UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE - SP FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA - FCT CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA Rua Roberto Simonsen, 305 - CEP 19060-900 - Caixa Postal 957 - Telefone:0XX – 018.2295375 – 2295352 O LUGAR MARAMBAIA DÁRIO DE ARAÚJO LIMA ORIENTADOR DOUTOR ARIOVALDO UMBELINO DE OLIVEIRA TESE DE DOUTORAMENTO - 2003 Nós dedicamos esta pergunta para todas as categorias sociais porque compartilham respostas referentes às causas primeiras. Agradecemos ao Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira pela sua exaustiva dedicação e profundo conhecimento teórico, técnico, metodológico e filosófico, desprendido para a elaboração desta pesquisa. Ressaltamos que as ricas contribuições do Dr. Edílson Alves de Carvalho são inerentes a nossa vida acadêmica desde 1985. Agora, posso dizer que sem a cumplicidade, a paciência e o afeto de minha esposa não escrevia esta problemática, e que a disciplina exemplificada pela minha família é primordial para o nosso estudo. Ficha Catalográfica LIMA, Dário de Araújo O Lugar Marambaia.Dário de Araújo Lima. Tese de Doutorado. Presidente Prudente/SP: Curso de Pós-Graduação em Geografia/FCT- UNESP, 2003. 1. Geografia. 2.Geografia – Filosofia. I. Título II. Série. SUMÁRIO SINOPSE - 07 SYNOPSIS - 08 RELAÇÃO DE FOTOS - 09 RELAÇÃO DE DESENHOS - 13 RELAÇÃO DE QUADROS - 15 RELAÇÃO DE CARTAS - 17 INTRODUÇÃO - 18 POSTULADOS ACADÊMICOS - 22 PLATÃO - 22 KANT - 39 HEGEL - 62 MARX - 78 QUESTÃO DE PERCEPÇÃO - 123 TÉCNICA DE PESQUISA - 164 CAPÍTULO I A PRAIEIRA - 190 CAPÍTULO II O LABIRINTO - 258 CAPÍTULO III A CASA -290 CAPÍTULO IV O ESTALEIRO - 365 CAPÍTULO V A PESCA - 440 CAPÍTULO VI AS DOCAS - 514 CAPÍTULO VII O MÍSTICO - 560 CONSIDERAÇÕES FINAIS - 646 OBRAS CITADAS – 650 7 SINOPSE A investigação acadêmica consiste em uma visita ao pensamento de Platão, Kant, Hegel e Marx objetivando buscar a gênese do espiral/trança, e encontrar categorias filosóficas que nos permitam levar para o conceito geográfico lugar uma releitura de seu postulado acadêmico, e não viabilizar que o conceito social/natural continue sendo apresentado ao nível de uma geografia desprovida da influência do Método Heráclitico e, muitas vezes, reprodutora da noção de lugar numa concepção popular e de uso diário. A observação participante permitiu um certo registro etnográfico da comunidade do Lugar Marambaia e do embate capital/trabalho – imaginário/simbólico que é inerente ao conteúdo do conceito geográfico lugar e do modo de vida ímpar, evidenciado na historicidade do tempo lento/cíclico que é imbricado na intersubjetividade/interobjetividade do traço cultural, que encontra-se espraiado no labirinto do lobisomem, nas portas sempre abertas, nas tempestades de Iansã, nas pescarias nas embarcações que nunca secam, nas entidades infernais/celestiais que anunciam os seres racionais/mitológicos, nos antepassados, nos vivos/mortos e nos hemisférios platônicos através da realização do misticismo/esoterismo comunitário, intrínseco ao processo de transferência de sobretrabalho junto das feitiçarias das velhas pedras do cais, que são resultados e condições para a capitalista reprodução simples da pesca artesanal de caíco, bote e chalupa enquanto saber fazer, e fazer, do capitalismo que não possuí uma única forma de extorsão de trabalho, que sendo natureza é natureza orgânica/inorgânica de si mesmo e de todos os outros documentos geográficos idealizados/materializados na praieira, no labirinto, na casa, no estaleiro, na pesca e na doca. 8 SYNOPSIS L’ investigation académique consiste en une visite à la pensée de Platon, Kant, Hegel et Marx en objectivant la recherche de la gênese de la spirale/tresse et trouver des catégories philosophiques qui nous permettent donner au concept géographique lieu une relecture de son postulat académique et pas viabiliser que ce concept social/naturel continue à être presenté ou niveau d’ une géographie dépourvue de l’influence de la méthode d’ Heraclite et, plusieurs fois reproductrice de la noticn de lieu dans une conception populaire et usuelle. Donc l’observation participante permit um certain registre éthnografique de la communauté du lieu Marambaia et du choc capital/travail – imaginaire/symbolique inné ou contenu du concept géographique lieu et du mode de vie qui montre l’évidence de historicité du temps lent/cyclique qui est entrelacé dans l’intersubjectivité/interobjectivite du trait cultural qui se trouve épars dans le labyrinthe da “lobisomem” , aux portes toujours ouvertes, aux tempêtes de “Iansã” aux pêches, aux embarcations quí ne séchent jamais, aux entités infernales/celestes qui annoncent les êtres racionaux/mythologiques, aux ancêtres, aux vivants/morts et dans les hémisphéres de Platon atravers la réalisation du mysticisme/ésoterisme communautaire intrinséque au processus de transfert du travail non payé uni aux sorcelleries des vieilles pierres du quai qui sont résultats et conditions de la reproduction capitaliste simple de la pêche artisanale en “caico” , en barque ou en chaland, tandis que savoir faire, et faire du capitalisme qui ne posséde qu’une unique forme d’éxtorsion du travail qui étant nature est nature organique/inorganique de soi-même et de tous les autres documents géographiques idealisés/materialisés, à la plage, au labyrinthe, à la maison, au chantier, à la pêche et au quai. 9 RELAÇÃO DE FOTOS Foto 1: A Escala - p.18 Foto 2: O Arroio da Panasqueira -p.192 Foto 3: A Chegada do Estranho -p.195 Foto 4: A chegada do Estranho -p.195 Foto 5: A chegada do Estranho -p.196 Foto 6: O Esconderijo -p.198 Foto 7: O Esconderijo -p.199 Foto 8: A Saída do Estranho -P.202 Foto 9: A Saída do Estranho -p.203 Foto 10: A Saída do Estranho -p.203 Foto 11: As Carroças -p.206 Foto 12: O Carro-de-Mão -p.206 Foto13: A Balsa -p.211 Foto 14: A Ponte -p.212 Foto 15: O Velho Quinota -p.221 Foto 16: O Sábio -p.224 Foto 17: A Enchente -p.231 Foto 18: A Enchente -p.231 Foto 19: A Divindade -p.244 Foto 20: A Influência Portuguesa -p.260 Foto 21: A Influência Portuguesa -p.260 Foto 22: O Labirinto -p.263 Foto 23: O Labirinto -p.264 Foto 24: O Labirinto -p.264 Foto 25: Os Exus -p.275 Foto 26: Santa Bárbara Guerreira -p.288 Foto 27: A Festa no Céu -p.298 Foto 28: O Telhado de Marcega -p.309 Foto 29: A Porta Aberta -p.312 Foto 30: A Cerca -p.314 Foto 31: A Cerca -p.314 Foto 32: A Tramela -p.318 Foto 33: A Casinha -p.325 Foto 34: A Frente Azul -p.329 Foto 35: A Frente Rosa -P.329 Foto 36: O Gongar de Ogum -p.339 Foto 37: A Reciprocidade -p.344 Foto 38: Os Bicuins -351 10 Foto 39: O Quarto -p.354 Foto 40: O Tempo Lento/Cíclico -p.363 Foto 41: O Estaleiro -p.365 Foto 42: O Estaleiro -p.365 Foto 43: A Imagem de Moises no Estaleiro -p.370 Foto 44: A Fateixa -p.372 Foto 45: A Fateixa -p.373 Foto 46: O Motor -p.374 Foto 47: O Lixamento -p.375 Foto 48: A Eterna Água -p.376 Foto 49: A Eterna Água -p.377 Foto 50: O Caíco Cheio D`Água -p.378 Foto 51: O Caíco Cheio D`Água -p.379 Foto 52: As Taquaras do Labirinto -p.397 Foto 53: O Velho Cartógrafo -p.400 Foto 54: A Espinha Dorsal -p.404 Foto 55: A Espiha Dorsal –p.404 Foto 56: A Espinha Dorsal -p.405 Foto 57: O Pescador Artesanal e o Remo -p.408 Foto 58: O Barraco -p.411 Foto 59: O Barraco -p.412 Foto 60: As Redes em Casa -p.414 Foto 61: O Galpão -p.414 Foto 62: O Interior do Galpão -p.415 Foto 63: Nossa Senhora dos Navegantes no Galpão -p.416 Foto 64: O Cata-Vento -p.417 Foto 65: O Transporte da Embarcação -p.432 Foto 66: A Quilha -p.433 Foto 67: O Sistema de Carretéis -p.433 Foto 68: O Esteio -p.434 Foto 69: O Menino e o Carpinteiro -p.434 Foto 70: A Saída do Lugar -p.438 Foto 71: A Cidade no Horizonte -p.438 Foto 72:O Pescador Artesanal –p.440 Foto 73:O Liquinho –p.463 Foto 74:As Pedra –p.498 Foto 75:As Redes do Labirinto –p.503 Foto 76:O Desenhista do Labirinto –p.504 Foto 77:A Confecção das Redes –p.509 Foto 78:O Pescador Milenar –p.512 Foto 79: Os Contempladores do Cais –p.514 Foto 80: A Carro –de – Mão do Cais –p.517 Foto 81: A Balança das Docas –p.518 11 Foto 82: Os Caminhões –p.519 Foto 83: A Negra do Negro Lucas –p.520 Foto 84: O Mercado Público Municipal –p.522 Foto 85: O Mercado das Docas –p.523 Foto 86: A Balança da Salga –p.534 Foto 87: A Salga da Santa –p.536 Foto 88: Nossa Senhora dos Navegantes na Salga –p.541 Foto 89: Ogum na Casa –p.542 Foto 90: Iemanjá na Casa –p.543 Foto 91:O Teto junto ao Céu –p.543 Foto 92: É dando que não se recebe –p.550 Foto 93:A Iniciação ao Saber Imposto–p.561 Foto 94: A Passagem das Meninas–p.564 Foto 95: A Bocha –p.568 Foto 96: A Sinuca do Labirinto–p.568 Foto 97: O Feitiço–p.578 Foto 98: O Feitiço–p.578 Foto 99: A Tijela do Inferno–p.579 Foto 100: A Tijela no Inferno– p.580 Foto 101: As Guias convidando os Infernais–p.582 Foto 102: O Sino badalando no Inferno–p.582 Foto 103: A Pomba Gira–p.583 Foto 104: O Inferno Pertinho do Céu–p.583 Foto 105: A Festa Infernal–p.584 Foto 106: O Exu–p.584 Foto 107: O Altar de Exu–p.585 Foto 108: Oferendas para Exu–p.585 Foto 109: A Mão que domina os Ventos–p.588 Foto 110: O Navio e o Caíco–p.588 Foto 111: Tanto para tão Pouco–p.589 Foto 112: Tanto para tão Pouco–p.589 Foto 113: Os Orixás no Nirvana–p.593 Foto 114: Os Orixás no Nirvana–p.593 Foto 115: O Andor da Virgem Maria–p.596 Foto 116: O Andor de Ogum–p.597 Foto 117: O Andor da Santa Cruz–p.597 Foto 118: A Primeira Comunhão–p.600 Foto 119: As Curandeiras–p.602 Foto 120: O Casal de Curandeiros–p.602 Foto 121: A cura do Pescoço–p.606 Foto 122: O Begue –p.608 Foto 123: O Begue–p.608 Foto 124: A Conversa com o Santo–p.612 12 Foto 125: O Cruzeiro–p.628 Foto 126: O Orixá Ogum e o Santo Jesus–p.629 Foto 127: A Procissão da Santa Cruz–p.630 Foto 128: A Espada de Ogum–p.632 Foto 129: A Procissão de Ogum-p..633 Foto 130: O Sino Convidando os Celestiais–p.636 Foto 131: Pedidos e Obrigações para os Orixás p.637 Foto 132: A Caminho da Iluminação dos Orixás–p.638 Foto 133: O Orixá Iemanjá vindo ao Mundo das Sombras ––p.639 Foto 134: Navegando atrás da Iluminada Virgem–p.640 Foto 135: O Super Vendaval A Escala –p.641 Foto 136: Iansã –p.642 Foto 137: A Eterna Luz –p.644 13 RELAÇÃO DE DESENHOS Desenho de Candinho 1: A Embarcação de 1960 -p.368 Desenho de Candinho 2: A Embarcação de 2003 -p.369 Desenho de Xaim 3: A Divisão Vertical da Madeira do Costado - p.390 Desenho de Bolinha 4: Estrutura Artesanal de Madeira do Caíco, da Chalupa e do Bote -p.409 Desenho de Bolinha 5: Caíco, Bote ou Chalupa de Boca Aberta - p.410 Desenho de Bolinha 6: Volga e Remo -p.410 Desenho de Lindo 7: Bote ou Chalupa com Barraco -p.411 Desenho de Antônio do Quim 8: O Zigue-Zague –p.423 Desenho de Xaim 9: O Zigue-Zague –p.424 Desenho de Bila 10: A Talha –p.430 Desenho de Bila 11: A Mobilidade em Terra -p.430 Desenho de Biguá 12: A Chave de Mão – p.441 Desenho de Biguá 13: A Rede do Peixe-Rei – p.443 Desenho de Candinho 14: A Rede do Peixe-Rei – p.443 Desenho de Biguá 15: A Rede da Tainha –p444 Desenho de Biguá 16: A Rede do Linguado –p.444 Desenho de Biguá 17: A Pesca de Trolha do Cascote –p.445 Desenho de Bila 18: Parelha Média de Bote com Barraco –p.447 Desenho de Bila 19: Parelha Pequena de Caíco –p.447 Desenho de Bila 20: Parelha Média de Bote com Boca Aberta – p.448 Desenho 21: Colemãn –p.463 Desenho 22: A Pesca de Calão – p.478 Desenho de Antônio do Quim 23: A Rede de Bagre –p.480 Desenho de Gaita 24: Andana -p.486 Desenho de Gaita 25: Pesca da Corvina em Bote ou Chalupa – p.488 Desenho de Gaita 26: Pesca da Corvina em Caíco –p.489 Desenho de Carocha 27:A Pesca de Coca –p.491 Desenho de Carocha 28: A Rede de Aviãozinho ou Saquinho – p.492 Desenho de Carocha 29: A Pesca de