1 1 LORENA VITA FERREIRA RENATO GONDA: UMA POÉTICA RUMO AO NADA São José do Rio Preto 2006 2 2 LORENA VITA FERREIRA RENATO GONDA: UMA POÉTICA RUMO AO NADA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP, Campus de São José do Rio Preto, para a obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Teoria da Literatura. Linha de Pesquisa: Perspectivas Teóricas no Estudo da Literatura. Orientador: Prof. Dr. Rogério E. Chociay. São José do Rio Preto 2006 3 3 Ferreira, Lorena Vita. Renato Gonda: uma poética rumo ao nada / Lorena Vita Ferreira. - São José do Rio Preto: [s.n.], 2006. 118 f. ; 30 cm. Orientador: Rogério Elpídio Chociay Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. 1. Literatura brasileira - História e crítica. 2. Poesia brasileira - História e crítica. 3. Poesia contemporânea brasileira. 4. Gonda, Renato - Crítica e interpretação I. Chociay, Rogério Elpídio. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título. CDU – 869.0(81)-1.09 4 4 Dedicatória A minha mãe, Helenita. 5 5 Agradecimentos ao amigo e orientador Rogério E. Chociay; aos Professores que me apontaram caminhos, idéias e, principalmente, me indicaram e emprestaram livros; ao Conselho e Coordenação da Pós-Graduação, pela compreensão; à Seção de Pós-Graduação pelos esclarecimentos; aos amigos Aline, Luciana, Moisés Carlos e Solange, pela paciência e pelo apoio nas horas difíceis. 6 6 FERREIRA, Lorena Vita. Renato Gonda: uma poética rumo ao nada. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, UNESP, Campus de São José do Rio Preto, 2006. RESUMO Esta dissertação tem por objetivo investigar a dicção poética de Renato Gonda (1959- ) em seu livro AD NADA (1994). Nesta obra encontramos breves e condensadas manifestações poéticas - “101 haikais ou quase” (assim os denomina o próprio sujeito lírico). A confluência de registros poéticos datados e consagrados imprime uma informação estética diversificada, característica freqüente na cena literária contemporânea brasileira. Em relação ao conteúdo, os poemas de AD NADA apresentam um caráter niilista que impulsiona seu sujeito lírico a reconsiderar/questionar as concepções absolutas presentes na nossa existência, tal como a noção de Deus, imposta ao homem, principalmente, pela metafísica e teologia ocidental. Repensar tais conceitos é repensar também a linguagem automatizada e ter a possibilidade de criar uma outra que desestabilize os discursos cristalizados e estereotipados que subjugam a condição humana. A partir dessas perspectivas, analisaremos e interpretaremos a configuração do niilismo na obra para, então, verificarmos como esse posicionamento frente ao mundo influencia o fazer poético do eu-lírico e a sua relação com a palavra poética. Palavras-chave: dicção poética, haicai, niilismo, existência, poesia brasileira contemporânea. 7 7 FERREIRA, Lorena Vita. Renato Gonda: uma poética rumo ao nada. (Renato Gonda: A Poetics Headed for Nothing). A Master’s Thesis presented to Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus of São José do Rio Preto, State of São Paulo, Brazil, 2006. ABSTRACT This thesis is aimed at investigating the poetic diction of Renato Gonda (1959- ) in AD NADA, a work which contains his brief poetic manifestations: “101 haikais ou quase” (101 haikus or almost), as the author himself calls them. The confluence of dated and consecrated poetic registers imparts a diversified aesthetic information, a frequent characteristic found in the contemporary Brazilian literary scene. As for theme, the poems of Ad Nada present a nihilistic character which leads their lyric subject to reconsider or to call in question the absolute conceptions present in our life, such as the notion of God, imposed to man mainly by western metaphysics or theology. To rethink such concepts is also to rethink automatized language and have the possibility of creating another one, which destabilizes the crystallized and stereotyped discourses which subjugate human condition. On the basis of such perspectives, nihilism will be analyzed and interpreted in the work at hand in order to verify how this positioning before the world influences the poetical work of the lyric self and its relationship with the poetic word. Key-words: poetic diction, haiku, nihilism, existence, contemporary Brazilian poetry. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 9 2 O AUTOR E SUAS OBRAS 12 3 A MULTIFORMIDADE ESTÉTICA 14 3.1 Os haicais 14 3.2 Verso e acentuação 20 3.3 As rimas e a massa sonora 23 3.4 O refrão 28 3.5 A plasticidade 33 3.6 O conjunto vocabular 42 3.6.1 O (des) confronto dos contrários 42 3.6.2 A ambigüidade 47 3.6.3 Afinal, o que é o nada? 50 3.6.4 O fluxo do nada nas outras línguas 53 3.6.5 Os quase-haikais de AD NADA 59 4 O NIILISMO NA POÉTICA DE AD NADA 61 4.1 Nada – significante e significados 61 4.2 Religiosidade e niilismo 65 4.3 O niilismo de AD NADA 71 4.4 O niilismo na arte e na literatura 79 5 A AÇÃO POÉTICA 84 5.1 A experiência poética brasileira 84 5.2 A poesia dos anos 80-90 86 5.3 O tom subjetivo de AD NADA 90 5.4 A palavra poética 96 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 103 REFERÊNCIAS 107 9 9 1 Introdução Um breve prefácio A presente dissertação tem por objetivo investigar a poética do autor contemporâneo Renato Gonda (1959- ) em um de seus livros, AD NADA. O interesse pela abordagem da obra em questão surgiu durante as aulas da graduação relativas à disciplina Teoria do Poema, no ano 2000, com base nas quais pude conhecer parte do livro Fugitivo dos Homens (1990), do mesmo autor, detectando características de elaboração que me motivaram a ler outras obras suas e, finalmente, escolher uma delas como corpus de pesquisa de mestrado. Ao ingressar no Programa de Monitoria na Área de Teoria da Literatura no ano de 2001, motivada pelo gosto pessoal e apreciação da produção lírica contemporânea produzida em nosso país, comentei com meu orientador que gostaria de direcionar os meus estudos para o trabalho poético de Renato Gonda e ele me auxiliou na escolha do livro AD NADA1, que apresentava certa complexidade de elaboração e características típicas da (pós) modernidade. Vale observar que este autor não é bastante lido e admirado em nosso meio cultural e acadêmico, pois sua produção poética tem sido muito pouco explorada pela Crítica Literária, o que torna o estudo de um livro como AD NADA, além de procedente, bastante promissor e, possivelmente, significativo. 1 Neste trabalho adotaremos a sigla AN para nos referirmos ao livro AD NADA. 10 10 Introdução AD NADA é um livro de poemas publicado em 1994 e pode ser descrito, de um modo geral, como uma obra literária infiltrada de sondagens introspectivas e constituída de uma linguagem rigorosamente trabalhada. Em se tratando de sua situação extraliterária, Holanda (1998) assegura que a década de 90 oferece um panorama interessante, uma vez que as fortes transformações do mercado cultural foram mobilizadas por um processo acelerado de massificação, transnacionalização e especialização na produção e comercialização de seus produtos. Essa fase foi Comprimida entre duas grandes crises do mercado financeiro internacional, a década de 90 tem como ícones a queda do Muro de Berlim, o impacto da AIDS, o ethos da globalização e, lamentavelmente, a figura do excluído ou do excedente como passa a ser chamada a crescente maioria pobre. (HOLANDA, 1998, p.10). O poeta dos anos 90 é letrado, seguro, preocupa-se com a crítica, com o trabalho formal e com a literatura. Trata-se de uma produção poética híbrida, que conflui diversas linguagens, “um emaranhado de formas temáticas sem estilos ou referências definidas.” (HOLANDA, op.cit., p.11). Além de uma pluralidade de vozes, Holanda afirma que essa poesia apresenta-se conformista em relação à situação política e literária, pois ela não parece ter um projeto estético ou político que lhe seja exterior. Reflexo dessa cena literária de resgates, referências e influências, a dicção poética de Gonda em AN é uma linguagem enredada de registros formais, que parecem não consolidar seu projeto estético. A consciência poética do eu-lírico não se mostra de forma conflituosa, mas sim tranqüila, quase descomprometida. Ao mesmo tempo, o aspecto subjetivista de sua produção lírica parece certificar a possibilidade de realização existencial do indivíduo via linguagem poética. Os poemas de AN se apresentam encadeados e são formados por três versos, chamados de 101 haikais ou quase pelo próprio eu-lírico. Tais poemas, embora sejam sucintas e condensadas formas poemáticas, permitem que duas buscas incessantes sejam realizadas pelo eu-lírico: a busca pelo nada e pelo Adan2. Trata-se de um percurso poético que possui um 2 Em AD NADA, verificamos que Adan é o anagrama da palavra nada. Adan é o nome de Adão, o primeiro homem, em espanhol. Esse anagrama não é apenas um procedimento estético utilizado pelo eu-poético de economia vocabular, mas expressa a suposta contraposição existente entre a figura mitológica judaico-cristã Adan e o nada. O equivalente a Adão em inglês é Adam, nome que não expressaria de maneira tão clara essa relação proposta pelo livro. 11 11 caráter ontológico como seu principal configurador, desencadeando um intenso processo reflexivo no sujeito lírico sobre sua condição existencial. Nessa trajetória o eu-poético discursa sobre o nada e assume uma postura questionadora que revisa e reinterpreta alguns conceitos veiculados pela religião e pela sociedade. Focalizada sob esta perspectiva, a obra revela traços do niilismo nietzschiano, em que tal postura é vista como algo positivo ao existir do homem: “Não desprezemos isso, nós espíritos livres, somos ‘uma transmutação de todos os valores’, uma formal declaração de guerra e da vitória a todas e velhas concepções de ‘verdadeiro’ e ‘falso’.” (NIETZSCHE, 1953, p. 28). Quando repensamos concepções já estabelecidas como verdades, desestabilizamos a linguagem sedimentada e seus construtos lingüísticos. Temos a possibilidade de criar uma outra mais autêntica. A relevância da presente dissertação justifica-se, então, pela preocupação em conhecer essa jornada poética cuja manifestação niilista frente à existência repercute não só no âmbito religioso, mas lingüístico e poético. E é a partir dessas observações introdutórias que verificamos a importância de perscrutarmos a expressão gondiana em AD NADA sob o cerne de três investigações. A primeira refere-se ao estudo da informação estética contida na obra; a segunda refere-se à descrição da postura niilista do eu-lírico e a terceira refere-se à possível influência que esta atitude exerce na relação do eu-poemático com o fazer poético e com a palavra poética em si. Para o estudo das hipóteses de trabalho acima descritas, deveremos utilizar como método o analítico-descritivo. Em se tratando do enfoque metodológico, a presente dissertação está ancorada nas noções sobre o niilismo (Coelho, 1995; Nunes, 1973; Sartre, 1997; Drucker, 2004; Nietzsche 1953, 1961, 1974, 1983, 1999), sobre filosofia da religião (Olson, 1970 1968; Staccone, 1989; Zilles, 1991), bem como nos instrumentos da Teoria/Crítica Literária, tais como Campos, 2000; Franchetti, 1994; Friedrich, 1978; Staiger, 1972 entre outros, os quais envolvem estudos sobre os recursos estéticos presentes na lírica contemporânea. Em termos de apresentação discursiva desta dissertação, começaremos pela apresentação do autor e suas obras e, em seguida, partiremos para a análise formal e conteudística de seus “101 haikais ou quase”, para no final apresentarmos um parecer sobre a poética implícita de Gonda na obra analisada. 