unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP CAROLINA GONÇALVES DA SILVA O CONFLITO IDEOLÓGICO NO DISCURSO SOBRE MACONHA: uma abordagem dialógica de matérias impressas veiculadas na mídia brasileira ARARAQUARA – S.P. 2013 CAROLINA GONÇALVES DA SILVA O CONFLITO IDEOLÓGICO NO DISCURSO SOBRE MACONHA: uma abordagem dialógica de matérias impressas veiculadas na mídia brasileira Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Orientador: Marina Célia Mendonça ARARAQUARA – S.P. 2013 AGRADECIMENTOS Àqueles que tornaram possível a realização desse trabalho através das mais diversas formas de contribuição. À minha família, que possibilitou e apoiou minha permanência em Araraquara - ainda que tenha se estendido por sete anos. Às amigas da República Sagatiba, que ao longo de todos esses anos participaram de inúmeras conversas e trocas de ideias essenciais para a composição deste trabalho, e que ofereceram valiosa companhia durante os vários finais de semana a ele dedicados. Em especial à Fernanda Koti, que além de me presentear com suas sempre brilhantes reflexões sobre a biologia e a ciência, também me ofereceu um dos exemplares que fizeram parte do corpus desta pesquisa. Aos amigos de Araraquara, que compartilharam opiniões e momentos fundamentais para o desenvolvimento das ideias aqui apresentadas, em especial à Laura, cuja energia, motivação e amizade foram, para mim, essenciais. Aos amigos do trabalho, que contribuíram para tornar as obrigações mais leves e os dias mais alegres. Ao meu namorado, Rogério, que muito me ajudou com a formatação do trabalho e cujo companheirismo e apoio foram e têm sido essenciais nos momentos finais da graduação e nessa fase complicada de mudanças. À minha orientadora, Profª Drª Marina Célia Mendonça, pela compreensão, dedicação e apoio fundamentais. RESUMO De acordo com as informações publicadas no Relatório Mundial Sobre Drogas 2012 pelo Unodc – Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime -, o mundo consome atualmente a mesma quantidade de drogas ilícitas que sempre consumiu. Na contramão desta estabilidade do consumo, as discussões acerca da questão das drogas têm se intensificado. As maiores polêmicas e as grandes repercussões na mídia brasileira sobre tal situação dizem respeito ao consumo de maconha. É no contexto dessas polêmicas que se desenvolve este trabalho, cujo objetivo geral é analisar o conflito de ideologias presente nos discursos sobre drogas em matérias impressas da mídia brasileira, aqui representada pelas revistas VEJA, Carta Capital e Galileu. Tal estudo é realizado por meio de uma abordagem dialógica, segundo os estudos bakhtinianos do discurso. Palavras – chave: Maconha. Mídia. Discurso. Dialogismo. Ideologia. ABSTRACT According to data published on the World Drug Report 2012 by Unodc – United Nations Office on Drugs and Crime -, the world consumes nowadays the same amount of illicit drugs that it has always consumed. Contrary to this stable consumption, discussions surrounding the issue of drugs have intensified. The greatest controversies and the largest repercussion in the Brazilian media relate to marijuana use. This paper was developed in the context of polemic issues and its general goal is to analyze the conflict of ideologies present in the discourses about drugs on printed articles released by the Brazilian media, represented here by the magazines Veja, Carta Capital and Galileu. This study is carried out based on a dialogic approach, supported by the Bakhtinian researches on discourse. Key words: Marijuana. Media. Discourse. Dialogism. Ideology. LISTA DE FIGURAS FIGURA 01- Capa Revista Veja ................................................................................................ 29 FIGURA 02 - Capa Revista Galileu .......................................................................................... 30 FIGURA 03 - Capa Revista Carta Capital ............................................................................... 322 FIGURA 04 - Índice Revista Veja ........................................................................................... 344 FIGURA 05 - Índice revista Galileu ....................................................................................... 355 FIGURA 6.1 – A erva maldita. .................................................................................................. 39 FIGURA 6.2 – A erva maldita. ................................................................................................ 399 FIGURA 07 - Comparativo ..................................................................................................... 455 FIGURA 8.1 -Uma vida normal na aparência ............................................................................ 