PÓS-FORMANCE A DESCONSTRUÇÃO DA CONDIÇÃO DE PRESENÇA NA PERFORMANCE ANDRÉS FELIPE RESTREPO SUÁREZ Tese Doutoral 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES CAMPUS SÃO PAULO ANDRÉS FELIPE RESTREPO SUÁREZ PÓS-FORMANCE: A DESCONSTRUÇÃO DA CONDIÇÃO DE PRESENÇA NA PERFORMANCE SÃO PAULO 2024 3 ANDRÉS FELIPE RESTREPO SUÁREZ PÓS-FORMANCE: A DESCONSTRUÇÃO DA CONDIÇÃO DE PRESENÇA NA PERFORMANCE Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes Visuais, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito para obtenção do título de doutor em Artes Visuais. Area de concentração: processos e procedimentos artísticos Orientadora Prof.ª Drª: Rosangela da Silva Leote. SÃO PAULO 2024 4 5 FOLHA DE APROVAÇÃO ANDRÉS FELIPE RESTREPO SUÁREZ PÓS-FORMANCE: A DESCONSTRUÇÃO DA CONDIÇÃO DE PRESENÇA NA PERFORMANCE Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes Visuais, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito para obtenção do título de doutor em Artes Visuais. São Paulo, 24 de Junho 2024 6 Por el cuerpo y su presencia Por la memoria, la marca de vida Por su sonrisa y su mirada que ya no esperan A mi madre, que hoy es voz y escritura 7 AGRADECIMENTOS Confesso que esta tese não é só minha. É a junção de grandes mulheres, as quais admiro e respeito profundamente, que com paciência, sabedoria e muito esforço sempre estiveram presentes, acreditando e me aconselhando no percurso da pesquisa. Por elas e para elas, esta pesquisa é nossa: Começo por Estefa, que além de ter me dado o dom de ser seu companheiro de vida, tem sido minha mestre. Às minhas irmãs, Ana e Sandra, pelo tempo, pela espera, pela presença; em suma, ao matriarcado que me ensinou a ser quem sou; a todas elas, gratidão por absolutamente tudo. Aos meus orientadores, Agnus Valente (in memoriam) e Rosângela, por acreditarem nas minhas ideias. À primeira banca, Rita e Helena, que generosamente homologaram minha dissertação de mestrado para doutorado; e também a Juan e Lúcio, que aceitaram ser parte desta pesquisa. A cada uma das mulheres que compartilharam comigo suas críticas, suas referências, seus modos de vida, suas visões, seus sonhos, suas teorias, seus livros, seus artigos; a todas elas obrigado pelo tempo. Por fim, ao IA da UNESP, por fornecer os ambientes necessários, assim como o pessoal mais capacitado em cada uma das suas áreas, que de forma direta ou indireta influenciaram a realização desta tese. Assim como à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), por apoiar e financiar inicialmente a pesquisa de mestrado e, posteriormente, esta tese doutoral - Código de Financiamento 001. 8 Esta tese começou com uma aparição: o surto que me provocou conhecer a ação Action Pants: Genital Panic (1969). Depois disso, tive que reconsiderar minha condição de performer. Naquela obra, a artista VALIE EXPORT fez uso da produção e simulação da ação, conseguindo por mais de meio século a inserção no sistema da arte como uma performance tradicional. O paradoxo instaurado é o seguinte: soube-se em 2004 que a ação de fato nunca foi executada, mas que existe, sim, enquanto arquivo histórico, enquanto prova do acontecimento. Mesmo assim, a ação tem sido validada e legitimada no sistema da arte, ocupando um lugar privilegiado na história da performance ocidental. Esse processo me fez refletir e identificar uma forma divergente em relação à tradicional, em que se produzem as ações, em que a performance deixa de ser uma execução presencial, física e corpórea do performer para se tornar um dispositivo performativo e histórico. A urgência de compreender essa nova forma de inserir uma ação nas artes aproximou- me dos métodos, das estratégias e dos contextos de produção. São esses os fundamentos desta pesquisa, assim como os primórdios da idealização da pós- formance. 9 RESUMO Esta tese de doutorado tem por escopo de pesquisa a construção e a defesa do conceito pós- formance, uma nova vertente das artes visuais que diverge da performance tradicional. Pleiteia-se, no reconhecimento da pós-formance, a necessidade de categorizar certos tipos de ações que apresentam uma execução simulada e, mesmo assim, com o passar das décadas, têm conseguido se solidificar até obter uma equivalência ao princípio de procedência arquivístico da performance. Embora sejam ações que de fato nunca foram executadas, têm obtido legitimidade, validação, comercialização e inserção pelo próprio sistema da arte, alcançando lugares privilegiados na performance ocidental. Identifica-se na pós-formance a desconstrução da condição de presença, pois assume-se que, para a criação de uma ação de teor artístico, já não é necessária a fisicalidade dos corpos, a execução efetiva da ação e tão pouco a construção temporal, condições estas que antes eram inalienáveis na performance. Partindo dessa premissa, é possível pensar na pós-formance como uma nova vertente das artes de ação que vai além do corpo humano, além da presentidade do performer e, inclusive, além da execução da ação. Para a confirmação dessa hipótese, tomam-se como casos principais de estudo as obras: Action Pants: Genital Panic (1969), de VALIE EXPORT, 2. Aktion Sommer (1965), de Rudolf Schwarzkogler, Leap into the Void (1960), de Yves Klein, Para inducir al espíritu de imagen (1978), de Oscar Masotta, e Fantasia de Compensação (2004), de Rodrigo Braga, dentre outras. O período de pesquisa restringe-se ao pós-modernismo, contexto social marcado por três mudanças principais para esta tese: a desmistificação da presença física do corpo humano; o giro linguístico, que transformou o discurso em ação; a massificação dos meios de comunicação, que promoveram a virtualização, a edição e os apagamentos dos arquivos e dos acontecimentos. A defesa do conceito pós-formance sustenta-se principalmente na filosofia pós-estruturalista, especialmente no postulado por Jacques Derrida, conhecido por refletir sobre a condição de presença. Os eixos centrais da investigação abordam os conceitos de acontecimento, atos de fala performativos, desconstrução da presença, différance, efeito do hiper-real, escritura, espectralidade, "presença-ausência", mal de arquivo e simulação. Palavras-chaves: corpo, desconstrução, documentação, efeito do hiper-real, performance, presença, pós-formance. 10 RESUMEN Esta tesis doctoral propone como objetivo de investigación la construcción y defensa del concepto pós-formance, una nueva vertiente de las artes visuales divergente de la performance tradicional. Se pleitea en el reconocimiento de la pós-formance, la necesidad de categorizar cierto tipo de acciones que presentan una ejecución simulada, y aun así, con el pasar de las décadas han logrado solidificarse hasta obtener una equivalencia con el principio de procedencia archivística de la performance. Aunque son acciones que de hecho nunca fueron ejecutadas, han obtenido legitimidad, validación, comercialización e inserción por el propio sistema del arte, alcanzando lugares privilegiados en la performance occidental. Se identifica en la pós-formance la deconstrucción de la condición de presencia, pues se asume que, para la creación de una acción de carácter artística ya no resulta necesario la fisicalidad de los cuerpos, la ejecución efectiva de la acción ni tampoco la construcción temporal, condiciones que antes eran inalienables en la performance. Partiendo de esa premisa, es posible pensar en la pós-formance como una nueva vertiente de las artes de acción que va más allá del cuerpo humano, más allá de la presentidade del performer e, inclusive, más allá de la ejecución de la acción. Para la confirmación de esa hipótesis, se toman como principales casos de estudio las obras: Action Pants: Genital Panic (1969), de VALIE EXPORT, 2. Aktion Sommer (1965), de Rudolf Schwarzkogler, Leap into the Void (1960), de Yves Klein, Para inducir al espíritu de imagen (1978), de Oscar Masotta, y Fantasia de Compensação (2004), de Rodrigo Braga, entre otras. El periodo de investigación se restringe al posmodernismo, contexto social marcado por tres mudanzas principales para esta tesis: la desmitificación de la presencia física del cuerpo humano; el giro lingüístico que transformó el discurso en acción; y la masificación de los medios de comunicación que promovieron la virtualización, edición y supresión de los archivos y los acontecimientos. La defensa del concepto pós-formance se sustenta en ideas principalmente de la filosofía posestructuralista, especialmente en los postulados de Jacques Derrida, conocido por reflexionar sobre la condición de presencia. Los ejes centrales de esta investigación incluyen conceptos como, acontecimiento, actos de habla performativos, deconstrucción, différance, efecto hiperreal, escritura, espectralidad, "presenciaausencia", mal de archivo y simulación. Palabras claves: cuerpo, deconstrucción, documentación, efecto hiperreal, performance, presencia, pós-formance. 11 LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURAS Figura 1 - Figura 2 - Figura 3 - Figura 4 - Figura 5 - Figura 6 - Figura 7 - Figura 8 - Figura 9 - Figura 10 - Figura 11 - Figura 12 - Figura 13 - Figura 14 - Figura 15 - Figura 16 - Figura 17 - Figura 18 - Figura 19 - Figura 20 - Figura 21 - Figura 22 - Figura 23 - Figura 24 - Figura 25 - Figura 26 - Figura 27 - Figura 28 - Figura 29 - Figura 30 - Figura 31 - Figura 32 - Figura 33 - Figura 34 - Figura 35 - Figura 36 - Figura 37 - Figura 38 - Figura 39 - Figura 40 - Figura 41 - Figura 42 - Figura 43 - Figura 44 - Figura 45 - Figura 46 - Figura 47 - Tríade Pós-formance | Andrés Suárez Da performance à pós-formance | Andrés Suárez …………………………… Repartición | Andrés Suárez Performance ou saraus (1909) | Andrés Suárez.…………………………….... Icono | Andrés Suárez Nomia | Andrés Suárez.………………………………………………………... Triadic Ballet | Bauhaus Fluid | Allan Kaprow ………………………………………………………….. Re-enactment fluid | Neue National galerie de Berlim Planos ação fluid | Allan Kaprow ……………………………………………... Unititled 479 | Cindy Sherman I´m too sad to tell you | Bas Jan Ader ..………………………………………... Marca registrada | Letícia Parente My steps | Stanley Brouwn ……………………………………………………. O Spiral Jetty e Reichstag envuelto | R. Smithson, Cristo & J. Claude 3 Aktion | Rudolf Schwarzkogler …………………………………………….. Paralelo performance | Andrés Suárez Imagens de ângulos fechados e sem contexto | CNN ...................................... Imagens de câmeras de visão noturna em Baghdad | CNN Dispositivo letológico | Andrés Suárez ................................................................ Tríade estrutural: pós-formance | Andrés Suárez Tríade aproximação aos atos de fala performativos | Andrés Suárez ………. Uma e três cadeiras | Joseph Kosuth Le Vide | Yves Klein …………………………………………………………..... Leap into the Void | Yves Klein Bottom half of Yves Klein’s Leap into the Void | Yves Klein …………….….... Antropometria | Yves Klein 2 Aktion Sommer | Rudolf Schwarzkogler ……………………………………... 2 Aktion Sommer II | Rudolf Schwarzkogler VALIE EXPORT | VALIE EXPORT …………………………………………. Action Pants: Genital Panic | VALIE EXPORT Action Pants: Genital Panic II | VALIE EXPORT ……………………….…… Action Pants: Genital Panic III | VALIE EXPORT Reenactment Action Pants: Genital Panic | Marina Abramović ……...………. Tupamaros | Luiz Camnitzer Tucuman Arde | Luiz Camnitzer ……………………………………..………... Para inducir el espíritu de imagen | Oscar Masotta Fantasia de Compensação | Rodrigo Braga………………………..…………... Fantasia de Compensação II | Rodrigo Braga Fantasia de Compensação III | Rodrigo Braga…………………...…….…….... Tríade aproximações conceituais | Andrés Suárez Rrose Sélavy | Marcel Duchamp ………………………………...…………….... Shoot | Chris Burden II Nuotatore | Studio Azzurro …………………………………...………………. Le Plein de plumes | Michel Jaffrennou Roberta Multiple | Lynn Hershman …………………………………………..