12 12 2 O autor e suas obras O autor de AD NADA é praticamente desconhecido do meio acadêmico, fato que implica uma fortuna crítica escassa e, ao mesmo tempo, confere ao presente trabalho responsabilidade maior, abrindo perspectivas para a detecção de características da poesia contemporânea talvez ainda não observadas pelos críticos. As informações sobre Renato Gonda de que dispomos foram extraídas do estudo-posfácio que a crítica literária Olga Savary apresenta no livro analisado e da obra do estudioso Aguinaldo José Gonçalves. Também mencionaremos alguns comentários críticos sobre o autor colhidos da Internet. Renato Gonda nasceu em São Paulo em 1959. É filho de uma polonesa refugiada no Brasil em 1934 e de um húngaro3. Possui formação universitária em Letras e Artes Plásticas e atua na poesia e na escultura. Obteve título de Doutor em Semiótica pela FFLCH – USP com a tese “Das traduções – Reflexões sobre o processo de criação e tradução na realização da obra Oroboro” 95 p, em 1998. Recebeu o Prêmio Autor revelação 1987, pela APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte. Trílogo (Edição independente, 1988 e prefácio de Péricles Prade) foi o texto vencedor do II Festival Sérgio Milliet de Poesia Falada, da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Como artista plástico e designer, o Autor trabalha há vários anos com Gerson Correra em esculturas luminares à base de pedras, cristais, resina e luz, assinando-as Correra & Gonda, atividade que lhe rendeu também alguns prêmios. O poeta reside atualmente em Embu-SP, onde é proprietário de um restaurante vegetariano e Secretário Municipal de Turismo4. Publicou em 1987 Primeira ronda à margem da serpente e Canto ao canto (dois livros num só volume, Massao Ohno/SP) com prefácio de Alfredo Bosi. Primeira ronda à margem da serpente foi adaptado e apresentado como espetáculo de expressão corporal e poesia por Maria Mommensohn. AD NADA é sucessor de Fugitivo dos Homens (Massao Ohno, SP, 1990), com posfácio-estudo de Milton de Godoy Campos. Em AN, o Autor retoma o tema do nada, anteriormente tratado no poema Ondulação (Canto ao canto) e nos Poemas IX, X e Louvor VI (Fugitivo dos Homens). Segundo Savary (1994, p. II), como poeta e escultor, Renato Gonda afirma serem-lhe as artes plásticas mais leves, enquanto a poesia mais suada, mais sangrada. A respeito da obra 3 Conforme o site www.cabami.org.br. Acesso em: 14 de junho de 2006. 4 Conforme o site www.embu.sp.br. Acesso em: 18 de julho de 2006. 13 13 literária de Renato Gonda, Gonçalves (1996) menciona que o autor “se diferencia, uma vez que o trabalho de intersecção semântica conduz a sua poesia e, o que ainda é mais atraente, consegue instaurar o insólito lírico, o novo, dentro de uma proposição primordial” (GONÇALVES, 1996, p.90). Em sua tese, defendida em 1998, o Poeta faz o seguinte comentário a respeito de sua produção poética: Não consigo de forma absoluta separar visualidade de poesia. Quando pretendo escrever um livro vêm-me simultaneamente suas imagens sonoras, poéticas a plásticas. É o livro um objeto, uma obra visual antes de o ser literariamente. Vê-se juntamente com os poemas. Ao escrever, paro para desenhar a capa, as guardas, as ilustrações. (GONDA, 1998, p. 20). O Poeta mostra-se, então, preocupado com o aspecto formal de seu texto poético. Mas essa concepção do fazer poético em termos formais e conteudísticos possui influências, resgates, reelaborações que esta subjacente à percepção consciente do criador, de modo que seu sujeito-lírico pode confirmar ou refutar tal colocação. Assim, o estudo da dicção gondiana em AD NADA necessita de uma abordagem que compreenda a análise de sua informação estética e de seu conteúdo, atentando para as retomadas de uma tradição literária anterior a ela e as possíveis inovações que ele realiza. 14 14 3 A multiformidade estética 3.1 Os Haicais O haicai é uma forma poética enxuta criada no Japão no século XVII sendo divulgado no mundo a partir da abertura sócio-político-cultural desse país por volta de 1854, após um período duradouro de fechamento de fronteiras. O haiku5 é praticado e difundido no Brasil desde início do século XX. Franchetti afirma que “o haicai é, entre as formas poéticas japonesas, a que foi mais amplamente aclimatada no Brasil” (FRANCHETTI, 1994, p. 197). Nesse sentido, faz-se necessário apontarmos alguns aspectos desse arranjo poemático e de sua presença na literatura brasileira. Franchetti (1994, p. 198-199) também menciona que o gosto brasileiro pelo haicai é produto de uma sui generis conjunção de fascínio e recusa. Se por um lado, a imagem que temos do Japão é de um país economicamente desenvolvido e detentor das mais sofisticadas tecnologias, por outro, esse país nos remete a um imaginário recheado de zen, de ética feudal e de velha sabedoria contemplativa. Uma imagem exótica que atua na literatura brasileira de dois modos distintos: na presença do budismo-zen e na hipervalorização do ideograma (kanji) e seu papel de haicai. De um modo geral, o haiku possui uma sintaxe simples baseada no procedimento de montagem, que fornece apenas o essencial para o leitor. É uma poesia muito sugestiva, que pede uma atitude poética de seu leitor, incitando-o a participar na formação do discurso poético. Na curta sintaxe do haicai não há conceituações, porque o verbo ser é ausente nas línguas chinesa e japonesa. Desprovida de uma forma delimitadora de sentidos, a expressão poética do haicai valoriza o momento, o instante, captando o presente como algo fugidio e instável. Em se tratando da temática, a percepção da natureza, de sua transitoriedade, de sua simplicidade é, juntamente com o kigo, motivo fundamental no haicai. Ao voltar-se para a natureza, o haiku utiliza o kigo, elemento que representa um fenômeno característico de cada estação do ano. 5 De acordo com Franchetti (1994) os termos haiku e haicai, designam, de certo modo, a mesma coisa: o poema japonês de 17 sílabas. O autor reserva o nome haiku para indicar os poemas escritos em japonês e de acordo com as regras tradicionais, tanto no Brasil como no Japão. Para os outros poemas, emprega o termo haicai. Utilizaremos esta nomenclatura em alguns momentos da presente dissertação. Quando houver referência aos poemas de AN, utilizaremos o termo quase-haikais, assim como seu eu- lírico. 15 15 De acordo com Akashi (1999, p. 66), cada estação tem sua própria característica, que do ponto de vista da sensibilidade do poeta transmite a ele uma determinada emoção, transformada em verso. Apesar disso, o haicai não imprime uma subjetividade de seu eu- poemático, nesta poesia não deve haver alusões que não sejam compreensíveis por qualquer leitor. Ao contrário do tanka, o haicai nunca tematiza o amor sexual e o desejo carnal, havendo uma preferência temática marcada pelo rural, pela vida pobre e solitária. Ao ser introduzido no meio literário nacional, o que prevalece é a apropriação da forma. É este fato que nos interessa primeiramente. O haicai, como lembra Chociay (1984, p.93), possui uma fragilidade, uma concisão formal que para nossos padrões culturais chega a parecer apoética. Mas, apesar dessa simplicidade “estranha”, essa poesia ressoa algo interessante. No Brasil, o haicai sofre algumas adaptações quando começa a ser traduzido e produzido. Um dos primeiros poetas que idealizou transplantar essa pequena forma poemática no Brasil foi Afrânio Peixoto, pois ele exaltava o poder expressivo e a brevidade de um poema em três breves versos. Peixoto também percebeu a tendência dessa nova forma de poesia pela sátira e pelo social, além do lirismo. O haicai é uma forma reduzida do tanka - poesia formada por duas estrofes de 5/7/5 e 7/7, respectivamente. Em aspectos gerais, o haicai possui uma massa sonora limitada a dezessete sílabas reais. Nele não encontramos rima e versificação com acentos de intensidade, já que este recurso prosódico não existe nas línguas chinesa e japonesa. Nesse caso, seu recurso principal é a medida silábica. Mesmo assim, o extrato fônico do haicai não é tão escasso quanto parece, ele é abundante em onomatopéias, em aliterações e jogos de palavras, constituindo combinações de significados e sons. Por esta razão, as traduções desta poesia-minuto devem ser cuidadosas, evitando interferir em seus arranjos ou julgar sua poeticidade. Além do conjunto sonoro e métrico, o haicai apresenta uma organização espacial que pode ser expressiva e não gratuita. Chociay (1984. p. 98) enumera três possíveis disposições dos versos: 1ª __________ _______________ __________ 2ª ___________ ________________ ___________ 16 16 3ª ___________ ________________ ___________ A alternância dos versos e a sua distribuição regular na página configuram uma simetria espacial aos haicais que nos revelam uma preocupação visual desta prática poética. O haicai é uma poesia que possui um esquema de contagem silábica diferente dos esquemas utilizados pelas línguas românicas. Essa diferença surtiu algumas dificuldades quanto a forma de contagem das sílabas dessa pequena poesia, ao ser transposta para o português. Segundo a contagem de padrão agudo, adotada entre nós por imitação aos manuais de versificação franceses, um haicai apresentaria a seguinte distribuição de sílabas: o o o o ó o o o o o o ó o o o o ó Neste esquema, o haicai é formado por um verso pentassílabo, um heptassílabo e outro pentassílabo, em que todos os versos pentassílabos podem ser agudos, graves ou esdrúxulos, o mesmo ocorrendo com os heptassílabos. Este tipo de contagem foi usado amplamente por Oldegar Franco Oliveira, Manuel Bandeira, Afrânio Peixoto e por Guilherme de Almeida, que também passou a utilizar as rimas, no que foi seguido por Abel Pereira e Dolores Pires. Mas foi Érico Veríssimo, em seu livro O Senhor Embaixador, quem solucionou o problema da métrica no haicai, pois não optou por nenhum sistema de mensuração, fazendo um raciocínio puramente silábico. Veríssimo preocupou-se apenas com a receita original que estipula 5/7/5 sílabas, sendo que todas elas devem ser efetivas. São sílabas aritméticas e não métricas, que fornecem ao haicai uma flexibilidade e variedade acentual, como salienta Chociay (1984). A efemeridade desta poesia e sua sensibilidade diante da realidade e da natureza incitaram a apreciação dos modernistas. Daí surgem os poemas-minuto de Oswald de Andrade. O haicai já estava, enfim, incorporado a nossa língua e literatura. Realizando um salto cronológico na periodização literária, porém necessário, chegamos à década de 50, especificamente no ano de 1955 – início do movimento concretista 17 17 e idealização do método ideogramático6 (ou justapositivo) de composição. Este princípio rege a formulação do haicai oriental. Menezes (1991, p. 35-36) comenta que as escritas chinesa e japonesa, embora diferentes em alguns aspectos, são formadas por ideogramas. O ideograma MU exposto a seguir está presente na guarda de AN e significa nada, em japonês. Um nada que não é, seguindo uma perspectiva oriental de conceituar o mundo, repleto de negatividade e ausências: 7 A presença deste kanji na obra em questão também é uma alusão direta ao procedimento de justaposição apreciado pelos concretistas. Para os poetas concretos, o ideograma simbolizava a possibilidade de ruptura com a discursividade das línguas ocidentais que reforçava a distância entre o signo verbal e o objeto representado. O procedimento ideogramático propõe o abandono da compreensão analítico-discursiva pela sintético- ideográfica. As sentenças chinesas/japonesas têm suas relações gramaticais indicadas, sobretudo, pela ordem das palavras e pelo emprego de auxiliares, não exigindo nem sujeito, nem predicado, embora eles possam ser encontrados. Além disso, ela não precisa de verbo e de conectivos explícitos entre seus elementos. Sem o padrão sujeito-predicado na estrutura da sentença, tais línguas não desenvolveram a noção de lei de identidade lógica, nem o conceito de substância em filosofia. No lugar disso, possuem um pensamento analógico, formado por um raciocínio conceitual que se baseia numa lógica correlativa. O chinês e o japonês realizam definições utilizando palavras que possuem sentidos opostos, partindo de um princípio filosófico fundamental de antônimos – yin e yang. 6 Ernest Fenollosa (1853-1908), foi um americano que viveu muitos anos no Japão e se tornou grande conhecedor da arte nipônica. Escreveu um livro que foi editado e comentado por Ezra Pound em 1919. Neste livro Fenollosa forneceu a Pound a idéia de ideograma como princípio compositivo eficaz e diferente da lógica ocidental. Nesse processo de composição, duas coisas que se somam não produzem uma terceira, mas sugerem uma relação fundamental entre elas. Foi por intermédio dele que o haicai atuou de forma mais marcante em nossa poesia. (FRANCHETTI, 1994, p. 204). 