Berimbau –p.493 Desenho de Carocha 30: A Pesca de Berimbau –p.493 Desenho de Bila 31: A Pesca de Plancha –p.495 Desenho de Gaita 32: A Pesca de Saco do Camarão –p.496 Desenho de Xaim 33: A Pesca de Camarão –p.498 14 Desenho de Xaim 34: A Pesca de Camarão –p.499 Desenho de Xaim 35: A Pesca de Camarão –p.499 Desenho 36: Os Rasos –p.510 15 RELAÇÃO DE QUADROS Quadro 1: Classificação Etária no Lugar -p.207 Quadro 2: Agricultores -p.234 Quadro 3: Cultivo -p.236 Quadro 4: Apelidos -p.286 Quadro 5: A Classificação das Embarcações -p.390 Quadro 6: A Profundidade da Laguna -p.392 Quadro 7: As Estações do Lugar -p.419 Quadro 8: Braças de Rede –p.445 Quadro 9: Classificação das Parelhas –p.446 Quadro 10:Tripulação das Parelhas Pequenas –p.446 Quadro 11:Tripulação das Parelhas Medias –p.446 Quadro 12:Rancho –p.451 Quadro 13:Parelhas de Caícos, Botes e Chalupas –p.452 Quadro 14:Transporte e Pesca –p.452 Quadro 15:Jornada de Trabalho –p.460 Quadro 16:Safras –p.461 Quadro 17:Turno das Pescarias –p.461 Quadro 18:Quantidade de Tripulantes –p.462 Quadro 19:Período de Surgimento das Redes de Pesca –p.478 Quadro 20:Tipos de Pescarias de Camarão –p.503 Quadro 21:Opções de Pesca –p.506 Quadro 22:A Distância das Pescarias –p.508 Quadro 23:A Localização das Pescarias –p.508 Quadro 24:A Mobilidade de Rede de Pesca –p.508 Quadro 25:Grandes Safras Extintas –p.512 Quadro 26:Classificação de Pescado –p.525 Quadro 27:Os Atravessadores de Pescado do Lugar –p.529 Quadro 28:As Empresas de Compra e Beneficiamento do Pescado em Ordem de Competitividade Econômica Decrescente –p.529 Quadro 29:As Empresas de Beneficiamento do Pescado –p.529 Quadro 30: As Empresas de Beneficiamento do Pescado –p.530 Quadro 31: A Classificação do Pescado –p.531 Quadro 32: A Exemplo de Classificação de Pescado –p.531 Quadro 33: Os Pescados Pesados e Classificados –p.538 Quadro 34:Rendimentos da Tripulação e do Atravessador em Parelha Pequena e Média nas Salgas –p.547 Quadro 35:Rendimento da Tripulação e do Atravessador em Parelha Pequena e Média nas Docas –p.547 16 Quadro 36: Os Aposentados –p.549 Quadro 37:A Partilha nas Parelhas –p.552 Quadro 38:Rendimentos da Tripulação em Parelha Pequena e Média –p.553 Quadro 39:A Partilha dos Patrões –p.554 Quadro 40:A Transferência do Sobretrabalho –p.555 Quadro 41:Os Rendimentos das Empresas do Mercado das Docas –p.555 Quadro 42:Os Preços das Embarcações –p.557 Quadro 43:Os Nomes dos Botes –p.643 17 RELAÇÃO DE CARTAS Carta 1: Marambaia e Ilha dos Marinheiros -p.165 Carta 2: Canto do Mangue e Comunidade do Maruim -p.383 Carta 3: Canto do Mangue e Adjacências -p.384 18 INTRODUÇÃO Foto 1: A Escala 19 Canção do Pescador (Praieira)1 Praieira dos meus amores Encanto do meu olhar Quero Cantar-te os rigores Sofridos à pensar, em ti Sobre o alto mar Oh! não sabes que saudade Padece o nauta ao partir Sentindo na imensidade O seu batél fugir Incerto do porvir Sentindo na imensidade O seu batél fugir Incerto do porvir Os perigos da tormenta Não se comparam querida As dores que esperimenta A alma na dor ferida Na hora da partida Praieira meu pensamento Linda flor vem escutar A história do sofrimento De um nauta à recordar Amores sobre o mar 1 MENEZES, Otoniel e MEDEIROS,Eduardo. Canção dos Pescadores (Praieira). Natal/RN:Sd. 20 A história do sofrimento De um nauta à recordar Amores sobre o mar Praeira linda entre as flores Desse jardim potiguar Não há mais fundos horrores Iguais a estes do mar Passados a pensar A mais cruel noite escura Ressacas e cerração Não trazem tanta amargura Como a recordação Que aperta o coração Não trazem tanta amargura Como a recordação Que aperta o coração Quem vê ao longe passando Uma vela pano ao vento Não sabe quanto lamento Vai nela soluçando A pátria procurando Adeus a luz que desmaia No coqueiral ao sol pôr E bem juntinho da praia O albergue, o ninho, o amor Do humilde pescador 21 E bem juntinho da praia O albergue, o ninho, o amor Do humilde pescador Praieira do meu pecado Morena flor não se esconda Quero ao sussurro das ondas Do Potengi amado Dormir (ou viver) sempre ao teu lado Depois de haver dominado O mar profundo, bravio Ás margens verdes do rio Serei teu pescador Oh! pérola do amor Ás margens verdes do rio Serei teu pescador Oh! pérola do amor2 2 "Pode acontecer de haver falhas, porque eu tirei da lembrança, que por sinal é bem antiga. Beijos Alire. Ela enviou para mim, já agradeci." Obervação: trata-se do afloramento da memória, através da senhora minha mãe conversando com a minha tia Alire, ambas já com seus 70...anos. Elas falam sobre esta música que fui educado ouvindo mamãe cantar e pedi que escrevessem para este ensaio. É Dona Teresinha da Café Filho, esposa de Crispim, filha de Antônio Frazão e irmã de Alire. 22 POSTULADOS ACADÊMICOS PLATÃO Nossa preocupação primária consiste na necessidade de procurar no interior do debate realizado por filósofos, categorias que nos permitam ter "pressupostos"3 para fazer uma releitura do conceito geográfico lugar. Tivemos a preocupação de iniciar o debate com Platão, um dos primeiros filósofos ocidentais a apresentar a categoria contradição. O idealismo do pensamento platônico é fundamental para uma investigação sobre “o mundo dos mitos astrais”, existente na convicção absoluta do pescador artesanal, manifesta e registrada no seu modo de vida, via inquestionável certeza de que o mito não é uma idéia falsa referente à realidade social historicamente imposta. 3 MONDIN. Battista. O Homem, Quem é Ele? (Elementos de Antropologia Filosófica). (10 ed.)São Paulo: Paulus,1980. (p.18): "Hoje é comum, no início de qualquer empresa científica , enumerar os postulados , os princípios, os postulados dos quais se pretende partir." 23 O pescador entende que o mito não é um mito, mas um dado histórico que é alicerce da maneira de viver da comunidade praieira4. Segundo Platão, este mundo ilusório representado nas imagens falsas sobre os fatos, seres, criaturas e coisas, faz parte do mundo sensível que é incerto e particular. Na praieira o que o pensamento racional5 tem como sendo ilusório, sempre faz parte do mundo objetivado no racionalismo do processo de trabalho pesqueiro artesanal. Há uma séria contradição no momento geográfico em que o mito passa a ser resultado e condição para a reprodução social ímpar do modo de vida do pescador artesanal. Ogum, Exu, Iemanjá, a Virgem Maria, São João Batista e a Santa Cruz são realidades geográficas 4 DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: Hucitec, 1996. (p.66): "Essa última modalidade, a dos comunitários, ...que existem em regiões relativamente isoladas, sendo característica de comunidades tradicionais, como a caiçara, a dos jangadeiros, a dos ribeirinhos etc. Essas formas de apropriação comunal (comum, comunitária) de determinados espaços e recursos...do extrativismo animal(caça e pesca)....Além dos espaços usados em comum, podem existir os que são apropriados pela família ou pelo indivíduo,...existem em comunidades com forte dependência do uso de recursos naturais..., demograficamente pouco densas....Esses arranjos são permeados...de parentesco, de compadrio, de ajuda mútua, de normas e valores sociais que privilegiam a solidariedade intragrupal." QUAINI, Massimo. Marxismo e Geografia. [Trad. Liliana Lagana Fernandes] Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.(p.88): "...Antes de mais nada, o conceito de trabalhador livre, contraposto à figura do proprietário e membro da comunidade que trabalha,..." MARTINS, José de Souza. A Chegada do Estranho. São Paulo: Hucitec,1993.(p.31): "São populações compelidas, por isso, a praticar uma vida de duplicidade, a ocultar elementos de sua cultura e a revelar apenas o que é sancionado pelos que as dominam." 5 GOBLOT, Jean-Jacques. O Surgimento do Pensamento Racional e o “milagre Grego”. La pensée, N.104, Agosto, 1962. 24 por serem criadoras e recriadoras da história individual e comum do lugar. O equívoco é acerto e o engano é certeza, sem serem, sendo. Os mitos6 são subjetivados no imaginário (eles não estão no mundo dos sentidos platônicos) e centrados na objetividade da pesca artesanal, no caminhar lento no labirinto, na procura certeira da curandeira e na procissão da Santa Cruz, que é motivo de feriado e de pedido de piedade ao mundo celestial/terreno.7 O fato histórico de que o lugar tem a possibilidade cultural8 de possuir atributos diferentes, que entre si têm divergências internas, faz com que uma reflexão acadêmica sobre os opostos 6 CRIPPA, Adolpho. Mito e Cultura. São Paulo:Convívio,1975. (p.69 e 71): "O mito não apenas faculta o nascimento do mundo cosmos. O mundo da fascinação e da revelação do Ser, instalado pelo mito, permanece como garantia ontológica de todas as tentativas de encontrar as origens e fundar a verdade dos entes." "O que mais impressiona o estudioso dos mitos é a preocupação que neles se manifesta pelas origens." 7 FELÍCIO, Vera Lúcia G. A Imaginação Simbólica nos quatro elementos bachelardianos. São Paulo: EDUSP, 1994.(p.43): " ...Não atingindo a objetividade , a imaginação, por definição, é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de nos libertar das imagens primeiras, de mudar as imagens." 8 REALE, M. Introdução à filosofia. São Paulo: Saraiva, 1994.(p.203): "O elemento axiológico é a essência da compreensão da cultura. No fundo, cultura é compreensão; e compreensào é valoração. Compreende, em última análise, é valorar, é apreciar as coisas sob prismas de valor." 25 e as reminiscências9 seja um dos sustentáculos filosóficos para se pensar no conceito recordação na dimensão de memória, como fruto de um diálogo coletivo10. Platão coloca em pauta que o mundo das idéias que possuímos na pré-existência uterina se conserva ou se perde no esquecimento. Assim, só a memória, enquanto recordação, permite readquirir as idéias pré-existentes. O processo de reaver o momento histórico, fazendo-o voltar a ser realidade das idéias substantificadas no momento objetivado, só é possível por meio da reprodução das cenas, e pensar sobre os tais atos sociais é fazer uma ponte de ligação para o aprofundamento da montagem do cenário do palco, do espaço cênico, afirmo, do lugar que se manifesta de forma verticalizada, 9 PENHA, João da. Períodos filosóficos. São Paulo: Ática, 1989. (p. 38): "... Por isso, Platão proclama que o verdadeiro conhecimento é uma reminiscência; o saber é recordação. Conhecer é reconher." CARVALHO, Sílvia Maria S. Orfeu, orfismo e viagens a mundos paralelos. São Paulo: UNESP, 1990. (p.61): "...Quando Orfeu decide ir buscar Eurídice nos Infernos, ele é ajudado por Heurtebise que o leva diante do espelho e lhe diz: Eis o seu caminho(...).Entrego-lhe o segredo dos segredos.Os espelhos são as portas pelas quais a Morte vai e vem." ZIKAS, Dimitrios N. de Platão Fédon a Imortalidade da Alma (Comentários).Curitiba: Cyros,1990. (p.38): "De modo que o princípio da recordação é a semelhança e a dessemelhança. Cada reminisciência pressupõe uma instrução anterior . O descobrimento de verdades que numca foram ensinadas tem como princípio os semelhantes e dessemelhantes." 