…. Marilyn Monroy | Carlos Monroy 13 17 26 41 51 54 61 64 67 68 77 79 80 90 91 93 95 104 106 117 121 141 148 149 150 152 154 157 160 161 164 166 167 170 177 179 182 184 185 187 200 203 205 210 211 213 214 SUMÁRIO 1. Introdução 2. TRÍADE: PERFORMANCE, DOCUMENTAÇÃO E PRESENÇA ..................................................................................... 2.1. OUTROS ESTADOS DA PERFORMANCE …………………………………………………………………………………......…. 2.1.1. Três ideias sobre performance 2.1.1.1. A performance como espectro 2.1.1.2. Da iconomia à economia da presença na performance: a documentação como prolongação da ação 2.1.1.3. Da performance tradicional à performance pós-moderna 2.2. DOCUMENTAÇÃO DA AÇÃO ……………………………………………………………………………………………..……… 2.2.1. Documentação da ação: do contexto, do efêmero, da vida, da validação e o valor de troca 2.2.1.1. Câmera em contexto, desdobrando o presente 2.2.1.2. Da documentação: os atos vitais, o efeito viseira, a comercialização, a validação e a exposição 2.3. PRESENÇA E ACONTECIMENTO EM CONTEXTO ………………………………….…………………………..…………… 2.3.1. Da desnaturalização da presença física até a hiper-realidade do acontecimento 2.3.1.1. Dispositivos protéticos divisores do corpo e a presença física 2.3.1.2. Do achatamento da presença física até a expansão da imagem virtualizada como presença no espaço privado 3. PÓS-FORMANCE: A DESCONSTRUÇÃO DA CONDIÇÃO DE PRESENÇA NA PERFORMANCE... 3.1. DOS ATOS PERFORMATIVOS À CONSTRUÇÃO DOS ACONTECIMENTOS NAS ARTES …………………………..…. 3.1.1. Os atos de fala performativo: entre fonemas, grafemas e jogos da linguagem 3.1.1.1. John Austin / Jacques Derrida / Jean François Lyotard. 3.1.2. Os atos de fala performativos nas artes: quando dizer a ação é fazê-la 3.1.2.1. Da filosofia da linguagem à arte como linguagem: o conceitual linguístico 3.1.2.2. Entre a desnaturalização da performance e os atos de fala performativos produto do efeito hiper-real 3.1.2.3. Aproximações à desnaturalização da ação no cone sul 3.2. PÓS-FORMANCE: IDENTIFICAÇÃO, DIFFÉRANCE, ARCHÉ E DOCUMENT-AÇÃO ………………………….....…….... 3.2.1. Pós-formance 3.2.1.1. Identificação 3.2.1.2. Margens 3.2.2. Pós-formance: différance 3.2.2.1. Da presença ao arquivo 3.2.2.2. Da différance 3.2.2.2.1. Fotografia performada e viral ontology of performance art 3.2.2.2.2. Potencial performático 3.2.2.2.3. Post-performance e Re-formance 3.2.3. Pós-formance: arché e document-ação 3.2.3.1. Arché 3.2.3.2. Document-ação CONCLUSÃO REFERÊNCIAS 14 27 28 30 32 48 58 69 69 70 82 97 97 100 110 118 120 120 122 136 137 144 175 189 191 191 193 197 197 200 202 209 212 217 217 225 228 236 13 Figura 1. Tríade Pós-formance Fonte: Elaboração do autor (Suárez, 2019, s.p) 14 1. INTRODUÇÃO Identificação A performance,1 no que tange às artes visuais, apresenta uma questão chave para esta tese, condensada na transformação a partir de 1960 e concentrada na condição de presença dessa linguagem. Tal condição aparentemente possui o poder para defini-la, excluí-la ou expandi-la. Inclusive, pode ter o critério de autoridade para desconstruir suas estruturas artísticas. Identificada por Roselee Goldberg em 1909, a performance tem sido historicamente delimitada pela tríade: A. a presença física dos corpos dos espectadores e do performer; B. a execução da ação no presente vivo; C. uma linha temporal onde se demarca o início e o fim da ação. Isso se traduz na performance como uma linguagem "do" e "para" o presente, em que a condição de presença é exclusividade do acionar no aqui e agora dos corpos do performer e do espectador. Contudo, ao longo da segunda metade do século XX, a condição de presença nessa linguagem tem um percurso diferente, correspondente aos avanços e invenções da época. Dessa forma, a chegada à performance dos transistores da imagem e do som caracteriza-se por uma desnaturalização da presença biológica entre corpo físico e presentidade,2 permitindo a separação do corpo do performer e as ações executadas no presente vivo. Esse pequeno deslocamento trouxe à tona a possibilidade de gerar ações artísticas sem a necessidade da execução corpórea e da presença viva do performer. Mesmo sem o cumprimento da triagem que as normatizou, algumas ações foram legitimadas e inseridas como obras próprias da história da performance ocidental. Tais obras, que são ao longo desta tese objeto de estudo, vão a contrapelo das margens da performance tradicional. Essas ações divergentes apresentam desde 1 É importante esclarecer que a performance é entendida nesta tese como uma linguagem espectral e estrangeira, posto que sempre está onde não se espera. Uma vez que a historiografia da performance ainda não apresenta consenso, essa linguagem, enquanto dispositivo artístico e corporal, é enunciada e definida com base em particularidades de cada contexto. Ao longo desta tese são consideradas diferentes abordagens conceituais e técnicas que divergem entre si. Tomamos como ponto de partida para ditas margens conceituais o proposto pela teórica R. Goldberg em 1909 (Goldberg, 1978). Reconhecemos também a existência da implementação e definições da performance em outras áreas próximas, como a sociologia ou a antropologia, tal como pelos teóricos F. Boas, M. Taussig e R. Schechner. Esses pensadores situam a história da performance nos primeiros rituais das culturas paleolíticas da África e nos rituais da Mesoamérica (Dawsey, 2013, p. 46-47). 2 Robert Morris, ao tratar de presentidade, afirma: “O que desejo juntar para meu modelo de presentidade é a inseparabilidade íntima da experiência do espaço físico e daquela de um presente continuamente imediato. O espaço real não é experimentado a não ser em tempo real.” (Morris, 2006, p. 404). O que manifesta o artista pode ser a experiência no hic et nunc no agora. Para nós, presentidade é a ligação inseparável da ação que não está no arquivo, que não pode ser capturada se não pelo corpo em presença, que não consta de métodos de representação de ação. 15 seu surgimento o paradoxo de estarem inseridas numa linguagem que as restringem. Assim sendo, o intuito desta tese é identificar, contextualizar e nomear as obras que apresentam uma desconstrução da condição de presença na performance. Nossa análise concentra-se nas bases processuais, técnicas, morfológicas, epistêmicas e históricas de acontecimento do corpus de estudo, que inclui as obras: Leap into the Void (1960), 2. Aktion Sommer (1965) e Action Pants: Genital Panic (1969). Nesses casos, a presença física da ação foi deslocada pelo efeito do hiper-real – entendido como a produção de uma realidade alternativa que se concebe como fato, como evidência histórica. Esses fenômenos artísticos herdeiros da pós-modernidade são estudados a partir de três mudanças da segunda metade do século XX, as quais modificaram a forma de fazer presença. São elas: 1. O surgimento dos transistores da imagem e do som, especificamente nas mass medias, por meio dos quais se habilita a bilocação da presença nas ações. Dessa forma, há possibilidade de estar presente em múltiplos lugares de forma não física. 2. O giro linguístico, observado a partir da filosofia da linguagem e posteriormente vinculado às artes com base no conceitual linguístico. Por esse prisma, o foco é o poder legitimador do artista, cujo ato de fala performativo tem o potencial para dar vida e legitimidade à ação/obra. 3. A implementação do arquivo na performance enquanto vazio de presença, sobretudo na correspondência que o ato documentado tem com o ato do presente vivo. A partir disso, é possível editar e produzir estados simulados3 de acontecimentos históricos ou de ações 3 Esta pesquisa reconhece que o contexto das duas últimas décadas do século XX é marcado pelo nascimento dos efeitos de pós-verdades e fake news, notavelmente teorizado a partir de 2015 como política pós-factual. Esses efeitos são definidos, principalmente, como modeladores de subjetividades por meio da produção de notícias, eventos ou saberes que não se fundamentam na comprovação fática dos eventos, mas se divulgam como efeitos do hiper-real, perpassando o fluxo natural dos eventos (Baudrillard, 1997). Ao contrário, baseiam-se na criação e produção de comunicados que têm por fundamento a fabricação de contrapontos argumentativos que afastam o espectador dos fatos verazes, criando uma manipulação por meio das mass medias (Derrida, 1998, p. 75). Tais estratégias de dissuasão são entendidas a partir de Baudrillard e sua ideia de efeitos de simulacros breves (Baudrillard, 1991b), visto que em ambas o que se emite não se funda na correspondência com os fatos biológicos, e sim na produção sintética de um conjunto de provas onde se gera um subproduto, uma realidade alternativa onde o real e a representação têm alcançado uma equivalência. Ademais, as duas ideias têm sido caracterizadas por uma funcionalidade específica, comumente breve e com uma instabilidade latente, posto que, como sua criação é midiática e instantânea, apresenta desde seu surgimento um estado verídico frágil. Uma vez revelada sua não correspondência com o factível, perdem todo seu caráter de simulação para se tornarem uma pós-verdade ou fake news. Nesse sentido uma simulação é a produção do evento; já uma fake news é o desvelamento do efeito simulado. Esses dispositivos surgem em um período de massificação e propagação da indústria de comunicação televisiva que se fundamenta na incerteza do espectador, assim como na incredulidade dos grandes relatos, analisados nesta tese a partir da pós-modernidade, período em que se evidenciam suas características. Consequentemente, é fundamental reconhecer que esta tese, longe de diferenciar o real do não real, o verdadeiro do não verdadeiro, apoia-se nos fundamentos da simulação de realidades, especificamente no que tange à performance, a qual tem produzido "efeitos do hiper-real" validados pelo sistema da arte. Diferenciando-se da política pós-factual (pós-verdades e fake news), sem importar o desvelamento dos fatos como ações que nunca tiveram lugar nem foram executadas, essas 16 artísticas, que têm sido alçadas até serem legitimadas e validadas como fatos ou eventos correspondentes a efeitos naturais. O fio condutor dessa triagem, que desnaturalizou a forma de se tornar presente, radica na idealização do relato histórico, enquanto escritura, como ato fidedigno do acontecimento vivo, isto é, o arquivo como fantasia equivalente a uma presença primária. Desse modo, importa notar que: se a presença primária é semelhante ao documento histórico, esta tese considera a correspondência entre o Acontecimento Vivido (a ação originada no presente vivo) e o Acontecimento Mediado (a ação documentada). Ao transpor essa correspondência à performance, sustentamos que a documentação – escritura do presente vivo – é uma extensão protética que alonga o acionar da performance. Visto que é a ação mediada que produz narrativas históricas, essa inserção ultrapassa a performance enquanto acontecimento exclusivo do agora. Nos casos estudados, os quais estruturam a história da performance ocidental, o conhecido como documentação ou arquivo indicial da performance é produto de efeitos do hiper-real ou das simulações. Embora as performances nunca tenham sido executadas, e não importando que hoje se saiba que resultam de uma produção do acontecimento, continuam mantendo sua legitimidade e autenticidade como obras icônicas da performance. Chegamos, assim, à hipótese que origina esta tese, a qual pretende decifrar de que modo o relato histórico de uma ação simulada – que nunca foi executada fisicamente –, tem obtido uma equivalência ao arquivo indicial da performance, garantindo legitimidade, validação, comercialização e inserção pelo próprio sistema da arte. Na convergência da documentação da performance que de fato teve lugar e o arquivo histórico simulado (figura 2) é onde se identifica a pós-formance, um dispositivo capaz de tornar um ato de fala performativo em uma ação de teor histórico. A partir dessa hipótese – em que a presença física, a execução e a temporalidade da ação são substituídas pelo efeito da hiper- realidade do evento –, reconhecemos uma desconstrução da performance enquanto conceito e ações ainda hoje não perderam seu caráter histórico, sua relevância e seu status na história da arte. Dessa forma, as ações apresentam uma potência que perpassa sua condição de produção ou falsificação do acontecimento. Ao construírem-se sobre um estado passageiro – que apresenta as políticas pós-factuais –, os efeitos do hiper-real superam as formas em que se legitima o que de fato aconteceu, atingindo o ponto em que a simulação é permanente. 