7 Ideograma coletado do site www.dimarca.com.br. Acesso em: 14 de junho de 2006. 18 18 Foi esse modo de pensar que fascinou os poetas concretos e que possui vestígios na lírica contemporânea. Não obstante, para Menezes (1991), esse tipo de procedimento não colabora para as interpretações terminativas, concludentes, defrontando-se com os esquemas pré-fixados na leitura interpretativa. Simultaneamente, o modo de operar a poesia ficou sob influência das descobertas científicas sobre a relativização de tempo e espaço, cujos efeitos foram o abandono do “conceito de causalidade e determinação dos eventos” (MENEZES, 1991, p. 36). O movimento concreto pretendia intensificar uma aspiração programática a uma linguagem não-arbitrária. Vale comentar também a nota explicativa que Campos (2000) insere em seu texto para justificar sua asserção na qual Octávio Paz assegura que Nossos idiomas estão no extremo oposto do chinês, e o máximo que podemos fazer é o que os senhores (não Pound) fazem: inventar procedimentos plásticos e sintáticos que, mais do que imitação de ideogramas, sejam suas metáforas, seus duplos analógicos [...] A poesia moderna é a dis-persão do curso: um novo dis-curso. A poesia concreta é o fim desse curso e o grande re-curso contra esse fim. p.168 A partir dessas citações fica claro que nenhuma produção poética ocidental produzirá poesia tendo como método o da justaposição. O que ocorreu, como no caso da poesia concreta, foi uma tentativa de elaborar uma linguagem atenta ao aspecto físico do signo e a sua ampla possibilidade combinatória, cuja utilização gerava um discurso sucinto, porém denso de percepções e sentidos. Assim, o procedimento de montagem ou justaposição9 se evidencia de maneira analógica no discurso poético ocidental com a utilização de diversos recursos estilísticos e, por este motivo, a poesia concreta pode “ser descrita como o caso limite e a possibilidade extrema de composição nessa linha [...]” (CAMPOS, 2000, p.16). Campos (op.cit., p. 72) afirma que a linguagem chinesa é especializada para o exercício da “função poética”, pois é flexível às demandas expressivas e estilísticas da poesia mais exigente, porque a liberta dos imperativos do uso comunicativo-referencial. Montar um poema praticamente ausente desses recursos é uma tentativa de desreferencializar a linguagem do mundo externo e torná-la, deste modo, intransitiva. 8 Carta de Octávio Paz a Haroldo de Campos, 24.2.68, em Transblanco, Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1986. 9 Este procedimento de montagem ou justaposição é o princípio composicional ideogramático, do qual fala Fenollosa. 19 19 Do que foi exposto, depreendemos que a inclusão do haicai na cena literária brasileira se deu de duas maneiras distintas: a primeira refere-se à apropriação direta de sua forma (três versos com 17 sílabas totais divididas em 5/7/5); a segunda diz respeito à tentativa dos poetas concretos em compor poemas a partir do método justapositivo. Mas a presença do haicai na literatura nacional não pára por aí. Nos anos 70, a admiração pela cultura oriental, pela sua maneira de ver e sentir o mundo toma mais fôlego. É o que Chauí (2001) esclarece como orientalismo: Falamos de “orientalismos” e “orientalistas” para indicar pessoas que buscam no budismo, no confucionismo, no hinduísmo, no Yin e no Yang, nos mantras, nas pirâmides, nas auras, nas pedras e cristais maneiras de pensar e de explicar a realidade, a Natureza, a vida e as ações humanas que não são próprias ou específicas do Ocidente, isto é, são diferentes do padrão do pensamento e de explicação que foram criados pelos gregos a partir do séc. VII antes de cristo, época em que nasce a filosofia. (CHAUÍ, 2001, p.21). Na literatura, a poesia haicaísta de Paulo Leminski reflete esse movimento de contracultura. O poeta popularizou o haicai e uniu a técnica da poesia concreta com um orientalismo zen-budista. Era desconfiado da formalidade acadêmica e da lógica aristotélica da linguagem e, contraditoriamente, sua dicção era marcada pela agudeza intelectual, pelo lúdico. Seus poemas, como afirma Franchetti (1994), têm um inconfundível sabor de haicai e, quanto à forma, uma grande liberdade, que ora permite o uso da rima e da assonância, ora utiliza o verso branco e sem medida, ora monta o poema visualmente, tirando partido do espaço e da forma física das letras e palavras.(FRANCHETTI, 1994, p. 206). Seus poemas-relâmpagos tentavam captar, experimentar sensorialmente a realidade cotidiana, a vivacidade da natureza como num flash fotográfico. Mesmo dotados de um rigor composicional, o que predomina nos haicais de Leminski é a percepção do mundo circundante. Nas décadas seguintes (80-90) o haicai ainda motiva os estilos de alguns poetas, como Carlito Azevedo, Olga Savary, Lelia Coelho Frota, entre outros. No registro poético gondiano a referência ao haicai é explícita, pois seu eu-lírico designa seus poemas de “101 haikais ou 20 20 quase” logo no início da obra. Observação que tanto pode designar “quase 101” devido à concepção do último poema, como “quase-haikais”, uma vez que sua criação poética não está presa aos tradicionalismos composicionais que o haiku supõe. Conseqüência desse livre fazer poético, os poemas de AN apresentam uma variedade de recursos estilísticos, cabendo à presente dissertação investigar seu conjunto procedimental com a finalidade de concebermos seus “quase-haikais”. 3.2 Verso e acentuação A expressão lírica de AN apresenta uma pluralidade em termos composicionais. A maioria de seus poemas são versificados e incorporam alguns recursos plásticos que imprimem uma visualidade significativa. Os poemas versificados são formados por três versos (uma apropriação direta da estrutura do haicai), sem exceção. E em cada página podemos encontrar um, dois, três ou até quatro quase-haikais. No entanto, a disposição desses poemas numa mesma página não nos permite desvinculá-los, pois isso reflete um encadeamento maior entre eles, uma possível alusão àquilo que os produtores de haicais chamam de renga10. É por esta razão que trataremos os haicais de AN como estrofes de um poema maior que se forma na página em questão. Em se tratando da extensão dos versos de AN, sabemos que eles apresentam certa regularidade. Ao efetuarmos a contagem de suas sílabas, verificamos que, embora não tenham um princípio rígido de composição, de acordo com a métrica tradicional, — o que provoca por vezes impressão de pura arritmia, — seus arranjos e suas medidas não estão organizados de maneira aleatória. Existe ritmo em qualquer lugar onde encontramos uma repetição periódica dos elementos no tempo ou no espaço. O ritmo poético é tradicionalmente reconhecido pela presença regular dos conjuntos sonoros em um poema: recorrência do número de sílabas, do posicionamento dos acentos, dos segmentos fônicos terminais dos versos. Em AN uma dessas regularidades é fornecida pelos acentos silábicos de cada verso, como no poema abaixo: 10 Renga é o nome de uma prática coletiva de poesia, em que cada participante compõe um verso ou estrofe, seguindo determinadas regras temáticas e técnicas. Consiste nas variações poéticas sobre o mesmo tema. 21 21 Entre mim e o nada a distância intransponível da transparência 1 Utilizando a contagem francesa, que considera até a última tônica dos versos, identificamos neste poema um esquema acentual estabelecido de modo que todos os acentos recaem na última tônica das palavras finais de cada verso: o o o o o ó o o o o o o ó o o o ó Na maioria das ocorrências, o esquema acentual ocorre com o primeiro e o terceiro versos de cada poema: Conceber o nada é conceber o todo (Inconcebível) 2 o o ó o ó o o o o o ó o o o ó Este esquema acentual também está presente no poema seguinte, cujo conteúdo mencionado é a relação não excludente entre as palavras antônimas: O confronto dos contrários se anula criando a totalidade do nada É o yin o nada do yang e o yang o nada do yin O todo opõe-se ao nada como duas matérias que compõem um mesmo espaço 5-6-7 22 22 o o ó o o o ó o o ó o o o o ó o o ó o ó o ó o o ó o o o ó o o ó o ó o ó o ó o o ó o o ó o o ó o ó o ó No poema abaixo, os acentos estão posicionados de modo regular, procedimento que reitera a organização do discurso poético de AN: Em busca do nada: Emboscada O duplo do nada: Ambos(cada) 58-59 o ó o o ó o o o o ó o ó o ó o o o o ó Um pouco mais adiante, observamos que essa regularidade se mantém: Invento o nada como quem nada na ausência dágua Invento nadas feitos de vento e nada Envolvo o nada de novo na sua pele pelada de ovo 23 23 78-79-80 o o o ó o o o ó o o o ó o o o ó o o o ó o ó o o o ó o ó o o ó o o ó o ó A alternância entre as sílabas fortes e fracas dos vocábulos que constituem o poema cria um fluxo para a leitura e contribui para a harmonia rítmica juntamente com os outros elementos fônicos que serão tratados a seguir. 3.3 As rimas e a massa sonora Juntamente com a acentuação bem marcada, evidenciamos uma reiteração silábica intensa em AN, o que reforça sua harmonia fônica. A rima, com base em Chociay (1974, p. 174) “é um processo intra-estrófico de reiteração total ou parcial, que se realiza, sistematicamente, a partir da última vogal tônica de dois ou mais versos, seguidos ou não. Esta regularidade é percebida como cadência fônica [...].” O confronto dos contrários se anula criando a totalidade do nada É o yin o nada do yang e o yang o nada do yin O todo opõe-se ao nada como duas matérias que compõem um mesmo espaço 5-6-7 24 24 O uso de rimas intraversais entre confronto/contrários e opõem/compõem e de rimas vocálicas provocadas pela presença das vogais /o/ e /a/ em todas palavras conferem ao poema sua sonoridade. O emprego do segmento /ência/ em inexistência/transcendência gera uma rima entre últimos versos das estrofes do poema abaixo: O todo é o absoluto O nada a absoluta inexistência O todo é a onipresença O nada (oniausente) é transcendência 8-9 O poema seguinte também traz uma retomada total dos segmentos nada na palavra jornada e de começo em recomeço; a reprodução da sílaba /ada/ em cada/ nada e jornada causa o que chamamos de rimas lexemáticas. Cada nada é o começo do começo do recomeço da jornada Cada nada é relutar a mesma luta Mesmos lutos Granadas Cada nada é desnudar-se mais e mais e mais Mais nada 10-11-12 Nas segunda e terceira estrofes há rimas entre relutar/desnudar, além da repetição da sílaba /lu/ em relutar/lutar e luto. A palavra mais é reiterada, funcionando como um refrão. 