10 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 2:3-13,1989. (p. 10): "O que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual e do grupo.” GOFF. Jacques Le. História e Memória. (4ed. ) Campinas/SP:UNICAMP, 1996. (P. 424): "O processo da memória no homem faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura desses vestígios. " 26 porque só há lugar se houver diálogo enquanto memória11, que se expressa na contradição em movimento refletida na água da praia lagunar, que mergulha e olha para si própria já que é pura contradição social. Se o mundo invisível é intransformável, só será possível ocorrer a recriação cultural do lugar, presente nas suas tradições e costumes, se todos os gestos, olhares, falas e trabalhos, que sempre constituem o quebra- cabeça, estiverem presentes enquanto comunidade dotada de singular jeito de viver. Na memória intrínseca do mundo invisível das idéias, o tipo peculiar de modo de vida é conteúdo e forma de sua espacialização geográfica enquanto lugar, e a recíproca é verdadeira. Sabemos que a falta de um dado na “carta geográfica” faz com que a sua leitura possa ser equivocada, o mundo das idéias foi transformado e o diálogo reprodutor do lugar, enquanto conceito social, não viabiliza a própria existência de identificação do lugar, cujo conteúdo é a reminiscência que é potencialmente retroalimentadora dos costumes e das tradições que só ocorrem como lugar Marambaia, que igual não há. A pesquisa sobre a imortalidade da alma e a recordação, entendida enquanto “memória”, são categorias filosóficas abalizadoras para a elaboração de uma tentativa de entendimento das contradições implícitas na opção histórica marcada na comunidade. Onde o aprendizado é recordação e reprodução simples da pesca artesanal, onde a idéia pensada como valor com conteúdo absoluto nos afirma via noção de contradição que no absoluto, do conteúdo da idéia há o devaneio e a imaginação do Exu. Se na alma estão as idéias, as recordações, o saber, o conhecer e o reconhecer (o mundo da verdade) falamos que na Marambaia é no nível do imaginário que estão os 11 PANTALEÓN, Carlos. Adaptação de Estruturas Arquitetônicas Obsoletas. Instituto de Diseño-Facultad de Arquitectura - Universidad de la Republica - Montevideo/Uruguay - Tradução: Ana Lúcia Costa de Oliveira - FAURB/UFPEL - Pelotas/RS, sd. (p. 6): "O tema da memória é subjacente à própria condição humana, pois suas raízes se fundamentam na necessidade de auto conservação e no medo. O impôs à auto conservação nasce do medo a perda do próprio eu, medo à perda da identidade, medo à morte, medo à destruição." 27 Orixás, os Deuses, as Deusas e o Soldado Guerreiro que mata o mal. Na praia, o ilusório faz composição e estruturação do mundo da verdade. A metempsicose do orfismo e do pitagorismo12 se faz presente no momento histórico em que os caminhos de areia, a possível existência do Quilombo do Negro Lucas13 e a moradia de negros na cidade de Rio Grande transferiu parte da idéia, enquanto valor com conteúdo absoluto, para os portugueses que originaram a comunidade da Marambaia. Observamos que os portugueses estão recordando e sentindo saudades de uns negros que “foram”, quando rezam e pedem proteção para Ogum. São as reminiscências dos que foram, sem jamais terem ido. 12 CARVALHO, Sílvia Maria S. Orfeu, orfismo e viagens a mundos paralelos. São Paulo: UNESP, 1990. (p. 21): “O orfismo deixou marcas profundas na filosofia grega, particularmente em Tales, Anaximandro, Anaxímenes, nos pitagóricos, em Xenofonte, Parmênides, Heráclito, Empédocles, Platão e nos neoplatônicos. Encontramos reflexos do orfismo em poetas como Píndaro, Ésquilo, Eurípides. Mas as relações mais intensas se dão com Platão e os pitagóricos. Platão se refere ao orfismo em vários diálogos: República, Banquete, Crátilo, Timeo, Leis. Na verdade, o orfismo, o pitagorismo e o platonismo se situam na mesma linha espiritualista. As afinidades saltam aos olhos: dualismo alma e corpo; corpo como cárcere; preexistência e sobrevivência da alma; reencarnação; desejo de salvação e purificação.” 13 PESAVENTO, Sandra Jatahy ( Coord ). De escravo a liberto, um difícil caminho. Porto Alegre: SE/CTD, 1988. (p.11): "...As notícias que temos apontam o Quilombo do Negro Lucas , na ilha dos Marinheiros, frente à cidade de Rio Grande, uma concentração de mais ou menos 10 escravos fugidos e cuja duração parece ter sido de mais de dez anos." 28 A palavra grega psychê14 nos remete a noção de “princípio de vida”, o que diferencia o animado do inanimado. O sentido da palavra não tinha relação com a noção de imortalidade. O indivíduo era entendido como sendo um elemento inseparável do mundo (naquela sociedade). Quando se falava em individualidade não se direcionava a questão para a subjetividade humana. O entendimento de divindade do espírito, apresentado pelo estudo platônico, viabiliza a análise de um “eu” transcendente, que é fruto do debate de Pitágoras sobre o fato de que a alma é imortal (o intelecto enquanto elemento constitutivo da alma é sua dimensão imortal). A imortalidade é o que o ser humano possui de mais verticalmente humano e máximo do divino. Através da dialética ascendente, a alma, numa compreensão de ser uma relação do “intermediário” entre o mundo das idéias e o sensível, atinge o nível da verdade absoluta. A alma é vista como sendo superior ao plano sensível e dotada de uma subjetividade pura (divinização do ser humano), isto é, a subjetividade pura é a parte racional da alma, dotada de uma característica fundamentada no fato de que a alma recria a estrutura do mundo das idéias em si mesma, isto é, a alma realiza uma relação direta com o princípio primário de todo o conhecimento antes de ter sido submergida a transmigração (metempsicose) ocorre um deslocamento da racionalidade da alma ao ideal (a estrutura da objetividade)15. Assim, a evidência atinge o mundo dos sentidos (dialética descendente) ciente da distinção entre o sensível e o ideal. Ora, ao ser intermediária a alma pertence ao plano ideal e 14 PENHA, João da. Períodos filosóficos. São Paulo: Ática, 1989. (p. 12) CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995. (p. 35): “A physis é imortal e as coisas físicas são mortais.” SARDI, Sérgio Augusto. Diálogo e dialética em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. (p. 23): “Primariamente, a palavra grega psychê significa princípio de vida, ... e seu sentido não estava intrinsecamente vinculado à idéia de imortalidade.” 15 SARDI, Sérgio Augusto. Diálogo e dialética em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. (p. 33): “A evolução é realizada por uma inter-relação entre subjetividade e intersubjetividade, que conduz à objetividade”. 29 ao devir e que cada ser humano possui um anámnesis (identidade racional).Platão coloca o debate de que a estrutura interna do pensamento é 30 dialética e que sinaliza uma síntese última que une o ideal e o devir16. 16 SARDI, Sérgio Augusto. Diálogo e dialética em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. (p. 29): “Assim, a autocompreensão da alma conduz à realidade da Idéia, porque a alma, refletida em si mesma, encontra o ser. A transcendência da alma se dá por via da interioridade. Nesse itinerário, o discurso (o logos) encontra a transcendência, e a dialética torna-se viável enquanto projeto humano e, por que não dizer, enquanto mecanismo de construção de um projeto de humanidade, a utopia (u-tópos), o não-lugar, que impele à ação política transformadora, à construção permanente da “República” Ideal, enquanto expressão da evolução humana ao nível de suas relações sociais.” LlANOS, Alfredo. Introdução a Dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. (p . 51): " Temos, pois que só o dialético alcança o conhecimento da essência de cada coisa, mas que, chegado ao coroamento e ao cume de todas as demais ciências , nào vê já as coisas e os seres como postos uns ao lado de outros; possui agora de todo o conjunto uma visão sinótica , graças à gual tudo se lhe aparece à luz de uma unidade que não é outra coisa senão a Idéia do Bem." KONDER.Leandro. O que é dialética. São Paulo: Abril Cultural, 1985. ( p.26): "Hegel usou a palavra alemã aufheben, um verbo que significa suspender. (...)Para ele , a superação dialética é simultaneamente a negaçào de uma determinada realidade , a conservação de algo de essencial que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível superior." Observação: Os colonos gaúchos descendentes de alemães afirmam taxativamente que "aufheben" se traduz por levantar algo, alguém ou alguma coisa que se encontra no nível do chão ou no mais baixo nível. Eles dizem que refere-se somente ao sentido de erguer alguma coisa do chão e não de outro patamar superior( exemplo : erguer uma panela de cima da mesa), e nem de mantê-la erguida para protegê-la. Eis o convite para a mobilidade, digo, para os contrários em movimento. " Aufheben é levantar! Levantar do chão.“(Melitta Ilka Schuch Gonçalves- Ijui / RS). Para os colonos alemães a noção da tradução tem uma conotação idealista porque é levantar do nível mais baixo para a ascensão. Assim, eles remetem o leitor para o mundo das idéias de Platão e denunciam a influência deste filósofo no pensamento de Hegel, sempre confirmada pela história do embate filosófico. 31 Neste processo histórico, a inter-relação existente entre subjetividade e intersubjetividade é o ser, que ao se dirigir ao outro, instantaneamente expõe- se e desloca-se ao outro ser, e desta forma, há uma relação entre a subjetividade e a objetividade. Éros (amor) é a força motriz que impõe, sustenta e procura a auto- superação do ser que é subjetiva e intersubjetiva e ocorre na psychai e entre as mesmas, é uma aproximação do ser ao plano da divindade (uma relação entre o devir e a idéia)17. Tal registro nos coloca o homem como um ser divino, já que, nas relações de lealdade/afetividade do lugar Marambaia há o eterno diálogo dos moradores com os seus “parentes” antepassados documentados culturalmente nos divinos orixás. É o amor que permite o divino ser inerente entre os homens e faz do indivíduo potencialmente um criador (é o poder que une e cria no mais alto patamar), isto significa que este processo é originário de uma carência básica que tem o ser de reencontrar pelo diálogo a unidade que recria a alma e ultrapassa a fala velha e promove um novo discurso diferente do anterior que denuncia a eterna busca pela aproximação da verdade. A ausência do outro promove o aniquilamento do homem porque ele precisa basicamente da subjetividade do outro, que une os homens como nas relações comunitárias do lugar. Tais relações sociais permitem afirmar que o amor do mundo das idéias é o verdadeiro amor, que só há enquanto amor do verdadeiro, que se materializa na objetivação das 17 SARDI, Sérgio Augusto. Diálogo e dialética em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. (p. 30): “É ele que nos tira o sentimento de estranheza, promovendo todas as reuniões deste tipo” (Banq., 197d 1-4). Éros impulsiona o filosofar, é o impulso vital que sustenta a busca de auto-superação, que é simultaneamente dialética e dialógica, subjetiva e intersubjetiva, e se opera na e entre as psychai. Isso equivale a uma aproximação do humano em relação ao divino: Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio, pois já o é (Banq., 204 a 1-3); (...) tudo o que é gênio está entre um deus e um mal (Banq., 202e, 1-2). É Éros que permite o diálogo entre o humano e o divino (Banq., 202ae), o que equivale a dizer que possibilita uma relação entre esses dois planos, ou seja, entre o devir e a Idéia”. 