderno da forma do romance, po- rém observa em seus trabalhos de poética histórica que o discurso romanesco é fruto de um desenvolvimento longo, provindo mes- mo da Antiguidade e que se desenvolveu plenamente na Moder- nidade. Isso significa que, além do romance moderno, há outras formas romanescas antes desse romance que são essenciais para a formação do gênero. O surgimento de uma obra e a sua perma- nência estabelecem novos critérios literários que são imitados ou negados pelos novos escritores. Nesse sentido, o desenvolvimen- to discursivo do romance pode, e deve, ser pesquisado em outros âmbitos para além do romance moderno, para que o compreen- damos da forma mais ampla possível. Desse modo, a teoria de Bakhtin, cujo conceito de romance foi adotado aqui, estabelece critérios de análise e conceitos fundamentais para este estudo. Além disso, as poéticas clássicas não se interessaram pelas narrativas de ficção em prosa e o gênero não foi reconhecido pelo cânone clássico. Assim, não há, na Antiguidade, uma ter- minologia específica para as prosas ficcionais. Palavras como ar- gumentum e πλάσμα (plásma) foram usadas, respectivamente, por Macróbius e o Imperador Juliano para se referirem ao ro- mance idealista grego, cuja produção data do período entre os séculos I a.C. e IV d.C. Por isso, para Whitmarsh (2008, p.3), o uso anacrônico do termo romance ou novel não é só um rótulo conveniente, mas também necessário para o trabalho do crítico. Holzberg (2003, p.11), a despeito do anacronismo dos termos, A CIROPEDIA DE XENOFONTE 17 dada a semelhança entre as formas antigas e modernas, acredita que devemos aceitar sem dificuldades tais anacronismos. Para ele, o real problema é discutir quais as obras da Antiguidade po- dem ser chamadas de romance. O conceito de gênero deve ser legitimado nesse contexto, fixando critérios precisos para a clas- sificação dessas obras. Em geral, reconhecem-se como romance, na Antiguidade, as narrativas idealistas gregas. Nessas narrativas, o tema amoroso e o da viagem configuram-se como uma unidade caracterizadora. Um jovem casal apaixonado, de compleição e alma perfeitas, é separado, pelas vicissitudes do acaso. Na separação, enfrentam todo tipo de obstáculos para um possível reencontro, porém se preservam fiéis um ao outro, até que, no final, vencidos todos os obstáculos, podem viver juntos e felizes. Basicamente, essa estrutura está presente nos romances As Etiópicas de Heliodoro, Quéreas e Calírroe de Cáriton de Afrodísias, Leucipe e Clitofonte de Aquiles Tácio, Dáfnis e Cloé de Longo, e As Efesíacas de Xe- nofonte de Éfeso. Acrescentam-se, ainda, duas obras latinas que combinam os temas de amor e de aventura com a mordaz sátira da sociedade: Satyricon de Petrônio e O asno de ouro de Apuleio. Por conta desse caráter homogêneo na estrutura interna e pela sua finalidade lúdica, Holzberg (2003) define essas obras como novels proper, ou seja, “romances de fato”. Para Holzberg (2003), a relação da Ciropedia com os novels proper é legitimada pela presença de uma narrativa secundária, a narrativa de Panteia e Abradatas. De fato, interligada à narra- tiva principal, essa narrativa secundária apresenta os principais elementos do tema amoroso do romance idealista grego: o amor puro dos protagonistas, que são personagens completamente fic- cionais, a separação dos namorados, a fidelidade constantemen- te posta à prova e, por fim, o reencontro dos apaixonados. Essa narrativa foi muito famosa na Antiguidade, e, segundo alguns teorizadores do romance antigo, serviu de modelo para o roman- ce idealista grego. 18 EMERSON CERDAS No entanto, uma vez que a estrutura da Ciropedia não se resume à estrutura de narrativas amorosas, erotikoi logoi, mas abrange outras, há dificuldade por parte dos críticos (por exem- plo: Brandão, 2005; Gual, 1988) em aceitá-la como um romance propriamente dito. Deve-se, portanto, observar, para além da estrutura da narrativa amorosa, outros elementos da Ciropedia que se configuram como ficcionais e romanescos e, por meio da análise destes, é que poderemos compreender a obra de fato. Ao lado dos novels proper, Holzberg (2003) chama a aten- ção para os novels fringe, romances periféricos, obras de ficção em prosa que apresentam não só uma variedade temática muito mais ampla do que a dos novels proper, mas também uma apro- ximação com outros gêneros discursivos (historiografia, filosofia etc.). Essa aproximação dificulta a demarcação de limites preci- sos nessas obras, em que a ficção se relaciona com algum objetivo didático ou informativo, e, assim, Holzberg (2003) atribui a esse grupo as mais variadas obras: a-) biografia ficcional: Ciropedia de Xenofonte, Vida e Andanças de Alexandre da Macedônia de Pseudo-Calístenes, Vida de Esopo (anônimo), Vida de Apolônio de Tiana de Filóstrato, Atos dos apóstolos apócrifos; b-) autobio- grafia ficcional: Pseudo-Clemente; c-) Cartas ficcionais: Cartas de Ésquines, Cartas de Quión, Cartas de Eurípides, Cartas de Hi- pócrates, Cartas de Platão, Cartas de Sócrates e dos socráticos e Cartas de Temístocles. Além da diferença temática, os novels proper narram a histó- ria de personagens completamente inventadas, ao contrário dos novels fringe que ficcionalizam um dado material histórico. A mais antiga dos novels fringe é a Ciropedia, de Xenofonte, escrita por volta de 360 a.C. No Capítulo 3, Reescrevendo o passado: ficcionalizando a história, serão observadas as relações entre a ficção e a histó- ria, uma vez que o narrador se utiliza de dados históricos na construção da ficção na Ciropedia, e demonstrar-se-á como a história é manipulada, incrementada e embelezada com fic- A CIROPEDIA DE XENOFONTE 19 ção. Nosso objetivo neste capítulo é, a partir da análise, argu- mentar que a Ciropedia não é uma narrativa historiográfica, nos moldes do projeto estabelecido por Heródoto e desenvol- vido por Tucídides, mas uma narrativa ficcional de tema his- tórico. Isso significa que a ficção se mescla ao texto histórico e com ele se confunde. Por meio dessa estratégia narrativa, o leitor é persuadido da verdade dos fatos narrados pela obra ficcional, não da verdade enquanto fato verídico, mas como construção verossímil. O Capítulo 4, Ciropedia: um Romance de Formação na Antiguidade, e o Capítulo 5, Imagem e evolução do herói da Ciropedia, constituem um bloco temático neste livro. Am- bos, por meios diferentes, tratam da trajetória e do caráter da personagem principal da narrativa, o herói da Ciropedia, e em ambos, será demonstrado que Ciro não é uma persona- gem estática, formada desde o início da narrativa, mas uma personagem dinâmica, que evolui no decorrer da narrativa. A personagem dinâmica é, segundo Bakhtin (2010), a principal característica do romance de formação, o que o distingue dos outros tipos de romance. No Capítulo 4, o foco é a possível classificação da obra xe- nofonteana como romance de formação, gênero moderno cujo paradigma é a obra Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meis- ter, de Goethe, escrita no século XVIII. Para efetuar a análise, recorreu-se aos estudos a respeito do romance de formação para identificar as estruturas que ainda hoje caracterizam o gênero. Segundo Bakhtin (2010), todo gênero conserva, na dinâmica de sua produção e reprodução, determinadas estruturas que lhe são caracterizadoras, e são denominadas de archaica. A perma- nência dessas estruturas não é um fenômeno estático, porém um fenômeno dinâmico, que se renova a cada nova manifesta- ção artística, e, renovando-se, permanecem como traços distin- tivos do gênero. É por meio desse caráter de permanência das estruturas que os leitores reconhecem se determinada obra per- 20 EMERSON CERDAS tence ou não a um gênero. Além disso, reconhecendo esses ele- mentos, pode-se identificar a história do gênero e os principais movimentos estruturais que determinam o desenvolvimento da forma artística. Desse modo, a análise da archaica é fundamen- tal em um trabalho de poética histórica. No Capítulo 5, será analisado o caráter evolutivo de Ciro por meio do estudo de máximas. As máximas configuram- -se como um discurso didático de grande potencial retórico e apresentam, na tessitura narrativa da Ciropedia, a meu ver, um importante papel na construção da personagem principal. Será feito um levantamento das máximas formuladas no decorrer de toda a obra e uma avaliação da forma como essas máximas aparecem, atentando-se para o enunciador, o destinatário e o contexto de enunciação, e como elas participam da formação de Ciro. Por meio dessa análise, poderemos observar a evolução da personagem. Segundo Aristóteles, na obra Retórica, as máximas apre- sentam um caráter ético, uma vez que emitem um preceito moral, decorrente de se pretender uma “norma reconhecida do conhecimento do mundo” (Lausberg, 1966, p.235). Além disso, por emitirem um preceito moral, não só revelam as pre- ferências do orador, mas o próprio caráter dele. Além disso, como efeito retórico, as máximas contêm em si um elemento discursivo extremamente poético, que se relaciona muito me- nos com o conteúdo da mensagem, do que com a forma de sua expressão. Nesse sentido, o uso de máximas, aliado a outros expedientes retóricos, revela também um esforço de embele- zar o discurso prosaico. A Ciropedia de Xenofonte é uma narrativa ficcional de ca- ráter idealizante que trata da vida de Ciro, o Velho, fundador do Império persa. O principal interesse de Xenofonte é dis- cutir sobre a arte de governar, porém, ao invés de fazer um tratado sobre o tema, ele faz suas reflexões em forma de uma narrativa biográfica. O tema da vida de Ciro, uma personagem A CIROPEDIA DE XENOFONTE 21 específica do passado, é representado como paradigma da arte de governar. Para efetuar essa representação, Xenofonte desa- trela-se da fidelidade à história, que, para os antigos, só pode ser alcançada por meio da verdade, e ficcionaliza esse passa- do. É objetivo deste livro, portanto, analisar como Xenofonte constrói a sua ficção, reconhecer os elementos romanescos e observar o grau de inovação literária apresentado por essa nar- rativa xenofonteana. 1 introdução à ciropediA Εἰ καὶ σέ, Ξενοφῶν, Κραναοῦ Κέκροπός τε πολῖται φεύγειν κατέγνων τοῦ φίλου χάριν Κύρου, ἀλλὰ Κόρινθος ἔδεκτο φιλόξενος, ᾗ σὺ φιληδῶν (οὕτως ἀρέσκῃ) κεῖθι καὶ μένειν ἔγνως.1 Diógenes Laércio, Antologia Palatina, 7.98.1 O autor Vida Xenofonte2 nasceu por volta de 430 a.C., na Ática, no demo de Érquia3, em plena guerra do Peloponeso. Descendente 1 “Se também a ti, Xenofonte, os cidadãos de Cranau e Cécropes/ Acusa- vam de fugir por causa do amigo Ciro,/ Corinto hospitaleira te recebeu, onde, encontrando o prazer/ (a ponto de ficar satisfeito), ali resolveste permanecer”. (Tradução minha) 2 As informações a respeito da vida de Xenofonte são conhecidas, prin- cipalmente, pela biografia que Diógenes Laércio dedica a ele no livro II de sua obra Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (II, 48-59). 3 O demo de Érquia fica localizado entre Himeto, montanha da Ática, e Pentele, demo ateniense, a quinze quilômetros de Atenas. 