25 25 14-15-16 No poema acima (14-15-16) temos a rima vocálica /a/ devido à reiteração da palavra nada nos primeiros versos de cada estrofe; nos segundos versos das segunda e terceira estrofes há outra rima provocada pela concordância reflexiva de saber-se com aceitar-se. Nos últimos versos das segunda e terceira estrofes, são as palavras miragem e imagem que possuem semelhança sonora e nos reportam ao campo semântico de visualidade, completado com a palavra reflexo. A freqüência do som sibilante /s/ nos verbos sei, saber, aceitar e no pronome sua; da nasal /n/ em nada, mim, miragem e imagem e da bilabial /m/ em mesmo, mim, miragem e imagem constituem as aliterações do poema. Notamos a presença também da forma infinitiva do verbo saber, o que fornece um tom quase impessoal ao poema. No poema Nada? ADN de Adan Adan-adâmico feito de nada e ânimo Adan-edênico feito de nada e pânico 17-18-19 percebemos novamente o som nasal /ãn/ em Adan, ânimo e pânico, da bilabial /m/ em adâmico e ânimo e das interdentais /d/ em nada, Adan, adâmico, edênico e de e de /t/ em 26 26 feito, cujas pontualidades resultam nas aliterações do poema. As vogais /a/ e /o/ nos finais das palavras e os vocábulos adâmico e pânico estão combinadas com o vocábulo ânimo. 25-26-27 As rimas no poema 25-26-27 são formadas pela concordância entre os verbos no infinitivo nadar, andar e danar. A semelhança sonora entre o verbo fosse e o substantivo foice também implica numa espécie de rima. Interessante comentar que o verso “seria foice Danada”, quando lido oralmente sem considerar sua grafia, nos fornece uma outra possibilidade de entendimento “seria fosse dá nada”, nos remetendo à algo que “fosse dar em nada”. No poema 48-49-50 as aliterações se dão pela presença regular dos sons sibilante /s/ em se, fosse, seria e foice, nasal /n/ e interdental /d/ em nada, andar, danar, caminhada e danada. Venço o tempo e vejo que o tempo vale nada O tempo tem pó, penso Um pó denso que o confunde e funde tudo em nada Tampo o tempo com as mãos e vejo nada 8-49-50 27 27 Outra regularidade deste poema é apresentada pela articulação verbal do mesmo, pois alguns verbos estão conjugados na primeira pessoa do singular no tempo verbal presente do indicativo: venço, vejo, penso, tampo. São ações que se voltam para o sujeito lírico. Já outros se encontram na terceira pessoa do singular no mesmo tempo verbal: tem, confunde e funde, verbos que se voltam ao tempo poético. Além do paralelismo verbal, nele identificamos a recorrência das fricativas /v/ e /f/ nas palavras venço/vejo/vale e confunde/funde, de rimas nasais e das consoantes interdentais /d/ e /t/ em venço/tempo/penso/denso, confunde/funde e tampo/mãos, as quais sugerem uma retenção do conteúdo para a própria linguagem. No poema 70-71 as rimas silábicas entre louvada/louva, palavra/lavra e hora/agora se somam a rima vocálica devido à presença das vogais /a/ e /o/ em grande parte das palavras: Louvada seja a palavra que eleva, lavra e louva o nada Louvada seja a hora em que agora alaga o tempo e o tempo nada 70-71 Neste poema há também aliterações, tais como a do fonema líquido /l/ em louvada, palavra, eleva, lavra, louva e alaga, e do fonema vibrante /r/ em palavra, lavra, hora e agora. O corpo sonoro do poema 81-82-83 é formado pela reiteração da sibilante /s/ em ser, semente, somente; da interdental /d/ em nada, de, da e da interdental /t/ e bilabial /m/ em semente, mente e somente: Ser nada é ser de novo ovo Ser nada é ser semente da mente Ser nada é ser ovo e semente Somente 81-82-83 28 28 As rimas entre novo/ovo, semente/mente e semente/somente iconizam o caráter germinativo da palavra/célula nada, pois ser nada para o sujeito poético é produzir, gerar novos sentidos a partir de uma realidade estabelecida pela linguagem, que é arbitrária ao nomear as coisas do mundo. Isso é enfatizado na última estrofe (83) Ser nada / é ser ovo e semente/ Somente, na qual também se explicita a consciência do sujeito lírico sobre seu papel criador. 3.4 Refrão Percebemos que os poemas de AN estão organizados de modo a que seus arranjos produzam efeitos de sonoridade, tais como as rimas e as aliterações. Mas um outro aspecto estético muito incidente nessa poética é o uso de sintagmas e de versos inteiros, gerando uma espécie de refrão e contribuindo também para sua composição sonora. O todo é o absoluto O nada a absoluta inexistência O todo é a onipresença O nada (oniausente) é transcendência 8-9 No poema 8-9 os refrãos são os sintagmas “O todo é...” e “O nada”. Abaixo, o poema tem como refrão o verso “Cada nada”: Cada nada é o começo do começo do recomeço da jornada Cada nada é relutar a mesma luta Mesmos lutos Granadas Cada nada é desnudar-se mais e mais e mais Mais nada 29 29 10-11-12 Nele há um parelelismo entre as estrofes porque as estruturas sintáticas de seus segundos versos são formadas pelo verbo ser na terceira pessoa do singular no presente do indicativo. A mesma correspondência se dá no poema abaixo, no qual temos como refrão o sintagma “Saber nada”: 14-15-16 Nada? ADN de Adan Adan-adâmico feito de nada e ânimo Adan-edênico feito de nada e pânico 17-18-19 O refrão do poema exposto acima é “feito de nada”, o segundo verso de cada estrofe. Já o poema 25-26, além de apresentar a retomada do sintagma “Se nadar fosse...”, possui uma concordância entre seus os terceiros versos, constituídos pelo verbo ser no subjuntivo. 30 30 25-26-27 43-44-45-46 O verbo ser compõe a maioria dos refrãos da linguagem poética em questão. Deste modo, identificamos o sintagma “Ser nada me faz”, dispostos em versos distintos como o coro do poema acima. No poema 61-62-63, o refrão é o verso “Nada a mim”, que fora o ritmo, reitera o tom de prece do sujeito poético para o nada. 31 31 Nada a mim Que não me pertença a posse do que possuo Nada a mim Que as coisas possuam as coisas Os homens, as almas Nada a mim Amém 61-62-63 Nada é revoada suave das andorinhas Nada é o som suave de flauta dos canários Nada são as aves (suaves) que vêm do inverno 67-68-69 O conteúdo é complementado com as reiterações da sibilante /s/, das fricativas /f/ e /v/ e do som nasal /n/ e /m/ que colaboram para o estabelecimento do ritmo fônico. Encontramos novamente o verbo ser integrado ao refrão “Nada é...”, sintagma que reforça a tentativa do eu-lírico de redefinir o vocábulo nada. Esse refrão é rompido com a conjugação adequada ao plural do substantivo ave presente na última estrofe “Nada/são as aves(suaves)”. No poema 70-71, também de caráter religioso, notamos o sintagma “Louvada seja...” funcionando como um refrão. Louvada seja a palavra que eleva, lavra e louva o nada Louvada seja a hora em que agora alaga o tempo e o tempo nada 70-71 32 32 Em diversos poemas de AN, identificamos a presença de paralelismos verbais. O poema 70-71 tem seus versos constituídos por verbos na terceira pessoa do singular do presente do indicativo, tais como louvada, seja, eleva, lavra, louva, alaga e nada. A partir da análise exposta, compreendemos que o corpo sonoro do discurso poético do livro em questão não é composto por uma variedade fonética, uma vez que a reaproveitação vocabular é praticamente exaustiva. No entanto, essa previsibilidade não deixa de ser expressiva, pois reforça a tendência hermética da linguagem poética em questão, à medida que somente por meio dela o eu-lírico cria uma outra realidade e estabelece uma nova relação com o mundo. Os estudos acerca da filosofia da linguagem mostram que o verbo ser, princípio que rege a lógica aristotélica (sujeito-predicado) da linguagem, fundamenta o pensamento ocidental a partir de noções identificadoras. Contudo, este verbo é desprovido desse traço semântico na poética de AN. Ao compor grande parte dos refrãos, torna a palavra nada ausente de um único significado e revela, igualmente, a identidade pluralística, fragmentada, multifacetada e desestabilizada do sujeito-poético em relação às referências centrais do mundo moderno. O verbo ser está, assim, vinculado ao conceito de identidade, como comenta Campos (2000) Deve ter ocorrido, aos leitores de Platão, que o verbo “ser” é muito rico de significado. Dele decorrem muitos problemas filosóficos. Por ter o verbo “ser” um significado de existência, a “lei da identidade” é inerente a Lógica Ocidental. Por conseguinte, a Lógica Ocidental pode ser qualificada de “Lógica da Identidade”. (CAMPOS, 2000, p.179). Esse aspecto do pensamento ocidental foi trabalhado pelo filósofo contemporâneo Jacques Derrida, cujos estudos afetam diretamente a noção de identidade, uma vez que para ele o significado é inerentemente instável, não possui fechamento e é perturbado pela diferença do outro. O poema abaixo ilustra essas colocações: Ser nada é ser de novo ovo Ser nada é ser semente da mente 33 33 Ser nada é ser ovo e semente Somente 81-82-83 Nesse sentido, a presença do verbo ser desprendido de seus semas de estaticidade e permanência e a utilização das formas infinitivas dos verbos em geral colaboram para o aspecto provisional dos sentidos na linguagem poética e ressaltam a fragilidade dos significados ditos como absolutos nos discursos tradicionais da sociedade. 3.5 Plasticidade A poesia dos anos 90 apresenta-se multiforme em termos procedimentais. Holanda (1998, p.17) comenta que “A poesia 90 circula, portanto, com tranqüilidade e firmeza sobre vários registros, revelando um domínio seguro da métrica, da prosódia, das novas tecnologias.” Inserida neste contexto artístico, AN articula diversas heranças literárias e experimenta outras manifestações artísticas, tal como a arte plástica. Savary (1994, p. VIII) em seu estudo- pósfácio de AN afirma que a construção poética de Gonda é fundamentada numa “intenção escultural”. Esse aspecto é identificado, num primeiro momento, com a capa do livro. Em termos táteis e visuais, esta capa nos lembra um mármore, material utilizado para esculpir trabalhos. Assim, a linguagem prosaica pode ser encarada tal como um mármore que será transformado e moldado seguindo a proposta do criador artístico. Essa idéia da linguagem como um material em seu estado natural e “selvagem” faz alusão à forma cabralina de confeccionar poesia. O criador, nesse caso, o poeta é considerado como um artesão das palavras. Um outro aspecto tátil é a utilização de um plástico transparente como uma página que precede o poema abaixo, o primeiro do livro: Entre mim e o nada a distância intransponível da transparência 1 34 34 Este poema está falando de si mesmo, de sua situação poética, visto que ele é precedido por uma página feita de material plástico transparente. É esta página intransponível, mas transparente que separa o poema, bem como o eu-poético do nada. O nada, neste caso, pode ser considerado o último poema do livro (101), formado apenas por parênteses vazios e que nos revela o caráter cíclico dessa manifestação poética. Sua visualidade supõe a metáfora do nada, submetido a todos os sentidos possíveis. Do mesmo modo, este poema renuncia a expressão verbal e radica a linguagem poética na imagem: 101 Partindo do ponto de vista que concebe o poema como artefato fônico, o vazio que habita o interior dos parênteses nos remete ao silêncio que antecede o primeiro verso de um poema ou a pausa entre um poema e outro, como lembra Chociay (1974), O primeiro verso de um poema reside entre duas balizas: o silêncio, que lhe é anterior e a pausa após sua última silaba. O verso final do poema é delimitado pela pausa do verso precedente e pelo silêncio que lhe segue. Excetuados, portanto, estes dois, os demais residem entre duas pausas: a do verso imediatamente anterior e a sua própria. São as pausas que, travando o final de um verso, permitem o retorno silábico e acentual do esquema através do verso seguinte, segundo diversos graus de simetria estrófica [...]