32 relações cultivadas que são subjetivas e nas quais encontramos, entre outras variáveis das tradições e dos costumes da comunidade, a indiscutível existência do imaginário mitológico dos orixás que nos remete à questão da natureza inteira ser o corpo orgânico do ser.18 Marx entende que na natureza inteira encontramos implicitamente os mitos, o Éros, a imortalidade da alma, as contradições, a metempsicose e as inter-relações ocorridas entre a subjetividade e a intersubjetividade (a objetividade). Desse modo, na universalidade do homem colocada por Marx encontra-se centrada a questão platônica de que o homem relaciona-se com o invisível que se encontra escondido no visível, procurando deixar claro e evidente o invisível, presente no homem que olha para dentro de si, que encontra o outro e ve a face refletida, rosto igual ao seu que é inquestionavelmente refletido nos seus próprios olhos. Há o Éros que é a urgente necessidade do outro contida na subjetividade, onde a intersubjetividade é relação entre a subjetividade e a objetividade desenhada nos caminhos de areia, que traduzem o aconchego e a sensação de segurança e prazer para quem domina todos os passos no labirinto 18 MARX, Karl. Manuscritos econômicos filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultura, 1991. (Os Pensadores; 121) .( p. 200): "...a universalidade do homem aparece na prática, na universalidade que faz da natureza inteira o seu corpo orgânico. A natureza é o corpo inorgânico do homem; quer isso dizer que a vida física e mental do homem e a natureza são interdependentes. Confirmamos que a natureza é interdependente consigo mesma, pois o homem é parte dela." SILVA, Lenyra Rique da. A natureza contraditória do espaço geográfico. São Paulo: Contexto, 1991. (Caminhos da Geografia). (p. 18): “...Marx se refere dessa forma à natureza humana: A universidade do homem aparece na prática justamente na universidade que faz da natureza toda seu corpo inorgânico,....Que a vida física e a espiritual do homem estão ligadas com a natureza e não tem outro sentido senão o de que a natureza está ligada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza”. 33 denunciador do lugar19. Os estudiosos da particularidade do bairro no espaço urbano fazem algumas reflexões sobre o aconchego e o percurso particularizado que remetem o leitor ao conteúdo do conceito lugar, mesmo sem estarem prioritariamente estudando esta questão conceitual, nem as "marcas" citadas por Claval, menos o Éros do itinerário filosófico de Platão. No pensamento de Platão, o antagonismo presente no mundo visível e no mundo invisível não significa separação no recorrer do estudo. Há uma interação constante em todo o debate e, já que, para se ir ao mundo inteligível, temos originariamente que passar pelo mundo sensível. O inteligível é o hemisfério do conhecimento (epistême), da profunda essência do ser, e o sensível é um simples reflexo, sombra ou cópia do real20. O mundo das sombras é o da ilusão. Segundo o pensamento platônico, o belo seria um elemento relacionado ao ideal e ao corpo. A concepção de Platão de belo nos remete para a compreensão de que parte se encontra no divino e outra no corpo, o belo é a procura pela perfeição (harmonia entre a idéia e o corpo). Assim, entendemos que o belo visualizável é o meio que nos leva ao invisível 19 CERTEAU, Michel de. GIARD, Luce e MAYOL, Pierre. A Invenção do Cotidiano. [Tradução: Ephraim Ferreira Alves e Lúcia Endlich Orth] 2.Morar,Cozinhar. 2. ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 1998 (P.42): "...o usuário sempre consegue criar para si algum lugar de aconchego, itinerários para seu uso ou seu prazer, que são as marcas que ele soube, por si mesmo, impor ao espaço urbano. " 20 SILVA, Úrsula Rosa da ; LORETO, Mari Lúcie da Silva. Elementos de estética. Pelotas (RS): EDUCAT, 1995. – (Temática Universitária 4) (p. 23): “Essa concepção dual não implica uma separação desses dois mundos, uma vez que para se atingir o mundo inteligível (ou das idéias) é preciso passar pelo mundo sensível (ou das Sombras). O mundo das Idéias seria o mundo do verdadeiro conhecimento (epistême), da essência, do Ser; ao passo que o mundo das Sombras constaria de uma mera cópia do mundo ideal, uma sombra, um reflexo, algo que se dá apenas como aparência, opinião: é o mundo da ilusão." "A teoria platônica fundamenta-se, pois, na apresentação de uma dialética que faça a passagem do mundo da mera opinião, mundo sensível em que vivemos, para o mundo do saber essencial, o mundo inteligível. Encontra-se aqui uma das tarefas da concepção de Belo, ou seja, uma participação nesta dialética.” 34 mundo da luz. A beleza expressa o que é percebido sensivelmente enquanto fruto do inteligível e a arte é pura recriação do que é visível (ela é reprodução). O belo não é um valor de uso, mas uma procura pela perfeição harmônica do plano ideal.21 Ele representa a elevação moral do homem registrada nas obras de arte que demonstram o fato do artista, ou do sábio, ter atingido via razão22, um nível de elevação espiritual que se encontra no que foi produzido, enquanto símbolo da perfeição. Concluímos que a idéia antecede a obra que é pura representação da idéia (que é obra de arte enquanto perfeição acabada e divina que inspira o artista). Assim não existe uma subjetividade humana documentada na arte, mas uma inspiração divina que entusiasma o artista (há uma determinação para que o mundo das idéias venha ao dos mortais sensíveis). O belo é o veículo de registro do mundo lapidado. Em grego a palavra entusiasmo significa loucura, mania e delírio. Assim, o homem na imaginação, como delírio, cria a arte que existe no patamar do visualizável, e vinda por meio do elemento Eros, e finalizamos dizendo que o belo não pode ser atrelado só ao mundo da arte, já que, nos "delírio" e no "imaginário" implícitos 21 Neste sentido há um estudo com a abordagem de Marx, pois ele entende que são as propriedades físicas e químicas do bem material que, via a contradição capital/trabalho, lhe tornam prestável socialmente e lhe conferem um valor de uso geograficamente determinado. Abre uma vertical pesquisa com Arendt. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1981. ( p.177): " Pois é somente no mercado de trocas, onde todas as coisas podem ser trocadas por outras , que todas elas se tornam valores , quer sejam produtos do labor ou do trabalho , quer sejam objetos de uso ou de consumo, necessários à vida do corpo, ao conforto da existência ou à vida mental . Este valor consiste unicamente na estima da esfera pública na qual as coisas surgem como mercadorias; e o que confere esse valor a um objeto não é o labor nem o trabalho,..." 22 PENHA, João da. Períodos filosóficos. São Paulo: Ática, 1989. (p. 37): "...Existirá mesmo esse modelo absoluto/Sim, responde Platão. É a ìdéia .Como , então, apreendê-la/ Só através da razão, diz ele." 35 nas relações sociais comunitárias de parentesco, afetividade, ... dos moradores do lugar culturalmente criam o labirinto de caminhos só por eles percoridos e explicitamente documentam nas opções de cores, desenhos, estruturas, ... o plano ideal que só é, e existe, enquanto lugar. Entendendo-se que este conceito social não pode ser reduzido a interpretação da repetição diária dos mesmos hábitos do ser social, inclusive dos artesãos que estão de forma constante e secular confeccionando redes, elaborando a mesma estrutura para as embarcações, priorizando as já determinadas cores, opinando pelo mesmo desenho interno da casa, pescando,...23 No momento atual a humanidade pensa que a arte é fruto da subjetividade do ser objetivado na arte, isto é, a criação não se encontra acabada na natureza pronta para ser trabalhada pelo pescador e adquirir forma e estrutura via mãos do trabalhador artesanal ou do artista propriamente dito.24 Na Marambaia, o belo manifestado no nascer do sol, no seu declínio, na lua cheia, na criança sorridente e saudável ("cuidado com o mau olhado"), nas rosas primaveris, no peixe pesado e grande ("graças a Deus") e, até, depois da casa limpa e arrumada e do barco saindo terminado do estaleiro é fruto das mãos do mundo dos espíritos (do perfeito ideal perfeito). Deus é o grande artista. Tudo que é belo, muitas vezes colocado como sendo o bom, o motivo de alegria, o bonito e a razão da felicidade é relacionado a Deus, aos santos e aos orixás. O bom, a alegria, o bonito e a felicidade simbolizam a perfeição, isto é, o belo. Platão diz que o belo é o belo em si, atemporal, acabado, lapidado, absoluto e perfeito. 23MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. São Paulo: Hucitec,2000.(p.93 e 94): "Duby empobrece enormemente a concepção de vida cotidiana ao reduzi-la a usos e costumes e ao confiná-la à casa e ao quarto, conforme as citações de Vainfas, ao supor enfim que o lugar e o modo da vida cotidiana dizem respeito ao rotineiro e ao repetitivo." 24 SILVA, Úrsula Rosa da ; LORETO, Mari Lúcie da Silva. Elementos de estética. Pelotas (RS): EDUCAT, 1995. – (Temática Universitária 4) (p. 29): “Destarte, o belo não se limita à arte, ao contrário, para tornar-se uma atividade superior à arte, deve buscar a perfeição, buscar o belo, a harmonia”. 36 A estética enquanto saber referente ao conhecimento do mundo visível (aesthesis é sinônimo de sensação) é o belo, o bom, o bonito, o alegre e o feliz olhados e sentidos pelos moradores da praieira. Mas, para Platão, o belo é uma ponte entre o mundo ideal e o mundo sensível, caracterizado por ser a “parte do agradável que alcançamos via visão. Ele é relacionado com o sensível por meio dos sentidos”. A beleza (inclusive do lugar Marambaia) é que permite o contato do mundo do conhecimento com a visão. Na filosofia de Platão, o mundo dos espíritos e o dos sentidos impõe uma condição e um resultado comum que cria o belo aos sentidos de uma forma e estrutura semelhante. Mas, o nível das aparências não possui a essência do belo em si. Alguém, algo, ou alguma coisa utilizada para o bem ou para fazer o bem a alguém, algo ou a alguma coisa é belo. Só que, a potencialidade visada para o bem é bela, mas, não é o belo, que é a eterna procura de lapidar a capacidade e a utilidade de algo para atingir a perfeição inerente ao nível das idéias. A beleza que há no nível dos sentidos é condição primária para o afloramento do Eros, que é a necessidade básica de se encontrar o eterno, que só procuramos quando estamos erotizados, já que o homem quer conquistar, deseja, procura só quando se encontra interessado. O Eros nos direciona para o estudo da peculiar relação de parentesco existente no lugar, registrada no modo de vida dos pescadores artesanais “eternos”. Platão coloca no mesmo plano as idéias de belo, uno, bem e ser porque o Bem maior é que promove a unidade da multiplicidade dos seres (é a essência do ser das coisas) que só é atingida quando se busca a perfeição, isto é, o belo inerente em cada ser e em cada ação. O lugar, enquanto traço cultural, conteúdo e forma do trabalho, e do imaginário (todos são símbolos), presentes na subjetividade objetivada, de um 37 jeito de vida impar caracterizado pelo "tempo cíclico"25 dos caminhos de areia 25JASPERS, karl. Introdução ao Pensamento Filosófico. São Paulo: Cultrix, 1999.