52 FIGURA 8.2 - Porta para outras drogas .................................................................................... 533 FIGURA 09 – O usuário ao redor do mundo ........................................................................... 544 FIGURA 10.1 - Usuário ........................................................................................................... 555 FIGURA 10.2 - Criminoso ....................................................................................................... 566 FIGURA 11 - Bipolaridade ....................................................................................................... 60 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8 2. ENUNCIAÇÃO E DIALOGISMO ......................................................................... 14 3. DIÁLOGO E IDEOLOGIAS EM CONTRASTE ................................................... 23 3.1 Títulos e capas anunciando valores .................................................................. 23 3.2 Sentidos visualmente enunciados ..................................................................... 28 4. O EMBATE DE VOZES SOCIAIS ........................................................................ 36 4.1 Explicitando posições valorativas .................................................................... 36 4.2 Quem fala e para quem se fala ......................................................................... 48 4.3 Usuário, consumidor ou “maconheiro”? .......................................................... 51 4.4 Diálogos e contrapalavra .................................................................................. 57 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 65 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 68 8 1. INTRODUÇÃO Viver significa tomar parte no diálogo: fazer perguntas, dar respostas, dar atenção, responder, estar de acordo e assim por diante. Desse diálogo, uma pessoa participa integralmente e no correr de toda sua via: com seus olhos, lábios, mãos, alma, espírito, com seu corpo todo e com todos os seus feitos. Ela investe seu inteiro no discurso e esse discurso penetra no tecido dialógico da vida humana, o simpósio universal. (Mikhail Bakhtin, 1961, p.293)1 De acordo com as informações publicadas no Relatório Mundial Sobre Drogas 2012 pelo Unodc – Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime -, o mundo consome atualmente a mesma quantidade de drogas ilícitas que sempre consumiu. Na contramão desta estabilidade do consumo, as discussões acerca da questão das drogas têm se intensificado, especialmente no que tange às drogas ilícitas. As maiores polêmicas e as grandes repercussões na mídia brasileira sobre tal situação dizem respeito ao consumo de maconha. Esta, de acordo com o referido relatório, é considerada um fenômeno mundial, pois prevalece como a droga mais consumida no mundo (uma estimativa de 224 milhões de usuários espalhados pelo globo). É neste contexto que acompanhamos diversas manchetes nos grandes veículos de comunicação brasileiros noticiando os rumos das discussões sobre políticas antidrogas, males físicos por elas causados, campanhas de prevenção e proibição do uso, bem como a importância do combate às substâncias ilícitas, dentre as quais a maconha tem recebido mais atenção. Por outro lado, alguns veículos atuam em oposição a essas forças centrípetas que agem sobre o discurso antidrogas, divulgando dados científicos de comparação dos danos físicos, psíquicos, sociais, políticos e econômicos entre vários tipos de entorpecentes. Assim, eles tentam explicitar os diferentes danos causados por cada substância, levando o leitor a desenvolver discernimento acerca do tema e fazer suas próprias escolhas, ao mesmo tempo em que impedem que apenas uma visão sobre o tema seja aceita socialmente. Tantas abordagens distintas veiculam valores antagônicos sobre o tópico e favorecem a atmosfera de discussões, levando a sociedade ao questionamento das políticas antidrogas em vigor, bem como à necessidade de aprofundamento dessas reflexões, extinção de tabus e tomadas de decisões efetivas sobre o assunto. 1 BAKHTIN, 1961 apud FARACO, 2003, p. 73. 