17 prática artística. Isso gera a possibilidade de conceber uma nova ramificação da produção de uma ação artística. Figura 2. Da performance à pós-formance Fonte: Elaboração do autor (Suárez, 2021c. s.p) Pleiteamos, assim, definir, caracterizar e nomear essa pequena divisão como pós- formance, a qual evidencia a escalada de certo tipo de arquivo simulado à validação e à legitimação pelo sistema da arte, em que o registro da performance e da pós-formance, enquanto fatos históricos, tem sido equivalente. Contexto A performance e o contexto têm caminhado juntos, evidenciando que cada transformação dessa linguagem vai de mãos dadas com os avanços e as urgências da época. Exemplo disso é a interconexão que existe entre a performance e o nascimento de invenções tecnológicas que desnaturalizaram a condição de presença da sociedade e dos artistas. Se Goldberg, na primeira década do século XX, identifica a performance nos Saraus da Eurásia, no mesmo contexto, a massificação da luz elétrica evidencia um desdobramento da relação, o uso e a presença entre os corpos. Essa invenção impulsionou o desenvolvimento de tecnologias eletrônicas, tal como a produção de transistores, utilizados no telégrafo, no telefone e no rádio, que logo teriam se potencializado e expandido até a televisão, sendo possível a transmissão em conjunto da imagem e do som. Um dos efeitos desses incrementos da vida na cidade foi a mudança da compreensão espaço-temporal – tudo ficou mais rápido e mais perto. Os transistores criaram uma condição 18 que até aquele momento era impossível: a separação da presença da corporeidade física, reconfigurando radicalmente a relação humana com os acontecimentos,4 com o verídico e com a presentidade. A partir daí, graças ao som e à imagem unificadas em corpos artificiais e projetadas em telas, o corpo humano passou a ter o inesperado poder que desrespeita uma das mais básicas leis da física: a de estar em mais de um lugar ao mesmo tempo, isto é, o poder da ubiquidade.5 A multiplicidade da presença mediada por telas, que antes era princípio do fático e veraz, começa a ser questionada, pois dá-se início à dissociação das causas dos efeitos. Exemplo disso é a perda de um fio condutor que relata o nascimento de um evento até suas causalidades. Nesse recorte da presença do evento, a presença física se torna mais duvidosa, mais especulativa. Assim sendo, os relatos, os metarrelatos, as metanarrativas – os grandes acontecimentos da história,6 do sabido, da memória, do presente são desmistificados e começam a se desmanchar na edição instantânea, produto da sobreposição, no apagamento, na aceleração e no retardamento7 das imagens projetadas. Nesse mesmo contexto onde os eventos, as imagens e as memórias se tornam duvidosas, móveis e hiper aceleradas, ocasiona-se uma degradação dos princípios biológicos do presente e da presença. Não só a veracidade, o corpo, a execução da ação, a manualidade são postos de lado em detrimento da imagem documental, posto que ela pode ser reproduzida sem a necessidade da presentidade do remitente. Isso ocorre inclusive em montagens e acontecimentos dissuasórios produzidos e disseminados nas telas, como foi com a Guerra do 4 Ao longo desta pesquisa são apresentados diferentes olhares acerca do termo acontecimento. A princípio, acontecimento é concebido como uma irrupção no tempo e no espaço de modo inesperado e imprevisível. 5 O princípio da ubiquidade como o dom da presença permanente no presente vivo. Isso pode ser exemplificado com a deslocalização permitida pelas câmeras com a virtualização do corpo dos artistas. A partir da implementação destes dispositivos, a ação do artista vai deixar para trás o corpo enquanto carne ou matéria tangível para se propagar como código binário digitalizado. 6 Neste texto, entendemos a história como a construção e imposição dos grandes metarrelatos, que a sua vez têm sido estruturados a partir da sobreposição de outros relatos. Dita construção da história enquanto grande metarrelato ocidental é abordada a partir das leituras que faz Lyotard sobre a condição pós-moderna, para que seja apontado o interesse pelo prisma da constituição do imperialismo cultural, especificamente nas artes, ditado no Ocidente. 7 Embora os apagamentos ou a sobreposição das múltiplas histórias possam ser rastreados a partir do início das civilizações humanas, um dos fatores para dominar os povos era dominar suas memórias e sua história. É a sobreposição dos acontecimentos que se encontram nos apontamentos que faz Baudrillard em seus escritos sobre a simulação da guerra do golfo que se faz relevante para esta tese. O francês, nos anos 70, estrutura um vínculo entre a imagem digitalizada e os novos formatos de produção e apagamento da história, apontando que, a partir da segunda guerra, as câmeras transformaram a forma como se executam as disputas. Estas não são dadas no campo de batalha, e sim a partir do assédio, da dissuasão e da sobreposição das imagens, sobretudo da forma como os acontecimentos se sobrepõem e se estabelecem como reais. 19 Golfo, tornando evidente a possibilidade de gerar causalidades, sem para tanto possuir um princípio de procedência nos acontecimentos vivos, isto é, efeitos sem causas. Podemos afirmar, então, que a partir disso muitos acontecimentos das mass medias são dados por performatividade, perpassando o ato constatativo dos fatos. Nessa conjuntura da pós- modernidade, o Acontecimento Vivido e o Acontecimento Mediado tornam-se equivalentes. Portanto, os eventos vividos, que eram de caráter multissensorial e multiespacial, são reduzidos à bidimensionalidade das telas. Essa aplanação da experiência viva começa a ter corpos artificiais intérpretes e também tradutores que mediam o acontecimento vivo, em que se substitui a presença e a experiência física do corpo humano pelo efeito do hiper-real, um efeito que podemos editar, recortar, em suma, manipular, apresentando-se como fato. É nesse ponto em que se torna indistinguível a documentação do evento vivo, tal como a produção e a simulação de um evento que nunca aconteceu. Tais transformações abriram a possibilidade para versões alternativas da história, tanto a história dos costumes, que ganhava força, quanto narrativas na arte, recontando grandes acontecimentos na chave do antigo enfrentamento entre indivíduo e Estado em atentados de chefes de estado. Mas também abriram a possibilidade para ações históricas da arte, ações de guerrilha que colocaram o sistema da arte em xeque, pois elas foram validadas, legitimadas e vendidas, embora nunca tenham acontecido. Quem seria então capaz de guardar e administrar a história, as ações, a performance? O arconte,8 os artistas, ou os editores dos grandes veículos de comunicação midiática. Esse pequeno recorte contextual da performatividade da história tornou-se ponto de disputa política e artística, com isso, da construção dos fatos. Aqueles fatos, aquelas performances icônicas da arte, no entanto, que antes eram quase universais, tornam-se mais plásticas, móveis, fluidas, elementos que anunciam construções, chamadas aqui de simulações9 8 Os arcontes foram os primeiros guardiães da grande história. Não eram apenas responsáveis pela segurança física do depósito e do suporte; a eles cabiam o direito e a competência hermenêutica: tinham o poder de interpretar os arquivos. Foi assim que se estabeleceu o poder arcôntico, que remetia às funções de edição, unificação, apagamento, classificação, acrescidas do poder de consignação. Este último aponta para a designação de um lugar sobre um suporte, mas também para o ato de reunir signos (“com-signar”). Deduzimos daí que a classificação, a reunião de signos, deve obedecer a uma certa ordem, a uma certa lógica, segundo leis e/ou regras. Num arquivo, afirma Derrida, não deve haver dissociação absoluta, heterogeneidade ou segredo que venha a separar (scernere), compartimentar de modo absoluto; o princípio arcôntico do arquivo é também um princípio de consignação, isto é, de reunião (Derrida, 2001, p. 14. Tradução nossa). 9 Em relação à simulação do real, Baudrillard afirma: “Parece que essa obsessão do acionar determina atualmente todo o nosso comportamento: medo obsessivo de tudo o que é real, de qualquer violência real, de qualquer gozo real. Contra essa obsessão pelo 20 ou efeito do hiper-real. Consequentemente, a desnaturalização do corpo dos artistas e as performances coincidem no mesmo contexto pós-moderno em que os acontecimentos mediados começam a ter interlocução, em que a ação e a presença física dos corpos transitam da sua fisicalidade até a bidimensionalidade, em que a execução da ação é transformada em um efeito performativo, em que os acontecimentos já não são mais vividos, mas sim mediados pelas telas, pelas projeções das imagens que simulam a presença do corpo e as ações humanas transformadas em códigos fonéticos e grafemáticos que vão além da carne. Assim, são intangíveis, códigos binários ou algoritmos que fazem coincidir acontecimento, edição, simulação e presente vivo em uma inscrição que é equivalente aos relatos históricos validados e legitimados pelos arcontes da sociedade e do sistema da arte. Abordagem Partindo desse breve contexto – em que traçamos uma linha transversal entre a virtualização da presença, os avanços da época e a equivalência do Acontecimento Mediado ao Acontecimento Vivido –, procuramos identificar novas formas e procedimentos que se diferenciam das estratégias tradicionais em que a performance tem sido inserida nas ações da história. Dessa forma, esta tese se desmarca da tradição para centrar-se na disjunção da condição de presença da corporeidade física, em que as ações são produtos da simulação do evento artístico e mesmo assim ainda ocupam espaços privilegiados na história da performance ocidental. Esses tipos de ações, nomeadas nesta tese como pós-formance, são concebidas aqui como um dispositivo10 que utiliza um efeito de causalidade, configurado principalmente por atos de fala performativos, por texto, imagem, som, registro, arquivo e tudo aquilo que serve como evidência produzida,11 para legitimar uma ação que nunca teve lugar e tempo definidos, mas que existe, sim, com base em discursos e nas intenções que estruturam os artistas. Essa real, criamos um gigantesco dispositivo de simulação que nos permite agir in vitro (é verdade até para a procriação). Diante da catástrofe do real, preferimos o exílio do virtual, cujo espelho universal é a televisão" (Baudrillard, 1991, p. 16. Tradução nossa). 10 A definição de dispositivo, nesse caso, tem uma forte aproximação com a ideia apresentada por G. Agamben no livro Qué es un dispositivo, seguido por El amigo y La Iglesia y el Reino (Agamben, 2014). Para o filósofo, o dispositivo é aquilo que modela e controla as condutas e as opiniões dos seres humanos. 11 Entendemos neste texto como evidência da pós-formance um dispositivo de informação (imagens, sons, objetos físicos etc.) que sustenta e é o suporte da probabilidade de uma hipótese. Contudo, a evidência no caso da pós-formance, o suporte das hipóteses, a testemunha factível é provável da ação que transita da simulação até o consensuado como o real e fático. 