. (CHOCIAY, 1974, p.4). 35 35 cujo comentário nos permite considerar que os parênteses vazios ao mesmo tempo visualizam e enfatizam uma pausa. O eu-poético mergulha em um silêncio que estabelece delimitações: entre o último poema e o próximo. O nada do poema 1 também pode ser o vazio da folha anterior, onde temos uma página que nos lembra aquela reservada para dedicatórias. Contudo, o que vemos escrito sobre ela é somente a letra A. A obra é dedicada a ninguém, ao nada, ao vazio que será habitado ao longo do livro, sem deixar de sê-lo. É uma ruptura com os formalismos gráficos, editoriais, com o que é previsível. Mais ainda: com os formalismos afetivos de oferecer o que escrevemos a alguém que julgamos o merecimento, por afeto ou gratidão. Tais aspectos gráficos permitem que o livro deixe de ser apenas um objeto para participar do discurso poético à medida que é manuseado. Ressaltamos que o conceito nada teve papel fundamental na poesia moderna, atuando como uma força motriz para criação artística. Com base em Rosa (1980), existe uma distância instaurada pela linguagem em relação ao real que conduz precisamente ao estabelecimento de uma nova relação com o mundo: No ponto de partida da criação não está uma positividade ou uma plenitude de ser, uma realidade já constituída, mas sim o vazio e a distância constitutiva da linguagem, a negatividade e a carência. É este “nada” que põe em ação a imaginação, que a torna a um tempo receptiva e criadora, permitindo à consciência abrir-se à inapreensível totalidade. (ROSA, 1980, p. 6). Nesse sentido, o poema 101 pode ser visto como a iconização do nada, tratado por Rosa (1980). Visualmente, notamos em AN uma certa simetria na organização gráfica dos poemas. Com exceção dos poemas visuais 24, 37, 38 e 101, todos eles estão dispostos ao lado esquerdo das páginas. Além disso, existe uma regularidade quanto à extensão dos versos, como observamos nos seguintes poemas: Em busca do nada: Emboscada O duplo do nada: Ambos(cada) 58-59 36 36 Venço o tempo e vejo que o tempo vale nada O tempo tem pó, penso Um pó denso que o confunde e funde tudo em nada Tampo o tempo com as mãos e vejo nada 48-49-50 No poema acima (48-49-50) é visível a correspondência gráfica, principalmente entre o primeiro e terceiro poema. Em muitos poemas essa simetria acontece por meio da alternância entre um verso longo e um curto. Sobre esse aspecto simétrico Menezes (1991, p. 26) comenta que “A simetria da composição, em que o geometrismo é a ‘subordinação da composição à esquemas matemáticos, incluindo-se a estrutura espelhada da simetria, que fecha o quadro dentro dele mesmo, numa organização do olhar circular.” Ainda, segundo o autor, a simetria destaca o aspecto introjetivo da composição que se volta sobre si mesma, expurgando os contatos de semelhança formal com as coisas do mundo exterior, virando-se sobre sua própria estrutura geométrica. A partir disso, verificamos que a ordenação regular desses poemas nas páginas colabora com a tentativa do eu-poético em tornar sua linguagem intransitiva. Um outro aspecto visual a ser comentado é a cor branca presente no livro, desde sua capa até as páginas. Assim, em AN, o branco da página sugere um lugar de não sentido, um vazio preenchido e contraposto pelo próprio poema. Porém, se considerarmos a cor branca fisicamente, veremos que ela é resultado da junção de todas as cores, ou seja, é presença. O branco pode, então, representar a abertura semântica da palavra nada, já que ela será habitada por outros sentidos ao longo da obra, daí seu traço totalizante. Os parênteses, utilizados em diversos poemas, retratam a intenção poética do eu-lírico, como ocorre nos exemplos a seguir. No poema 8-9 os parênteses destacam uma das características do nada, ser ausência de algo - oniausente, neologismo criado para contrapor a onipresença do todo. O todo é o absoluto O nada a absoluta inexistência 37 37 O todo é a onipresença O nada (oniausente) é transcendência 8-9 Em alguns casos, como no poema acima, a utilização dos parênteses pode gerar uma redundância semântica, pois, se traçarmos uma comparação entre o nada e o todo, tendo como base definições filosóficas ou mesmo aquelas encontradas em dicionários comuns, chegaríamos a essa distinção de presença/ausência. Contudo, os parênteses colaboram para a impossibilidade de uma leitura linear do poema. No poema abaixo 14-15-16, a presença dos parênteses resume e ressalta o que será dito nas estrofes seguintes, gerando um movimento circular: 14-15-16 Os significantes presentes em AN são organizados de maneira combinatória e permutativa, recursos estilísticos que reforçam a materialidade do signo. O poema abaixo exemplifica esta colocação ao tematizar este procedimento: A polissemia do nada: O pólen e o sêmen de Adan 20 Já este outro poema, dentre outros, o realiza de maneira mais significativa: 38 38 Nada? Adan anda Nada? Adan dana Nada? Adan nada nada nada 23 Juntamente com os parênteses, o espelhamento encontrado em alguns poemas confere um caráter auto-reflexivo da linguagem poética de AN. No poema 21-22, os versos da primeira estrofe foram refletidos, como se estivessem diante de um espelho (segunda estrofe), induzindo-nos a pensar na relação que a criação poética institui com o real – aquela não é cópia, mas virtualidade ordenada praticamente por si só, indicada pelo movimento de troca de alguns signos no poema 22 e pelo verbo mascarar. 21-22 Como ocorre no poema anterior 14-15-16, nos poemas que se seguem o uso dos parênteses implica duas interpretações: a primeira estrofe (30) tanto pode ser a sintetização das indagações colocadas pelo eu-poético em cada um das estrofes posteriores (31,32 e 33), como estas podem ser o esclarecimento da primeira. O poema evidencia, novamente, devido ao conjunto de semas imagem, espelho, reflexo, a relação que a poesia instaura com o mundo externo a ela. Ao mencionar água é possível estabelecermos uma relação analógica com a poesia de um modo geral, visto que esta se vale de uma linguagem automatizada e a transfigura em uma outra. “(e o reflexo nada nágua virtual)”. 39 39 30-31-32-33 O poema 76-77 apresenta um tom de prece que evoca o nada e a abrangência de seus significados, substantivo ou verbo (nadar) conjugado na primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Ao pedir para que o nada entranhe em si, o sujeito poético se revela consciente sobre a ruptura que a criação poética causa na linearidade dos discursos corriqueiros, dentre eles o discurso religioso de exaltação do todo. 76-77 40 40 A sensação visual que este poema nos propicia é de imersão do eu-lírico no seu fazer poético, além de uma certa erotização dada pelos parênteses. Assim, os versos desse poema, lidos como um todo “que/ me/ invada!” revelam o caráter eufórico do eu-lírico em estar dentro dessa situação poética que desautomatiza o mundo rotineiro. O uso de letras maiúsculas no poema 28-29 e a inversão dos signos tudo e nada ressaltam a preocupação formal e jogo realizado com as palavras: tudo tem como anagrama duto e nada tem como Adan. O TUDO é O DUTO no qual o nada é Adan o tudo é o duto No quAl o éDen é Adan 28-29 O rompimento da estrutura morfológica do significante nada em muitos poemas também intensifica o aspecto físico dos signos lingüísticos. Tal procedimento indica uma sintaxe subjacente que contribui para expressar o descontentamento do eu-poético em relação às religiões e ao conceito pré-estabelecido de Deus pelas mesmas. Esse recurso estilístico de desmontar o signo lingüístico nada na segunda estrofe do poema 28-29 contrapõe-se com os vocábulos de cunho religioso, Adan e éden. O sentimento niilista do eu-lírico permite que ele compare o éden com Adan, e assim podemos admitir que esse paraíso perdido, segundo o mito retomado, é o próprio homem tal como se encontra em seu existir: sujeito às alegrias, às tensões, às contradições existenciais, ao sofrimento e à morte. O estilhaçamento do vocábulo nada também ocorre no poema 39-40 que retém a leitura pelo desmembramento do significante nada nas estrofes 39-40 e pelo uso dos parênteses, movimento que iconiza a inquietude diante da concepção de Deus como uma entidade absoluta, indivisa. Nesse caso, o nada, enquanto signo manipulado dentro deste contexto poético dissolve as divergências religiosas, priorizando o fazer poético, fato expresso com os versos da última estrofe “O nada religa/ as crenças/numa única re-ligião”. 41 41 39-40-41-42 De forma mais radical, o eu-poético abandona o verso e se vale das possibilidades concretas do significante nada e de suas letras como matéria-prima, espalhando-o pela página e formando os poemas visuais (24 e 38). 42 42 Por meio dos procedimentos destacados, o sujeito-poético tenta romper com as figuras presentes nos mitos judaico e cristão. Tais recursos concorrem com a posição niilista do eu- poético, aproximando a concepção do Deus cristão e do nada. Conseqüentemente, somos instigados a refletir sobre os valores instituídos que a teologia clássica nos apresenta sobre essas duas entidades. Nesse sentido, a significação de AN se presentifica com o manuseio concreto da palavra e na realidade material do livro. Nesta obra lírica identificamos a valorização do jogo poético em detrimento da linguagem bíblica. É uma poesia constituída a partir de uma precisão formal, mas que pronuncia, do mesmo modo, a subjetividade de seu eu-lírico. 3.6 O Conjunto vocabular 3.6.1 O (des)confronto dos contrários 43 43 A poesia necessita por definição da existência de uma outra lógica que crie uma nova realidade, objetiva e autônoma. O conjunto vocabular e a expressividade rítmica que constituem a poesia colaboram com essa intenção poética. A respeito disso, Friedrich (1991) descreve: O vocabulário usual parece com significações insólitas, a sintaxe desmembra-se ou reduz-se a expressões nominais intencionalmente primitivas. A comparação e a metáfora são aplicadas de modo que não se usa o termo comparação natural e força uma união irreal daquilo que real e logicamente é inconciliável. A necessidade de curvas de intensidade e de sequências sonoras isentas de significado, têm por efeito, não mais permitirem, de modo algum, compreender o poema a partir de conteúdos de suas afirmações. Pois seu conteúdo verdadeiro reside na dramática das forças formais tanto exteriores como interiores. (FRIEDRICH, 1991, p.18). Em termos de vocabulário, verificamos que o texto gondiano apresenta a coexistência de vocábulos que, habitualmente, enfrentam um embate semântico. Essa escolha lexical pode ter sido motivada pelo pensamento oriental, já que notamos a influência deste na poética de AN devido à referência aos haicais e ao método ideogramático de trabalhar a linguagem. A linguagem oriental difere da ocidental em diversos aspectos, um dos quais é a ausência do verbo ser para definir as coisas e a utilização dos elementos contrários, caracterizando-a como uma linguagem que tende a combinar e equilibrar as coisas. Com base em CHANG TUNG-SUN (2000) [...] A arte a arquitetura se caracterizam por uma acentuada noção de equilíbrio. A atenção se volta menos para os elementos separados que para a configuração total. As idéias são muitas vezes denotadas por expressões compostas, constituídas de antônimos; por exemplo: ‘comprar-vender’ é ‘comerciar’; ‘avanço-recuo’ é ‘movimento’; ‘norma-caos’ é ‘condição política’ etc. Os antônimos não são tidos como opostos irreconciliáveis, mas sim como suscetíveis de união para formar uma idéia completa. (CHANG TUNG-SUN, 2000, p. 213). Na história do pensamento ocidental encontramos uma concepção de mundo a partir das relações dos opostos com a filosofia de Pitágoras. Com base em Chauí (2000, p.21), ele afirma que a natureza é feita de um sistema de relações ou proporções matemáticas produzidas a partir de uma unidade, da oposição entre números pares e ímpares e da combinação da superfície e os volumes (figuras geométricas). 