9 Um breve olhar sobre os meios de comunicação do país pode confirmar tais proposições e é este o objetivo geral do presente trabalho: analisar o conflito de ideologias presente nos discursos sobre drogas em matérias impressas da mídia brasileira, aqui representada pelas revistas VEJA2, Carta Capital 3e Galileu4. Tal estudo será feito através de uma abordagem dialógica, cuja intenção é confrontar diferentes posições e estabelecer relações de sentido entre os enunciados que, veiculados na mídia, disseminam índices sociais de valor acerca do consumo e do perfil do usuário de maconha no Brasil. Neste sentido, um dos objetivos específicos desta pesquisa é analisar como cada revista defende seus valores através dos enunciados veiculados em suas matérias, levando sempre em consideração o público ao qual se destinam. Assim, é possível perceber o constante diálogo entre os enunciados e o embate de forças proporcionado pelo contraste das posições axiológicas tomadas pelas revistas e por seus leitores. Ao posicionarem-se em relação à questão das drogas, as revistas passam a veicular mais do que informações e notícias, pois exprimem valores sociais, podendo influenciar a população na tomada de posição acerca dessas questões e difundir diferentes ideias sobre o consumo e sobre o consumidor, especialmente da maconha, a ser focada neste trabalho. Finalmente, é oportuno, ainda, lembrar que tais posicionamentos difundidos pela mídia são incorporados aos discursos populares e oficiais, tornando-se parte da cultura e das discussões mais urgentes do país. Em longo prazo, essa influência da mídia através da difusão de ideologias e valores sociais pode levar a sociedade a discussões mais aprofundadas acerca do usuário e das políticas antidrogas, culminando na necessidade de mudanças nas mesmas e no debate mais livre e produtivo sobre os malefícios das drogas e as medidas legais cabíveis para o combate dos danos causados pelo consumo inconsciente. Esta não é, entretanto, a preocupação central das reflexões aqui levantadas; trata- se apenas de uma questão ainda pouco investigada acerca da influência dos discursos jornalísticos na opinião popular sobre a questão dos entorpecentes e de como isso pode acarretar mudança nos discursos oficiais, na legislação e na sociedade. Fica aqui uma 2 VEJA. São Paulo: Editora Abril, ano 45, edição 2293, nº44, Out. 2012. 3 CARTA CAPITAL. São Paulo: Editora Confiança, nº XVIII nº 748, Mai. 2013. 4 GALILEU. São Paulo: Editora Globo, nº258, Jan. 2013. 10 questão interessante que justifica a escolha do tema, mas que não será aprofundada neste estudo, apesar de constituir um interessante ponto a ser tratado em investigações futuras. É nesse cenário que a mídia brasileira vai abrindo caminho para discussões antes restritas a grupos específicos, tratadas, geralmente, de maneira estereotipada e preconceituosa. Consequentemente, o discurso jornalístico tem mudado: tornou-se preocupado com aspectos históricos e socais, além de médicos e terapêuticos, ao invés dos antes comuns argumentos sensacionalistas, baseados em censura ao debate democrático e na manutenção de tabus sociais. Exemplo de tal mudança são os inúmeros veículos de comunicação que têm aberto espaço para notícias sobre as manifestações a favor da descriminalização da maconha e de outros pontos relacionados. A escolha do tema, parte, então, do contexto de alterações importantes na sociedade brasileira, impulsionadas pela onda de mudanças em diferentes países do mundo, no que tange ao consumo e ao usuário de drogas. Em veículos importantes do país, percebe-se o aumento nas coberturas de eventos como a Marcha da Maconha, além de haver uma preocupação em acompanhar os resultados de plebiscitos e discussões internacionais sobre o assunto. O site da Folha de São Paulo5, por exemplo, apresentou os resultados de referendos nos Estados Unidos- que registraram apoio da maioria da população à legalização do uso recreativo da droga enquanto os estados do “Colorado, Washington e Oregon já estão entre os 17 Estados que, junto com o Distrito de Columbia, onde fica a capital dos EUA, Washington DC, autorizam o uso médico da maconha”. Também na América do Sul, as mudanças nas políticas de combate às drogas já apresentam resultados importantes para um avanço no sentido de uma busca por legislações que tratem essas questões de forma mais aprofundada. De acordo com o portal de notícias UOL6, visando estabelecer diretrizes justas para a regulação do consumo, o Uruguai lançou em Junho de 2012 um projeto de lei (posteriormente aprovado) que descriminaliza o cultivo e a comercialização da maconha. Já no Brasil, as políticas sobre drogas têm se mostrado ineficientes no combate à violência, à criminalidade e ao caos do sistema prisional - atribuídos aos entorpecentes-, 5 FOLHA DE SÃO PAULO. Colorado e Washington legalizam uso recreativo da maconha nos EUA. Publicado em 07 de novembro de 2012. Disponível em: . 6 UOL NOTÍCIAS. Comissão de senado uruguaio aprova legalizar produção e venda de maconha. 27 de Novembro de 2013. Disponível em: Acesso em 19 de Outubro de 2013, às 23h50. 