21 legitimação se efetua por meio de uma rede simbólica, chamada de sistema da arte, sendo esta a encarregada, a que possui o critério de autenticidade de validar e inserir na história da performance ocidental ações que nunca aconteceram e que são produto da simulação do acontecimento como ação equivalente à performance. Os casos de estudo que hipoteticamente apresentam essas condições – que são nomeados como pós-formances – situam-se em contextos específicos e coetâneos, entre as décadas de 1960 e 1980. São eles: Action Pants: Genital Panic (1969), de VALIE EXPORT, 2. Aktion Sommer (1965), de Rudolf Schwarzkogler, Leap into the Void (1960), de Yves Klein. Além desses, encontram-se alguns casos que merecem destaque no cone sul da américa. São eles: Para inducir al espíritu de imagen (1978), de Oscar Masotta, e Fantasia de Compensação (2004), de Rodrigo Braga. Para a identificação desses processos divergentes dos tradicionais, tomamos por tríade- estrutural desta pesquisa três conceitos chaves: performance, documentação e presença. Origina-se deles o conceito a defender, a saber, o de pós-formance (figura 1). A partir dessa triagem central, pretendemos diferenciar uma reconfiguração do que tradicionalmente tem se nomeado como performance até chegar à pós-formance, mobilizando repertórios conceituais de caráter histórico, filosófico, artístico e literário. Embora os encadeamentos conceituais e práticos estabelecidos na tríade sejam mediados por diversos autores, é com base principalmente nas ideias de Jacques Derrida – um dos expoentes da filosofia da presença no ocidente – que se confere uma forma divergente de refletir sobre a condição de presença nos corpos, enquanto ausência, enquanto simulação e produção da presentidade. Em seus estudos, Derrida propõe uma impossibilidade de assistir à presença total ou direta do acontecimento no presente vivo,12 visto que para ele todo evento está sempre mediado por signos. Assim sendo, só se tem acesso a signos, a formas de inscrição, a códigos que traduzem, a partir de outros signos, palavras e textos13 em ação. Ao trazer isso para a 12 No livro Gramatologia Derrida expõe que à realidade ou à acontecência no presente vivo nunca se chega, visto que todo o percebido pelos sentidos se encontra inscrito em signos grafemáticos ou fonéticos, mais especificamente em texto. Dessa forma, nos sistemas perceptivos se substitui o acontecimento no presente pelos signos. Derrida usa como exemplo o próprio pensamento, pois todo pensamento está emoldurado a partir de estruturas grafemáticas. Consequentemente, para ele não existem pensamentos ou contato puro com os acontecimentos, já que a experiência também é subsidiária da gramática. O pensamento herda e se baseia no uso de signos, que se estabelecem dentro de uma grande teia de aranha, chamada de molduras idiomáticas. Assim sendo, todo acesso ao presente vivo é dado a partir de desdobramentos fonéticos ou grafemáticos que têm a função de mediar a experiência viva e transformá-la em signos. Dessa forma, nunca se pode estar de face ao acontecimento sem antes ter presente um desdobramento na grande moldura denominada idioma. 13 Os estudos de Derrida, especificamente os encontrados no livro Gramatologia (Derrida, 1973), verificam a desmistificação do fonocentrismo ocidental – isto é, a voz como único estado da presença – para propor uma gramatologia – a escritura como presentidade, como código iterável prévio à voz –, confirmando a importância das ideias do pensador. Nesta tese, entendemos que a ação ao vivo já 22 performance, concluímos que nunca se tem presentidade absoluta na ação. Sua aproximação é por meio de signos, códigos grafemáticos e fonéticos, de letras, de imagens, de documentos arquivísticos, podendo ser a documentação um signo a mais em que se desdobra a ação. Isso posto, chegamos ao objetivo desta pesquisa, pois se se tem por base que ação, de teor artístico, no presente vivo é um signo, o que pesquisamos aqui é a produção, a simulação de signos de uma ação. Partindo-se do princípio que toda ação é uma marca ou um signo, pretendemos demonstrar nesta pesquisa que se torna indistinguível um signo como Acontecimento Vivido – execução da ação – e a simulação do evento artístico enquanto signo produzido de uma ação que nunca aconteceu, já que a simulação também é um signo que pode carregar historicamente uma equivalência com o acontecimento vivo. Elencamos a seguir alguns termos de Derrida retomados ao longo desta tese: Acontecimento: com o aumento e variedade de telas, a forma com que se criam e se assistem os acontecimentos, como irrupção do presente, tem modificado a relação com a presentidade. Essa leitura entre os novos formatos de produção dos acontecimentos, mediada pelas telas, é ponto chave na discussão porque é esse dispositivo que permite vincular a ausência e o fetiche da presença. Arquivo: dá relevância aos mecanismos de disjunção de presença e corporeidade física, pois são eles os que vão tornar possível a identificação de sistemas alternativos em que se administra, produz e edita a memória, a presentidade, o passado e, por fim, o princípio de procedência. Atos de fala performativos: considerando as mudanças produzidas na filosofia da linguagem, na qual se estrutura a relação entre ação, acontecimento e discurso, é possível analisar a criação de sentido a partir de dispositivos discursivos. Contudo, analisamos os atos de fala do artista como mecanismo que aciona determinadas realidades. Desconstrução: rastreia e propõe um olhar diferente em relação às estruturas da performance. Dessa forma, mostramos variações ou diferenças que sua estrutura tradicional deixa entrever. Por fim, propomos com a noção de pós-formance a possibilidade de identificar a não é um significado – isto é, a associação entre o real e a palavra –, mas sim é um signo que só tem sentido quando está encadeado com outros signos. Nesse sentido, a documentação é um dispositivo que fixa signos do evento na história e o mantém vivo e em transformação, o que lhe permite ampliar a própria ação ao vivo e os estados de presença. 23 desnaturalização dos modos em que se pode produzir e inserir na história uma ação no campo das artes. Différance: ao longo desta pesquisa, analisamos diversas fontes teóricas e poéticas com o objetivo de definir a ideia de pós-formance. Pretendemos percorrer as margens, isto é, identificá-la partindo das suas diferenças, suas discrepâncias, dissidências, em suma, pelas proximidades com outras ideias. Espectro: a performance como um porvir espectral, um entre que não pertence a tempo algum, nem ao passado nem ao futuro, mas que assedia e atua no presente, sendo energia sempre em transformação. Escritura como dispositivo do sabido: não há nada além do texto. Por isso, a performance é escritura. A escritura é composta por grafemas, fonemas, imagens, DNA, relatos, arquivos indiciais, códigos binários. Em suma, a escritura envolve signos em que se inscreve o sabido. Por isso, não existe o conhecido ou o sabido sem que se tenha como mediadora a escritura. Assim sendo, o texto ora apresentado organiza-se em dois momentos principais: A e B. Cada um deles é composto por ensaios, comunicações e palestras, em sua maioria já publicados, que foram desenvolvidos no decorrer desta pesquisa, e que são apresentados aqui com modificações significativas. Eles, no entanto, devem ser tomados como sinais modestos da mesma tentativa de descrever e analisar aquilo que se estuda, mas que pode dar uma vaga percepção da dimensão dos caminhos da investigação. São índices, vestígios, marcas para que então, ao fim e ao cabo, possam conduzir a algum tipo de teorização da pós-formance. Nesse sentido, esta pesquisa se conduz por enfoques que, para além de estabelecer respostas, procura estruturar perguntas no campo da condição de presença da performance, perguntas que muitas vezes não têm respostas fechadas. Podemos sintetizar da seguinte forma cada um dos momentos desta tese: Momento A. Tríade: performance, documentação, presença: entendemos que a pós- formance corresponde a certo tipo de presença simulada em documentação e que historicamente tem assumido equivalência à performance. Esse olhar evidencia três ideias 24 chaves para entender as bases conceituais da pós-formance, que são: performance, documentação e presença. No momento A, são apresentadas as bases conceituais da tríade. A performance é o primeiro conceito analisado. Para tanto, elencamos algumas variações que marcam sua condição de presença a partir de contextos específicos. Posteriormente, enumeramos três revisões da performance: enquanto linguagem espectral; com uma iconomia14 da presença; e as diferenças entre performance tradicional e performance pós-moderna. O segundo conceito, o de documentação, coloca em debate a forma como o uso do arquivo tem posto em xeque a relação com o presente ao vivo, com o verídico, bem como a construção dos acontecimentos. Nesse ponto, apresentamos a documentação como uma extensão, uma prótese da performance, o que originou um desdobramento dos sistemas em que se arquiva o presente. Nesse contexto, o próprio corpo do espectador e do performer são dispositivos de arquivamento. Por fim, examinamos o conceito de presença a partir dos estados simulados e projetados nas mass medias, os quais começam a ter o poder de estabelecer um evento social produzido nas telas como um fato. Dessa forma, os acontecimentos na sociedade já não precisam de um ponto originário, uma execução no presente vivo para existir, possibilidades essas identificadas também na performance. Momento B. Pós-formance: a desconstrução da condição de presença na performance: o momento B é o eixo principal desta tese. Ao longo dele, identificamos as estruturas conceituais exemplificadas no momento A para demarcar as margens do conceito a defender, isto é, o de pós-formance. Para tanto, apresentamos evidências, técnicas e processos com os quais é possível criar uma ação sem a necessidade de acionar o corpo no presente vivo. 14 Gilson Schwartz retoma os jogos de linguagem com que se criam símbolos e valores no mercado para definir a “iconomia” como um jogo do capital, o qual gera especulação, usura, dívida, crises a partir dos símbolos, das imagens e das representações. Em seu livro, expõe como a crise global contemporânea “revela a necessidade de uma interpretação anticartesiana dos processos econômicos que são sempre e simultaneamente materiais, imateriais e representacionais, simbólicos, em suma, “iconômicos” na indagação interdisciplinar sobre a relação entre mercadoria, valor e ícone” (Schwartz, 2019, p.9). 