44 44 Essas proporções e combinações aparecem para nossos órgãos dos sentidos sob a forma de qualidades contrárias: quente-frio, seco-úmido, áspero-liso, claro-escuro, grande- pequeno, etc. O filósofo grego aponta que nossos sentidos ou nossa percepção alcançam o modo como a estrutura matemática da natureza aparece para nós, isto é, sob forma de qualidades opostas. A diferença entre esses pensamentos é que o oriental (chinês) toma o masculino e o feminino dos seres animais e humanos e considera que o Universo inteiro é feito de oposição entre as qualidades de cada um. Contudo, Pitágoras apanha a Natureza de modo geral e faz distinção entre as qualidades sensoriais que nos aparecem e a estrutura invisível da natureza, que para ele, é matemática e alcançada apenas pelo intelecto ou inteligência. Em AN encontramos um conjunto vocabular cujos sentidos contrários possuem uma relação semântica não excludente. Deste modo, o anagrama do significante nada, resultando no nome Adan sugere a interdependência de nada e Deus ao conceituá-los. No poema 2 há uma comparação entre nada e o todo que os igualam: Conceber o nada é conceber o todo (Inconcebível) 2 Nele identificamos a impossibilidade do eu-poético em dar uma única e estável definição as palavras nada e todo. A dificuldade em atribuir definições a esses dois vocábulos é evocada pelo uso de antônimos, tais são eles: o todo/ o nada e conceber/inconcebível. Ambos, o todo e o nada possuem o sema totalidade, no qual nada se acrescenta e nada se retira. Esse sema não é algo criado pelo eu-poético, sempre existindo como traço constituinte de tais palavras. O que o sujeito poemático faz é evidenciar essa aproximação entre valores incontestáveis propagados pela teologia clássica. No poema baixo, notamos que o sujeito poético realiza um retorno à condição primordial do mundo, ao caos, onde tudo se resumia à nada. Ele enuncia que “apenas parte é o todo” e imprime a idéia de que cada poema em sua poética é único, mas que não tem valor sozinho. Também nos remete a noção estruturalista da linguagem, para a qual esta é um todo que não funciona sem as partes. É inserido num aparente “caos lingüístico” que seu propósito criador se encerra e ele pode ver as coisas como se fosse a primeira vez. 45 45 apeNas pArte é o toDo apenAs No cAos, o toDo é o acAso 3-4 O desmanche do significante nada e o ritmo de leitura desarticulam a interpretação linear do poema resultando em duas leituras possíveis: a primeira é dada respeitando a divisão gráfica do poema em que o verso “apenas” no poema 3 exerce um tom enfático. A segunda não respeita a divisão das estrofes e pode ser lida assim: “apenas parte é o todo (pausa) apenas no caos o todo é o acaso”. Preferimos a segunda leitura, pela qual depreendemos que a palavra poética possui um aspecto totalizante, à medida que fica sujeita a todas suas possibilidades de sentido. Em relação à isso, Rosa (1980) afirma que A palavra poética está aberta ao acaso, ao não sentido, palavra móvel e livre pela sua abertura a todos acidentes e ocorrência do seu curso, e devido a isso, refratária à economia funcional de um discurso temático e a qualquer interpretação de caráter simbólico. (ROSA, 1980, p.7). O confronto dos contrários se anula criando a totalidade do nada É o yin o nada do yang e o yang o nada do yin O todo opõe-se ao nada como duas matérias que compõem um mesmo espaço 5-6-7 A primeira estrofe deste poema expõe uma luta pelo estabelecimento de um significado, fato que parece se consolidar com a junção de sentidos opostos. Mas nessa expressão poética tal processo de significação nunca termina. Esses elementos opostos também podem ser interdependentes, visto que temos neste poema dois conceitos chaves da 46 46 filosofia chinesa. Yin e Yang expressam respectivamente, duas forças opostas, porém complementares no universo, cuja interação produz todas as coisas e cuja unidade se baseia no Supremo (o que se chama tao ou natureza). De acordo com Chang Tung-Sun (2000, p. 184 e 213), com o yang, ou princípio positivo, pressupomos yin, ou princípio negativo, ou com o yin pressupomos o yang. No poema acima, yin e yang são definidos como o nada um do outro. Essa relação interativa de elementos contrários expressa na poética de AN contribui para um sentido que nunca se concretiza da palavra nada. São ausências grafadas nos atributos do nada que torna esse signo sempre aberto a outros sentidos, daí seu aspecto totalizante. A última estrofe retoma a Lei Física que alega a impossibilidade de duas matérias ocuparem o mesmo lugar no espaço. Porém o que ocorre neste poema é que os signos todo e nada não ocupam, mas compõem a mesma matéria que é o próprio poema, este é o lugar onde as palavras praticamente provocam uma resistência não excludente de sentidos, gerando outros. O enfoque em vocábulos divergentes como, por exemplo, anula/criando, yin/yang, todo/nada e opõem/compõem corrobora para a essa atitude poética, permitindo que a questão da dualidade da existência não seja encarada de modo extremista. Esse conjunto vocabular também oferece um tom performático ao poema, uma vez que ao enunciar o “confronto dos contrários”, ele realiza este embate. No poema abaixo, o grupo semântico formado pelos signos todo, absoluto, onipresença nos levam à concepção metafísica e divina de entidade. Em contraposição, os signos nada, oniausente e inexistência se referem aos predicativos dados ao nada. Entretanto, nos versos “O nada (oniausente)/ é transcendência” o sujeito lírico desestabiliza essas noções. O todo é o absoluto O nada a absoluta inexistência O todo é a onipresença O nada (oniausente) é transcendência 8-9 As predicações de conceitos polares atribuídas aos vocábulos de AN (que vai do poema 2 ao 9) propõe o início da busca por um novo sentido para o nada, que irá suceder-se 47 47 ao longo de sua poética. A palavra nada é destituída de seus semas negativos, tais como, ausência, vazio, silêncio e não-ser. Do mesmo modo, o construto cristão de Deus imposto ao homem ocidental é elucidado e desconstruído. 3.6.2 A ambiguidade As linguagens cotidiana e a literária são polissêmicas e conotativas, nelas as palavras possuem múltiplos significados simultâneos, subentendidos, que exprimem as relações vividas entre o sujeito e o mundo. Entretanto, é com a linguagem poética, esteticamente trabalhada que a ambigüidade é ampliada e intensificada. Friedrich (1991, p. 144) comenta que “A combinação das palavras de modo incomum renuncia uma compreensibilidade limitante substituindo-a por uma sugestividade ambígua.” Em AN, o signo nada ora aparece como substantivo, ora como verbo, ora como pronome indefinido negativo. No poema abaixo, o sujeito poético faz perguntas retóricas sobre o nada (o substantivo, o pronome ou o verbo nadar) e as responde com inversões de seus fonemas, formando os seguintes significantes: nome bíblico Adan e os verbos de movimento andar, danar e nadar, conjugados na primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Nada? Adan anda Nada? Adan dana Nada? Adan nada nada nada 23 A palavra nada parece ser definida como ações do homem comum (já que Adan pode ser considerado a personificação de toda a humanidade). A permutação realizada entre os fonemas do significante nada destaca o aspecto sensorial dos signos e estabelece uma nova relação entre eles que deixa de levar em conta seu caráter sintagmático, atentando para o uso paradigmático. Essa relação motivada da linguagem aproxima os níveis expressivos e conteúdisticos e altera os significados que isoladamente cada signo continha. No poema seguinte (24-25-26), o eu-poético parece explicar o poema anterior (23), intuito dado também pelos parênteses que abrangem todas as estrofes: 48 48 24-25-26 Na primeira estrofe o verbo nadar assume um outro sentido, pois nadar pode ser o ato de praticar natação ou no ato de transformar algo em nada. Esse caráter polissêmico de nadar se dá devido à comparação feita pelo eu-poético entre os verbos nadar/andar e logo após entre os substantivos nada /caminhada, derivativos dos verbos citados. O mesmo ocorre na segunda estrofe, na qual nadar é comparado ao ato de danar (perverter, depravar, enfurecer, etc.), o que deriva o substantivo nada e o adjetivo danada. Uma parte do corpo sonoro deste verso “seria foice Danada” já foi tratada anteriormente (p.24). Nesse caso, vale mencionar outra leitura possível na qual o adjetivo danada (pessoa ou algo que é travessa ou esperta) é aplicado ao nada que, juntamente com o substantivo foice, aponta o nada como um instrumento que leva à morte. Uma metáfora da aniquilação da linguagem corriqueira pela linguagem outra. O nada é o outro lado do nado O nada? O nado? Em ambos a ambigüidade O nada é a feminilidade do nado (O nada nada golfinho!) 72-73-74 49 49 Neste poema são as ambigüidades das palavras nada e nado que se destacam. Uma nova predicação é atribuída ao nada. Trata-se de um poema que também apresenta um aspecto performático, visto que o sujeito lírico comenta a respeito dessas ambigüidades e as expõem. É na última estrofe que ele atribui, de maneira despojada, um outro sentido ao nada e, assim, em meio a essa linguagem, esse signo está submetido à transitoriedade de vários significados (O nada nada golfinho!). Ao conferir ao signo nada outros significados é possível fazermos uma relação com a sintaxe do chinês. Campos (2000) informa que tal sintaxe imprime a imagem de como, na natureza, as coisas brotam uma das outras, estão interligadas, agem uma pelas outras (o exemplo do ideograma de “sol+lua” juntos, ora em função substantiva, ora em função verbal, ora em função adjetiva, ilustra este ponto: é a “palavra abrangente”, que não pertence exclusivamente a nenhuma “parte do discurso”, inclinando-se como as necessidades operacionais, para um ou para outro lado, mas conservando sempre a riqueza e a concretude de algo vivo e cambiável; o mot total mallarmeano, podemos supor, conteria uma pulsão semelhante. (CAMPOS, 2000, p. 76). Nesses termos, compreendemos que no poema 75 a ambigüidade da palavra nada é retomada e nos leva para a própria situação poética em que a mesma se encontra. O percurso poético de significações (nome atribuído aqui ao processo de retirar e restituir significados) por qual ela passa é um fluxo, como se a palavra estivesse na corrente deste discurso, “nadando”. Esse movimento incessante é mostrado pelo uso de reticências no último verso. Nada nada Nada nada? Nada...nada... 75 No poema 76-77 o jogo com o substantivo nada e com o verbo nadar (nade) intensifica a idéia do poema anterior a respeito da situação poética do nada e mostra um eu- lírico evocando o nada, pedindo para que eles se confluam em uma só coisa. Resultado dessa confluência é a manifestação lírica de AN como um todo. 50 50 76-77 A repetição da mesma estrutura nos versos Que me invada o nada/Que o nada nade em mim/Que eu nade no nada nos dá um ritmo com um tom orativo. Já a segunda estrofe que contém o verso “que me invada!” iconiza o emaranhamento entre o nada e o eu-lírico, devido ao uso dos parênteses e da palavra nada destacada no interior do vocábulo invada. Além do substantivo nada e do verbo nadar (e suas conjugações) há outros signos que têm seu aspecto ambíguo ressaltado. A palavra invernada, presente no poema abaixo, tem dois sentidos: um inverno rigoroso e pastagem para rebanho doente, fraco. Dentro desse contexto