24 EMERSON CERDAS de uma família abastada de proprietários rurais, era filho de Grilo,4 e acompanhou a decadência da política ateniense na primeira fase de sua vida. Sua origem e educação aristocrática emergem de forma clara por toda sua obra, ao condenar mui- tas das ações dos políticos democratas.5 Conforme comentá- rio em As Helênicas6 (1994), Xenofonte participou da cava- laria ateniense tanto na Lídia em 410 a.C.,7 quanto ao lado dos oligarcas do Governo dos Trinta, na turbulenta Atenas pós-Peloponeso.8 Para Jaeger (1995, p.1144), a imagem filo- espartana de Xenofonte, decorrente deste período, não per- mitiu, durante décadas, que o escritor ateniense tivesse um contato pacífico com a pátria. Durante sua juventude, manteve contato com o círculo so- crático. Os ensinamentos de Sócrates, ainda que não tenham feito dele um filósofo de fato, como Platão e Antístenes, tiveram uma profunda influência em sua personalidade.9 A respeito do primeiro encontro de Xenofonte com Sócrates, Diógenes Laér- cio (1977) narra a seguinte anedota (L II.48): Sócrates, cami- 4 Filóstrato na obra Vida dos Sofistas refere-se a Xenofonte apenas como “o filho de Grilo” (I, 12, 96). 5 Hutchinson (2000) cita como exemplo a crítica que, nas Helênicas, Xe- nofonte faz à condenação dos vitoriosos generais de Arginusas, em 406 a.C., que estes sofreram por não terem retirado os corpos dos sol- dados do mar, em plena tempestade. 6 As Helênicas I, 2. 7 Hutchinson, 2000, p.14. 8 Para Luciano Cânfora (2003, p.40), a viagem de Xenofonte à Pérsia, para integrar-se ao exército de Ciro, o Jovem, vincula-se a sua parti- cipação no Governo dos Trinta. Isso explicaria, para ele, o verdadeiro motivo de Xenofonte ter desobedecido ao conselho de Sócrates, não perguntando ao oráculo de Delfos se deveria ou não partir para a Pérsia, como o mestre aconselhara, mas perguntando a quais deuses deveria sa- crificar para retornar a salvo à Grécia. 9 Lesky, 1986, p.651. A CIROPEDIA DE XENOFONTE 25 nhando pelas ruas de Atenas, ao deparar-se com Xenofonte,10 barrou-lhe a passagem com um bastão e perguntou-lhe onde se adquire todo tipo de mercadorias (ποῦ πιπράσκοιτο τῶν προσφερομένων ἕκαστον). Xenofonte indicou-lhe o ca- minho e Sócrates então lhe perguntou em que lugar os homens tornavam-se excelentes (ποῦ δὲ καλοὶ κἀγαθοὶ γίνονται ἄνθρωποι), e, diante da perplexidade do jovem, convidou-o a segui-lo.11 Na primavera de 401a.C., Xenofonte se juntou com mais dez mil mercenários gregos ao exército persa12 de Ciro, o Jovem, que tentava destronar seu irmão, Artaxerxes II, do trono per- sa. Na batalha de Cunaxa, apesar da vitória sobre os inimigos, Ciro foi morto. Os aliados persas de Ciro, não tendo mais um líder, renderam-se ao exército do rei Artaxerxes e os gregos se viram desamparados no território bárbaro. Nesse contexto, os gregos elegeram Xenofonte como um de seus novos generais que os guiaria em retirada através da Ásia Menor,13 em “[...] uma 10 Em sua narrativa, Diógenes Laércio não elucida o que exatamente teria chamado a atenção de Sócrates em Xenofonte. Porém, no início de sua biografia, ele afirma que Xenofonte era tido como um homem “extremamente modesto e de ótima aparência” (αἰδήμων δὲ καὶ εὐειδέστατος εἰς ὑπερβολήν) (L II.48). 11 Para Luciano Cânfora, “Nessa anedota, na qual talvez, pela primeira vez no Ocidente, filosofia e mercadoria são colocadas como antípodas, tem desde logo um clima de proselitismo e conversação. O encontro com o mestre configura um corte com o passado”. (2003, p.61). 12 “Não foi Sócrates, porém, quem marcou o destino de sua vida, mas sim a ardente inclinação para a guerra e para a aventura, a qual o arrastou para o círculo mágico cujo centro era a figura romântica daquele prínci- pe rebelde dos Persas.” (Jaeger, 1995, p.1142). 13 Ao alcançarem o mar, os gregos teriam gritado θἁλαττα, θἁλαττα, (thálatta, thálatta; oh mar, oh mar). James Joyce, em seu monumental Ulysses, faz uma referência a essa passagem, quando Buck Mulligam, ao observar da torre em que mora com Stephen Dedalus, exclama em grego o citado vocativo. Essa cena também serviu de referência para o 26 EMERSON CERDAS das mais surpreendentes experiências militares da história [...]” (Hutchinson, 2000, p.14). Com a chegada do exército na estratégica região do Heles- ponto, Xenofonte entregou o exército de mercenários gregos às mãos do rei espartano Agesilau, que, naquele momento, lutava contra os mesmos persas. Em 396 a.C., por causa da guerra contra Corinto, Agesilau retornou à pátria, e, em 394 a.C., a cidade de Atenas, aliada dos beócios, travou batalha contra os espartanos, e Xenofonte lutou contra os seus com- patriotas na batalha de Queroneia. Por causa da sua partici- pação na batalha, Xenofonte foi exilado de Atenas.14 Em com- pensação, pelos altos serviços prestados a Esparta, Xenofonte recebeu em homenagem a proxenia15 e um terreno em Esci- lunte, perto de Olímpia. Em Escilunte, Xenofonte dedicou-se à vida de proprietário de terra, ao exercício da caça e da equitação e a escrever seus textos literários.16 Permaneceu ali até 371 a.C., quando Tebas poema “Meergruss” do livro Buch Der Lieder (Livros das Canções) de Henrich Heine. 14 Cânfora (2003) acredita que o exílio de Xenofonte se deu em 399 a.C., por ser partidário dos oligarcas em Atenas. A maior parte da crítica, no entanto, seguindo as informações de Diógenes Laércio, e a interpreta- ção clássica de Delebecque (1957), aceita a data de 394 a.C. para seu exílio, relacionando-o à sua participação na batalha de Queroneia. 15 O título de proxenia era dado aos estrangeiros que recebiam inú- meros privilégios da cidade: a προεδρία (proedria), direito a lu- gar de honra nas festas públicas; προδικία (prodikia), direito de prioridade perante os tribunais; ἀσυλία (asylia), garantias contra o direito de captura; ἀτέλεια (ateleia), isenção de taxas; ἐνκτεσις γῆς τῆς οἰκίας (enktesis ges tes oikias), direito de adquirir imó- veis. Em troca, o cidadão tornava-se patrono e protetor da cidade (Jardé, 1977, p.202). 16 Lesky (1986, p.652), a despeito das informações dos antigos – princi- palmente Plutarco, em Sobre el Destierro (1996) – acredita que a fase de maior produtividade de Xenofonte se deu com seu retorno a Atenas, época de sua vida sobre a qual temos menos informações. No entanto, A CIROPEDIA DE XENOFONTE 27 derrotou Esparta na batalha de Leuctra, sendo obrigado a viver em Corinto. Nessa época, entretanto, como Tebas era inimiga também de Atenas, esta e Esparta aproximaram suas relações e o exílio de Xenofonte foi revogado. Em 362 a.C., na batalha de Mantineia, Grilo, filho de Xenofonte (que tem o mesmo nome de seu pai), serviu na cavalaria ateniense e morreu em combate. A atuação valorosa de Grilo na batalha, segundo Diógenes La- ércio, rendeu a ele vários epigramas.17 Xenofonte morreu com aproximadamente 70 anos, entre os anos de 359-355 a.C. Não se sabe se, de fato, retornou a Atenas ou se morreu em Corinto, mas é provável que tenha retornado à cidade natal. Como observa Jaeger (1995), Xenofonte já não podia sentir- -se integrado na ordem tradicional da polis ateniense. Segundo Glotz (1980, p.269), o que sucede de mais grave no século IV para o regime político da polis é o fato de que, em face às cres- centes dificuldades do regime democrático, o individualismos se aprofunda,18 sobrepujando as ideias de patriotismo. Xenofonte é, neste sentido, o tipo perfeito de grego desse período, desatado de qualquer laço que o vincule à terra natal. Ele abandonou Atenas quando o império se desfalecia, interior e exteriormente e “[...] tomou em suas mãos a direção de sua própria vida [...]” (Jae- ger, 1995, p.1143). Esta sua postura inovadora no campo social, também se revela no âmbito literário. Xenofonte era homem de múltiplos interesses, dono de uma linguagem clara, que lhe valeu o epíteto na Antiguidade de a maior parte da crítica, seguindo Delebecque (1957), mantém que Xe- nofonte compôs suas obras em Escilunte. 17 O próprio Diógenes levanta a questão de que os que compuseram epi- gramas desejavam mais tornarem-se agradáveis a Xenofonte do que tor- nar o nome de Grilo imortal. 18 Glotz (1980) observa que o individualismo crescente na vida social gre- ga, também influencia a literatura do século IV, justificando, por essa tendência, o aparecimento dos escritos encomiásticos e das novas ten- dências da historiografia grega. 28 EMERSON CERDAS “Musa Ática”. O ático xenofonteano apresenta algumas dife- renças do ático clássico, pois, uma vez que esteve afastado de Atenas por muito tempo, entrou em contato com outras regiões e dialetos. Segundo Gautier, em sua obra La langue de Xenophon (apud Sansalvador, 1987, p.46), a língua de Xenofonte apresen- ta elementos dóricos, jônicos e até particularidades poéticas. Estas particularidades estranhas ao ático clássico propiciaram ao autor a oportunidade de enriquecer a língua materna, apon- tando, conforme Lesky (1986 p.656), a κοινή, a língua comum do período helenístico. A língua e o estilo de Xenofonte foram muito admirados na Antiguidade. O Suda o chama de “abelha ática”, pela doçura de sua linguagem, a que Cícero já aludira no Ora- tor (IX, 22). Os gramáticos da Antiguidade apreciavam sua simplicidade. Demétrio (Sobre o estilo, 137; 181) admirava sua concisão e solenidade, além do ritmo quase métrico de algumas passagens. Quanto ao estilo, Xenofonte foi influenciado tanto pelos so- fistas quanto pelos retores, “[...] porém seu caráter ateniense o preservou de todo excesso, levando-o a utilizar os recursos da prosa artística com a máxima moderação [...]” (Sansalvador, 1987, p.46). Xenofonte foi discípulo de Pródico e talvez tenha frequentado os cursos de Górgias, cujo estilo exerceu forte in- fluência na prosa da época19 (Sansalvador, 1987, p.47). O uso de figuras de linguagem revela a preocupação estética do escritor que procurava tornar o texto não só informativo, mas também agradável a seus leitores. 19 Para Momigliano (1984, p.12), o estilo da historiografia era regulado pelas normas da prosa retórica, diferenciando-se desse gênero discursi- vo pela finalidade. Essa influência da retória na historiografia demons- tra a preocupação dos historiadores com o embelezamento dos seus discursos, ainda que este embelezamento não seja o principal objetivo do historiador. Cf. Joly, F. D. (Org.). História e retórica. Ensaios sobre historiografia antiga (2007). A CIROPEDIA DE XENOFONTE 29 Além disso, Xenofonte foi um escritor polígrafo – o pri- meiro na Grécia –, ou seja, sua produção abarca vários gêne- ros literários – diálogo socrático, banquete, encômio, trata- dos, narrativas. A Ciropedia, que é uma obra de maturidade de Xenofonte, combina em sua estrutura narrativa elementos desses outros gêneros literários, que se mesclam à narrativa e, de certa forma, dão vivacidade a ela. São os discursos,20 os diálogos socráticos21 e os episódios romanescos22 que não surgem de forma desconexa, mas são entrelaçados perfeitamente com a ação principal da narrativa (Gera, 1993, p.187). A experiên- cia obtida durante a escrita dessas outras obras é fundamental para o manejo consciente desses elementos dentro da narrativa principal da Ciropedia. 