25 A fim de exemplificar a desnaturalização da performance enquanto movimentação presencial e corporal em um espaço e tempo específico, esta pesquisa transita pelo giro linguístico ocorrido na filosofia da linguagem. Baseamo-nos especificamente nos estudos dos atos de fala performativos – speech act – como acionadores da realidade, para os quais dizer a ação é fazê-la. Esclarecemos tal teoria com a vinculação do fazer factual ao fazer discursivo no conhecido nas artes como o conceitual linguístico. Assim sendo, analisamos no momento B os casos de estudo, a saber: Action Pants: Genital Panic (1969), de VALIE EXPORT, 2. Aktion Sommer (1965), de Rudolf Schwarzkogler, Leap into the Void (1960), de Yves Klein. Além dessas obras, mencionamos outras ações que têm se dado no cone sul da América e que ilustram as diferenças conceituais e performativas das ações aqui identificadas como pós-formance. São exemplos: Para inducir al espíritu de imagen (1978), de Oscar Masotta, e Fantasia de Compensação (2004), de Rodrigo Braga. Finalmente, propomos o rastreamento dos possíveis limites em que o conceito pós- formance transita. A argumentação é fundamentada na sua diferença com outros conceitos próximos analisados, a saber: Viral Ontology of performance art, Post-performance, Potencial Performático, Fotografia Performada e Re-formance. Em suma, ao longo desta pesquisa, defendemos que os sistemas de produção e apresentação das evidências e das testemunhas da pós-formance precisam se diferenciar dos sistemas tradicionais de arquivamento e documentação, posto que na pós-formance não se arquiva, mas sim se produz um arquivo indicial. Por isso, propomos como conceito novo e em desenvolvimento o de document-ação. Tal ideia diz respeito aos sistemas de produzir arquivos simulados na pós-formance, originados da produção factual das evidências que simulam a ação. De modo geral, entendemos que a existência e a legitimação histórica da pós-formance exigem um documento prévio, que emula a função do arquivo e que, em síntese, é o ponto inicial do evento. Visto que a document-ação é um dispositivo produzido, ela tem verdade material, mas não veracidade histórica. 26 Figura 3 - Repartición Fonte: Elaboração do autor (Suárez, 2021a, s.p) | Performance | Registro de ação | 360” | 2016 1. Fatiar um bloco maciço de terra de 1,7 m com um facão fundido em chumbo. 2. Introduzir a porção de terra na sacola preta. 3. Fechar a sacola com o fogo da vela branca. 4. Repartir cada porção de terra ao público. 5. Depois de fatiar todo o bloco de terra, apagar a vela, pegar o facão e sair do lugar. 27 2. TRÍADE: PERFORMANCE, DOCUMENTAÇÃO E PRESENÇA Figura 1. Tríade Pós-formance Fonte: Elaboração do autor (Suárez, 2019, s.p) No momento A desta tese, apresentamos, discutimos, analisamos e contextualizamos as margens do conceito pós-formance. São três as ideias que o estruturam: 1. performance: espectro e iconomia da presença são estados outros em que as ações pós-modernas se tornam presentes; 2. documentação: extensão, ato vital que estende o acontecimento ao vivo; 3. presença: trânsito da fisicalidade no agora da presença até sua virtualidade. Essa tríade será abordada a partir de perspectivas próprias – recolhidas em ensaios originados desta pesquisa – , sendo delimitadas as características de cada uma das linhas transversais que as percorrem. Importa ressaltar que, a partir do esclarecimento dessas três ideias, será possível acessar de uma forma mais confortável ao eixo central desta tese, a saber, o momento B, durante o qual delimitamos a pós-formance. 28 2.1. OUTROS ESTADOS DA PERFORMANCE Anotações da performance * A performance tem pelo menos dois tempos correspondentes à execução corpórea de uma ação. O primeiro deles é o da vivência ou Acontecimento Vivo. Esse momento é caracterizado pelo contato puro com o agora. Nele, ação e público interagem de forma direta e ativa na construção da obra. O segundo momento é o da experiência ou Acontecimento Mediado. Esse momento é de inscrição, impressão, reescrita e tradução da ação a outros estados, tais como: ação/documento, ação/arquivo, ação/escritura, ação/linguagem, ação/memória. O segundo momento tem o dom de inserir um acontecimento efêmero em uma narrativa histórica, pois é o único tempo em que a experiência mediada volta para o presente. Ambos os tempos da performance acontecem de forma sequencial e sempre em constante mutação. Interessa para esta tese o segundo momento, pois é a partir dali que o Acontecimento Vivido se desdobra em arquivo indicial, onde se condensa o reconhecimento historiográfico da ação. * A performance pode ser técnica, preparação do corpo e sobretudo um desdobramento energético em constante transformação. Esse estado energético é o ponto de origem da ação. Para potencializá-lo, é importante educar e preparar o corpo, carregá-lo de energia, pois o que o performer oferece ao espectador durante o primeiro momento da ação é um enviroment energético. * A performance pode ser aquilo que excede o corpo humano, pois vai além da carne. * A performance pode ser ação ininterrupta e em estado de expansão, por isso é energia. Ela tem o poder de encorpar ou habitar outros corpos para se tornar presente, corpos performers ou corpos artificiais. Ambos são dispositivos que contêm a ação. * O próprio da performance pode ser o constante estado de atualização. Ela pula de um corpo para outro, do corpo do performer para corpos arquivos, dos corpos arquivos até uma instalação, entre muitos outros estados. A performance pode ser espectral, pois tem o dom de estar em múltiplos corpos, em múltiplos lugares. Sobretudo, tem o poder de sempre se apresentar no presente vivo, sempre vestindo um corpo novo, um projetor, uma tela, um holograma, ou simplesmente o corpo de outro artista, fazendo uma re-enactment. 29 * A performance é um movimento energético lineal delimitado por um princípio de procedência originária. Por sua vez, desse princípio originário se ramificam outros estados da ação, constituindo outras experiências. Ela pode ser mãe e filha em um processo infinito de auto germinação. Pode ser um efeito de palimpsesto que se atualiza sempre que volta para o presente. * A performance, entre muitas outras coisas, pode ser iconomia da presença, espectralidade ou energia, pois pode ser ação em constante fluxo. * A performance pode ser uma linguagem de intensidades. Quanto mais próximo do ponto de origem da ação (presente vivo do evento) o espectador se localiza, maior intensidade energética experimenta. * Assim como na escultura ou na pintura a forma é dada na sobreposição de camadas no momento de modelar ou pintar uma peça, na performance é a espessura que lhe dá forma, corpo e estrutura, cada modo de percepção da ação, cada imagem, relato, arquivo, palavra, texto. * Cada contexto é autônomo na definição, nas práticas e nos procedimentos da performance. Dessa forma, a ideia de performance está sujeita às formas em que se entende o uso e os desdobramentos do corpo, da ação e da condição de presença. 30 2.1.1. TRÊS IDEIAS SOBRE PERFORMANCE Esta pesquisa reconhece que a performance tradicional, identificada em 1979, é uma linguagem artística que tem como intenção o desenvolvimento e a inserção (material ou imaterial) de uma ação em um tempo e espaço específico. Por seu turno, as ações têm sido caracterizadas principalmente por três elementos: A. a presença física dos corpos; B. o acionar no presente vivo; C. o caráter efêmero. Ditos eixos são determinados por teóricos como Roselee Goldberg,15 Diana Taylor,16 Eleonora Fabião,17 David Douglas, Claire Bishop,18 Juan Albarrán,19 Ana Vujanovic,20 Philip Auslander,21 Nick Kaye,22 Josette Féral,23 Amelia Jones,24 Mariana Obersztern25 e Pedro Cruz Sanchez, dentre outros. Segundo Pedro Cruz, historicamente, tem-se nomeado e catalogado como exemplos desse grande conjunto da performance as seratas futuristas, os happenings,26 os fluxus,27 as soirées dadaístas, as aktions, as festas da Bauhaus, os espetáculos de massa da União Soviética, 15 RoseLee Goldberg (1947), nascida no Reino Unido, é teórica e historiadora da performance, além de criadora, em 1979, do conceito performance. 16 Diana Taylor nasceu no México (1950), mas mora nos EUA. É teórica e historiadora da performance, além de diretora e fundadora do Hemispheric Institute. 17 Eleonora Fabião (1968) nasceu no Brasil. É teórica, performer e professora da UFRJ. 18 Claire Bishop (1971) nasceu nos EUA. É teórica e historiadora da arte contemporânea. 19 Juan Albarrán (1982) nasceu na Espanha. É teórico e professor de estética e arte contemporânea. 20 Ana Vujanovic (1975) nasceu em Berlin. É teórica, dramaturga e performer, especializada nos performance studies. 21 Philip Auslander é um dos teóricos dos EUA com maior influência nos estudos da performance. 22 Nick Kaye (1970) é professor, teórico e catedrático de performance na Universidade de Manchester. 23 Josette Féral (1949) nasceu em Quebec. É teórica e professora de teatro contemporâneo. 24 Amelia Jones (1961) nasceu nos EUA. É uma teórica e crítica da arte contemporânea. Seus trabalhos enfocam a arte corporal, a performance, as artes cênicas, a videoperformance e a fotoperformance. 25 Mariana Obersztern (1961) nasceu na Argentina. É teórica, professora da UBA e diretora teatral com um longo trabalho nas artes visuais, concentrando-se na pesquisa sobre a performance. 26 O conceito de happening foi criado no fim dos anos 1950 pelo norte-americano Allan Kaprow (1927-2006), sendo usado para designar uma forma de arte que combina artes visuais e um teatro sui generis. Sem um guião específico nem representação, e com a intenção de criar uma imersão e a participação total do público na ação, um dos objetivos é criar uma forma de arte em que se experimente o cotidiano, a vida (Cruz, 2021, p. 372). Nesse sentido, o happening se distingue do conceito de performance dos anos 50 porque, no primeiro, a participação e a cooperação do público constituem a obra, assim como não tem uma estrutura fixa de começo, meio e fim. Logo, os happenings foram muito mais abertos e dependentes do espectador que as performances. Um bom exemplo dos happenings é a obra Fluids (1967), de Kaprow. 27 Segundo Paul Schimmel, o conceito fluxus foi criado em 1961 por George Maciuma (1931-1978), o mais influente promotor da tendência artística. Maciuma usou a definição como um fluxo permanente, uma ação que consiste na acontecência fluida, sendo um passo contínuo, como o fluir, como um processo de transformação constante (Schimmel, 2012a, p. 148). O movimento Fluxus traduz uma atitude diante do mundo, do fazer artístico e da cultura que se manifesta nas mais diversas formas de arte: música, dança, teatro, artes visuais, poesia, vídeo, fotografia e outras. Seu nascimento oficial está ligado ao Festival Internacional de Música Nova, em Wiesbaden, na Alemanha, em 1962, e a Maciunas (artista lituano radicado nos EUA), que batiza o movimento com uma palavra de origem latina, fluxus, que significa fluxo, movimento e escoamento. Dada a relação com a música, o exemplo que historicamente é dado como fluxus é a obra 4:33 (1952), de John Cage. http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3646/performance 31 o teatro pós-moderno,28 os processos relacionais,29 o body art, performance art ou performance pós-moderna,30 dentre outras (Cruz, 2021, p. 11). Embora essas práticas tenham sido vinculadas e definidas como performance tradicional, todas apresentam múltiplas diferenças, assim como intenções e formas técnicas de proceder e executá-las. De acordo com o autor, essa junção histórica funda-se principalmente porque a performance tradicional, enquanto práxis e teoria, surge em contextos e períodos diferentes, sendo sempre policêntrica e multidirecional. Desse modo, ainda não é possível ter uma unificação lineal das nomenclaturas usadas na definição da performance. Antes, dessa prática artística emergem pequenos olhares que refletem entre si e são enunciadas suas potencialidades e diferenças. Contudo, o que interessa nesse momento da tese é apresentar três aproximações ou olhares próprios ao entendido como performance que se baseiam em interesses e contextos específicos: a performance enquanto espectro; a performance como presente; e a performance enquanto iconomia da presença. Dessa forma, será possível posteriormente explicitar sua diferença do conceito a defender, a saber, o de pós-formance. 28 Reconhece-se na tradição do teatro, da dança e em todas as artes do corpo em ação, o estudo do espaço, do tempo e do corpo acionados no agora. Consequentemente, interessa destacar os traços próximos que apresentam as teorias do teatro pós-dramático ou teatro pós- moderno proposto pela teórica Josette Féral (Féral, 2015). Nela, abandona-se a intenção tradicional de representar para posicionar a performatividade do corpo como elemento central de seu funcionamento (Féral, 2015, p. 112-115). 