( p. :130): “Nietzsche acreditava que a crença no eterno retôrno é a mais enérgica afirmação da vida.” “Como imagens dêsse eterno retôrno absoluto, podem ser lembradas repetições particulares, como a dos dias e a das estações. O tempo é absoluto. Tudo é temporal e, por isso mesmo, eterno, graças ao retôrno.” RICOEUR, P. et al. As Culturas e o Tempo. Estudos reunidos pela UNESCO. Petrópolis/RJ: Vozes, 1975. ( p.: 267, 268, 281 e 282): "O passado sempre dura, e por isso em nada perde para o presente, por sua realidade. É sobre essa representação que se fundamentam o culto dos antepassados e todos os arquétipos que se renovam quando se realizam o mito e os ritos, nos períodos de festas. As tradições piamente observadas são o passado materializado e perpetuado que domina no presente. Mas o futuro também participa do presente: podemos olhá-lo, exercer sobre ele uma influência mágica; daí as predições, a divinação, os sonhos proféticos e, igualmente , a crença no destino." "As séries cronológicas nas quais se organiza a vida prática dos homens são separadas, em sua consciência , do tempo mítico e os antepassados e seus descendentes vivos existem em temporalidades diferentes. Todavia , as festas e os rituais formam o elo que liga essas duas percepções do tempo, esses dois níveis de apreensão da realidade. Assim, o tempo linear não predomina na consciência humana; ele está subordinado a uma percepção cíclica dos fenômenos da vida, a uma imagem mítica do mundo." "Se nas épocas anteriores as diferenças entre os tempos passado, presente e futuro eram relativas e se o limite que os separa era móvel ( no ritual religioso e mágico, no momento da realização do mito, o passado e o futuro se baseavam no presente , num instante eterno cheio de um sentimento supremo), com o triunfo do tempo linear, essas diferenças se tornaram muito precisas, e o tempo presente ficou e chegou a ser apenas um ponto continuamente fugidio sobre a linha que vai do passado ao futuro e que transforma o futuro em passado. O tempo presente se tornou efêmero, irreversível e inapreensível." AUERBACH. E, Mimesis. A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1971. 38 do labirinto, dos mitos, dos mortos, dos vivos e dos que irão nascer e que se encontram conjuntamente na predição, divinação, sonho profético, cura, oferenda, entre outras distinções da linguagem comunitária entre eles e para eles, nos faz pensar como a questão do belo platônico (não kantiano) pode ser verticalizada no debate do conceito geográfico lugar na praia da Marambaia. O belo presente na subjetividade do homem enquanto espírito, entendido como idéia, ou dimensão universal e cósmica do ser. Platão nos reza que o mundo real é o das abstrações. Eis o seu pensamento: “Esses astros verdadeiros e inteligíveis são, de acordo com Platão, as idéias ...”.26 Platão determina que o conteúdo do conceito lugar deve ter como princípio histórico o entendimento de que a dimensão social humana/natural se realiza através da relação trabalho/imaginário, ou seja, por meio de uma observação materialista sensível da relação comunitária, que somente existe enquanto lugar geográfico. Platão é a continuidade do pensamento de Marx ! . 26 PLATÃO. A República. São Paulo: Exposição do Livro. s. d. (p. 207 (33)). 39 KANT Acreditamos que a afirmação de Kant de que há uma “crítica”27, direcionada para a questão da investigação sobre a razão, manifestando-se independente da experiência28, permitirá que tenhamos uma maior capacidade de ampliar o debate sobre o conceito lugar. Na visão crítica, Kant entende que o transcendental é “o que existe em si e por si, independentemente de mim”, isto é, quais as condições supremas que tornam possível um 27 PENHA, João da. Períodos filosóficos. São Paulo: Ática, 1987. (Série Princípios). (p. 56-57): “Senão, vejamos: crítica, quando empregada por Kant, não é sinônimo de censura, reprovação, mas de estudo, investigação, pesquisa, ...” 28 PENHA, João da. Períodos filosóficos. São Paulo: Ática, 1987. (Série Princípios). (p. 57): “... puro é aquilo que independe da experiência – daí sua obra mais famosa, Crítica da Razão Pura, também pode ser intitulada investigação da razão funcionando independente da experiência; puro também é sinônimo de a priori, ...” MARX, Karl. Manuscritos econômicos filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultura, 1991. (Os Pensadores; 121). (p. 174): "O homem é o objeto imediato da ciência natural; pois a natureza sensível imediata para o homem é imediatamente a sensibilidade humana (uma expressão idêntica), como o outro homem sensivelmente existente para ele; pois sua própria sensibilidade só através do outro existe para ele como sensibilidade humana. Mas a natureza é o objeto imediato da ciência do homem. O primeiro objeto do homem – o homem – é natureza, sensibilidade; e as forças essenciais, particulares, sensíveis e humanas, como encontram apenas nos objetos naturais sua efetivação, só podem encontrar na ciência da natureza seu próprio conhecimento. O elemento do próprio pensar, o elemento da exteriorização de vida do pensamento – a linguagem -, é natureza sensível. A realidade social da natureza e a ciência natural humana ou ciência natural do homem são expressões idênticas.” 40 conhecimento, sujeito, objeto, coisa ou algo (Eis o método transcendental de Kant).O que transcende não é a relação do nosso conhecimento com as coisas, porque a plenitude das “coisas em si” é inacessível. Nós não chegamos na essência dos “objetos em si” porque ele é incognoscível. E a realidade objetiva existe separada do sujeito dotado do saber, isto é, não conhecemos o íntimo dos “objetos”. O máximo que a pesquisa cultural nos permite afirmar é que para os pescadores artesanais as entidades , enquanto objetos/sujeitos do lugar , são seus antepassados29. Uma parte significativa de cada objeto estudado é originada pelas nossas formas de percepção, porque sabemos que ele se encontra fora de nós, mas não conhecemos o íntimo desse objeto, ser ou coisa. O que sabemos é o que transformamos em idéia sobre ele dentro de nós. Eis porque o pescador artesanal entende conflituosamente, no embate matéria/idéia, que os orixás são seus mortos/vivos. Mas, o que as coisas são antes de serem transformadas em idéia, no 29 ASSUNÇÃO, Luiz Carvalho de. O Reino dos Encantados, Caminhos (Tradição e Religiosidade no Sertão Nordestino).Tese de Doutorado em Ciências Sociais (Antropologia).São Paulo:PUC, 1999. (P.13 e 15): "A partir da literatura existente, podemos inicialmente dizer que o culto da jurema é um culto de possessão, de origem indígena e de caráter essencialmente mágico-curativo, baseado no culto dos mestres, entidades sobrenaturais que se manifestam como espíritos de antigos e prestigiados chefes do culto, como juremeiros e catimbozeiros." "Câmara Cascudo reconhece-o como um consultório e não como um culto religioso, uma vez que, segundo o autor, nesse tipo de ritual, não há promessas, votos, unidade do protocolo sagrado." FREITAS, João de. Xangô Djacutá.(2 ed.).Rio de Janeiro: Cultura Afro- Aborígene, sd. (p.25): "A analogia existente entre os mitos helênicos e romanos, tal como se observa com os eslavos, os celtas e os germanos, leva-nos, pela procura de subsídios, à conclusão de que tôdas as mitologias emanam da mesma fonte." 41 interior de nossa capacidade pensante jamais saberemos. Kant afirma que é imaturidade querer estudar as “coisas em si”. No homem o transcendental é uma relação com a faculdade cognitiva e o conhecimento é fruto de uma relação não fundamentada unicamente na experiência. Este saber não é o que trata dos objetos. Ele se direciona para realizar uma investigação sobre os nossos conceitos puros (despidos de experiência) em relação aos objetos, trata-se de nossa maneira de conhecê-los, enquanto esta deve ser possível “a priori” (na concepção kantiana). Kant cria um pensamento filosófico que promove a supremacia da razão humana com a intenção de exaltá-la e valorizá-la, a razão é diferenciada do simples contato pelos sentidos. Estamos falando do conhecimento não sensorial, mas do que é fruto da natureza e da estrutura de nossa capacidade pensante. Entendendo-se que este produto do intelecto é o que temos de mais lapidado e confiável. Neste momento ímpar há um direcionamento da pesquisa de Kant que nos obriga a estudar Platão. Estamos afirmando que no nível da razão as verdades são claras e verdadeiras em si; “a priori”, sem experiências. A estrutura da mente humana é que molda e organiza as sensações e transforma as experiências em pensamentos. A experiência nos confirma que uma realidade é imposta de determinada forma, estrutura, jeito e maneira. Só que nega a justificativa e a explicação por que a realidade nos é imposta de determinada forma, estrutura, jeito e maneira, assim, a experiência nos fornece proposições eventuais e incertas. A proposição despossuída de sua negação é possível se for abalizada na razão, que é a única origem das proposições universais e absolutamente necessárias e precisas, da mesma forma não seriam possível as proposições universais e absolutamente necessárias e precisas se o pensamento racional não fosse, por si mesmo, criador de conhecimentos. Marx, oriundo das influências de Kant, é racional e se utiliza do materialismo 42 histórico e do materialismo dialético30, mas não nega a "sensibilidade" quando trata da natureza orgânica/inorgânica31 do ser humano e, consequentemente, da própria natureza que é intrínseca e explicita nas relações intersubjetivas/interobjetivas de afetividade da comunidade do lugar Marambaia. Mas, todos os conhecimentos a priori não possuem o mesmo sustentáculo. Para aprofundar o estudo é primário pensar sobre os juízos analíticos e os sintéticos. Entendendo-se que o juízo é a capacidade de assumir o “singular” no “plural”, a potencialidade mental de estudar o singular contido no plural (o particular no universal). O juízo que entende o particular contido no universal determina teoricamente o objeto (juízo determinante) e o juízo que procura o universal no particular é reflexivo. Este processo não é lei a priori do intelecto, mas é fruto de uma origem da reflexão referente aos objetos, seres e coisas. 30 BADIOU, Alain e ALTHUSSER, Louis. Materialismo Histórico e Materialismo Dialético. 2 ed. São Paulo:Global , 1986.(p.44): "...O materialismo dialético não se refere às diferentes práticas , exceto com relação ao aspecto da intervenção delas na produção de conhecimentos. Não se refere a elas como instâncias constituintes dos modos de produção, o que é objeto do materialismo histórico." 31MARX, Karl. Manuscritos econômicos filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultura, 1991. (Os Pensadores; 121). (p. 171): " O homem apropria-se do seu ser global de forma global, isto é, como homem total. Cada uma de suas relações humanas com o mundo - ver, ouvir, cheirar, saborear, sentir, pensar, observar, perceber, querer, atuar, amar - ,..." DUARTE. Rodrigo A . de Paiva. Marx e a Natureza em o Capital.(Coleção:Filosofia 4). São Paulo: Loyola, 1986.(p.63). 43 Reflexão significa relacionar representações entre si e colocá-las em imbrincamento com as nossas potencialidades mentais do conhecimento. No juízo32 determinante o particular é fornecido pela sensibilidade, consequentemente, é possível se raciocinar a possibilidade de que o conteúdo do conceito lugar seja uma singularidade, um juízo. O "mundo sensível" do lugar é a sua singularidade/universalidade, há um materialismo/idealismo sensível que não nega a questão da natureza orgânica/inorgânica refletida nos manuscritos de Marx. No juízo reflexivo, para se encontrar a unidade da multiplicidade (o singular no plural) temos que elaborar a hipótese teórica (os princípios são compostos pelos objetos já determinados pelo juízo teórico). A natureza tem a disposição de ser sistematizada porque tem um princípio determinado pelo entendimento e, sempre, ela deve ser, e haver, de acordo com ele. 32 PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. Petrópolis (RJ): Vozes, 1990. (p. 158): “De um modo geral, o juízo pode ser definido como a faculdade de pensar o particular como contido no universal”. SILVA, Úrsula Rosa da ; LORETO, Mari Lúcie da Silva. Elementos de estética. Pelotas (RS): EDUCAT, 1995. – (Temática Universitária 4) . (p. 40): “É o juízo que deve procurar o universal, sendo, por isso, o juízo reflexivo.” MARX, Karl. . Manuscritos econômicos filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultura, 1991. (Os Pensadores; 121). (p. 170): “O homem – por mais que seja um indivíduo particular, e justamente é sua particularidade que faz dele um indivíduo e um ser social individual efetivo – é, na mesma medida, a totalidade, a totalidade ideal, o modo de existência subjetivo da sociedade pensada e sentida para si, do mesmo modo que também na efetividade ele existe tanto como intuição e gozo efetivo do modo de existência social, quanto como uma totalidade de exteriorização de vida humana." "Pensar e ser são, pois, na verdade, diferentes, mas, ao mesmo tempo, formam em conjunto uma unidade.” 