20 O sentido de discurso aqui empregado é o de mensagem oral proferida perante uma assistência. Tanto a obra de Heródoto quanto a de Tucí- dides apresentam diversos discursos que entremeiam a narrativa. Em geral, esses discursos aparecem antes das batalhas, retardando-as para criar o clímax na narrativa, e, sendo uma influência da épica homérica, é um topos do gênero historiográfico. 21 Xenofonte escreveu os diálogos socráticos: Econômico, Banquete, Memo- ráveis e Hierão. Esse gênero proporciona maior vivacidade, dinamismo e expressividade da linguagem. Aparecem em geral relacionados a ban- quetes, e nota-se a frequente preocupação didática nos diálogos, marca- da pela presença de um mestre e um discípulo. É importante ressaltar que na Ciropedia os diálogos versam sobre temas gerais, porém, confor- me a análise feita por Gera (1993), o estilo desses diálogos é o mesmo do usado naquelas obras citadas. 22 Nesses episódios, Xenofonte procura comover e deleitar seus leitores com narrativas repletas de πάθος (pathos). As narrativas apresentam ainda forte impressão didática, sempre ligadas à narrativa principal de Ciro. Gera (1993, p.197), analisando essas narrativas, afirma que Xe- nofonte tem uma preocupação maior com a linguagem, criando textos de grande valor estético. Uma delas, a de Panteia, foi muito imitada pelos romancistas gregos, tendo-se notícia de um romance perdido, provavelmente do século II d.C., que tinha como título o nome das personagens Panteia e Araspas. Cf. Brandão, J. L. A invenção do ro- mance (2005, p.61). 30 EMERSON CERDAS Corpus Xenofontis A cronologia das obras de Xenofonte é incerta e, por isso, os críticos tendem a classificá-las de acordo com o estilo. No entan- to, a classificação quanto ao estilo também não é segura, como afirma Ana Lia A. de A. Prado (1999). Para fins didáticos, a classificação apresentada a seguir das obras de Xenofonte segue a adotada por Lesky (1986, p.652). a) Obras históricas: Anábase23 (Κύρου ἀνάβασις), considerada por alguns a mais bela obra de Xenofonte, é uma narrativa memorialista que trata da fuga dos mercenários através da Pérsia, após expedição frustrada de Ciro, o Jovem, contra seu irmão Artaxerxes II; Helênicas (Ἐλλήνικα), a mais historiográfica das obras de Xenofonte, conta a história da Grécia de 411 a.C. até 362 a.C., continuando a narrativa de Tucídides exatamente do ponto em que este a deixou com a sua morte; Agesilau (Αγησιλαος), encômio24 ao rei Agesilau de Espar- ta, obra em que Xenofonte revela forte retoricismo, principal- mente quando comparada à descrição da mesma personagem feita pelo mesmo Xenofonte nas Helênicas; Constituição dos Lacedemônios (Λακεδαιμονίων Πολιτεία), descrição das leis espartanas, na qual Xenofonte fala das causas do apogeu e da decadência da cidade de Esparta; 23 Todas as obras de Xenofonte referidas aqui são datadas da primeira me- tade do século IV a.C. À medida que pudermos apresentar mais preci- são em alguma obra vamos oferecer a possível data de escrita da obra. 24 A retórica antiga distinguia três gêneros de discurso em prosa: judiciá- rio, deliberativo e o encômio, ou epidítico. O epidítico trata do elogio ou crítica a determinada pessoa pública. Sua origem está nas orações fúnebres. Cf. Reboul, O. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998. A CIROPEDIA DE XENOFONTE 31 Os recursos ou sobre as rendas (Πόροι ἢ περί προσόδων), cuja autenticidade hoje já não se contesta, é um escrito a respeito das finanças de Atenas, procurando solucionar seus problemas. b) Obras didáticas: Hipárquicos (Ἱππαρχικος), texto dirigido aos comandantes da cavalaria ateniense; Sobre a equitação (περὶ ἱππιχῆς), um manual sobre a prática da equitação e do modo de se tratar o cavalo para ter do animal um completo domínio; Cinegético (Κυνηγέτικος), livro a respeito da prática da caça. Sua autenticidade é contestada, principalmente por causa da linguagem, que se afasta da habitual clareza e simplicidade agradável de Xenofonte. c) Obras socráticas: Econômico (Οἰκονόμικος), que teve muitos admiradores na Antiguidade, é um diálogo sobre a administração do casa (οἴκος), e por causa de seu caráter técnico, alguns críticos, como Lesky (1986), preferem classificá-la nas obras didáticas de Xenofonte; Memoráveis (Ἀπομνημονεύματα Σώκρατους), obra fei- ta de reminiscências do velho mestre Sócrates, colocando-o no centro de diversas discussões, nas quais muitos dos temas de in- teresse de Xenofonte são retomados; Apologia de Sócrates (Ἀπολογία Σώκρατους), como a obra homônima de Platão, trata do julgamento de Sócrates; Banquete (Συμπόσιον), diálogo simposiástico que trafega pe- los principais temas discutidos por Xenofonte em suas outras obras; Hierão (Ἱερῶν), diálogo no qual o tirano Hierão e o poeta Simônides discutem a respeito da tirania; Atribui-se ainda a Xenofonte, por paralelismo com a Constitui- ção dos Lacedemônios, o texto Constituição Ateniense (Ἑλλήνικα πολιτεία), porém se aceita que a obra seja espúria e date do últi- 32 EMERSON CERDAS mo quarto do século V a.C., quando Xenofonte deveria ter menos de vinte anos. Das obras de Xenofonte, a mais difícil de se classificar é a Ci- ropedia (Κύρου Παιδέια). Lesky (1986) a classifica como uma “obra histórica”, pois o tema da Ciropedia é a vida de Ciro, o Velho, imperador da Pérsia. No entanto, Lesky reconhece a dificuldade dessa classificação. Ana Lia A. de A. Prado (1999) classifica-a como “obra didática”, em virtude do caráter didáti- co que sublinha a narrativa. A obra ainda tem sido chamada de biografia, história romanceada, biografia romanceada, romance filosófico, romance didático, tratado de educação, instituição militar, obra socrática.25 A influência da Ciropedia na literatura posterior é sentida em obras como A vida de Apolônia de Tiana (séc. II) de Fi- lóstrato. No Renascimento, a obra foi muito traduzida e imi- tada, inserindo-se como modelo dos romances de Fenelón, As aventuras de Telêmaco (1694-1695); M. de Scudery, Artame- ne ou o grande Ciro (1649-1653) e Wieland, Agathon (1766). Wieland escreveu ainda um drama chamado de Araspas und Panthea (1759), retomando a narrativa amorosa dessas per- sonagens da Ciropedia. Essa influência de Xenofonte sobre Wieland é de particular interesse, uma vez que o Agathon de Wieland é classificado como uma das primeiras manifesta- ções do Bildungsroman alemão e teve grande influência so- bre o Wilhelm Meister de Goethe. Além disso, Montaigne e Maquiavel, principalmente em O Príncipe, apreciavam as ideias expressas na Ciropedia. Na literatura em língua por- tuguesa, podemos encontrar referências à Ciropedia em au- tores clássicos como Camões, em Os Lusíadas (1962, X, 48- 49) e Cláudio Manoel da Costa, em seu poema Vila Rica (2002, IV). Machado de Assis, no seu romance Esaú e Jacó (1976), no capítulo LXI, intitulado Lendo Xenofonte, apresenta a perso- 25 Cf. a introdução à tradução de Marcel Bizos, Belles Lettres, 1972. A CIROPEDIA DE XENOFONTE 33 nagem do Conselheiro Aires manuseando o texto grego do pri- meiro capítulo da Ciropedia. No século XX, dois apreciadores das obras de Xenofonte são Ítalo Calvino, que lhe dedica um capítulo na sua obra Por que ler os clássicos (1993), e o escritor português Aquilino Ribeiro, que traduziu tanto a Ciropedia, com o título de O Príncipe Perfeito (1952), quanto a Anábase, com o título de A Retirada dos dez mil (1957). Sobre a Anábase, é interessante a retomada desta narrativa no filme de Walter Hill (1979), Selvagens da noite (The Warriors), em que o dire- tor transporta a narrativa para um tempo futuro na cidade de Nova York, dominada por gangues. Ciropedia O título ΚΥΡΟΥ ΠΑΙΔΕΙΑ26 (Cyrou paideia) é a forma tradicional com que nossa obra de estudo é referida desde Aulo Gélio.27 A maior parte das traduções dessa obra procura geralmente ou manter a transliteração da língua grega com o termo Ciropedia ou traduzir o sentido dos termos por A Educação de Ciro.28 Al- guns críticos (Breitenbach, 1966; Bizos, 1972) assinalam que este título convém apenas ao Livro I da narrativa, já que os objetivos dos outros livros seriam apresentar o ideal de soldado 26 Cícero (1946, p.203), em carta ao seu irmão Quintus, refere-se à obra apenas como Ciro: Cyrus ille a Xenophonte non ad historiae finem scriptus. 27 Cf. Noches Aticas, XIV, 3. Nesse capítulo, o autor trata da possível ini-Nesse capítulo, o autor trata da possível ini- mizade entre Xenofonte e Platão, atestada por outros biógrafos. 28 Das traduções em português, Jaime Bruna (1965) prefere o título A Educação de Ciro, enquanto João Félix Pereira (1964) prefere Ciropedia. Já Aquilino Ribeiro (1952) inova ao nomear a sua tradução de O Prínci- pe Perfeito. Adotaremos aqui o título de Ciropedia a partir de agora. 34 EMERSON CERDAS e soberano a partir da figura exemplar de Ciro, o Velho. Para Marcel Bizos (1972), o título que mais se adequaria à obra seria simplesmente Ciro, seguindo a tradição das biografias retóricas do século IV, como a própria obra de Xenofonte Agesilau ou o Evágoras de Isócrates.29 Outros autores, como Higgins (1977) e Due (1989), interpre- tam o sentido de educação na obra de forma ampla, compreen- dendo-a como um aprendizado através da vida. Nesse sentido, o título seria coerente com o todo da narrativa. Ana Vegas San- salvador (1987, p.7) tem a mesma opinião e procura demonstrá- -la analisando o proêmio da obra. Para a autora, em Ciropedia (I, 1. 6), Xenofonte estabelece os três aspectos fundamentais de sua investigação – a linhagem (genean), as qualidades naturais (phusin) e a educação (paideia). A partir disso, o narrador se compromete a apresentar o desenvolvimento de seu herói (Li- vro I) e seu modo de atuar, entendido como consequência desse desenvolvimento (Livros II-VIII). Assim, a educação não seria apenas a participação do jovem em instituições de ensino, mas a caminhada pela vida, na qual os ensinamentos da juventu- de são testados, reavaliados e aprimorados. Bodil Due (1989, p.15), analisando a descrição que Xenofonte faz da paideia30 persa, nos mostra que esta é um assunto público, cabendo ao Estado regulamentar os deveres, programas e funcionamento da comunidade para cada classe, divididas por faixa etária, e que mesmo os mais velhos estão sob a vigilância contínua em 29 Tal interpretação de Marcel Bizos, em nossa opinião, condiz apenas com o conteúdo da Ciropedia em comparação com as narrativas bio- gráficas. Demonstraremos, no entanto, em seu devido momento, que do ponto de vista da forma narrativa a Ciropedia se distancia desse tipo de biografia. 