8 EDITORA ABRIL. Tabela Circulação Geral. Disponível em: 12 A revista semanal Carta Capital, por sua vez, apresenta-se claramente favorável à liberação das drogas segundo a reportagem de capa da edição selecionada para análise (nº XVIII nº 748, de 15 de maio de 2013). Publicada pela Editora Confiança, sua tiragem é relativamente baixa, de 65 mil exemplares semanais, lidos por aqueles que buscam uma alternativa para as mídias consideradas mainstream (representantes das ideias e valores predominantes na sociedade), como a concorrente acima citada. Finalmente, faz parte do corpus o número Nº 258 I de Janeiro de 2013 da Revista Galileu, publicação quinzenal da Editora Globo - que assume em seu site9 estar preocupada em antecipar ao cidadão as transformações na sociedade de sua época. A revista aborda principalmente os temas sobre tecnologia, cultura, ciência e suas novidades e busca trazer uma visão questionadora sobre a questão das drogas em sua reportagem de capa a ser estudada neste trabalho. O importante nesta breve descrição do corpus é notar que, ainda que estejam direcionadas a diferentes setores da população, as revistas dialogam entre si, refletindo e refratando as diversas opiniões correntes na sociedade brasileira. Dessa forma, todos os veículos abordados neste estudo contribuem para uma rica análise e reflexão sobre o tema, que se caracteriza como um terreno fértil para a investigação da questão da maconha na mídia. Assim, o que antes era um problema restrito a criminosos, pobres, celebridades e cidadãos marginalizados e criminalizados hoje atinge todas as classes sociais, causando grande alvoroço nas discussões sobre o tópico e mostrando que a questão das drogas é de interesse público, envolve o cidadão, o poder legislativo, os intelectuais, os cientistas e todos aqueles interessados no desenvolvimento social no país. Tal estudo será desenvolvido através de uma análise dialógica das três publicações, levando-se em consideração como cada veículo apresenta a matéria (visto que todas as reportagens são de capa); os títulos das reportagens e como eles tratam o assunto da maneira inicial em suas manchetes; a forma como ela é apresentada no índice; a colocação e a escolha de figuras e fotos que ilustram o conteúdo, bem como a maneira como as revistas enunciam seus valores através de todos esses aspectos. O mais importante ponto da análise, entretanto, caracteriza-se pela comparação dos argumentos e juízos de valor enunciados pelas reportagens, evidenciando o diálogo 9 EDIOTRA GLOBO. Sobre nós: visão missão e valores. Disponível em: 13 entre os textos, que compõe um verdadeiro embate de forças. Ademais, é interessante analisar, também, como cada publicação enuncia seus argumentos de acordo com o público alvo, focando sua abordagem em diferentes aspectos: nos danos sociais causados pelo uso da droga, nas questões de saúde e males provocados ao corpo, na insinuação do discurso politicamente correto, no respaldo em discursos oficiais de autoridades ou no uso de dados promovidos por pesquisas científicas nessas áreas. Finalmente, a análise se prestará a relacionar os discursos das três revistas entre si e com o contexto sócio histórico em que foram escritas, provocando uma reflexão acerca da adequação dos discursos ao momento vivido pela sociedade e retratando como a imprensa escrita brasileira se posiciona em defesa ou ataque aos debates sobre a questão da maconha. Assim, visa-se contemplar as diferentes vozes sociais refletidas nesses discursos, que formam um jogo de contraposição de valores, através do embate de forças centrífugas e centrípetas. Estas buscam cessar esse movimento das vozes, configurando um jogo de dimensão política, no qual se busca a imposição de uma “verdade social” como o único valor absoluto no tratamento da questão da maconha e seu usuário, relegando a segundo plano qualquer enunciado que contradiga ou ofereça alternativas a esse discurso socialmente aceito até o momento. Tais reflexões podem culminar, em última análise, no já comum questionamento da credibilidade do discurso jornalístico e de seu suposto compromisso em retratar a verdade, visto que sua função principal é, em teoria, levar conhecimento ao cidadão comum, para que este possa promover sua participação ativa nas mudanças da sociedade em prol de seu desenvolvimento. É sabido, portanto, que os veículos de comunicação não deveriam tentar estabelecer verdades incontestáveis sobre os malefícios da substância psicoativa da maconha, sem considerar principalmente aspectos políticos, médicos e sociais que vão além dos velhos tabus e asserções superficiais sobre o tema. Entretanto, é de conhecimento público que a mídia submete-se a jogos políticos e influências externas que limitam sua imparcialidade e a distanciam de seu utópico objetivo inicial e é nesse ponto que as investigações científicas assumem papel importante. Todos esses aspectos serão avaliados segundo conceitos bakhtinianos, tais como dialogismo, enunciado, enunciação concreta, responsividade e ideologia, pois a proposta teórica de Bakhtin parece ir ao encontro das expectativas dessa pesquisa no que diz respeito ao caráter dialógico da língua e sua função social. 