44 O juízo na sua variável de reflexão e determinação necessita de um princípio conceitual oriundo da potencialidade do entendimento: "Ele não impõe regras e o princípio do julgar é realizar uma harmonia entre a natureza (objeto, ser e coisa) e sua regra, é relacionar o singular na sua multiplicidade (reflexionante) como o universal (plural) na sua unidade (determinante)"33. A natureza por ser uma universalidade empírica é passível de ser determinada e a faculdade de julgar decide o que vai ser, ou não, sistematizado. O potencial de julgar não determina o objeto, o ser ou a coisa em si, mas os fins últimos da natureza dotada de suas leis empíricas. Estuda-se a natureza como fruto do entendimento, e o princípio a priori da faculdade de julgar é tornar a natureza apropriada ao juízo. Nos homens as sensações são transformadas em pensamentos quando se aplicam às sensações as formas de percepção de espaço e de tempo, imbricadas nas sensações que registradas enquanto pensamentos que se desdobram como doutrina do conhecimento sensível e de suas formas a priori como estética transcendental. Trata-se do primeiro momento no qual o homem coordena as sensações aplicando-lhes as formas puras de percepção de espaço e de tempo. Kant chama esse momento de Estética Transcendental, caracterizada como sendo doutrina do conhecimento sensível e de suas formas a priori. Depois do processo de aplicação nas sensações, das formas de percepção temporal e espacial, ocorre a realização da inserção das categorias de pensamento às percepções, aplicando-lhes as formas de concepção ou categorias de pensamento. 33 SILVA, Úrsula Rosa da ; LORETO, Mari Lúcie da Silva. . Elementos de estética. Pelotas (RS): EDUCAT, 1995. – (Temática Universitária 4). (p. 41): “O Juízo, tanto na sua capacidade de refletir como na de determinar necessita de um princípio conceitual determinado pela faculdade superior do entendimento. O Juízo não proporciona regras. O princípio do julgar é colocar em sintonia a coisa (natureza) e sua regra, é relacionar o particular na sua diversidade (reflexionante) como o geral (universal) na sua unidade (determinante).” 45 São estes modos de inserção das categorias de pensamento que dão sentido às percepções34. Os dados provenientes da experiência, e as várias maneiras de entendimento oriundas do sujeito são reunidas e determinam as percepções dos objetos, dos seres e das coisas. Os sentidos recebem impressões do mundo exterior, mas estas projeções não compõem um saber sobre o objeto. As projeções são superficiais e separadas entre si, elas são constituídas por variáveis diversas, múltiplas e caóticas. O homem portador do saber ordena as variáveis, assim determinando a origem às percepções do objeto e sendo dotado do saber para realizar tal atividade mental utiliza-se das formas de espaço e de tempo. Mas, nesse estágio as percepções ainda não atingiram o nível de entendimento e permanecem ainda na esfera da sensibilidade. O homem, ordenando essas percepções, faz com que o entendimento origine a síntese que se manifesta por meio do juízo (plural, singular, afirmativo, negativo, flexionante,...). Estes juízos só são realizáveis em função de modos gerais “puros” 34 PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. Petrópolis (RJ): Vozes, 1990 ).(p. 61): “A lógica transcendental é, pois, uma lógica das formas do entendimento enquanto estas são constitutivas da experiência. Divide-se numa Analítica e numa Dialética, tal como a lógica de Aristóteles”. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1999. – (Os Pensadores). (p. 97): “Numa lógica transcendental, isolamos o entendimento (como acima, na estética transcendental, a sensibilidade) e destacamos do nosso conhecimento apenas a parte do pensamento que tem sua origem unicamente no entendimento. O uso deste conhecimento puro repousa, porém, na seguinte condição: de que na intuição nos sejam dados objetos aos quais ele possa ser aplicado. Na ausência de intuição, todo o nosso conhecimento carece de objetos, e então permanece inteiramente vazio. A parte da lógica transcendental, portanto, que expõe os elementos do conhecimento puro do entendimento e os princípios sem os quais um objeto de maneira alguma pode ser pensado, é a analítica transcendental, e ao mesmo tempo uma lógica da verdade.” 46 (modos gerais desprovidos de experiências) que operam na capacidade pensante do ser. As categorias puras asseguram os juízos, que são necessários e, justamente por isso, são verídicos35.O homem cria o material do saber tendo como ponto abalizador determinadas condições subjetivas, que são as faculdades. As potencialidades entendidas como sendo a sensibilidade com as formas de tempo e de espaço, e o entendimento com os conceitos primários chamados de categorias. O sujeito sem as formas ordenadas e organizadas de tempo e espaço não consegue ordenar e organizar as sensações e não ocorreria o processo de percepção. Estas formas são puras, isto significa dizer que existem independentes da experiência, que têm uma dupla composição: ela é constitutiva de categorias “a priori” e de objetos empíricos.Os juízos sintéticos só são legitimados enquanto frutos de uma experiência que impõe características ao que se pensa. O predicado é originário de uma 35 PENHA, João da. Períodos filosóficos. São Paulo: Ática, 1987. (Série Princípios ).(p. 59): “Os juízos analíticos se fundamentam no princípio de identidade. São universais – válidos, portanto, em qualquer tempo e lugar – e necessários, pois não poderiam ser de outra maneira. São captados intuitivamente; logo, são juízos s priori, isto é, independem da experiência. Por isso, nenhuma experiência científica lhes nega o caráter de verdadeiros." "Os juízos sintéticos, por sua vez, se fundamentam na experiência. Como esta se efetua num tempo e num espaço determinados, não são nem universais nem necessários, mas particulares e contingentes. Logo, são verdadeiros apenas quando comprovados pela experiência; daí serem a posteriori.” LUCKESI, Cipriano Carlos ; PASSOS, Elizete Silva. Introdução á filosofia. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1992. (p. 111-112): “Por exemplo, na expressão Pedro é homem há um juízo que é síntese de percepções, que, por sua vez, é síntese de sensações produzidas pelo mundo exterior. porém, os juízos (afirmativos, negativos, universais, particulares, etc.) só são possíveis em função dos modos universais a priori de operar do intelecto. São as categorias a priori que garantem os juízos, que são conceitos necessários e, por isso, devem ser verdadeiros.” 47 “sensação” (consciência de um estímulo), efetuada num tempo e num espaço “determinado”, particulares e contingentes como as sensações que elaboram o conteúdo dos juízos sintéticos, que são a posteriori, devido não serem universais e nem necessários como os juízos analíticos captados intuitivamente porque o sujeito possui o predicado. Tais juízos são a proiri devido ratificarem o que o sujeito tem em si próprio, entendendo-se que no seu cerne ele é, e há, enquanto ser subjetivo/objetivo. A intuição só pode ser investigada com este pressuposto filosófico de se tentar explicitar a potencialidade humana de poder conhecer, que é dar forma a uma matéria pois é claro que ela é a posteriori, e a forma, é a priori. Com efeito, a matéria do conhecimento é variável de um objeto a outro, visto depender do objeto. 48 Mas a forma, sendo imposta ao objeto pelo sujeito, será reencontrada invariavelmente em todos os objetos por todos os sujeitos36. 36 REALE, Miguel. Introdução à filosofia. São Paulo: Saraiva, 1994. (p. 74): “O homem, portanto, no ato de conhecer, desde o fato primordial da sensação, imprime a marca de sua subjetividade em algo e se torna objeto. Conhecer é, de certa maneira, submeter algo à nossa subjetividade. Alguns expositores de Kant lembram imagem feliz, quando dizem que nós não podemos apanhar um bloco de neve, sem lhe imprimir a forma de nossos dedos. O que é conhecido conserva sempre os sinais das garras apreensoras de nossa subjetividade”. LUCKESI, Cipriano Carlos et al. Introdução à filosofia. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1992. (p. 113): “O pensamento kantiano trouxe grande contribuição à problemática política, mas foi na teoria do conhecimento a sua mais significativa participação. Ele mudou os rumos da teoria do conhecimento ao mostrar que, apesar do mundo exterior nos ser dado apenas como sensação, a mente humana por ser ativa seleciona e coordena toda a experiência. Deu ao sujeito um papel significativo no processo do conhecimento e na moralidade”. PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. 3.ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 1990. (p. 36): “Conhecer é dar forma à uma matéria dada e é claro que a matéria é a posteriori, e a forma, a priori. Com efeito, a matéria do conhecimento é variável de um objeto ao outro, visto depender do objeto; mas a forma, sendo importa ao objeto pelo sujeito, será reencontrada invariavelmente em todos os objetos por todos os sujeitos”. 49 Os juízos analíticos são compostos por um predicado que não é proveniente de uma “sensação”. Ele é inerente ao sujeito independente de qualquer análise e não acrescenta nenhuma característica nova ao sujeito, ao contrário dos juízos sintéticos identificados pelo fato do predicado acrescentar alguma coisa nova ao sujeito. As experiências, não contidas no sujeito, mas existentes no predicado são particulares dos juízos sintéticos.Assim, há conhecimentos a posteriori (juízos sintéticos) e conhecimentos a priori (analíticos).Os juízos sintéticos a posteriori dotados de peculiaridades condicionais se referem a experiências finalizadas “em si mesmas”. Mas, os juízos sintéticos a priori são componentes da célula central da teoria do conhecimento elaborada por Kant. O fato consiste na afirmação de que a capacidade de conhecer não é determinada pelo objeto, mas, que o próprio é regulado pela potencialidade humana de conhecer. As bases apriorísticas da sensibilidade estão substantificadas na “Estética Transcendental”, enquanto estudo da sensibilidade onde o conhecimento prioritariamente se preocupa com o modo a priori de conhecer os objetos. Na Estética Transcendental a sensibilidade (material/receptiva e formal/ativa), enquanto faculdade de intuição, é pensada como uma condição humana pela qual as criaturas são apreendidas pelo sujeito cognoscente, onde a matéria do conhecimento são as impressões que o sujeito absorve do exterior e a forma manifesta a ordem que estas impressões são registradas. A sensação é a consciência de um estímulo, mas ainda não é conhecimento. Quando as sensações se juntam em torno de um objeto no tempo e no espaço ocorre a percepção ou intuição. Acreditamos que a sensação apresenta-se como um estímulo (som, gosto, cheiro, temperatura, pressão,...) não ordenado; a percepção já é o estímulo organizado; a concepção é a percepção ou intuição sistematizada. A ordem do lugar é fruto do pensamento organizado que conhece o lugar devido “o mundo tem origem, não por si 50 mesmo, mas porque o pensamento que conhece o mundo é em si mesmo uma ordenação” 37. Como se substantifica o pensamento "organizado" do pescador artesanal no lugar Marambaia? Como o lugar Marambaia recria o pensamento do pescador? Será que o pensamento kantiano é relativista e o lugar é a “especificidade” da ordem? O fato histórico do indivíduo cognoscente perceber as coisas como exteriores a ele, e exteriores em relação a elas mesmas, não determina que crie a noção de espaço. O espaço é, e existe, como uma estrutura intrínseca a sensibilidade do indivíduo cognoscente e viabiliza que perceba os objetos relacionados espacialmente, onde o espaço for, e existir, mesmo que sejam subtraídas todas as criaturas espacialmente imbricadas. O espaço é apriorístico38. A simultaneidade das coisas e sua repetição não seriam percebidas se o tempo não fosse apriorístico. Tudo pode sumir, mas o espaço e o tempo são fundamentos primeiros. 