30 A παιδεία (paideia), segundo Jaeger (1995), é um projeto de educação que visava à formação do homem em todas as suas dimensões. A pala- vra aparece apenas no século V a.C., porém reflete preocupações que já encontradas em Homero. A CIROPEDIA DE XENOFONTE 35 vista do aperfeiçoamento; a paideia persa, nesse sentido, pro- longa-se através da vida. Síntese da narrativa A Ciropedia foi escrita por volta de 360 a.C. O enredo trata da vida de Ciro, o Velho, fundador do Império persa, desde o seu nascimento até sua morte. O Livro I abre com um proêmio (Livro I, 1.1-6), no qual o narrador reflete sobre as dificuldades de se governar, concluin- do que essa é uma tarefa árdua, mas não impossível, pois desco- briu em sua pesquisa que existiu certo Ciro que se fez respeitar e amar pelos súditos de seu Império. No Capítulo 2, narra-se a genealogia e as qualidades naturais de Ciro e o sistema educa- cional persa, pelo qual Ciro, como cidadão, teria passado. Nos capítulos 3 e 4 narra-se de modo romanesco a visita de Ciro à corte de seu avô materno Astíages, rei da Média.31 Ciro decide permanecer em Média para aperfeiçoar-se e tornar-se o melhor, quando retornasse à Pérsia. É interessante que Ciro revela à sua mãe os limites da educação persa e justifica a sua estadia em Mé- dia pelo complemento da sua educação. No Capítulo 4 (16-24), quando estava com quinze ou dezesseis anos, Ciro participa com extraordinária bravura de sua primeira expedição bélica. Após essa experiência, Ciro retorna à Pérsia (I, 5), prosseguindo sua formação cívica e moral de acordo com o sistema educacional descrito no Capítulo 2, distinguindo-se dos seus compatriotas no cumprimento dos seus deveres. Após dez anos, Ciro é esco- lhido pelos anciãos do conselho para liderar o exército persa, na 31 A Média é a antiga região da Ásia entre o mar Hircânion e a Pérsia. Na versão de Heródoto, após ser dominada por Ciro, passou a fazer parte do Império persa. Já na versão de Xenofonte, ela passa a fazer parte do Império persa por meio de uma aliança, quando Ciro se casa com a filha de Ciaxares. 36 EMERSON CERDAS aliança com a Média em guerra contra a Assíria (I, 5.2-5) e faz seu primeiro discurso como líder aos principais generais (I, 5.6- 14). Por fim, o último capítulo do primeiro livro é um longo diá- logo entre Ciro e seu pai Cambises e este, enquanto acompanha seu filho até a fronteira da Pérsia com a Média, expõe as qualida- des que devem adornar um bom chefe militar e os conhecimen- tos para obter a obediência de seus soldados. O Livro II e o Livro III (este até o Capítulo 3, parágrafo 9) formam uma unidade temática. O Capítulo 1 do Livro II inicia- -se com o relato dos preparativos para a campanha. Há um catá- logo dos inimigos e dos aliados (II, 1.5-6) e as primeiras atuações de Ciro como chefe militar, resolvendo a falta de contingente, equipando os soldados rasos com o mesmo armamento dos sol- dados de elite (II, 1.9) e organizando concursos e recompensas para fomentar a emulação e treinar seus homens (II, 1.11-18). No Capítulo 2, dá-se lugar a um simpósio na tenda de Ciro, na qual se reúnem os principais generais do exército, que narram pequenas e divertidas anedotas da vida cotidiana do exército. Após Ciro acertar com os seus subordinados a forma de divisão dos espólios (II, 3), inicia-se a campanha da Armênia (II, 4 - III, 1), antiga aliada da Média que se negava a pagar os impostos co- brados pelos aliados e sua submissão a Ciro, que tem seu pon- to alto no diálogo entre Ciro e Tigranes, filho do rei Armênio, que tenta salvar seu pai do julgamento em que Ciro representa o papel de juiz. No Livro 3, Capítulo 2, relata-se a expedição à Caldeia em que Ciro conclui a paz entre a Armênia e a Caldeia. Do Livro III, 3.9 até o Livro V, 1.36, a narrativa trata da expedição à Assíria. Começa com os preparativos, o discurso exortativo, a discussão entre Ciro e Ciaxares a respeito da tática que se deve seguir (III, 3.9-55); prossegue com a marcha contra o inimigo e a primeira batalha, que garante a vitória aos persas (III, 3.56 - IV, 1.18). A despeito do temor de Ciaxares, Ciro, junto com alguns voluntários medos, persegue os inimigos (IV, 1.19-24) e consegue o apoio dos hircanos, ex-aliados dos assí- A CIROPEDIA DE XENOFONTE 37 rios (IV, 2). Nos capítulos 3, 4 e 5 do Livro IV, Ciro projeta e organiza uma cavalaria persa; nesses capítulos se contrastam a figura de Ciaxares, incapaz e ciumento do êxito de Ciro, e este, empreendedor e triunfante. No Capítulo 6 (Livro IV), conta-se a história de Góbrias, o desertor do rei Assírio. O filho de Gó- brias fora assassinado pelo rei Assírio, pois ficara com ciúmes da beleza do jovem. A última seção do Livro IV (6.11-12) narra a divisão de espólio e fica-se sabendo que a Ciro coube a dama de Susa, a mulher mais formosa da Ásia, Panteia. O Livro V se inicia com a narrativa da bela Panteia, propria- mente dita. Ciro convoca Araspas para guardar Panteia. Os dois travam um diálogo a respeito do amor, e apesar das advertências de Ciro sobre os perigos de Eros, Araspas se apaixona pela bela prisioneira. Entrementes, continua a campanha contra a Assí- ria, com Góbrias dando valiosas informações sobre aquele país a Ciro (V, 2) que resulta em enfrentamentos de menor importân- cia (V, 3) e no aliciamento do assírio Gadatas, que assim como Góbrias tinha motivos de sobra para odiar o rei Assírio (V, 3.8 - V, 4). Em V, 5, Ciaxares e Ciro restabelecem a aliança, após Ciro convencê-lo de que sua inveja é infundada. Do Livro VI até o Livro VII, 1. 2, a obra se refere à campa- nha a Sardes, capital da Lídia. Após os primeiros preparativos (VI, 1.31-55), a narrativa retorna as personagens de Araspas e Panteia. Ciro, aproveitando que seu soldado apaixonara-se pela bela prisioneira, envia-o como espião dos inimigos. Panteia, grata por Ciro ter garantido sua dignidade diante dos ataques apaixonados de Araspas, envia uma carta ao seu marido, Abra- datas, que trai o rei Assírio, indo juntar-se ao exército de Ciro. Abradatas se prepara com a armadura feita do ouro das joias da esposa para ser o melhor aliado possível para Ciro. Segue-se a narração de corte técnico-militar, com Ciro fortalecendo seu exército com os aliados da Índia (VI, 2), o treinamento dos sol- dados (VI, 2.4-8), a organização para a batalha (VI, 2.23-41), a ordem de marcha (VI, 3.1-4) e as últimas exortações e ins- 38 EMERSON CERDAS truções de Ciro (VI, 4.12 - VII, 1.22). Em VI, 4.2-11, Panteia despede-se de Abradatas, que parte para a batalha na posição mais perigosa de luta. O primeiro capítulo do Livro VII narra a batalha de Sardes, com a morte de Abradatas pelos egípcios (VII, 1.29-32). Ciro derrota o inimigo e toma a cidade (VII, 1.36 - VII, 2.14); ele se encontra com o rei da Lídia, Creso (VII, 2.15-29); e Panteia, após velar seu esposo, comete suicídio (VII, 3.4-16). A partir de VII, 4, até VII, 5.36, narra-se a marcha para a Babilônia e a submissão dos povos das regiões pelas quais Ciro atravessa: a Cária, as Frígias, a Capadócia e a Arábia. A partir desse ponto, Ciro torna-se soberano, assentando-se no trono da Babilônia (VII, 5.37-69), granjeando o favor dos súditos e to- mando medidas para manter a unidade do Império (VII, 5.70- 86). Góbrias e Gadatas se vingam do rei Assírio, matando-o. O Livro VIII trata da organização da corte (VIII, 1.1-8) e prossegue com a organização do Império (VIII, 1.9 - VIII, 2.28). Em VIII, 3.1-34, narra-se o desfile triunfal com toda a magnifi- cência, completando a imagem de um Ciro no cume da glória. Depois de um banquete com seus amigos de sempre (VIII, 4), Ciro retorna à Pérsia e à Média, formalizando uma união com este país, ao casar-se com a filha de Ciaxares (VIII, 5). Em VIII, 6, Ciro estabelece uma instituição sem precedentes, a satrapia, para controlar as diversas províncias do Império. O Capítulo 7 deste Livro VIII apresenta Ciro já ancião, perto de uma morte natural em sua cama e rodeado por seus filhos; discursa a eles suas últimas palavras, estabelecendo a sucessão de seu trono. A narrativa termina com um Epílogo (VIII, 8) no qual o nar- rador descreve a decadência do Império após a morte de Ciro, atribuindo-a à perda dos valores morais, por parte tanto dos súditos quanto dos seus governantes, valores estes que fizeram possível a glória passada. O Epílogo tem sido objeto de muita discussão por parte dos críticos, que se dividem em aceitá-lo como texto autêntico de A CIROPEDIA DE XENOFONTE 39 Xenofonte (Delebecque, 1957; Breitenbach, 1966; Sansalvador, 1987) ou como espúrio, um acréscimo posterior dos comenta- dores (Hémardinquer, 1872; Bizos, 1972). Alguns tradutores, como Jaime Bruna (1965), considerando espúrio o texto, não o apresentam em suas traduções, terminando a obra no Capítulo 7 do Livro VIII. Os estudiosos alegam que o epílogo apresen- ta traços que destoam do tom idealista do resto da obra. Jaeger (1995, p.1157), no entanto, observa que a estrutura do epílogo é a mesma da estrutura do epílogo da Constituição dos Lacede- mônios e que é improvável que ambas as obras tenham sofrido acréscimos idênticos posteriormente. Compartilho a posição que aceita o epílogo como autêntico, pois a base das contradições é só aparente (Sansalvador, 1987; Delebecque, 1957) e respondem a um interesse do autor em con- trastar o passado esplendoroso com o momento atual por meio da expressão ἕτι καὶ νῦν, “ainda hoje”. O Epílogo se concentra no contraste do passado glorioso com a decadência atual do Im- pério. Delebecque (1957) estabelece que o ἕτι καὶ νῦν se refere à Pérsia liderada pelo soberano Artaxerxes II, que, na visão de Xenofonte, encarnava a decadência do Império, aludindo-se ao seu despotismo e deslealdade (VIII, 8, 4) e à revolta das provín- cias ocidentais do Império, que teria ocorrido entre 362-361 a.C. Deve-se notar, por sua vez, que Xenofonte dirigia-se a um público grego, principalmente ateniense, que outrora também fora um grande e glorioso império, porém assistia naquela época à decadência de sua política. Talvez nosso autor, como antes fi- zera Aristófanes em suas comédias, pretendesse apresentar uma advertência aos próprios atenienses, mostrando-lhes que a gló- ria do passado estava intimamente relacionada com princípios morais que a tradição transmitia e que a decadência decorria do desapego desses mesmos princípios. Bodil Due (1989, p.16) defende a autenticidade do Epílo- go como produto natural do desenvolvimento da obra, reco- nhecendo tanto o estilo de Xenofonte por meio de vocabulário 40 EMERSON CERDAS e construções sintáticas, quanto a continuação do plano inicial estabelecido por Xenofonte no proêmio. O objeto de pesquisa era o ato de governar os homens, ἄρχειν ἀνθρώπων (archeim anthropon), e os governantes se fazerem obedecer, πείθεσθαι τοῖς ἄρχουσι (peithesthai tois archousi). Para Due, a decadên- cia moral apresentada por Xenofonte relaciona-se à incapacida- de dos líderes “pós-Ciro” de conseguirem a obediência de seus súditos, pois os costumes morais e cívicos instituídos por Ciro deixaram de ser respeitados. Assim compreendido, o Epílogo forma juntamente com o Proêmio uma moldura ao redor da vida de Ciro, e esta passa a ser um “quadro” que ilustra as ideias contidas nessa moldura. A Ciropedia e a ideologia política do século IV A biografia de um escritor está sempre inserida em um contexto histórico, cujos impulsos sociais determinam, mais ou menos, o modo do escritor ver a realidade. Por isso, nesta seção serão expostas as principais correntes ideológicas do século IV, para então associar as preocupações dos homens da época à experiência singular da vida de Xenofonte. É im- portante este comentário, ainda que sumário, pois demons- trará que a arte de governar não é um tema caro apenas a Xenofonte, pois outros autores do século IV a.C. procuraram refletir sobre este tema. Além disso, estas referências dão um suporte seguro sobre o qual podemos ler a Ciropedia como uma ficção idealizada. De modo geral, pode-se dizer que a Ciropedia é o resultado de constantes