14 Além das obras escritas por Bakhtin mais relevantes para o desenvolvimento desta análise do discurso jornalístico – tais como Marxismo e Filosofia da Linguagem e Estética da criação verbal-, serão utilizados como referência autores que desenvolvem estudos acerca das ideias de Bakhtin e seu círculo - como Beth Brait, Carlos Alberto Faraco e José Luiz Fiorin - sempre que houver a necessidade de esclarecer, complementar ou exemplificar os conceitos bakhtinianos. O suporte teórico da pesquisa será exposto no capítulo a seguir e sucedido pelas análises contextualizadas histórica e socialmente das revistas, que serão investigadas também de acordo com a maneira como respondem aos argumentos apresentados na mídia em relação ao consumo e ao usuário de maconha. Pretende-se, assim, deixar claras as relações dialógicas entre os enunciados e explicitar o caráter responsivo das reportagens, que retratam, por sua vez, um debate que tem tomado grandes proporções em vários setores da sociedade. 2. ENUNCIAÇÃO E DIALOGISMO A concepção bakhtiniana da linguagem configura-se como o pilar teórico deste estudo, visto que valoriza a fala ligada às condições sociais de enunciação e às estruturas sociais, igualmente relevantes para o desenvolvimento deste trabalho. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, por exemplo, fica claro o caráter social da língua, vista como “o indicador mais sensível das transformações sociais” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p. 40) e é esse princípio que embasará as análises do corpus desta pesquisa. Trata-se de uma tentativa de analisar como os discursos jornalísticos retratam as mudanças na sociedade e, ao mesmo tempo, como elas exercem influência sobre os mesmos, sabendo-se que a palavra é o espaço onde se concentram os valores sociais e as contraposições entre eles. Para além da relação entre o enunciado e seu contexto, trata-se, também, de uma ligação intrínseca entre o enunciador e o público para o qual ele se dirige. Nesse ponto, fica claro que cada revista se dirige a uma parcela específica da sociedade, que supostamente compartilha das mesmas posições axiológicas difundidas em cada uma das publicações. Dessa forma, os discursos jornalísticos analisados neste trabalho exprimem mais do que palavras, pois são enunciados concretos, unidades base da língua viva e contextualizada, portanto de natureza social e ideológica (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 15 2006, p. 17). Segundo esse princípio bakhtiniano, são transmitidos, então, juízos de valor que se propagam na sociedade. Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p. 96) Esses discursos escritos são parte integrante de debates ideológicos e procuram, num determinado público, apoio a suas posições em relação à droga. É dessa forma, então, que serão abordados os enunciados de cada revista: os julgamentos que enunciam (os juízos de valor acerca da maconha), o contexto em que são produzidos (novas discussões acerca do combate ou liberação das drogas), as ideologias que veiculam (sobre os efeitos maléficos que seu uso pode causar ou sobre a imagem do usuário), assim como as relações dialógicas que as revistas estabelecem entre si – ao enunciarem tais julgamentos em prol da defesa e promoção de seus próprios valores –, e com o público, ao promoverem suas ideologias e princípios de acordo com um destinatário específico. Entretanto, apesar de retratarem diferentes eixos axiológicos acerca da substância ainda ilícita, as publicações aqui analisadas convergem para o mesmo ponto: a necessária discussão sobre a questão das drogas no Brasil. Assim, Veja, Galileu e Carta Capital participam juntas de um fenômeno próprio de qualquer discurso: o dialogismo. Este é um conceito de fundamental importância para o desenvolvimento deste trabalho, pois o dialogismo trata das relações de sentido que envolvem os enunciados em uma mesma trama, considerando-os parte da língua viva. Dessa forma, o discurso de uma revista é refletido, contestado, retomado pelo discurso das outras. Segundo Bakhtin, os enunciados comportam-se como réplicas de um diálogo, pois estão relacionados a outros anteriormente proferidos e também permitem respostas em forma de novos enunciados a serem exprimidos dentro de um contexto determinado. Compreender a enunciação de outrem significa