37 SILVA, Úrsula Rosa da et al. Elementos de estética. Pelotas (RS): EDUCAT, 1995. (Temática Universitária 4). (p. 37): “A sensação é a consciência de um estímulo (gosto, cheiro, som, temperatura), é a experiência incipiente, mas ainda não é conhecimento. Porém, quando estas várias sensações unem-se em torno de um objeto no espaço e no tempo, há uma percepção (intuição), ou seja, há consciência, não de um estímulo, mas de um objeto específico. Assim a sensação torna-se conhecimento... O conhecimento tem ordem, não por si mesmo, mas porque o pensamento que conhece o mundo é em si mesmo uma ordenação”. 38 PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. 3.ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 1990. (p. 51, 55): “O espaço é a priori, porque a sua representação é a própria condição da possibilidade dos fenômenos. Com efeito, pode-se conceber um espaço em que não houvesse objeto algum, mas não se pode perceber um objeto fora do espaço... O tempo é uma intuição pura, como espaço e, enquanto tal, é a condição de todo o vir-a-ser; a mecânica e a física repousam nessa intuição a priori, assim como a geometria repousa na intuição a priori do espaço”. 51 O espaço e o tempo são formas nas quais encontramos interiormente ordenada a multiplicidade oriunda da sensação. O nosso espírito tem a capacidade de nos representar coisas como existentes fora de nós. Tal faculdade do nosso espírito de registrar o “sentido exterior” é o espaço; e o tempo é a forma do “sentido íntimo”, condição do nosso espírito de perceber-se a si mesmo intuitivamente, de perceber os seus momentos internos. No espaço observamos os objetos externos e no tempo os estados internos (algo em nós mesmos). Assim, este algo em nós mesmos nos remete para a questão da memória, da história oral espraiada no ímpar modo de vida que é lugar, de tempo interior aos ditames dos passos lentos nos caminhos do labirinto cartografado enquanto comunidade intuitiva, subjetiva, sensível e materialista via o tempo lento/cíclico dos botes movidos pela ação eólica, corrijo, pelos ventos de Iansã refletidos no espelho das águas de Iemanjá, inerente a sobreposição e domínio do trabalho vivo, em relação ao nível de capital constante, nas pequenas pescarias artesanais do lugar. O labirinto que cartografa-se enquanto comunidade da Marambaia ratifica que é lugar, já que, existem interpretações de que o espaço tem a potencialidade de produzir segundo os ditames da classes sociais, e que as diferenciações de classe são materializadas e visíveis através de em um simples passeio pelo espaço social39. Mas, é lugar de labirinto e labirinto de lugar que só pode ser percorrido no ritmo cultural dos passos lentos e somente pelos pescadores artesanais que sabem onde encontra-se o Lobisomem/Minotauro, ambos protegidos pelos ventos de Iansã e pela espada de são Jorge Guerreiro (Recordas de Jorge da mercearia dos homens?) 39 SILVA, Eunice Isaias. O Espaço: Une/Separa/Une. GEOGRAFIA, Território e Tecnologia. Terra Livre – AGB, São Paulo, n. 9, julho-dezembro, 1991.(P.136). 52 O tempo lento40 não subtrai do cenário do palco o tempo cíclico, porque a vagarosa contração/tempo espaço intrínseca na afèfè e no ubori de Iansã (Santa Bárbara) ,na olóòbè de Ogum (São Jorge)41, na confecção manual da rede, no aperfeiçoar minucioso do acabamento da embarcação e na tramela da porta, faz o imbricar cultural de ambos tempos sociais/naturais42. No lugar a imagem mítica do mundo soma-se a baixa contração tempo/espaço inerente ao modo de vida particularizado por ser reproduzido através de um tempo lento/cíclico, isto é, a tramela e 40SANTOS, Milton. Técnica Espaço Tempo ( Globalização e meio técnico - científico informacional). (3 ed.) São Paulo: Hucitec,1997.(p.84 e 85): "Quem, na cidade , tem mobilidade - e pode percorrê-la e esquadrinhá-la - acaba por ver pouco da cidade e do Mundo." "Se pobres, homens comuns, os homens lentos acabam por ser mais velozes na descoberta do mundo, seu comércio com o prático-inerte não é pacífico, não pode sê-lo, inseridos que estão num processo intelectual contraditório e criativo." MUMFORD. Lewis. Arte e Técnica.São Paulo: Martins Fontes,1986. (p.58, 59 e 60): "...; pelo menos retardá-lo-ia o tempo suficiente para aperfeiçoar o acabamento, ou então modificar-lhe-ia um pouco a forma para poder, além de cumprir a sua função deleitar igualmente o olhar." "...Não tinha grandes pressas, obedecia aos ritmos do corpo, descansando à medida que o trabalho prosseguia e prolongando as partes que mais lhe interessavam, pelo que , ainda que o trabalho avançasse lentamente, ...Talvez a produção comercializada para o tráfico marítimo tenha introduzido, já nos tempos antigos, urgências extraordinárias no trabalho do artesão, fazendo-o acelerar o ritmo, ...deixando a obra de levar a sua assinatura inimitável." 41REIS, Alcides Manoel dos. Candomblé:a panela do segredo. São Paulo:Mandarim,2000.(p.93 e 166). 42MARTINS, José de Souza. A Chegada do Estranho. São Paulo: Hucitec,1993.(p.36): "Uma outra diferença, que é necessário considerar na pesquisa desses movimentos, é relativa à concepção de tempo. O nosso tempo nada tem que ver com o tempo deles. O nosso tempo é um tempo linear, começa tal hora, com tantos minutos, tantos segundos, e assim por diante." 53 o horário de acordar do sono determinado pelo nascer do sol relaciona-se, contraditoriamente, com as festas e os rituais que, por sua vez, formam o elo que liga as séries cronológicas nas quais se organiza a vida prática dos homens ao tempo mítico, aos seus antepassados e descendentes vivos que existem em temporalidades tidas como diferentes. Como "A experiência do tempo é indissociável da experiência do espaço"43 e que "O espaço e o tempo são o arcabouço que sustenta tôda realidade"44 há uma denúncia intrínseca de que todas as variáveis culturais do singular modo de vida, que constituem o conteúdo do tempo lento/cíclico, são dialeticamente os registros geográficos do lugar, que sendo imaginário/simbólico-capital/trabalho, não pode ser desprovido da dimensão social espaço, já que, não existe tempo sem espaço e a recíproca é legitima. O espaço não é fruto das experiências exteriores, já que, todas relações exteriores supõem o espaço que é representado como fundamento a priori devido a sua existência ser a condição primária para a possibilidade dos objetos. 43 CRIPPA, Adolpho. Mito e Cultura. São Paulo:Convívio,1975. (p.145). 44 CASSIRER, E. Antropologia filosófica. Ensaio sobre o homem. [Trad. Dr. Vicente Felix de Queiroz] São Paulo: Mestre Jou, s/d. (p.75) 54 “O espaço é único e onicompreensivo”45 e o que existe de múltiplo (muitos espaços) são simples limitações. Ele é uma intuição pura, porque possui uma infinidade de representações, e não é um conceito pois caracteriza-se como sendo a representação da peculiaridade comum de uma multidão infinita de representações. As determinações espaciais são de origem intuitiva (sintéticas e a priori) porque objetos concebidos de maneira idêntica pelo entendimento são diferentes. Assim, podemos observar que a diferença entre o comprimento, altura e largura das embarcações para a técnica do carpinteiro artesão é de singular significado, mas são diferenças inexistentes no entendimento comunitário de um valor de uso a priori. Quando falamos no trabalho do pescador artesanal, estamos sinalizando a questão da existência de um tempo lento/cíclico, que é registrado não só na baixa composição orgânica do capital de uma atividade de reprodução simples (com características da força motriz ser humana e muscular) e remetendo ao debate do jeito de viver centrado no ritmo dos passos vagarosos do pescador nos caminhos de areia, das casas 45 PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. 3.ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 1990. (p. 52): “... do ponto de vista da extensão, um conceito deve aplicar-se a objetos diversos: o espaço, ao invés, não é aplicável senão a ele mesmo: ele é uno.” KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores). (p. 73): “Mediante o sentido externo (uma propriedade da nossa mente) representa-nos objetos como fora de nós, e todos juntos no espaço. Neste são determinadas ou determináveis as suas figura, magnitude e relação recíproca. O sentido interno, mediante o qual a mente intui a si mesma ou o seu próprio estado interno, na verdade não proporciona nenhuma intuição da própria alma como um objeto; consiste apenas numa forma determinada unicamente sobre a qual é possível a intuição do seu estado interno, de modo a tudo o que pertence às determinações internas ser representado em relações de tempo. O tempo não pode ser intuído externamente, tampouco quanto o espaço como algo em nós”. 55 sem fechaduras e nem ferrolhos e na existência do mito lobisomem. A subjetividade efervescente faz necessária a leitura de Marx sobre a natureza orgânica/inorgânica do homem e faz vigente o estudo referente a relação da produção mercantil pequena com a natureza não oriunda do trabalho braçal e mental do homem. Assim, voltamos à reflexão sobre a humanização do pescador artesanal e os sentimentos de prazer que este trabalhador transfere para os objetos, seres e coisas que compõem e são o seu modo de vida materializado no labirinto, que simboliza a própria “vida”. Neste exato momento temos a presença de Platão quando Kant nos diz que “a fé na imortalidade da alma (metempsicose)46 é necessária para que se conceba uma vida supra-sensível na qual a virtude possa receber seu prêmio”. O estudo de Kant reforça a necessidade para se pesquisar os mitos, os orixás, os deuses e as deusas na cultura dos pescadores da Marambaia, o significado das entidades "sobrenaturais" na história da comunidade que é conteúdo do conceito lugar, do lugar Marambaia, que sendo praia, simboliza47 a meditação, os pés descalços na areia e o sentimento de prazer que atribuímos à laguna, que como mar é 46 LUCKESI, Cipriano Carlos. Introdução à filosofia. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1992. (p. 96): “A alma que vivera no mundo das essências fora castigada e, agora, vive em um corpo no mundo das sombras e o seu anseio natural é retornar ao mundo verdadeiro de onde viera. Enquanto não procede este acontecimento, a alma busca pelo conhecimento, ascender às idéias que são as essências. Lá se dá o verdadeiro (a suma a verdade), o bem (o sumo bem), o belo (o sumo belo)... Nesse contexto, a alma é considerada superior ao corpo, devido ao fato dela ser iniciada e imortal.” 47 BECKER, Uno. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Paulus, 1999. SANTOS, Mário Ferreira dos. Tratado de Simbólica. São Paulo: Logos, 1959. AUGRAS, Monique. A Dimensão Simbólica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1967. 