indagações de Xenofonte a respeito da arte de governar. A importância do elemento pessoal para a confec- ção das obras de Xenofonte é notada pelo tom memorialista de suas obras (Lesky, 1986; Sansalvador, 1987). A experiência de vida é o motor temático de produção de Xenofonte. Na Ciro- pedia, cujo tema se estende no tempo histórico, a experiência A CIROPEDIA DE XENOFONTE 41 aparece tanto na ficcionalização da história quanto na aproxi- mação que o autor faz da cultura grega com a cultura persa.32 Quando participou do exército de Ciro, o Jovem, Xenofon- te entrou provavelmente em contato com numerosas tradições orais que tinham no centro a figura de Ciro, o Velho. A. Chris- tensen (1936, apud Sansalvador, 1987) ressalta a influência da épica iraniana na Ciropedia, em especial nas narrativas secun- dárias. Além disso, a participação efetiva nessa campanha teria ensinado a Xenofonte as dificuldades inerentes à arte de gover- nar. Sansalvador (1987) assinala que, quando se compara a Ciro- pedia com a Anábase, muitos dos incidentes que resultaram em malogro nesta última são reavaliados e corrigidos naquela. Para Sansalvador (1987, p.38), Não é em vão que se chegou a dizer que a Ciropedia era me- nos uma história de Ciro, o Velho, do que o sonho do que teria feito Ciro, o Jovem, vencer, ou que a Ciropedia é uma teoria das ideias políticas e militares suscitada pela Anábase no pensamen- to de Xenofonte. Não se pode esquecer, no entanto, que Atenas vivia um período de profundas atribulações políticas e que estes con- tratempos marcaram decisivamente a forma de Xenofonte compreender a política. Os últimos anos da Guerra do Pe- loponeso (435-404 a.C.) foram marcados por conflitos in- ternos em Atenas, com a constante disputa pelo poder: pri- meiro, a subida dos Oligarcas ao poder no Governo dos Trezentos (411 a.C.); em seguida, o governo misto dos Cinco Mil (410 a.C.), ao qual Tucídides se refere como uma sábia 32 Cf. a Seção 4.3.1, em que se faz uma análise mais aprofundada a respei- to dessa aproximação feita por Xenofonte e das implicações desta nova concepção cultural na estrutura educacional persa descrita na obra. 42 EMERSON CERDAS mescla de oligarquia e democracia,33 seguiu-se a retoma- da do poder dos democratas mais radicais em 410 a.C.; e, por fim, o retorno da Oligarquia com o Governo dos Trinta (404 a.C.), sob o impulso do apoio espartano. Após alguns meses de terror, os democratas34 retomaram o poder. Porém, a democracia moderada, que se instaurou, cometeu em seu nome tantos excessos e horrores35 que não encontrou, nos principais intelectuais da época, defensor algum. Nesse am- biente, nada mais natural que autores, como Platão, Isócrates e Xenofonte, procurassem expor suas ideias a respeito do que seria o governo ideal e o meio de se alcançá-lo,36 posicionando- -se contra o regime democrático. O regime político dos persas descrito nos primeiros livros da Ciropedia tinha pouco a ver com a realidade histórica. Ao contrá- rio da esperada tirania, o governo persa na Ciropedia é formado como uma oligarquia moderada, ou seja, o poder que o monarca exerce é regulamentado por leis. Sua atuação está restrita às leis e à supervisão dos anciãos.37 A distinção entre a administração po- lítica da Pérsia e da Média aparece em Ciropedia, I, 3, 18, quan- do Mandane, mãe de Ciro, lhe diz: 33 Cf. Tucídides. História da Guerra do Peloponeso, VII. 97-98. Trad. Ma- rio da Gama Kury. Brasília: Ed. UnB, 1986. 34 A democracia restaurada, aparentemente, manteve-se em vigor até a invasão da Macedônia. Não significa isso que o período foi de total calmaria, mas sim de revolução das estruturas sociais. Cf. G. Glotz. A cidade grega, São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1980; C. Mossé. Atenas. A história de uma democracia, Brasília: Ed. UnB, 1970. 35 O mais famoso destes excessos é a condenação de Sócrates. Cf. O Julga- mento de Sócrates, de I. F. Stone. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005. 36 Também Platão apresenta em A República as suas reflexões sobre a política ideal, assim como Isócrates que no Panegírico versa sobre este tema. 37 Nas Memoráveis, IV, 6, 12, o Sócrates xenofonteano descreve esta forma de governo como a ideal. A CIROPEDIA DE XENOFONTE 43 [18] “Mas, filho, não são as mesmas coisas, aqui e na Pérsia, que são acordadas como justas. Pois, seu avô, de um lado, faz- -se déspota de todos na Média, de outro, na Pérsia, considera-se justiça possuir a igualdade. E o teu pai é o primeiro a fazer o que foi ordenado pela cidade e a aceitar o que foi ordenado, pois a medida dele é a lei, não a paixão. De modo que, portanto, não morras tu, sendo chicoteado, quando em casa estiveres, depois de chegares tendo apreendido da parte do avô a tirania, na qual há a crença de que é necessário possuir mais do que todos, e é, por isso, contrário à realeza.38 Assim, na Pérsia, o rei tem os mesmos direitos dos outros cidadãos, pois se considera justo “possuir a igualdade” (ison ekhein) e os mesmos deveres, pois “a medida dele é a lei, não a paixão”, ou seja, as ações do governante eram limitadas pelas leis. O governante regido pela ψυχή39 (psyche) é movido pelas suas paixões,40 distancia-se do caminho da justiça, pois, nessa constituição, é o próprio desejo do rei que é a lei. 38 No original: [18] ἀλλ᾽ οὐ ταὐτά, ἔφη, ὦ παῖ, παρὰ τῷ πάππῳ καὶ ἐν Πέρσαις δίκαια ὁμολογεῖται. οὗτος μὲν γὰρ τῶν ἐν Μήδοις πάντων ἑαυτὸν δεσπότην πεποίηκεν, ἐν Πέρσαις δὲ τὸ ἴσον ἔχειν δίκαιον νομίζεται. καὶ ὁ σὸς πρῶτος πατὴρ τὰ τεταγμένα μὲν ποιεῖ τῇ πόλει, τὰ τεταγμένα δὲ λαμβάνει, μέτρον δὲ αὐτῷ οὐχ ἡ ψυχὴ ἀλλ᾽ ὁ νόμος ἐστίν. ὅπως οὖν μὴ ἀπολῇ μαστιγούμενος, ἐπειδὰν οἴκοι ᾖς, ἂν παρὰ τούτου μαθὼν ἥκῃς ἀντὶ τοῦ βασιλικοῦ τὸ τυραννικόν, ἐν ᾧ ἐστι τὸ πλέον οἴεσθαι χρῆναι πάντων ἔχειν. (Ciropedia 1,3.18). 39 Segundo o dicionário A. Bailly, o termo ψυχή pode ser traduzido por “alma”, no sentido de espírito que dá vida aos seres. Porém, uma das acepções é a de “alma” como sede dos sentimentos, das paixões, desejos. 40 Além de Astíages, rei da Média, os outros reis, principalmente os ini- migos de Ciro, são apresentados na obra como déspotas, nesse sentido de governar segundo suas paixões. Essa é a característica dos homens desmedidos, ὑβριστής, e se constitui entre as principais características com que o Oriente é descrito pelo Ocidente (Said, 2008). 44 EMERSON CERDAS A figura idealizada de Ciro na Ciropedia é fruto da inovadora aproximação, feita por Xenofonte, da virtude (ἀρετή, arete) per- sa aos elementos da mais alta virtude grega, da καλοκαγαθία (kalokagathia), eliminando os aspectos negativos da cultura per- sa. Como afirma Jaeger (1995, p.1148): Embora transpareça constantemente em Xenofonte o or- gulho nacional e a fé na superioridade da cultura e do talento gregos, ele está muito longe de pensar que a verdadeira areté seja um dom dos deuses depositado no berço de qualquer burguezinho helênico. Na sua pintura dos melhores Persas ressalta por toda a parte o que nele despertou o seu trato com os representantes mais notáveis daquela nação: a impressão de que a autêntica kalokagathía constitui sempre, no mun- do inteiro, algo de muito raro, a flor suprema da forma e da cultura humanas, a qual só floresce de modo completo nas criaturas mais nobres de uma raça. O conceito de “homem grego”, no século IV a.C., amplia- -se para além dos muros da Hélade. Isócrates no Panegírico, 50, afirma que os povos que participam da paideia recebem o nome de gregos com maior propriedade do que os próprios gregos. Também não podia passar despercebido que “[...] a grandeza dos persas reside em terem sabido criar um escol de cultura e formação humana [...]” (Jaeger, 1995, p.1148). Xenofonte ensaia uma cultura globalizada na qual o melhor de cada povo acorreria para a formação do líder ideal.41 As qualidades do soberano ideal traçadas por Xenofonte trafe- 41 A ideia da intercomunicação de culturas perpassa, de algum modo, pela própria obra figurativizada na experiência da infância de Ciro em contato com a cultura dos medos. A despeito do efeito patético do luxo desmedido dos medos, Ciro aprende com eles ensinamentos valiosos, que o distinguirá dos persas que foram educados apenas na instituição A CIROPEDIA DE XENOFONTE 45 gam tanto pela helenofilia quanto pela areté persa: a piedade (εὐσέβεια, eusebeia), a justiça42 (δικαιοσύνε, dikaiosyne), o respeito (αἰδώς, aidos), a generosidade43 (εὐεργεσία, euer- gesia), a gentileza (πραότης, praotes), a obediência (πειθώ, peitho), e a continência (ενκράτεια, enkrateia). Segundo Collingwood (1981, p.45), no helenismo, os gregos observarão os bárbaros como detentores de uma cultura válida, da qual os gregos também podem apreender valiosos ensina- mentos. Para os gregos do século V a.C., em especial Heródoto, o bárbaro surgia apenas como contraste, como elemento valo- rativo da sua própria cultura. O bárbaro surgia pelo exotismo, não pela ἀρετή. Segundo Edward Said (2008), o orientalismo é um discurso estruturalmente formado e reforçado pelo e para o Ocidente sobre o Oriente, em que se constróem uma incisiva relação de poder de uma cultura sobre a outra. O Oriente, nesse sentido, é uma invenção do Ocidente, estigmatizado pelo exo- tismo e pela inferioridade, como lugar de episódios romanescos, seres exóticos, lembranças e paisagens encantadas e extraordi- nárias (Said, 2007, p.27). Concluímos que Xenofonte, em vista de expor as suas ideias a respeito do governo ideal, procurou associar elementos gregos e persas. A idelização de Ciro, portanto, é consequência e causa da ficcionalização da História. Com isso, Xenofonte negligen- ciou também a principal lei da História: a fidelidade à verdade. Como observa Fancan, um dos primeiros teóricos do romance europeu no século XVIII, educacional do Estado persa. Veremos, mais à frente, que a supremacia de Ciro é fruto da intercomunicação da cultura persa e meda. 42 A justiça é a principal meta da educação dos persas, em contraste com a educação ateniense, que se centrava na aprendizagem da γραμματική τέχνή. 43 A generosidade é apresentada na Ciropedia por meio de qualidades mais concretas: φιλανθροπία, φιλομαθία, φιλοτίμια. 