e devido à separação da palavra, “in-ver-nada” é a atitude de enxergar o nada, palavra ontológica e poética, que permite uma visão atemporal da existência mundana. O nada congela os olhos do tempo: in-ver-nada 54 3.6.3 Afinal, o que é o nada em AN? Notamos que na produção poética em questão ao vocábulo nada é concedida uma nova significação a cada poema que se apresenta. Isso se dá mediante estruturas sintáticas (os versos) formadas pelo verbo ser. Trata-se de um paralelismo que estampa seus resultados no campo semântico de forma mais expressiva, uma vez que tal verbo organiza a lógica da identidade presente e constituinte do pensamento ocidental. Contudo, esse mesmo verbo 51 51 “delimitador” vai permitir que outros sentidos sejam aplicados ao nada constantemente, o que supõe um caráter dinâmico a poética de AN. Observemos o seguinte poema: 55-56-57 Podemos verificar que há uma recorrência da sibilante surda /s/ em silêncio, solene, silencioso; da bilabial /m/ em marulho, mar e da sibilante sonora /z/ em deserto, silencioso, anestesia e sinestesia, nos revelando, contrariamente, o que está expresso na primeira estrofe. Ao nada é dado o sema de presença, com sons e sentidos, fato declarado na última estrofe. Além do conjunto vocabular que nos remetem a percepções sinestésicas, tais como som em mudo e silêncio e visão em olhos, camufla e revela, temos também as sensações fornecidas pelas aliterações e assonâncias que compõem o sentido do nada no poema a seguir: O nada? O momento mudo que antecede o vento Nos olhos do vento o nada se camufla de silêncio Venta Venta E quando o vento acaba se revela o nada 64-65-66 A presença do fonema bilabial /m/ em momento, mudo, camufla, a freqüência dos sons fricativos /v/ em vento, venta, revela e /f/ em camufla, bem como a reiteração das palavras vento e venta concorrem com os vocábulos mudo e silêncio presentes no poema. O 52 52 nada perde seu sentido comum de ausência para oferecer ruído. Existe um movimento cíclico nestes versos, pois o último poema nos remete ao primeiro. Novamente, o nada é redefinido como imagens e sons da natureza: Nada é revoada suave das andorinhas Nada é o som suave de flauta dos canários Nada são as aves (suaves) que vêm do inverno 67-68-69 Tais sentidos tanto são concedidos pelas definições apresentadas, como pelas repetições dos fonemas fricativos /v/ e /f/ que proporcionam som. Portanto, nada deixa de ser silêncio, ausência, para se tornar presença, barulho. O estrato fônico, como notamos, funciona como possibilidade de novos sentidos para o nada. Quanto à formação sintática dos versos, verificamos que as redefinições do nada são propiciadas, em sua maioria, pelo verbo ser. Este verbo se distancia dos seus semas literais de estado, permanência e estaticidade, admitindo a noção de movimento e de dinamicidade. Campos, (2000) ao comentar a obra de S. I Hayakawa sobre “sistemas não aristotélicos” de linguagem, alega que o trabalho desse último insistiu nas “limitações falaciosas do princípio da identidade, regido pelo verbo ‘ser’; pondo em questão a articulação binária dos valores de ‘verdade’[...].” (CAMPOS, 2000, p. 90). O que podemos supor a partir desses comentários é que, embora o verbo ser contribua para as coerções lingüísticas que pesam sobre o pensamento ocidental, ele é evocado nesta poética como uma tentativa de fuga desse modelo aristotélico de linguagem, uma vez que há um movimento semântico de perda e restituição de significados para o vocábulo nada em cada poema, de modo que seus atributos de ausência, vazio, silêncio e não-existência sejam abandonados. Assim, o signo nada sofre uma certa depuração com o manuseio de seus conceitos, instaura e reforça a abertura e a mobilidade de significados presentes na linguagem. 53 53 3.6.4 O fluxo do nada nas outras línguas A construção de uma linguagem que se distancie da habitual leva o eu-poético a realizar uma sondagem introspectiva. A possibilidade de alcançar o novo com a construção de sua lírica possui aspectos míticos em relação à situação mundana, existencial do sujeito-lírico e em relação à linguagem em si. Ele realiza um retorno mítico ao Éden, paraíso perdido por Adão e Eva, segundo a literatura judaico-cristã. O sujeito poético procura o homem adâmico, retornando à essência natural do Jardim do Éden, onde tudo pode ser visto como se fosse a primeira vez. É um regresso não nostálgico, uma vez que lhe permite a recriação de Adão e suscita um olhar poético e questionador ao mito bíblico. Uma outra revisitação mítica está relacionada com a linguagem e sua possibilidade de comunicação e conhecimento. Trata-se da Torre de Babel, relato bíblico que explica o porquê da diversidade das línguas no mundo. De acordo com esta narrativa da Escritura Sagrada, os homens construíram uma torre almejando alcançar o céu para ocupar um lugar semelhante ao da divindade. Essa atitude foi considerada audaciosa por Deus que os puniu com as diferenças lingüísticas, provocando uma confusão entre eles e impedindo-os de realizar uma obra comum.Com a comunicação fragilizada, os homens ficaram suscetíveis aos desentendimentos e as guerras. E é no campo da linguagem poética, o lugar onde o eu-lírico tenta amenizar as diferenças morfológicas, fonéticas e semânticas entre palavras de línguas diversas aproveitando suas coincidências nesses aspectos. Esses poemas são os últimos do livro e somam um total de 17. Para nossa análise, iremos apresentá-los seguindo a ordenação dos mesmos na obra. Somado a isso, observamos que todas as palavras estrangeiras estão grafadas em itálico, destacando-as das demais. As análises são feitas de maneira explicativa com o intuito de evidenciarmos como o eu-poético estabelece as relações entre uma língua e outra. No poema 34-35-36 há uma analogia estabelecida entre as palavras L’ânima (a alma, em francês) e lâmina, devido às semelhanças morfológica e fonética. A alma, princípio espiritual do homem, separável do corpo e imortal é uma idéia que faz parte da doutrina cristã. 54 54 34-35-36 Por sua vez, o nada nos remete ao budismo, doutrina cujos fundamentos pretendem levar o homem ao estado do nada, este é visto como libertação de um meio material que sufoca a existência humana. Tanto a alma, quanto o nada são maneiras de promover um certo conforto espiritual ao homem. No poema seguinte, o sujeito poético faz uma relação com os signos das línguas inglesa, francesa e portuguesa. A primeira estrofe nos mostra que nas línguas inglesa e francesa as palavras nothing e rien (substantivos) e swim e nage (verbos) não são homógrafas, tal como no português nada (substantivo) e nada (verbo). E por essa razão, os versos “Nothing does not swim” e “Rien ne nage pás” possuem a seguinte tradução: O nada não nada, levando o eu-poético a indagar essa característica do signo nada em português (Por que, então, o nada nada?). Nothing does not swim Rien ne nage pas (Por que, então, o nada nada?) No-never-noone-nothing Não-nunca-ninguém-nada (A negação namora o n!) 84-85 É na segunda estrofe que essa diferença é suprimida, pelo menos em relação à língua inglesa. Coincidentemente, todas as palavras em inglês e suas respectivas traduções em português são iniciadas com a letra n, tais são elas: no (não), never (nunca), noone (ninguém), nothing (nada). Num tom eufórico, o eu-poético se conscientiza a respeito dessas semelhanças 55 55 morfológicas no último verso “(A negação namora o n!)”. Em função desses vocábulos, é visível a presença do som nasal /n/, o que mantém a linguagem poética centrada em si mesma. No poema a seguir todas as palavras denotam nada: nihil (latim), niente (espanhol/italiano), nothing (inglês), nichts (alemão), nada (português) e rien (francês). Apenas em francês não existe semelhança morfológica e fonética. Assim, no segundo verso “Rien?Rian?” o eu-lírico aproxima rien de riam devido ao parentesco fonético entre elas. Novamente, num tom despojado e eufórico ele retoma a não semelhança ortográfica entre os “nadas” em outras línguas e o “nada” em francês. Nihil-niente-nothing-nichts-nada-rien Rien? Riam! Alguém esqueceu o n! 86 Retomando alguns vocábulos do poema anterior, o sujeito lírico dá a eles outros significados: Nihil-niílico é um nada empírico Nichts é um quase-noite Noturno como nacht Niente é um não-ente no particípio presente 87-88-89 Na primeira estrofe, nihil (palavra latina que significa nada) e a criação lexical niílico definem o nada como algo empírico, ou seja, que se deve conhecer a partir de uma certa experiência e, para o sujeito lírico isso se dá no campo da linguagem. A existência dos pares mínimos é mostrada na segunda estrofe, pois nichts (nada em alemão) é quase par mínimo de nacht (noite na mesma língua) e é essa relação entre palavras da mesma língua que permite ao eu-poético definir nichts como “um quase-noite”. Na última estrofe, niente (nada em espanhol/italiano) é definido como um “não-ente/no particípio presente”, algo desprovido de essência e existência, conceito que é alterado a cada novo poema. 56 56 O poema 90 está inserido dentro de parênteses, os quais nos dão a idéia de algo que está sendo acrescentado no discurso poético, tal como uma observação. A escolha de palavras que se assemelham provocaram uma rima entre rien/bien e vient. Rien (nada em francês) é comparado ao movimento contínuo das águas de um rio, expresso no verso vient-vient-vient (verbo vir em francês), ressaltando que nesse fluxo poético não se consolida um único sentido ao nada. 90 Nothing é um nada que esconde um ninho Nothing é um nada no gerúndio nadando...nadando... 91-92 As novas relações estabelecidas entre palavras de diferentes códigos se evidenciam nesse poema tanto no aspecto fonético, como no referencial. Na primeira parte, o vocábulo nothing (nada, em inglês) é definido como um nada (o que não deixa de ser verdade) que esconde um ninho (o que também é verdade), uma vez que a palavra thing está presente na estrutura de nothing. Thing possui um traço abrangente, que pode ser usado para mencionar qualquer coisa quando não se sabe, ou apenas não se afirma seu nome. Na segunda estrofe é feita uma comparação entre o substantivo nothing e os verbos no gerúndio em inglês (formado pelo auxiliar to be mais o verbo principal com terminação em ing). Assim, o substantivo nothing, ao ser traduzido para o português, é transformado na forma gerúndio do verbo nadar. Notamos, nesse sentido, que na linguagem poética de AN não há distinção entre os tempos verbais presente do indicativo e gerúndio, pois ambos participam da mesma função verbal que lhes dão um certo dinamismo e incompletude, gerando a recriação e a transformação da realidade circundante por um olhar que a contempla poeticamente. 57 57 Essa marca verbal contribuiu para a imersão do nada na linguagem poética, comentada anteriormente, e para suas inúmeras possibilidades de sentidos, fato expresso também pelas reticências no último verso “nadando... nadando...”. Nothing? No thing-sing-sin No sin? Não-sim Nothing é um não-sim meio nonsense Nothing? Não coisa (O não-nada é nothink!) 