29 O conceito de Estética Relacional foi estabelecido por Nicolas Bourriaud em seu livro Estética relacional, publicado em 1998, em que aponta como sistema “novo” de produção as obras que requerem uma participação e colaboração para a concreção da obra. Um fator de destaque engloba as relações humanas que se costuram entre o fazer, as artes e o contexto social e que vão além da afirmação do espaço simbólico, econômico ou privado. É Claire Bishop quem faz uma releitura das práticas relacionais no conhecido ensaio Antagonism and Relational Aesthetics, publicado na Revista October, n. 110 (2004). No texto, a pensadora desmistifica a condição de prática nova, referente aos apontamentos de Bourriaud, expondo que ditos processos já existiam desde os anos 60 no Brasil, especificamente na implementação da participação do público no neoconcretismo por artistas como Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Paper, entre outros. São essas relações as que Bourriaud passa por alto e Bishop recolhe em seu artigo. A teórica apoia-se no conceito de Antagonismo, enxergado por E. Laclau e C. Mouffe, e de forma muito estruturada, coerente e consistente questiona as teorias de Bourriaud. Bishop, clarifica que pelo menos três décadas antes de Bourriaud publicar sua tese da Estética Relacional (1998), em que apadrinha e divulga os artistas que ele mesmo cura, existiram no cone sul da América processos onde se integrava ao espectador, obras que expandiram seu próprio cosmos, vinculando a arte e os modos de vida com a participação direta do público nas obras. 30 Cruz em seus estudos nomeia como performance art ou performance pós-moderna as ações que começam a ter uma relação com o pós-modernismo e com as estruturas conceituais que propõe Lyotard. Sobre isso, Cruz escreve: “a performance pós-moderna se diferencia pelas ações corrosivas diante do projeto modernista” (Cruz, 2021, p. 647). Para o pensador, a pós-modernidade põe em xeque a noção ontológica da performance tradicional, em que o caráter discursivo, o teatral e o performativo começam a ganhar relevância. 32 2.1.1.1. A PERFORMANCE COMO ESPECTRO Um fantasma percorre o mundo da arte contemporânea: o fantasma da performance (Albarrán, 2019, p. 9) Neste texto, pretendemos fazer aproximações, assim como o reconhecimento da performance enquanto hauntologia ou espectralidade, a partir do pensamento de Derrida, entre outros teóricos. Tais condições são analisadas com base em três lugares específicos: a etimologia, o fazer artístico e, por fim, seu constante retorno. Habilitamos, assim, a possibilidade de enxergar a performance além da carne – o corpo do performer –, além do tempo e do espaço, sobretudo, a possibilidade de olhar ideias como ação, presença e corpo de lugares divergentes. Juan Albarrán, na introdução do livro Performance y arte contemporáneo, discursos, práticas, problemas (2019), aponta o assédio da performance à arte contemporânea. Ele caracteriza a presença da performance em relação à arte como espectral. Para identificação e compreensão dessa noção de espectro, é necessário enxergar a performance com os olhos de Albarrán, o qual propõe um “caráter transdisciplinar [que] a transforma em uma linguagem híbrida de difícil definição, salvo, talvez, pelo fator da presença: a performance é uma arte viva, que se fundamenta sobre as experiências obtidas no tempo real”31 (Albarrán, 2019, p. 20. Tradução nossa). Ao colocar desse modo, o autor ressalta a dificuldade de definição e o limite da performance. Trata-se de compreender um estado de abertura e apreciação da estrutura do fazer artístico, tentando capturar a presença em tempo real, a qual, segundo Albarrán, é um dos fatores mais abrangentes da performance. Essas noções deixam entrever pelo menos dois tempos da ação: o primeiro deles é um tempo que se pode encarar na presentidade da ação, do tempo no presente vivo, o tempo da percepção, de vivenciá-la, o tempo da experiência; já o segundo é o tempo do entendimento, da compreensão, a performance em sua história, carregada de tudo o que já se passou, o tempo de elaboração crítica e conceitual. Entre o primeiro e o segundo tempo há uma diferença que 31 Texto original: un carácter transdisciplinar que la transforma en un lenguaje híbrido de difícil definición, salvo, tal vez, por el factor de la presencia: la performance es un arte viva que se fundamenta sobre las experiencias obtenidas en el tiempo real. 33 resulta da relação entre o acontecimento no agora da ação e no agora da compreensão conceitual. Esse "entre" separa o acontecimento vivo do mediado. Esses dois tempos anunciam um destempo da performance, pois se por um lado a presentidade da ação fala da necessidade de vivê-la no presente vivo, por outro lado o arquivo, a crítica ou a teoria falam da espera, do passado, da memória, em suma, das assombrações e marcas que tem deixado a ação. Para fazer a ligação entre o momento da performance viva (tempo um) e seu entendimento e inserção na história (tempo dois), um dos recursos que se tem é estar de fora do presente vivo, em um processo de retorno ao que já aconteceu. Se o corpo de quem teoriza a ação está no presente, o pensamento se relacionará com o passado para poder trazer de volta o que já foi. Ao enxergar o destempo da performance para além de questionar que tempo é esse, interessa vê-la como uma linguagem do "entre": entre aquilo que se desmancha no passado e aquilo que é coetâneo ao presente. Nesse estado inquietante, não é possível defini-la, nem contê- la. Então, percebê-la como um espectro pode ser uma chave para tentar capturar uma possível essência. Nessa condição espectral, a performance permite uma visada do fantasma que ronda os olhos e a imaginação, indicando uma deslocalização fenomênica do corpo material e em ação presencial no espaço e no tempo, posto que o espectro se transforma em certa “coisa” difícil de nomear, pois não é nem carne, nem corpo; talvez seja ação, fluxo de energia entre corpos. Essa dificuldade de apreensão de um corpo no tempo fora do tempo presente produz uma múltipla corporeidade, um rastro em constante evasão do presente vivo, uma incerteza que evidencia inicialmente a potência da performance. Assim, embora confirme a diferença entre dois tempos diferentes, o rastro gerado pela performance cria uma ponte entre a vida e a morte, entre o real e o irreal, entre o mito e o fato, entre o acontecimento e o que nunca aconteceu, entre o físico e não físico, entre passado e futuro, entre desaparecimento e reaparecimento. Como consequência, e não como causa, a performance é trânsito, metamorfose e relevo. De maneira especulativa, essa linguagem carrega o acúmulo de camadas processuais, de sobreposições de linguagens, de interpretações em diferentes campos do saber que fazem da performance uma linguagem fugidia que tem conseguido escapar das fixações nos formatos convencionais. Contudo, sua definição e a sua forma de ser acionada ainda apresentam uma performatividade que continua sendo de fluxos que retomam e abandonam as convenções que 34 têm tentado prendê-la como linguagem artística. Porém, sua captura ainda não é dada; ela é evanescente, ela se desmancha no ar; ela de certo modo pode ser hauntológica. Do destempo hauntológico ou o espectral em Derrida Para esclarecer e exemplificar o entendido como hauntologia ou espectro, buscamos subsídios no livro Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova internacional, de Derrida (1994), no qual o autor aborda o fantasma do comunismo,32 além de propor uma hauntologia33 como a ontologia do fantasma. Nesse contexto, o autor prioriza o estudo da ausência, daquilo que não existe em presença, e sim por ausência, aquilo que como os fantasmas não é mais do que o que já se foi, uma ausência presente, uma falta inarticulada, uma constante assombração. Para Derrida, a ideia do espectro, vista pela presença assediadora do comunismo na Europa no século XIX, envolve uma ideologia construída com base nos escritos de Marx, relacionando-a com a aparição impertinente do comunismo, do futuro perdido, do luto da social- democracia que deu errado diante dos modelos de administração liberal e neoliberal. Segundo ele, ainda se tem repressão porque o comunismo está de forma espectral, entre a erradicação e o reaparecimento. Dessa forma, a aparição intempestiva, fortuita e evanescente apresenta em sua estrutura o destempo do comunismo, que se apresenta como um passado ainda aberto prestes a irromper no presente. Essa noção proposta por Derrida prevê a condição espectral como uma força “furtiva e intempestiva; a aparição do espectro não pertence a este tempo, não a este tempo: entra o fantasma, sai o fantasma, entra novamente o fantasma - Hamlet”34 (Derrida, 1994, p. 13). A inquietação que merece destaque é o destempo do espectro, cuja condição predominante é a aparição intempestiva, e o não reconhecimento do que é e do que pode ser, uma frequência que 32 O comunismo, enquanto modelo social, ia na contramão das mudanças políticas de meados do século XIX, pois, tendo por base sua estrutura, tinha diversos questionamentos quanto à indústria moderna, assim como a noção de bem-estar no nascimento das grandes cidades. Além disso, é a implementação da luz a que potencializaria o surgimento da indústria e a consolidação dos processos de crise do tardo-capitalismo. 33 O termo "hauntologia" foi estabelecido por Derrida como discurso acerca dos modos de ser do presente que vem à presença. 34 Texto original: aparição do espectro é furtivo e intempestivo, o aparecimento do espectro não pertence a este tempo, ele não dá tempo, não este: «Enter the Ghost, exit the Ghost, re-enter the Ghost» (Hamlet). 35 sai do passado para assediar e surpreender outro tempo, uma frequência que não tem corpo fixo e, mesmo imaginária, permite a apreciação do acontecimento enquanto desdobramento da ação. Em relação à frequência espectral, Derrida afirma: O espectro, como seu nome indica, é a frequência de uma certa visibilidade. Mas a visibilidade do invisível. E a invisibilidade, por sua essência, não se vê, por isso é que ela continua epekeina tes ousias, para além do fenômeno ou do ente. O espectro é também, entre outras coisas, o que se imagina, o que se acredita ver e que é projetado: sobre uma tela imaginária, aí onde não há nada para ver. Nem mesmo a tela, às vezes, e uma tela sempre, tem, no fundo, no fundo que ela é, uma estrutura de aparecimento - desaparecimento. Mas eis então que não se pode mais fechar os olhos, à espera do retorno (Derrida, 1994, p. 138). Assim, Derrida habilita um olhar para a questão espectral como aquilo que ainda não nomeamos, mas intuímos; aquilo que permanece opaco, velado, embora ainda não esteja definido. Uma vez que o espectro pode contribuir para alguma modificação no regime da relação entre os corpos, ele deve ser valorizado, sobretudo pela condição de ir “além do tempo” e “além dos corpos”, como possibilidade de retorno em vista daquilo que já acontece, mas que está por vir, por reaparecer. A espectralidade da performance na etimologia A tentativa de abordar a performance pelo próprio termo tem como origem a dificuldade da língua, conforme indicado por diversas estudiosas, por exemplo, Diana Taylor, Eleonora Fabião, Mariana Obersztern e Amelia Jones. No caso específico de Jones, ao fazer um rastreamento da performance, ela aponta que talvez possa ser absorvida muito mais facilmente a partir da etimologia nas línguas europeias, especificamente do francês ou do inglês, visto que sua cronologia mantém um recorte no contexto europeu do século XIV (Jones, 2014). Dentre os achados de Jones, tem-se identificado ao