46 EMERSON CERDAS concordo que louvem à vontade, entre outros, a Ciropedia de Xenofonte, por causa do proveito oriundo da sua leitura, con- tanto que confessem também que este autor lançou por escrito, não quem foi Ciro, mas o que Ciro deveria ser. (Fancan apud Candido, 1989, p.98). A Ciropedia na tradição da narrativa Já foi assinalada, anteriormente, a dificuldade dos críticos em classificar a Ciropedia quanto ao gênero. A dificuldade quanto ao enquadramento genérico da Ciropedia reside, principalmen- te, no fato de a obra tratar de um tema histórico (a vida de Ciro) com liberdade, manipulando ficcionalmente o material histórico conhecido. Nesta subseção, apontaremos como a Ciropedia se insere na tradição narrativa do Ocidente, buscando compreen- der as relações da obra com o gênero do romance. Neste percur- so, é inevitável e essencial refletir a respeito das questões entre ficção e história. Nossa preocupação é definir a Ciropedia como uma obra ficcional, em conformidade com Due (1989), Stadter (2010), Tatum (1989) e Gera (2003). Neste percurso de análise, serão conciliadas as reflexões sobre o romance propriamente dito, com a interpretação dos antigos a respeito dos seus próprios gêneros. Além disso, faz-se necessário alguns esclarecimentos a respeito da terminologia, para que não pareça uma enorme anacronia – e ingenuidade – chamar uma obra do século IV a.C. de romance. O conceito de romance e seu uso anacrônico Na Antiguidade, não havia uma terminologia específica para a prosa ficcional. Para Whitmarsh (2008, p.3), a ausência de um termo próprio para esse tipo de produção literária torna o uso anacrônico do termo romance (em inglês novel) necessário para A CIROPEDIA DE XENOFONTE 47 o estudioso. Todavia, acredita-se que, mais do que rotular a obra do passado, o uso anacrônico de um termo permite observar a pré-história do gênero, no caso do gênero do romance. As formas literárias passam por um intenso processo de formação, até que encontram o momento histórico propício para a sua formulação li- terária e estética caracterizadora. A épica homérica, por exemplo, é um momento posterior de um longo processo de tradição oral, que se desenvolveu até encontrar em Homero a sua mais perfeita realização. Nesse sentido, é necessário ter a consciência dos limites do uso da terminologia, estabelecendo as suas devidas ressalvas. O surgimento da palavra romance, no século XII, está ligado às literaturas de línguas românicas em oposição à literatura es- crita em latim (romanice loqui, latine loqui). Por conseguinte, o romance opõe-se àqueles gêneros discursivos que foram produ- zidos pela Antiguidade e que ainda eram aceitos como verdadei- ra literatura. Além disso, o termo implicava uma “modalidade de gênero narrativo ficcional, cuja intencionalidade básica seria o divertimento” (Brandão, 2005, p.25). Assim, o romance de- signa, desde o começo, uma forma de discurso literário nova, moderna em oposição aos gêneros da Antiguidade. Não havia, no entanto, distinção entre as narrativas em verso e em prosa, distinção esta que começa a surgir no século XV com os roman- ces de cavalaria em prosa, tomando o sentido moderno a partir do século XVII, com a publicação do Dom Quixote de Cervantes (Goff, 1972, p.164). Diante desse fato, “[...] alguns estudiosos consequentemente ainda hoje refutam chamar as prosas nar- rativas da Antiguidade como “romances” ou “novelas [...]”44 (Holzberg, 2003, p.11). Holzberg, entretanto, a despeito do anacronismo dos termos, mas mediante a semelhança entre as formas antigas e modernas, 44 No original: “Some scholars consequently still refuse now to talk of the prose narratives of antiquity as ‘romances’ or ‘novels’”. 48 EMERSON CERDAS acredita que devemos consentir com os anacronismos (Holzberg, 2003, p.11). Para o crítico, o real problema é discutir quais obras da Antiguidade podem ser chamadas de romance. O conceito de gênero deve ser legitimado nesse contexto, fixando critérios para a classificação dessas obras. O romance como gênero sério do cânone literário se afirma apenas com o desenvolvimento da sociedade burguesa, nos sé- culos XVIII e XIX. Para Georg Lukács, em seu artigo O romance como epopeia burguesa (1999, p.87), embora existam obras em muitos aspectos semelhantes aos romances na Antiguidade e na Idade Média, todas as contradições da sociedade burguesa encontram sua expressão nesse gênero, provocando mudanças tão sensíveis às formas narrativas que “[...] se pode aqui falar de uma forma artística substancialmente nova [...]”. No romance, o caráter poético da epopeia é substituído pelo caráter prosaico da modernidade. O caráter poético da epopeia é caracterizado, segundo Lukács – que retoma as concepções estéticas de Hegel – pela totalidade extensiva da vida, pois nela os desejos do herói e as ambições da sociedade encontram-se espontaneamente liga- dos (Lukács, 2009, p.55). Na sociedade moderna, ao contrário, o caráter prosaico é fruto da desagregação do indivíduo com a sociedade e o romance deve retratar a realidade prosaica e a luta do indivíduo contra esta mesma realidade (Lukács, 1999, p.91). Desse modo, apesar do romance “[...] apresentar todos os ele- mentos característicos da forma épica [...] [e aspirar] os mesmos fins a que aspira a epopeia antiga [...]” (1999, p.93), o produto romanesco é oposto daquele da epopeia, uma vez que as con- tradições sociais já referidas impedem a totalidade extensiva da vida, a conjunção harmônica entre o homem e o mundo que é ca- racterístico da epopeia. O destino do homem na epopeia está em conjunção com o destino da sociedade, os impulsos do indivíduo são os mesmos da sociedade. Bakhtin (2002, p.425) também considera que “um dos prin- cipais temas interiores do romance é justamente o tema da ina- A CIROPEDIA DE XENOFONTE 49 dequação de um homem ao seu destino ou sua posição [...]”, porém, essa desagregação é apenas um tema, fundamental e produtivo para seu desenvolvimento moderno, mas que não abarca todas as possibilidades romanescas. Para o teórico rus- so, ainda que o gênero se afirme com a sociedade burguesa, a “forma romanesca” surge muito antes, desenvolvendo-se em variados processos literários e culturais, até encontrar no ro- mance moderno a sua forma mais apropriada. Isso significa que o romance moderno é uma das formas mais produtivas da épi- ca, porém não a única, e sua formação e desenvolvimento são devedoras de diversas formas literárias. Em Epos e Romance, Bakhtin (1998, p.427) afirma que a principal diferença entre a epopeia e o romance está na distância entre o autor e o passado: enquanto a epopeia constrói uma distância épica entre o presen- te e o passado, que é absoluto e fechado, o romance se formou no processo de destruição da distância épica, representando tanto o passado quanto o presente como uma realidade inacabada. A partir dessa definição, Bakhtin não receia em chamar de roman- ce uma variedade muito ampla, tanto histórica como formal, de narrativas, inclusive a Ciropedia, cuja ficcionalização da história é, para Bakhtin, marca essencial do caráter romanesco da obra, pois destrói a distância entre o presente do autor e o passado do narrado. O passado é aproximado pelo presente inacabado com suas contradições e interesses, que deformam aquele passado. Desse modo, Bakhtin amplia o conceito de romance para além daquela especificidade lukacseana. Em A natureza da narrativa (1977), os estudiosos Scholes e Kellogg comentam que escrever sobre a tradição da narrativa no Ocidente é, de certa forma, escrever sobre a genealogia do ro- mance, já que tem sido este o gênero dominante na literatura do Ocidente nos últimos séculos. No entanto, eles observam que o conceito de narrativa que se centraliza no romance “[...] nos aparta da literatura narrativa do passado e da cultura do passado [...] [assim como] nos separa da literatura do futuro e mesmo da 50 EMERSON CERDAS vanguarda de nossos próprios dias [...]” (Scholes; Kellogg, 1977, p.5). Procurando, portanto, outra abordagem, Scholes e Kellogg não encaram o romance como um produto final das formas nar- rativas anteriores, mas como uma possibilidade narrativa que encontrou na Idade Moderna solo propício para se firmar e afir- mar. Assim, a definição de narrativa por eles proposta permite a generalização necessária para abarcar as mais variadas formas de narrativa: “Entendemos por narrativa todas as obras literárias marcadas por duas características: a presença de uma estória e de um contador de estórias [...]” (Scholes; Kellogg, 1977, p.1). Brandão (2005, p.33) acrescenta ainda uma terceira categoria, a do destinatário ou narratário. O romance é, antes de tudo, uma narrativa ficcional em pro- sa, uma das formas do epos que se divide (e se modifica) em uma grande quantidade de formas literárias. Ao se utilizar, portanto, a terminologia romance, tem-se em vista seu caráter formal míni- mo das narrativas e, principalmente, a aproximação do passado histórico por meio da ficção. A ficção em prosa na Grécia Na Antiguidade, segundo Holzberg, a ficção só se constrói como gênero autônomo, ou seja, desvinculado da historiografia e da filosofia, a partir do século II d.C. A datação destas narrativas é incerta, variando de crítico para crítico. Muito provavelmente, estas primeiras narrativas surgiram nos séculos I ou II a.C., e essa produção desenvolveu-se até o século IV d.C. Como gênero autônomo, sua principal finalidade, mas não a única, é a expressão estética, o lúdico. A narrativa em prosa, que antes estava vinculada à história e à filosofia, volta-se, nesse momento, também ao domínio da ficção (Brandão, 2005, p.30). Desse modo, o corpus do romance grego antigo é representado pelas obras: As Etiópicas de Heliodoro, Quéreas e Calírroe de Cáriton de Afrodísias, Leucipe e Clitofonte de Aquiles Tácio, A CIROPEDIA DE XENOFONTE 51 Dáfnis e Cloé de Longo e As Efesíacas de Xenofonte de Éfeso. Essas obras são denominadas “romances idealistas gregos” e apresentam uma estrutura em comum: a união do tema amoroso e do tema da viagem. Acrescenta-se a esse grupo os romances latinos Satyricon de Petrônio e O asno de ouro de Apuleio, que, além de parodiarem os temas de amor e de aventura do romance idealista, apresentam uma mordaz sátira da sociedade romana. Por esse caráter homogêneo de sua estrutura interna, Holzberg define estas obras como proper novels (romances de fato). Ao lado dos proper novels, Holzberg chama a atenção para os fringe novels, romances periféricos, obras de ficção em prosa que apresentam não só uma variedade temática muito mais ampla do que a dos proper novels, mas também uma aproximação com ou- tros gêneros (historiografia, filosofia etc.), o que mostra o caráter fronteiriço dessas obras. Nessas narrativas, a ficção se relaciona com algum objetivo didático ou informativo. Nesse conjunto, Holzberg arrola as mais variadas obras: a) biografia ficcional: Ciropedia de Xenofonte, Vida e Andanças de Alexandre da Ma- cedônia de Pseudo-Calístenes, Vida de Esopo (anônimo), Vida de Apolônio de Tiana de Filóstrato, Atos dos apóstolos apócrifos; b) autobiografia ficcional: Pseudo-Clemente; c) cartas ficcionais: Cartas de Ésquines, Cartas de Quión, Cartas de Eurípides, Cartas de Hipócrates, Cartas de Platão, Cartas de Sócrates e dos socráti- cos e Cartas de Temístocles. Além dessa diferença temática, os proper novels narram a história de personagens completamente inventadas (nem míti- cas, nem históricas), com particular ênfase nos aspectos eróti- cos – amor ideal dos jovens, sua separação e os obstáculos para o reencontro (Whitmarsh, 2008, p.3) – ao contrário dos fringe novels que ficcionalizam um dado material histórico. A mais an- tiga manifestação de um fringe novel é Ciropedia de Xenofonte, escrita por volta de 360 a.C. A relação da Ciropedia com o romance ideal grego, os proper novels, pode ser demonstrada por algumas razões: primeira- 52 EMERSON CERDAS mente, os mais antigos romancistas gregos estabeleceram uma conexão mais ou menos explícita com Xenofonte. Cáriton co- nhecia e imitou certas partes da Ciropedia, enquanto o nome Xenofonte serviu como pseudônimo para alguns dos roman- cistas (Tatum, 1994, p.15). Em segundo lugar, pela presença da narrativa secundária de Panteia