56 reservatório dos pescados que fazem florescer a alegria feito festa no litoral nordestino48. A praieira que margeia o mar é bela. O juízo estético não é subordinado ao ato de conhecer, já que o mesmo encontra-se dependente de si mesmo, é um outro reflexionante devido a representação ser feita sem conceitos:"O juízo estético referente a natureza ou a arte é constitutivo de sentimento de prazer ou desprazer. Assim, Kant entende que o belo é oriundo da relação que ocorre entre os objetos, seres e coisas como nosso sentimento de prazer que transmutamos para os seres. O belo proveniente do sentimento de prazer é comparado a este e por este sentimento avaliado impõe o juízo de gosto ou estética"49. O belo é prazer desinteressado, prazer desinteressado numa universalidade subjetiva individualizada, despossuído de qualquer fim determinado é a forma de finalidade do objeto percebida através de uma intencionalidade social/natural que é o prazer (livre as partes do todo possui uma intencionalidade perceptível através da qual entendemos que o conjunto é belo). No caso do lugar entendemos que o individualizado é toda a identificação que dotada de um específico traço cultural impõe prazer numa subjetividade que só é, e há , enquanto objetivação, falo, embate matéria/idéia. O raciocínio nos expõe que o belo da natureza tem uma intencionalidade perceptível à qual atribuímos o nosso sentimento de prazer ou beleza, enquanto que a obra de arte, criada pela natureza braçal e pensante do homem, é dotada de uma intencionalidade camuflada, fazendo com que a mesma seja manifestada e expressa, como se fosse espontaneamente criação 48 JUNIOR, Gonzaga. Festa. Intérprete: Maria Bethânia. Disco: Maricotinha ao Vivo. São Paulo: Gravadora: Biscoito Fino. Produção: Sarapuí, 2002. 49 SILVA, Úrsula Rosa da et al. Elementos de estética. Pelotas (RS): EDUCAT, 1995. (Temática Universitária 4). (p. 43): “Na estética, o Juízo não está a serviço do sistema de conhecimento, está a serviço de si mesmo, é um juízo reflexionante puro, ...” 57 da natureza nata, não produzida e nem criada pelo ser humano. O belo é potencialmente carregado de uma intencionalidade e de uma espontaneidade imbricadas onde a obra de arte parece natureza. O belo é uma qualidade que transferimos às coisas para registrar a experiência que realizamos de nossa subjetividade e legitimidade pelo sentimento de prazer (no belo a universalidade é subjetiva e comum como base primária para o juízo estético). O lugar possui um ímpar modo de vida que registra-se historicamente como experiência cultural inerente a reprodução do necessário50 labirinto no qual somemte os pescadores podem se esconder da acelerada contração tempo/espaço e sentirem a relatividade da liberdade e do prazer que comunitariamente compartilham com os estranhos, basta lembrarmos do simbolismo da paia e do mar. Natureza não é arte. A atividade livre e voluntária é condição primária para a identificação de uma arte inerente de prazer e de conhecimento. O juízo reflexivo denuncia a verdadeira arte bela, enquanto originária da imaginação humana, cuja intencionalidade não possui um fim imposto. A genialidade é que vai impor as regras 51para o entendimento sobre arte bela, já que a arte não é uma ciência. Kant escreve que “o gênio é possuidor de um dom natural que cria 50 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1981. ( p.81): " A necessidade e a vida são tão intimamente aparentadas e acorrelatas que a própria vida é ameaçada quando se elimina totalmente a necessidade. .Pois, longe de resultar automaticamente no estabelecimento da liberdade, a eliminação da necessidade apenas obscurece a linha que separa a liberdade da necessidade." 51 HARVEY, D. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1992. ( p.258): "Dentre as inúmeras conseQüencias dessa aceleração generalizada dos tempos de giro do capital, destacarei as que têm influência particular nas maneiras pós- modernas de pensar, de sentir e de agir." HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da Estética da Mercadoria. São Paulo: UNESP,1997.(P.33). 58 regra para a arte, ou seja, é uma inata condição de ânimo (ingenium) através da qual a natureza fornece e determina regra a arte”52. Pensamos no "dom natural" como a "natural" contradição em processo, existente entre o natural/social que é documentada geograficamente no pescador artesanal comunitário, que como um 52 SILVA, Úrsula Rosa da et al. Elementos de estética. Pelotas (RS): EDUCAT, 1995. (Temática Universitária 4). (p. 47, 49): “Kant, primeiramente, distingue arte de natureza sendo a arte voluntária e livre produção da qual só o homem pode ser artífice e a natureza, por sua vez, uma produção rigidamente determinada por uma série causal... Entra em cena a figura do gênio que, para Kant, é o talento (do natural) que dá regra à arte (...), é a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte”. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores). (p. 18): “A obra de arte é concebida por Kant como produção consciente de objetos que geram a impressão de terem sido produzidos sem intenção. Sua faculdade específica é o gênio que atua conscientemente, com necessidade semelhante à das formas naturais, sempre de maneira original e distinguindo-se da atividade científica”. 59 Ogum domina os ventos e mata os dragões do mar, já que, todos os orixás são geniais e "sociais"53 O gênio possui talento (originalidade que não é sinônimo de habilidade), cria modelos ou exemplos de regra do juízo para as próximas criações e tem juízo de gosto (o belo da arte é um registro belo de alguém, algo ou alguma coisa). Assim, o gosto entendido enquanto capacidade de avaliar, e não obrigatoriamente uma potencialidade produtiva, faz com que a “imaginação”, que é uma faculdade produtiva que cria idéias estéticas, não tenha que ser submetida a imposições de conceitos já que a estética é a comunhão da imaginação com o entendimento, e a recíproca é verdadeira.“ Nem todos os gostos dos pescadores artesanais do lugar são transformados em valor de troca para o típico mercado capistalista, e que o singular imaginário não é uma imposição da realidade geograficamente determinada da cidade, ou de outra localidade relacionada com a comunidade praieira. 53 FREITAS, João de. Xangô Djacutá.(2 ed.).Rio de Janeiro: Cultura Afro- Aborígene, sd. (p.33): "Os deuses, do panteão africano, representam as fôrças da natureza como acontece com os do helênico, do romano, do egípcio, do persa, e outros , tal como se vê no panteão brasileiro cuja entidade 'suprema é Tupã e o deus do trovão é Caramurú." LOBOS, Heitor Villa e BARROS, C. Paula. "Canto do Pajé". Intérprete: Maria Bethânia. Disco: Maria Bethânia 25 ANOS. Rio de Janeiro: Fonobras/ PolyGram, 1990: "...Oh, Tupã Deus do Brasil Que o céu enche de sol De estrelas de luar e de esperança Oh, Tupã tira de mim esta saudade Ah, Anhangá me fez Sonhar com a terra que perdi ..." 60 Mas, como a idéia estética possui conceitos da razão afirmamos que a idéia estética é objetivada via faculdade do conhecimento (teoria), a faculdade da vontade (prática) e a faculdade do sentimento do gosto ou imaginação produtiva (juízo).”54 Entendemos que a beleza pura só existe num imbricamento de formas onde reina a harmonia do pensamento com o sentimento, e que o juízo reflexionante que trata da representação de um objeto, ser ou coisa é ligado à subjetividade do homem. Notamos que nesta subjetividade o sentimento de prazer (exemplo: a beleza pura) e desprazer é o seu princípio reflexionante, que soma a capacidade humana de conhecer com a de desejar, no momento em que subordina um elemento representativo a um fim. Perguntamos se existe alguma peculiaridade geográfica de juízo estético, da experiência estética ou de gosto dos pescadores do lugar, porque eles possuem uma visão “única” do mundo devido terem, de forma direta e imediata, 54 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores). (p. 17, 18): “Para Kant existem duas espécies de juízo reflexionantes: os teleológicos e os estéticos. Nos teleológicos, o objeto é considerado segundo as exigências da razão, como correspondendo a uma finalidade objetiva; adaptando-se aquelas exigências, suscita um sentimento de prazer. Nos juízos estéticos, o objeto é relacionado com um fim subjetivo, ou seja, com o sentimento de eficácia sentido pelo homem diante desse objeto... Ao contrário, num sentimento do belo, não ocorre este tipo de condicionamento: a finalidade a que corresponde o objeto deve ser inteiramente desprovida de qualquer intenção e consistir simplesmente num efeito que produz num modo de considerar as coisas, prescindindo da realidade empírica do objeto. O que importa num sentimento do belo é apenas a forma da representação, na qual ser realiza a plena harmonia entre as funções cognoscitiva, sensível e intelectual... A beleza pura ou livre de todo o interesse pode ser obtida, segundo Kant, somente num jogo de formas em que se realiza a harmonia do pensamento com o sentimento, por si mesmo e sem nenhum significado: nas flores, nos arabescos, na natureza idílica.” 61 as relações sociais enquanto natureza orgânica/inorgânica deles próprios, posto que os recursos da natureza não criada e nem produzida pelo trabalho fazem parte do mundo sensível dos mitos, das curas, das feitiçarias e do trabalho. Qual a experiência estética de uma atividade capitalista artesanal onde o capital se constitui pela rapina, por existir múltiplas formas de extração, apropriação e realização do trabalho roubado. A eterna acumulação primitiva ( não ocorre só através do assalariamento ) alimenta o processo de reprodução ampliada do capital e viabiliza específica experiência estética no lugar geográfico (? ), que é lugar por ser condição da eterna acumulação primitiva e de particular juizo estético. 62 HEGEL Hegel nos faz pensar que a noção geográfica de lugar se fundamenta num princípio “uterino” que lhe é o “conceito” (a semente), “o lugar geográfico é a materialização do conceito, da peculiaridade do conceito e da realidade”55. O ímpar modo de vida é o princípio que horizontal e vertical se espraia espacialmente enquanto lugar geográfico. Mas, entendendo-se que esse princípio possui similitudes com outros que são demais lugares geográficos. Refletimos que a relação histórica do ser humano, enquanto animal pensante dotado de várias e diversas dimensões e extensões singulares e plurais (psíquicas, psicológicas, anatomicamente corpóreas, naturais/sociais), no seu diálogo com a sua “aparente” natureza exterior, compõe o embrião que comunitariamente se impõe para a própria humanidade enquanto lugar. 55 PENHA, João da. Períodos filosóficos. (Séries Princípios) São Paulo: Ática, 1987. (p.60): “Uma vida, que circula na árvore, nos ramos, nas folhas e nos frutos, constitui o conceito em estado de realidade viva. O germe contém em potência tudo o que, no espaço, aparece em ato. Este tronco, esta variedade de folhas, de ramos, este perfume das flores, este sabor dos frutos, tudo isto que existe na árvore, existia na semente sem que, todavia, nela pudéssemos discernir nem recorrendo ao microscópio.” CHÂTELET, François. Hegel. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. (p. 79): “O Saber absoluto é precisamente esse conjunto. É o recenseamento sistemático de tudo o que sucedeu ao homem, consciência fazendo-se Espírito, nos múltiplos domínios de sua expressão. Ele não figura no círculo, pois ele é o círculo”. 63 O diálogo é a troca contraditória e conflituosa entre o ser, a coisa e o objeto com seus semelha