93-94-95 As semelhanças com a língua inglesa são novamente retomadas neste poema. O substantivo nothing é desmembrado na primeira estrofe tendo como base as pronúncias similares entre thing (coisa), sing (cantar) e sin (transcrição fonética da palavra portuguesa sim), todas elas com um som sibilante. O eu-poético retoma a associação fonética entre nothing e não-sim na segunda estrofe e tematiza o seu próprio fazer poético (meio nonsense), pois para aqueles que não estão habituados ao modo não linear de operar a linguagem, as comparações nela realizadas são destituídas de lógica e coerência e, por isso, perturbadoras. Na última parte, nothing é dividido e traduzido de acordo com suas partes (no: não e thing: coisa) não-coisa e logo após uma palavra é criada com base na semelhança fonética de thing e think: “o não-nada é nothink”, (no: não e think: pensar). Ou seja, não aceitar o nada, não admitir-se nada, não construir poemas a partir do nada para o sujeito lírico é não pensar, é evitar refletir e indagar-se sobre seu estar no mundo e sobre o trabalho poético. Com a língua espanhola também são estabelecidas relações fonéticas, tais como as entre So(ñada), nada, Sonhada e Soy nada. Nestes versos o sujeito lírico admite desejar e ser nada, o que já tinha sido exposto no poema anterior. 58 58 96-97-98 No mesmo poema temos a concordância do artigo la com nada, cujo gênero em espanhol é feminino, o que faz o eu-poético perguntar inconformado na última estrofe O nada? La nada?. É nos últimos versos que ele menciona De nada vale ser fe(or)male/ em meio ao nada (De nada vale ser feminino ou masculino/ em meio ao nada), o que nos mostra o abandono da estrutura gramatical das línguas em função do estado poético. Aani significa nada e não em tupi-guarani. No entanto, no poema abaixo a mesma está transcrita de um modo diferente. A separação do i no verso de “Aan-i”nos remete ao pronome sujeito eu em inglês, juntamente com a semelhança sonora entre o verbo to be (ser/estar em inglês) e o vocábulo tupi, devido ao sons bilabiais /b/ e /p/ permitem que o eu-lírico questione no verso (or not tupi?) se tal palavra ainda pode ser considerada tupi-guarani. Aan-i? Nada, em tupi (or not tupi?) 99 Quando o sujeito lírico opera a linguagem, a retira de seu ambiente comum e lhe dá um potencial poético. É desse modo que as diferenças entre os códigos lingüísticos são dissolvidas. O poema 100 é o antepenúltimo do livro e os versos “Nada/ Ist11 to be, seulement, (É ser, somente,)/ Niente más (Nada mais)” resumem tal proposta poética: 11 Ist é uma das formas conjugadas do verbo ser/estar em alemão. 59 59 Nada Ist to be, seulement, Niente más 100 O signo nada está continuamente aberto a novos sentidos sem eleger nenhum como único. O eu-lírico visa, nesse caso, a ruptura radical com a linguagem rotineira e com significados considerados estabelecidos, fechados dos signos que a constitui. Do mesmo modo, ao apanhar a pluralidade lingüística e destacar suas semelhanças fonéticas, o sujeito poemático prioriza a comunicação verbal, já que essa é mais móvel e viva do que a escrita. Essa inconstância de sentidos desvela a inquietude do eu-poético a respeito de sua própria situação interior, impossibilitando-o de qualquer interpretação concludente das percepções, eventos e significados do mundo. 3.6.5 Os quase-haikais de AD NADA Conjunção desses acervos, a poética de AN está alicerçada, de um modo geral, em uma economia na articulação do signo poético, cujos resultados são as aliterações e assonâncias e que, tais como os elementos gráficos (desmembramento do significante nada e o espelhamento), intensificam o caráter lúdico da obra. Exterioriza a expressão poética para além do verbal com a integração da linguagem plástica fornecendo a ela uma dimensão maior, uma amplitude de significados. A referência ao haicai se dá em termos de operação de linguagem (método de justaposição), via herança direta do experimentalismo concretista, resultando numa manifestação poética repleta de procedimentos que ressaltam o aspecto físico dos signos lingüísticos e suas amplas possibilidades combinatórias. Sendo assim, a tendência ao instantâneo e ao provisório dessa poética decorre da apreciação pelo haicai, porém fica evidente que sua expressão lírica não está presa ao tradicionalismo composicional que esse poema nipônico supõe. Contudo, essa apreciação se estabelece na relação do eu-lírico e de seu estado poético no momento da elaboração do haicai, como sublinha Franchetti (1994, p. 203), pois para este a caracterização de um poema breve como o haicai não é somente a forma externa adotada pelo poeta, mas também uma determinada atitude discursiva que o poema deve fazer supor ou manifestar. O poeta é capaz 60 60 de ser, estar, observar, expressar um momento vivenciado, uma sensação ou percepção frente à vida, inserido no ambiente que o rodeia. Podemos identificar uma atitude semelhante em AN, uma vez que seu eu-poemático capta a fugacidade da vida e da natureza, se incluindo no processo de nascer-morrer e por essa razão indaga-se sobre seu estar no mundo e exterioriza essa sondagem introspectiva poeticamente. Conseqüentemente, as reflexões metafísicas do eu-lírico surgem como flashes, um olhar momentâneo para a vida, porém de grande valor para sua condição existencial. A linguagem poética de AN apresenta, então, uma informação estética diversificada, que resgata as referências da tradição literária e utiliza outros registros artísticos além do verbal. Esse diálogo com as plataformas estéticas anteriores não parece ser conflituoso, como também não pretende a realização de algo totalmente novo. Nesse sentido, a suposta despretensão do eu-poético marca a obra com a tônica do humor e espontaneidade em relação a sua experiência poética. Entretanto, ele não deixa de refletir sobre o seu fazer poético e sobre seu estar-no-mundo. É a partir dessa linguagem contemplativa que o eu-lírico de AN assume-se nada, fala sobre o nada, imprimindo uma postura niilista que deve ser investigada. 61 61 4 O niilismo na poética de AD NADA 4.1 Nada – Significante e Significados As diferentes noções da palavra Nada, que se encontram inseridas como tema recorrente na história da filosofia e da literatura, parecem ter regido a elaboração poética de AN. Dentro da filosofia, o Nada possui duas concepções básicas, formuladas por Parmênides e Platão: o primeiro afirmava que o Nada como não-ser (aquilo que não se pode conhecer, nem exprimir) e o segundo como alteridade ou negação (a partir do ser12, existe o não-ser). Como aponta Abbagnano (1972, p.666), o Nada tem uso teológico e metafísico: por um lado, serviu para definir Deus, quando se quis insistir sobre sua heterogeneidade em relação ao mundo, ou para definir a matéria quando se quis insistir sobre sua heterogeneidade em relação às coisas; por outro lado, serviu para introduzir no ser uma condição ou elementos que explicasse certos caracteres deste. Escoto Erígena identificou Deus como Nada, porque Deus é superessentia (acima da substância) e o Nada é a negação e ausência de toda essência ou substância, criando, assim, uma teologia negativa que foi freqüentemente divulgada na Idade Média. Na filosofia moderna, Kant, de acordo com Lalande (1993), concebeu o Nada de quatro maneiras distintas - como conceito vazio (sem objeto atualmente dado); como ausência de uma qualidade determinada, uma negação; como forma da intuição sem substância que permite que representemos esta forma e como conceito contraditório. Mas são outras três concepções sobre o Nada presentes na filosofia moderna que nos interessam. Uma delas é a de Nietzsche (1999) que, ao declarar a morte de Deus, faz com que o Nada ocupasse seu lugar. Decorrência disso é que todos os valores morais, metafísicos e religiosos nos quais o homem acreditava se desvalorizam. Da mesma forma, esses valores já eram Nada, pois foram criados pelo próprio homem numa tendência hostil à vida terrena. Assim, surge a vontade para o Nada. Heidegger (1949) utiliza o pensamento hegeliano de que em nenhum lugar, nem no céu, nem na terra, existe alguma coisa que não contenha em si tanto o ser quanto o Nada e afirma “É o Nada a origem da negação, não vice-versa.” (HEIDEGGER, 1949, p.33). Segundo Heidegger, o Nada é absoluto e constitui o fundamento do ser do homem, uma vez que ele é instável. O Nada se revela com e no existente enquanto este nos escapa e se 12 ser – o fato e o modo de ser do ente (tudo que é), enquanto ente. 62 62 dispersa em sua totalidade, é vivido pelo homem enquanto o ser do homem (a existência) não é ou não pode ser todo o ser: o ser do homem consiste no não ser o ser em sua totalidade, isto é, no Nada do ser. O Nada é a própria anulação, é a condição que torna possível, em nosso ser-aqui, a revelação do existente como tal. Portanto, de acordo com Heidegger (1969) O Nada, significado radicalmente a não-significação do mundo, a sua estranheza, o espantarmo-nos perante ele, significando a nossa separação dele e, portanto a possibilidade ultima, de base, para o conhecermos - pode significar a pressuposição de que ele não existisse realmente como existente para assim o questionarmos e conhecermos como existente e nos espantarmos de que exista. (HEIDEGGER, 1969, p.83). Nesse caso, o ser existe a partir do Nada, porque é o Nada que fundamenta a transcendência do ser, a sua constituição como ser. Ele existe porque revela somente uma consciência que ateste a existência de um ser que lhe dá de fato o estatuto de ser. Por outro lado, o filósofo contemporâneo Sartre (1997) preferiu a definição de consciência ao invés de existência, porém entendia por essa última o ser do homem, que é o Nada do ser. O filósofo parte do próprio ser e apóia nele a negação, derivando o ser do Nada e faz com que o homem se depare com uma opção absurda, provocando nele a náusea. Para Sartre, existe um ser que rege o Nada, sustenta-o perpetualmente com sua própria existência, pelo qual o Nada vem às coisas. Este ser é a consciência que, sendo constituída por uma possibilidade, está sempre aberta ao Nada. “A consciência é consciência de alguma coisa: significa que a transcendência é estrutura constitutiva da consciência, quer dizer, a consciência nasce tendo por objeto um ser que ela não é.” (SARTRE, 1997, p. 34). O filósofo atentou o caráter factício do Nada que, por um lado, existe como negação ou como desfalecimento de alguma coisa; e que, por outro lado, apenas pode ser colocado pelo nosso pensamento. “O Nada não é, o Nada é ‘tendo sido’; o Nada não se nadifica, o Nada é nadificado.” (SARTRE, 1997, p.65) por um ser que o sustenta. Esse ser é o homem, é por meio dele que o nada vem ao mundo. Lalande (1993), define o Nada como aquilo que não existe, quer seja absolutamente (embora a legitimidade do conceito do Nada absoluto seja discutida), quer seja relativamente a um universo do discurso determinado. Também o Nada é apontado como um valor nulo. Tais investigações sobre o Nada sugerem a incapacidade do homem alcançar a sua totalidade e mostra sua finitude, pois este é formado por possibilidades que, como tais, podem 63 63 não acontecer. A sensação plena da existência fica, então, ligada à percepção do Nada. Acerca disso, Olson (1970) menciona que A angústia do ser é o sentimento que nos invade quando cogitamos que o nada foi e é tão possível quanto o ser; quando nos perguntamos por que existe algo, ao invés de não existir nada. É fato curioso nossa incapacidade de sentir todo o prodígio e o mistério do existir, sem pensarmos no nada absoluto. Metaforicamente poder-se-ia dizer que só podemos ter uma visão ampla do ser através da perspectiva do nada. (OLSON, 1970, p.48). Em relação à tradição da literária, o Nada exerceu um papel essencial na concepção da lírica moderna, tendo como seus principais fundamentadores os poetas franceses. Para o teórico Friedrich (1991) a lírica moderna apresenta um processo ontológico no qual o objeto deve ser transferido à ausência, uma desrealização decorrente de uma incoerência compreendida ontologicamente entre realidade e linguagem. É um anseio de fugir da realidade que corresponde à vontade de encaminhar-se à uma idealidade que não possui existência metafísica – o Nada. Mallarmé introduziu o Nada como conceito comp