longo da história: To perform: fazer, fazer bem, entender. Etimologia: inglês, do anglo-francês parfumer, alteração de performer, parfurnir, de par-, per- totalmente (do latin per-) + furnir para complementar. Primeiro uso conhecido: século XIV. Performance: Execução de uma ação; representar uma personagem em uma obra; a eficiência que se tem no lugar da ação. Primeiro uso conhecido: século XV. 36 Performing: relativo ou constitutivo de uma arte (como a arte dramática) que implica a atuação do público; exemplo: as artes performativas. Primeiro uso conhecido: 1889. Performative: o ato de fazer ou representar ou relativo de uma arte (como arte dramática) que implica a atuação do público; em linguística, relativo a uma expressão que serve para efetuar uma operação, o que constitui a execução do ato específico em virtude da declaração. Primeiro uso conhecido: 199535 (Jones, 2014, p. 59. Tradução nossa). Segundo Jones, o conceito performance data do princípio da época moderna, tendo implícito uma conexão direta com as estruturas nascentes do capitalismo, a industrialização e o colonialismo, os quais começaram a dar forma à cultura ocidental. Uma questão que merece destaque é o vínculo que estabelece Jones entre o conceito performance e os novos usos do corpo humano do século XV, pois, segundo ela, as primeiras performances ocorreram no começo da era moderna como um meio de definir práticas sociais, o fazer, que quantificava a velocidade e a capacidade de acionar o corpo. Essa condição da performance enquanto fazer corporal envolve pelo menos o desenvolvimento de uma ação em dois tipos de corpo: o fazer do corpo enquanto mão de obra e o fazer do artista no campo das artes teatrais (Jones, 2014, p. 60). O vínculo que estabelece Jones corresponde a duas formas de acionar o corpo humano – enquanto exploração ou mais valia e o acionar teatral –. Dessa forma, a pensadora incorpora um fator fundamental no compreendido como performance, a saber, o uso do corpo como possibilidade contextual de executar, definir e categorizar uma ação corpórea, pois sua definição está ligada ao uso que se dá ao corpo. Entretanto, ao tomar emprestado o conceito para as línguas predominantes no cone sul da América, é possível afirmar que não há um equivalente do termo performance em português ou espanhol. Essa característica anuncia de algum modo a intraduzibilidade36 literal, sua inalienável condição de estrangeira, sua condição marxiana. Ainda assim, Jones assegura que é 35 Texto Original: to perform: to do; to do well; to entertain. Etymology: Middle English, from Anglo-French parfurmer, alteration of perforner, parfurnir, from par-, per- thoroughly (from Latin per-) + furnir to complete First Known Use: 14th century. Performance: the execution of an action; representing a character in a play; the efficiency with which an action takes place. First Known Use: 15th century. Performing: “of, relating to, or constituting an art (as drama) that involves public performance; ex: the performing arts”. First Known Use: 1889. Performative: the act of doing or enacting; or, “of, relating to, or constituting an art (as drama) that involves public performance”; in linguistics, “relating to an expression that serves to effect a transaction or that constitutes the performance of the specified act by virtue of its utterance”. First Known Use: 1955. 36 É importante ter em consideração a ideia de tradução de Benjamin, que propõe que “a tradução é uma forma de sempre voltar ao original” (Benjamin, 2012, p. 133. Tradução nossa). Entretanto, o pensador também afirma que “A tradução sempre chega tarde em relação ao original, de maneira que, para as obras significativas, que nunca encontraram o tradutor de seu tempo que requer na época em que foi criada, a tradução aponta a fase da sobrevivência (Fortleben) dessas obras”. (Benjamin, 2012, p.134. Tradução nossa). Neste texto, entendemos por intraduzível a impossibilidade de voltar ao original, pois aquele ponto de origem sempre está em fuga. Isso também é o que permite uma aproximação ao caráter espectral do traduzível/intraduzível e remete a pensar na figura do espectro como aquele ente que sempre retorna ao passado. 37 possível intuir o sentido da palavra. Assim sendo, para as línguas anglo-saxônicas e para as neolatinas, o conceito performance enquanto linguagem apresenta-se como uma condição estrangeira, com base num estranhamento ambíguo de aspectos pouco definidos. A esse respeito, Albarrán concorda com Jones quando afirma: Os limites da performance (...) são difusos; sua materialidade, débil, e sua presença tão ubíqua quanto evanescente. É muito difícil delimitar que coisa ou o que pode ser a performance, e não apenas porque nós, falantes hispanofalantes, tomamos emprestado essa palavra de outras línguas nas quais há significados muito diferentes37 (Albarrán, 2019, p. 10. Tradução nossa). Ao mesmo tempo, enquanto conceito estrangeiro, o problema que se aponta está na impossibilidade de conciliar uma definição específica, devido à dificuldade de identificação, visto que o que serve como suporte de estudo é o passado dela, e não o acionar enquanto presentidade. Porém, se a performance é uma linguagem do presente vivo, sua definição está sempre atrás do fenômeno, nas costas do acontecimento. Outra visão sobre o caráter espectral da performance que merece destaque é a de Taylor, quem afirma: “Minha visão da performance dá-se com base na fantologia, ghosting, essa visualização que continua atuando politicamente, indo além do acontecimento ao vivo”38 (Taylor, 2017, p. 216. Tradução nossa). De um modo geral, para a pensadora, a performance não é só uma definição, é um permanente acionar político, pois as definições são estados semânticos e fonéticos fixos que tentam emoldurar as coisas ou o acionar dos corpos no presente vivo até as múltiplas formas de linguagem. A performance é uma das formas que tem conseguido se transformar de acordo com seu contexto. Assim sendo, a performance pode ser uma ideia evanescente que se desmancha na fala ou nos sistemas de nomeação. Porém, se a definição de performance em inglês ou francês contém algo que possibilita que muitos falantes de outras línguas consigam identificar características e contornos, a fim de capturá-la de maneira difusa, identifica-se nos estrangeirismos um ponto de partida. Consequentemente, Albarrán parece acertar ao aproximar 37 Texto original: los límites de la performance, como los de todos los fantasmas que se precie, son difusos; su materialidad, débil, y su presencia, tan ubicua como evanescente. Resulta muy difícil delimitar qué cosa o que puede ser la performance, y no sólo porque los hispanohablantes hayamos tomado prestada esta palabra de otras lenguas en las cuales tiene significados muy diversos. 38 Texto original: mi visión de la performance se da con base en la fantologia, ghosting, esa visión que continúa actuando políticamente, yendo más allá que el acontecimiento en vivo. 38 a noção de performance ao espectro e, desse modo, mostrar principalmente a dificuldade de traduzi-la e descrevê-la por seus efeitos. A intraduzibilidade, assim como as múltiplas faces que apresenta o conceito, faz com que a noção de espectro carregue uma particularidade que dificulta a descrição do caráter dessa presença. Reside nisso uma ontologia espectral do conceito performance: exemplos disso surgem na tentativa de enxergar, traduzir e descrever seus estados em outras áreas do conhecimento, onde sua presença é também opaca, dificultando uma percepção clara. O termo nas áreas da saúde está ligado ao bom desenvolvimento do corpo; na economia, à movimentação massiva do capital; nas engenharias, é marcador estatístico do desempenho de alguns modelos. Esses usos deixam entrever a flexibilidade de transformação da performance e seu caráter protético.39 Ao retomar o termo nas artes visuais, é possível reconhecer algumas coincidências que podem produzir contornos, características e limites a partir dos processos e procedimentos da performance. Desse modo, se ao falar de pintura é necessário supor algumas necessidades técnicas, como a sobreposição de pinceladas com pigmento sobre uma superfície, o mesmo acontece quando se fala da performance, pois para poder demarcar seus limites, é necessário compreendê-la pelos aspectos técnicos, isto é, o uso que se dá ao corpo, à execução de uma ação de um corpo físico num espaço e num tempo determinado, carregando mais valor do que a etimologia pode designar. Isso significa colocar em relevo a ação, entendida pela condição corporal no presente, pelas consequências do corpo que é acionado, pelo acontecimento que ela produz. 39 Nesta tese, tomamos por base do conceito "próteses" as formas de inscrição da ação, isto é, a documentação como próteses – artifício que se torna inalienável da ação. Por meio desse dispositivo a ação consegue se desdobrar e se estender no tempo. O arquivo é próteses porque a ação perde presentidade e os sistemas de inscrição do arquivo chegam para complementar e expandir – por meio da escrita em imagem, vídeo etc. – seu tempo. Desse modo, são próteses da ação enquanto extensão de presença. Para esse embasamento conceitual, retomamos o pensamento de Derrida, que aponta pelo menos duas definições que interessam nesta tese do conceito “próteses”. A primeira delas é a escritura como extensão do pensamento; a segunda, a escritura como invenção narrativa. A primeira se encontra no livro La Vida y la Muerte (Derrida, 2021). Derrida, apoiado em Freud, sugere que a próteses é a capacidade física ou metafísica de substituir uma função perdida por outra. Derrida identifica em Freud a próteses no arquivo físico, nas formas de inscrições, impressão, registro e conservação. Dessa forma, o arquivo tem a ver com o suporte técnico como veículo que mobiliza o arquivo, o que se imprime. Já no arquivo metafísico, o dispositivo que prolonga as formas de impressão do pensamento é a escrita sobre um suporte exterior à mente (Derrida, 2021, p.425). A segunda consideração sobre o conceito de próteses encontra-se no livro O monolinguismo do outro. Ou a próteses de origem (Derrida, 1996). No livro, Derrida sugere como próteses a procura de história e de filiação (Derrida, 2001, p. 20), ou seja, a recuperação/invenção de uma narrativa da história familiar como extensão que dá amplitude ao indivíduo para se autoreconhecer. 39 Nesse sentido, é importante apontar que essa condição conceitual segue de mãos dadas com as condições contextuais. Isso é visível no momento de rastrear em Goldberg – uma das precursoras da identificação da performance nas artes visuais –40 para além de uma definição, uma moldura técnica que enuncia os limites e as possibilidades da época. Para a pensadora, a performance constitui-se de “geralmente eventos rápidos, únicos, minimamente ensaiados como uma duração de dez a quinze minutos” (Goldberg, 1978, p. 175). É necessário notar que, em muitos casos, como os novos usos dos corpos, assim como seus desdobramentos, essa primeira definição tem ficado pequena. A fratura do paradigma: a espectralidade que a performance apresenta enquanto fazer artístico e prática da presença física Ao falar da performance vista a partir do fazer, é importante vincular um ponto de partida específico, que são as reuniões na Itália, os saraus que ocorreram simultaneamente ao primeiro manifesto futurista, publicado no jornal Le Figaro no ano de 1909, no qual aclamava- se a liberação da arte dos museus e da instituição, propondo-se como espaços de resistência às nascentes instituições que visavam conter a arte. O primeiro sarau, identificado por Goldberg, ocorreu em 12 de janeiro de 1910. Contudo, o sarau que merece destaque é o terceiro, realizado no dia 8 de março de 1913, no Politeama Rossetti, em Trieste, uma pequena cidade ao norte da Itália.41 Importa enfatizar que a particularidade das primeiras performances se encontra na forma como o corpo dos artistas e do público começaram a interagir. O artista não é mais um ser iluminado, mas um cidadão interagindo com seu entorno. Era facultado ao público entrar, 40 É importante reconhecer que embora Rosalind Goldberg seja uma das precursoras da identificação e da catalogação do conceito performance nas artes visuais, essa linguagem artística não nasceu com ela. Efetivamente, temos evidência de artistas do cone sul, assim como de outros hemisférios, que usaram a ação como prática artística sem saber que estavam produzindo performances. Nesse sentido, as proposições de Goldberg são retomadas nesta tese como ponto de partida para a identificação da performance como linguagem nas artes visuais. 