e Abradatas na tessitura narrativa da Ciropedia. Essa narrativa secundária apresenta os principais elementos do tema amoroso do romance idealis- ta grego: o amor puro dos protagonistas, que são personagens completamente ficcionais; a separação dos namorados, a fide- lidade, que é constantemente posta à prova e, por fim, o reen- contro dos apaixonados. No entanto, uma vez que a estrutura da Ciropedia não se resume a estrutura dos ἐρότικοι λόγοι (erotikoi logoi), mas abrange outras estruturas narrativas, há dificuldade por parte dos críticos (Brandão, 2005; Gual, 1988) em aceitá-la como um romance propriamente dito. Para Jacyntho Lins Brandão, há em Heródoto e Xenofonte, assim como também nos historiadores helenistas, “[...] trechos claramente romanceados, envoltos, en- tretanto, num enquadramento histórico [...]” (2005, p.165). O enquadramento histórico, a que se refere Brandão (2005), con- cede ao texto uma finalidade diferente da finalidade do texto ro- manesco, pois determina que o objetivo da narrativa não seja o prazeroso e o agradável, mas sim o útil.45 O útil se alcança apenas com a verdade. Nessa perspectiva, os elementos romanescos em Xenofonte seriam traços estilísticos, aqui e ali revisitados, que embelezam o discurso, mas não o determinam. Porém, a clara idealização da personagem Ciro revela que o autor tinha outros propósitos além do da verdade histórica e sua utilidade do ponto de vista histórico, e que esta, em ver- 45 Cf. Luciano de Samóstata. Como se deve escrever a história. Belo Hori- zonte: Tessitura, 2009. A CIROPEDIA DE XENOFONTE 53 dade, não determina o estatuto da obra, porém está a serviço, como estratégia discursiva, do propósito ficcional da narrativa. O Capítulo 3 mostrará a discussão a respeito de como a idea- lização com que Ciro é apresentado está intimamente ligada a processos de ficcionalização do material histórico. O Ciro pintado por Xenofonte está mais próximo do herói de uma gesta heroica do que de uma personagem real (Gera, 1993; Christensen, 1957), isso em virtude dos elementos idealizantes da narrativa. A Ciropedia, portanto, apresenta tanto características românticas quanto idealistas, antecipando o caráter essencial da temática do romance grego. Penso que a escolha de um tema his- tórico por parte de Xenofonte está intimamente ligada ao estatuto da ficção no século V e IV a.C. Quando Xenofonte escreve suas obras, a ficção não é tema das narrativas em prosa, mas da poesia, seja dramática, seja lírica (D’Onofrio, 1976; Bowersock, 1994). A ficção estabelece o reino do ψεῦδος (pseudos), mentira, que, unida a verossimilhança, cria o efeito de verdade, ἀληθήα (alethea). Os historiadores do século V procuraram dissociar-se dos gêneros poéticos, depurando pelo λόγος (lógos) o passado histórico. Desse modo, o discurso em prosa é um discurso que se pretende verdadeiro. No entanto, por exemplo, nas Histórias de Heródoto há prazerosas narrativas, que deveriam, em seu público de ouvintes, repercutir como belas histórias inventadas, iguais às aventuras que Odisseu narrava aos feácios. Entretanto, Heródoto reserva o maravilhoso àquilo que não pode ser com- provado pela visão e pela investigação (ἱστορίη, historie). A eti- mologia da palavra ἱστορίη relaciona-se com o vocábulo ἵστωρ (histor), aquele que viu algo, a testemunha. Portanto, a ficção na historiografia de Heródoto faz parte do incerto, uma mentira que se assume como não comprovável por testemunhas. Para pensar no estatuto ficcional dos gêneros literários, não se deve esquecer de um gênero que se desenvolveu no século V e que, mesmo em prosa, procurava assumir as qualidades dos textos poé- ticos: o discurso epidítico. Segundo Roland Barthes (1975, p.149), 54 EMERSON CERDAS Górgias, ao compor seu Elogio de Helena, estabelece à prosa o di- reito de ser não apenas útil, mas também agradável. O gênero epi- dítico (para os romanos, encomiástico) marca o aparecimento de uma prosa decorativa, com finalidade estética. O desenvolvimento desse gênero epidítico estimulou a cria- ção de um tipo de narrativa em prosa, cujo tema é o elogio de uma personagem histórica e ilustre: a biografia.46 As primeiras obras que surgiram com esse tema são o Evágoras de Isócrates47 e o Agesilau de Xenofonte. Além de narrarem a vida de uma per- sonagem ilustre e real, as biografias apresentam também um ca- ráter didático, pois os homens ilustres escolhidos devem servir de modelo para os leitores (Carino, 1999). O gênero biográfico, portanto, une à utilidade didática a preocupação estética, pois se origina do gênero epidítico. Precisamos, agora, relacionar o gênero biográfico à ficção. O tema da biografia, como o da historiografia, é um tema da história, do passado. No entanto, como são gêneros diferentes, a forma e o sentido destes gêneros são construídos e se dirigem a públicos diferentes. Como nos lembra Linda Hutcheon (1991, p.122), “[...] o sentido e a forma não estão nos acontecimentos, mas nos sistemas que transformam esses ‘acontecimentos’ passa- dos em ‘fatos’ históricos presentes [...]”. Momigliano, em seu li- vro The development of the ancient biography (1993, p.55) afirma 46 O termo biografia aparece, pela primeira vez, na Vida de Alexandre de Plutarco, no século II. Segundo Momigliano (1993), as formas biográ- ficas anteriores a Plutarco são denominadas pelos antigos como gênero epidítico ou encômio. Nesse trabalho, trataremos todas as obras com caráter biográfico, sejam posteriores, sejam anteriores a Plutarco, como biografia. 47 No Evágoras, Isócrates afirma que o objetivo de sua obra é encomiar com palavras a virtude de um homem, e que nenhum autor já escrevera sobre este tema. Além disso, nos parágros 8-12, Isócrates procura asse- guar ao orador do encômio os mesmos recursos estilísticos dos poetas, para que, dessa forma, o discurso seja reconhecido pelas suas qualida- des estéticas. A CIROPEDIA DE XENOFONTE 55 que a biografia adquiriu um novo significado quando, no século IV a.C., os biógrafos ligados a Sócrates trafegavam com liber- dade os limites entre verdade e ficção. A biografia era direcio- nada para capturar as potencialidades tanto quanto a realidade da vida individual. A fronteira entre ficção e realidade foi mais diluída na biografia do que na historiografia, e a expectativa do leitor para cada um dos gêneros deveria ser diferente. Assim, o que os leitores esperavam da biografia era diferente do que espe- ravam das histórias políticas. Enquanto a historiografia tratava de temas políticos e militares, pois estes eram os feitos grandio- sos dos homens, os biógrafos tratavam da vida particular dos ho- mens ilustres. O público da biografia queria informação sobre a educação, os casos de amor e o caráter de seus heróis. Mas essas informações são menos fáceis de serem documentadas do que guerras e reformas políticas e, se os biógrafos quisessem man- ter seu público, eles deveriam se utilizar da ficção (Momigliano, 1993, p.57). Tomemos o testemunho de Políbio. Em suas Histórias 10.21, Políbio afirma que escreveu sobre Filopoimen48 uma obra em três livros, na qual revela a natureza dessa personagem, de qual descendência provinha e qual a natureza da sua educação, além de seus feitos mais famosos. Porém, em Histórias, que é uma obra historiográfica, “[...] é adequado (πρέπον, prepon) subtrair (ἀφελεῖν, aphelein) toda quota sobre a sua formação juvenil [...] para que o que é característico de cada uma das composições seja respeitado [...]”. Além dessa constatação temática, Políbio ainda acrescenta que em sua obra anterior, escrita em forma encomiás- tica (ἐγκωμιαστικός, enkomiastikos), impunha (ἀπῄτει, apei- tei) uma narração (ἀπολογισμόν, apologismon) sumária (τὸν κεφαλαιώδη, kefalaiode) e exagerada (amplificação) dos fatos 48 Filopoimen (253-183) foi general e político grego, que ocupou o cargo de estratego da Liga Aqueia em oito ocasiões. Em 183, foi aprosionado em uma expedição à Messênia e obrigado a beber cicuta. 56 EMERSON CERDAS (μετ’ αὐξήσεως τῶν πράξεων, met’ aukseseos ton prakseon), enquanto que na obra presente, que é uma história (ἱστορίας, historias), os elogios e as censuras (ἐπαίνου καὶ ψόγου, epai- nou kai psogou) são distribuídos imparcialmente, visando à ver- dade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ, dzetei ton alethe). Políbio distingue conscientemente o encômio da história pelo critério de verdade dos fatos; enquanto a História deve sempre objetivar a verdade, pois é esta que garante a utilidade da História, ao encômio é permitido amplificar os fatos, exa- gerá-los ou inventá-los, desde que estes revelem o caráter do homem biografado. O interesse do historiador é a verdade dos fatos, o do encomiásta é o caráter do homem. Para alcançar este objetivo, o biógrafo se utiliza de diversos modos de ficcionali- zar este passado. Desse modo, compreendemos que no gênero biográfico há um importante desenvolvimento ficcional da nar- rativa em prosa na Grécia, que não deve ser menosprezado pelo crítico literário. A biografia, em virtude de sua origem epidítica, estava mais preocupada com valores estéticos e didáticos do que com a utilidade da verdade. O tema da Ciropedia não é a história dos povos, como as obras de Heródoto e de Tucídides, mas a vida de um homem ilustre, Ciro. Afasta-se, deste modo, dos temas historiográficos e se aproxima dos temas da biografia. No proêmio da Ciropedia, o narrador afirma que, [6] em vista de esse homem ser merecedor de admiração, nós exa- minamos de qual família era, qual natureza possuía e em que tipo de educação foi instruído, a tal ponto que se distinguiu no governar os homens. Portanto, o quanto nós averiguamos e o quanto julgamos ter compreendido sobre ele, tentaremos discorrer.49 (Cirop 1.1, 6) 49 Nas referências à obra Ciropedia, passaremos a fazer a abreviação Ci- rop. No original: [6] ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδρα ἐσκεψάμεθα τίς ποτ’ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν A CIROPEDIA DE XENOFONTE 57 O tema da Ciropedia, portanto, é a vida (βίος, bios) de Ciro, o homem (ἀνδρα, andra) que foi digno da admiração do narra- dor. O narrador divide seu material em três temas principais: a ge- nealogia, γένεαν (génean), a natureza, φύσιν (phýsin) e a edu- cação, παιδεία (paideia). Segundo Menandro Rétor (1996), em seu segundo tratado sobre o gênero epidítico, γένεαν. φύσιν e παιδέια são tópoi do gênero epidítico. Portanto, o narrador da Ci- ropedia já assinala aos leitores que eles devem esperar da narrativa não dados históricos precisos, mas a narrativa da vida particular da personagem e que esta revelará o verdadeiro caráter do herói. Modos de Imitação da Ciropedia A combinação de ficção e história, entretanto, não é exclusi- vidade dessa obra, mas, segundo Momigliano, é própria do gê- nero da biografia antiga e, portanto, deve ser entendida como um fator de novidade na literatura do século IV a.C. A meu ver, a novidade apresentada pela Ciropedia está em aliar esta temática da biografia ao modo de imitação executado na narrativa,50 pois o modo de imitação da Ciropedia difere do modelo apresentado pelas biografias anteriores. Para compreender essa afirmação, é preciso pensar nas obras Agesilau de Xenofonte e Evágoras de Isócrates. Estas são bio- τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶς παιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων. ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ, ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι. 50 A terminologia aqui adotada é a que Platão apresenta na República (III, 392 d): “Acaso tudo quanto dizem os prosadores e poetas não é uma narrativa de acontecimentos passados, presentes ou futuros? [...] Porventura eles não a executam por meio de simples narrativa [ἁπλῇ διήγήσει], através da mímese [διὰ μιμήσεως], ou por meio de ambas [δι’ ἀμφοτέρων περαίνουσιν]”. Tradução de Maria Helena da Ro- cha Pereira (1980). 58 EMERSON CERDAS grafias cujo modo de imitação é executado por uma narração simples (ἁπλή διήγησις, aple diegesis), ou seja, o narrador (ἀπαγγέλλον,51 apangellon) fala sempre por si mesmo, sem mimetizar outros locutores no discurso direto. Desse modo, o narrador está explícito por todo o discurso, mediando e distan- ciando o narrador do leitor. Esse tipo de biografia, moderna- mente, é chamado de “biografia analítica”, “[...] do tipo ensaís- tico, interpretativo e não forçosamente factualista [...]” (Reis, 2000, p.48). A Ciropedia, entretanto, desenvolve-se como uma narrativa mista, executada ora por meio da narração (διὰ διηγήσεως, dia diegeseos) ora por meio da imitação (διὰ μιμήσεως, dia mimeseos). Assim, ao contrário do que ocorre nas outras bio- grafias, o narrador da Ciropedia, além de mediar o discurso, também mimetiza outros locutores por meio de discurso di- reto. O resultado desse procedimento é uma sorte de narrati- va “dramatizada”,52 no sentido de que, por meio de cenas,53 o narrador desaparece parcialmente da cena do discurso. Parcial- mente, pois, o narrador controla a organização dessas locuções, desenrolando ou condensando a cena. É a biografia narrativa, 51 O termo ἀπαγγέλλον, particípio do verbo ἀπαγγέλειν, é usado por Aristóteles na Poética 1448 a. Para Brandão (2005, p.46-48) esse termo está ligado à função do mensageiro, ἄγγελος, das tragédias. Os men- sageiros são introduzidos em cena para narrar as ações ocorridas fora de cena. Assim, a função do narrador é comunicar “situações, falas, objetos distanciados do recebedor no tempo e no espaço” (Brandão, p.48). 52 O sentido de dramatizada aqui usado é o mesmo da mimese em oposi- ção à diegése, ou seja, o narrador reproduz, por meio do discurso direto, as falas das personangens, e, desse modo, aproximando-se do tipo de re- presentação teatral. Na terminologia estabelecida por Lubbock (1939), esse tipo de representação da narrativa é chamada de showing. 53 Segundo Reis (2000, p.53), “[...] a instauração da cena traduz-se, antes de mais, na reprodução do discurso das personagens [...] que natural- mente implica que o narrador desapareça total ou parcialmente da cena do discurso”. A CIROPEDIA DE XENOFONTE 59 “[...] centrada na dinâmica da história de uma vida, recorren- do de forma, mais ou menos acentuada, as estratégias de índole narrativa”. (Reis, 2000, p.48). Isso significa que, pelo modo de imitação, a Ciropedia se asse- melha ao gênero épico, pois esse gênero também apresenta uma narrativa mista, tanto narrada quanto mimetizada, e se afasta do gênero biográfico cujo modo de imitação é executado por uma narração simples. Por isso, a obra é singular, pois, dentre as obras biográficas, a Ciropedia foi a primeira a trazer essa sorte de imitação mista.54 O gênero historiográfico também é um gênero misto. No en- tanto, diferencia-se do gênero épico e do biográfico porque seu discurso pretende ser a narração do verdadeiro, isto é, narrar as ações que realmente aconteceram, não as que poderiam aconte- cer. O gênero biográfico, no entanto, como dito anteriormente, incrementa os dados históricos com informações ficcionais da vida particular do homem ilustre. Assim, a Ciropedia é uma nar- rativa mista de eventos que aconteceram, mas principalmente de eventos da vida particular que poderiam ter acontecido. Portanto, pode-se dizer que a Ciropedia é uma obra épica de ficção em prosa. Desse modo, acredita-se que se revela a verdadeira inova- ção da Ciropedia com relação ao romance antigo e ao moderno. Nesta perspectiva, a obra se torna profundamente importante na tradição da narrativa. Além disso, o modo de imitação da Ciropedia, ou seja, com um narrador executando uma narrativa mista, propicia a absorção de outros gêneros literários dentro da estrutura diegética. Isso porque a mimetização de locutores dentro da narrativa fornece a oportunidade para que as personagens dis- cursem, dialoguem ou mesmo narrem narrativas secundárias. 54 As outras biografias romanceadas ou ficcionais da Antiguidade, poste- riores à Ciropedia, também apresentam esse caráter de imitação mista. 60 EMERSON CERDAS Desse modo, o narrador conduz a narrativa introduzindo os entrechos, porém logo introduzindo outras personagens cuja locução será mimetizada.55 Retomando, e concluindo o primeiro capítulo, a Ciropedia é uma narrativa biográfica e, desse modo, procura incrementar os dados históricos com a narração da vida particular do homem ilustre que é objeto da biografia. Luciano Cânfora (2004) aponta a erupção da vida privada dentro da narrativa histórica como a principal inovação da narrativa clássica para o desenvolvimento do romance grego idealista. Além disso, o modo de imitação da Ciropedia é o de uma narrativa mista, pois o narrador mimetiza na diegese a locução de outras personagens, ou seja, o narrador dá voz às personagens. A mimetização de outros locutores propi- cia a absorção de outros gêneros literários, pois fornece a oportu- nidade para as personagens discursarem, dialogarem e narrarem pequenas narrativas. Assim, a Ciropedia tanto efetua a síntese de elementos ficcionais e históricos quanto absorve gêneros literá- rios dentro da narrativa, estabelecendo-se como uma verdadeira forma romanesca, inovadora, na pré-história do romance. 55 Brandão (2005) intrepreta o sentido de mimetizar como “imitação de diferentes locutores”. A interpretação baseia-se na formulação de Aris- tóteles, na Poética (1460 a), quando Aristóteles elogia Homero como o melhor dos mimetai, pois o próprio narrador interfere pouco na narra- ção, preferindo mimetizar a locução de outros personagens. 2 reescrevendo o pAssAdo: ficcionAlizAndo A HistóriA Como o romance, a História seleciona, simplifica, organiza, faz com que um século caiba numa página, e essa síntese da nar- rativa é tão espontânea quanto a da nossa memória [...] Paul Veyne, 1982, p.11-12 Por sua forma narrativa, pelos conflitos personalizados de suas personagens, o romance está junto não só da prosa diária, quanto da forma narrativa privilegiada desde fins do século XVIII: a forma da História. Luíz Costa Lima, 1984, p.11 Neste capítulo, será analisada a relação de intertextuali- dade existente entre a narrativa de Xenofonte e a obra Histó- rias de Heródoto, uma vez que o tema da Ciropedia, a vida de Ciro, já fora abordado antes na obra de Heródoto. Além de Heródoto, também Ctésias de Cnido e Antístenes abordaram a vida de Ciro, porém apenas a obra de Heródoto nos chegou 62 EMERSON CERDAS in extenso. É, portanto, a única fonte histórica disponível para informar o que era considerado dado histórico sobre o tema na época de Xenofonte. Assim, considera-se que a compara- ção entre as narrativas, tanto do conteúdo quanto dos aspectos formais, faz-se necessária para uma melhor compreensão da obra xenofonteana. A análise será feita a partir da retomada dos conceitos de inter- textualidade e imitação, além de pensar na relação entre História e ficção. O objetivo é demonstrar como Xenofonte cria sua ficção idealizada a partir dos dados históricos. Isso significa que a ficção se mescla ao texto histórico e com ele se confunde. Por meio des- ta estratégia, o leitor é convencido da verdade dos fatos narrados pela obra ficcional. Para isso, antes da análise comparativa pro- priamente dita, traremos alguma discussão que vise à aproxima- ção entre história e literatura, para que essas duas produções do pensamento humano não sejam vistas como dissociadas. História e Literatura O passado existe no tempo e antes de ser tomado pela lin- guagem; mas o passado só se torna fato histórico por meio da linguagem. Assim, o discurso recupera e reconstrói os aconteci- mentos passados para lhes dar um sentido e uma forma, estando o sentido e a forma, conforme Linda Hutcheon (1991, p.122), não nos “acontecimentos em si”, mas na linguagem que os re- cuperou. Entretanto, cada gênero (história, romance, teatro etc.) apresenta as suas próprias características linguísticas e discursi- vas, o que significa que o passado será representado de um modo específico de acordo com o gênero que o reconstrua. É neces- sário observar como cada gênero recupera o passado, tanto nos aspectos formais quanto nos aspectos discursivos, sabendo que o mesmo passado tende a se reconstruir diferentemente, de acordo com as características de cada gênero. A CIROPEDIA DE XENOFONTE 63 Todos os romancistas gregos mantêm uma importante relação com a historiografia, seja construindo a narrativa em uma época historicamente importante, seja se utilizando de recursos linguísti- cos e estilísticos dos historiadores (Morgan; Harrison, 2008, p.220). No entanto, o romance grego só se desenvolve plenamen- te entre o primeiro século a.C. e o quarto século d.C. Porém, em suas primeiras manifestações, a ficção em prosa ainda esta- va intrinsecamente relacionada com a história, ou melhor, com os acontecimentos históricos. A história, com efeito, é um dos elementos base na organização da ficção (Rémy, 1972, p.157). Desse modo, deve-se, para melhor compreender as primeiras manifestações da ficção em prosa na Grécia Clássica, observar que relação os gêneros mantinham com o passado que, nesse tempo pré-romance, floresciam na Antiguidade. Nos séculos V e IV a.C., a historiografia e a biografia concorriam como gêneros que representavam o passado. Sobre a historiografia, pode-se dizer que o sentido etimoló- gico da palavra história, ἱστορίη (historie), tal qual Heródoto o emprega pela primeira vez, significa inquérito ou pesquisa e a obra do historiador, dessa forma, é a “exposição da pesquisa” (ἀπόδεξις ἰστορίης, apodeksis historíes) (Histórias, I, 1). Por conseguinte, o historiador deve, por meio da pesquisa, separar dos fatos passados o que é verdade e o que é fantasia. Os temas principais da historiografia grega eram os fatos políticos e mi- litares dos poderosos Estados (Rahn, 1971, p.498), para que os grandes feitos dos homens não fossem esquecidos (ἐξίτηλα γένηται, eksitela genetai). Dessa forma, tanto com Heródoto quanto com Tucídides, o historiador “[...] colocava-se como testemunha e como registrador de mudanças [...] que, em sua opinião, eram importantes o bastante para serem transmitidas à posteridade”. (Momigliano, 1998, p.187). Quanto à biografia, esse gênero surgiu como forma de elogio de um indivíduo, em conexão com o gênero retórico epidítico, ou encômio. O epidítico (ἐπιδεικτικόν, epideiktikon), ao lado do 64 EMERSON CERDAS deliberativo (συμβουλευτικόν, sumbouleutikon) e do judiciário (δικανι