41 O terceiro Sarau merece destaque, pois desencadeou uma nova relação entre arte, espaço expositivo e público, já que no evento foi implementada uma programação diferente nas apresentações tradicionais, que passaram a integrar artistas plásticos como Boccioni, Carrà e Russolo. O evento foi organizado em três momentos de apresentações: no primeiro, foram apresentadas sinfonias futuristas com sons experimentais; no segundo, foram recitadas poesias futurista e leituras de discursos políticos, em que o corpo do poeta tinha uma constante interação com os espectadores e o espaço; no terceiro, foram expostas esculturas futuristas. 40 sair, interromper e ser um elemento a mais na apresentação da ação do artista, como afirma Bishop (2016): É importante lembrar que o que se apresentava naquele momento não eram obras tradicionais, e sim ações breves em uma grande variedade de meios artísticos que anteciparam o que hoje chamamos de artes da performance. Esses saraus (denominação em italiano para reuniões noturnas ou soirée) incluíam normalmente declarações politicas, manifestos artísticos, composições musicais, poesia e pintura42 (Bishop, 2016, p. 72. Tradução nossa). Isso permite resgatar dos futuristas as ações identificadas como as primeiras performances nas artes visuais, pois é ali que se dá uma abertura na obra. Essas variações na concepção do fazer artístico mudam a construção, a execução, o modo de dispor, de se relacionar e de entender as ações no espaço. As obras que tradicionalmente eram entendidas como bidimensionais ou tridimensionais são relidas e expandidas na performance, onde se começa a estabelecer uma relação direta entre os objetos, os artistas, o tempo, espaço e o espectador como fator ativo na obra. Além disso, havia um novo suporte: o corpo humano, o qual era acionado durante o evento e em relação direta com o público. Tal virada na arte, que Bishop chama de “imersão do público” (Bishop, 2016, p. 76), modificou o modo de apreciação, percepção e os modos de proceder na elaboração da obra de arte, sendo os pilares da performance. Com base nos estudos de Goldberg e Bishop, é possível reconhecer, para aquela época, três eixos técnicos em relação ao fazer artístico da performance: 1. presença de declarações políticas do artista; 2. ação em um contexto específico; 3. efemeridade da ação. Essas são circunstâncias que fornecem uma possível estrutura técnica (figura 4), entendida como uma das origens da performance. Dessa forma, se nas primeiras performances de 1910 se propunha uma mudança da tradição artística, como é argumentado por Bishop, é importante reconhecer que o tempo e o espaço em que elas acontecem é o mesmo que questiona o próprio fazer artístico, onde a desmaterialização da obra torna-se um ato de resistência artística e política.43 42 Texto original: Es importante recordar que lo que se presentaba en este contexto no eran obras tradicionales, sino acciones breves en una variedad de medios que anticiparon lo que hoy llamamos de artes de la performance. Estos saraus (italiano para reuniones nocturnas o Soirée) incluían normalmente declaraciones políticas y de manifiestos artísticos, composiciones musicales, poesía y pintura. 43 É importante notar que os pensamentos dos futuristas convidavam o espectador a utilizar seu corpo enquanto dispositivo de mudança social. Segundo Bishop, instaura-se uma arte participativa. Isso trouxe estratégias estéticas e políticas que eram usadas não só para 41 Figura 4 - Performance ou saraus (1909) Fonte: Elaboração do autor (Suárez, 2023a, p.45) Com o surgimento das novas tecnologias, como foram os transistores e receptores da imagem e o som, a presença e a fisicalidade do corpo humano mudam, visto que se começa a ter dispositivos que desdobram a presença e os corpos, gerando um arquivo que começa a possuir uma equivalência à ação ao vivo. Isso é visível na transformação das ações efêmeras em arquivos que vão ser legitimados pelo sistema da arte, levando a uma transformação iminente dos processos e das formas de usar o corpo do artista. Em outras palavras, se no começo do século XX se anuncia uma desmaterialização da obra liderada pelo fazer efêmero da performance, o que vai ser fator de interesse para o sistema da arte, especificamente para o mercado, é a facilidade de arquivar a ação para transportá-la, expô-la e comercializá-la sem necessidade da presentidade e do corpo do artista. É nesse ponto que se cria uma fratura no paradigma da presença física e do uso do corpo do artista, pois a performance, o artista e o público vão começar a ter, no registro, uma mediação do acontecimento. É importante ressaltar quer na expansão da documentação o caráter espectral da performance ganha relevância, pois a ação já não tem um início e um fim específicos, ela já não tem um presente único para ser acionada, e sobretudo, o corpo do performer deixa de ser o suporte da ação, visto que ela começa a incorporar novos corpos, como telas, papeis, objetos, estabelecer uma relação entre arte e vida, como a política vinha ganhando espaço na vida cotidiana. Naquele período, a emancipação social foi ao mesmo tempo emancipação estética, ruptura com as maneiras de sentir, ver e dizer (Bishop, 2016). 42 documentos etc. Nesse processo de materialização da ação, converge a possibilidade de tornar visível a espectralidade44 da performance, de modo que o surgimento da documentação é o ponto chave para outras possibilidades da ação enquanto fenômeno performativo sem corpo fixo. Nesse sentido, a performance torna-se uma linguagem viva que sobrevive devido à sua documentação, vestígios de um espectro ou o surgimento imprevisível do acontecimento que continua. Sobre a documentação enquanto corpo do espectro da ação, é importante esclarecer, como coloca Derrida: O momento fantasmal sobrevém-lhe, acrescenta-lhe uma dimensão suplementar, uma simulação, uma alienação ou uma expropriação a mais. A saber, um corpo! Uma carne (Leib)! Pois, não há fantasmas, não há jamais devir-espectro de espírito sem, ao menos, uma aparência de carne, num espaço de visibilidade invisível, como desaparecer de uma aparição. Para que haja fantasma é preciso um retorno ao corpo, mas a um corpo mais abstrato do que nunca. O processo espectrogênico corresponde, portanto, a uma incorporação paradoxal. Uma vez que a ideia ou o pensamento (Gedanke) são destacados de seu substrato, engendra-se o fantasma dando-lhe corpo. Não voltando ao corpo vivo de que são arrancadas as ideias ou os pensamentos, mas encarnando estes últimos em um outro corpo artefatual, um corpo protético, um fantasma de espírito, poder-se-ia dizer um fantasma de fantasmas (…) (Derrida, 1994, p. 170). Derrida aponta que uma das características do espectro é usar corpos protéticos para seu retorno ao presente. Corpos outros que lhe permitam se tornar matéria, presença física. No caso do retorno da performance, o que lhe permite tornar-se corpo sempre presente são os arquivos (imagens, telas, projetores, papeis, entre outros). Esses estados protéticos não só remetem ao espectro da ação, mas também se apropriam do destempo do acontecimento, já que, é possível enunciar o retorno da ação sempre em um corpo novo, em um suporte novo, em um presente novo, atualizado. Derrida dá o nome ao processo de assédio e sempre retorno do espectro em corpo alheio como spukt.45 44 A teórica Balcarce nomeia o momento espectral como “aquele momento que já não pertence ao tempo, se se entende baixo esse nome a consecução dos presentes modalizados (presente passado, presente atual, “agora”, presente futuro. Questiona-se aquele instante que não é dócil ao tempo, ou pelo menos o que chamamos assim)” (Balcarcel, 2016, p. 176). 45 Segundo Derrida, spukt vem do alemão e nele se encontra “a questão da (re)aparição e o assédio, certamente… aquilo que reaparece" (Derrida, 1994, p.228). Para Derrida, o spukt retoma uma presença constante que ainda não se tem resolvido, uma presença que apresenta uma urgência, porém volta para falar daquilo do passado que ainda está presente. 43 O retorno espectral da performance Para demarcar o retorno do espectro, é importante trazer de volta os dois tempos da performance – o tempo da ação no presente vivo e a ação em estado mediado pela documentação após seu fim –, mas, dessa vez, o primeiro tempo é o estar na performance, estar em presentidade da ação, momento em que os corpos46 do espectador e do performer chocam energeticamente e geram o evento. Dito choque de presentidade é o que cria o acontecimento energético – o envoltório47 da ação, estudado por Renato Cohen.48 Nesse primeiro momento, trata-se de um tempo vivo de percepção sinestésica da ação, um momento de presentidade e experiência energética.49 Já o segundo momento, que corresponde ao acontecimento mediado pelo arquivo, revela-se como o retorno daquilo que foi, o retorno do espectro da ação ao vivo. Uma visibilidade do invisível, do transparente50 equiparado à documentação, ao fenômeno da ação, aquilo que não se sabe, mas se goza (Agamben, 2020, p. 24). Dessa forma, encontra-se no segundo momento da performance também uma condição energética, pois, ao olhar a performance enquanto devir energético, não se fala de um começo ou um fim, fala-se da opacidade, das veladuras que dificultam a visão totalizadora da ação e conduzem à imaginação; fala-se de tudo aquilo que se experimenta onde o registro sempre deixa alguma parte por fora do salvo; fala-se do caráter energético que, mesmo sem apresentar a totalidade da performance, permanece inapreensível e em transformação. Mesmo nos suportes que contêm os registros da ação evidencia-se uma transformação. De fato, o suporte do próprio arquivo apresenta uma mutação, tendo em vista, por exemplo, o 46 É importante esclarecer a proximidade entre happening e performance. No happening, a energia do artista/público também gera um encontro, mas dessa vez é cooperativo ou participativo, encaminhando-se sempre a uma marcação estruturada pelo artista. Ou seja, no happening a energia do espectador e do artista unem-se para juntos criarem a obra. Por outro lado, na performance há um choque energético no presente vivo do espectador/performer, o que gera o acontecimento energético. Em outras palavras, a performance não é dada a partir de um gesto participativo ou colaborativo, e sim o que se cria na fricção dos corpos no presente do espectador/performer. 47 Em Performance como linguagem (Cohen, 2011, p. 143-156), o “envoltório ou astral” é definido como aquela “antena que tem os artistas… para captar fatos, comportamentos, e talvez, de um fator distinto que é captado” (Cohen, 2011, p. 144). Cabe enfatizar o caráter energético que surge em um determinado contexto capaz de criar uma ambiência durante a ação. 48 Renato Cohen (1956-2003) nasceu no Brasil e foi um teórico, pesquisador, ator, diretor e performer pertencente à chamada geração "teatro das imagens". 49 Esta tese assume como “experiência ene