orientar- se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão. Assim, cada 16 um dos elementos significativos isoláveis de uma enunciação e a enunciação toda são transferidos nas nossas mentes para um outro contexto, ativo e responsivo. A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p. 135) Em seu livro Introdução ao pensamento de Bakhtin, Fiorin ajuda a compreender um dos conceitos bakhtinianos fundamentais para esta análise. Segundo ele, os discursos não estão voltados a um objeto específico, mas para outros discursos que o rodeiam. Assim, “um enunciado é sempre heterogêneo, pois revela duas posições, a sua e aquela em oposição à qual ele se constrói” (FIORIN, 2008, p.24). Considere-se também que não é porque os textos estabelecem um diálogo entre si que estarão sempre em concordância, afinal “o diálogo aí não significa promoção de consenso, pois as relações dialógicas podem ser polêmicas, divergentes, de aceitação, recusa, entendimento, luta, conciliação.” (FIORIN, 2008, p.24). São essas diversas relações dialógicas que comporão o corpo das análises deste trabalho. Portanto, os discursos das revistas analisadas retratam diferentes pontos de vista, ou vozes sociais de grupos específicos, configurando um espaço de luta social, visto que os enunciados investigados estabelecem entre si uma relação, em sua maioria, de contradição. Esses enunciados acerca da questão da maconha favorecem vínculos com discursos do passado – enraizados na sociedade em forma de tabus e posicionamentos unilaterais, em estereótipos e considerações superficiais – e, ao mesmo tempo, com discursos do futuro, responsáveis por caracterizar utopias e desejos de mudanças futuras em diversas camadas da sociedade. Para Bakhtin, os enunciados devem ser considerados em suas relações com outros discursos do passado, do presente e do futuro, para que se compreenda a evolução histórica do tema e suas diversas significações, nunca totalmente acabadas, afinal a evolução semântica da língua está sempre relacionada às mudanças sociais e, portanto, não pode ser concluída, pois “essa evolução dialética reflete-se na evolução semântica. Uma nova significação se descobre na antiga e através da antiga, mas a fim de entrar em contradição com ela e de reconstruí-la”. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p. 139) Dessa forma, os discursos do presente conflitam, remetem, retomam, respondem, afirmam, contradizem e estabelecem inúmeras relações com a memória do passado. Assim, o enunciado “é um elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser 17 separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas.” (BAKHTIN, 2010, p.300) Por outro lado, os enunciados estabelecem, também, uma relação com o futuro, visto que estão sujeitos a mudanças, são inacabados, reinventam-se e buscam respostas ainda não concretizadas, que podem estar no futuro e configurar utopias ou previsões. O enunciado não está ligado apenas aos elos precedentes mas também aos subsequentes da comunicação discursiva. [...] o enunciado se constrói levando em conta as atitudes responsivas, em prol das quais, em essência, é criado. O papel dos outros, para quem se constrói o enunciado, é excepcionalmente grande [...] Desde o início o falante aguarda a resposta deles, espera uma ativa compreensão responsiva. (BAKHTIN, 2010, p.301) Por serem sempre dirigidos a alguém, os enunciados são concebidos levando-se em conta seu destinatário, visando uma compreensão responsiva, passando a palavra ao outro, garantindo a alternância dos sujeitos e constituindo, assim, a memória do futuro, que pode guardar as respostas dos questionamentos do passado e do presente, antecipando-as e garantindo a continuidade dessa interminável relação dialógica. Nesse jogo de vozes sociais, estabelece-se, também, um jogo de forças políticas, pois cada enunciado veicula valores que são assimilados pelo sujeito, o qual é constituído de diversas vozes, tornando-se plural, heterogêneo e portador daquilo que o círculo de Bakhtin chama de ideologia. Miotello descreve esse conceito a partir do signo que, além de ter um sentido físico-material e sócio-histórico, recebe ainda um ponto de vista, “pois representa a realidade a partir de um lugar valorativo” (2010, p.196). A materialização desse fenômeno ocorre na linguagem, que revela diferentes ideologias através da palavra. Este universo de ideologias engloba as formas como o homem interpreta suas diferentes realidades sociais, sejam elas a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, etc. Para Bakhtin, Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p.29) 18 A definição mais próxima do conceito de ideologia, entretanto, aparece no texto de Voloshinov Que é a linguagem (1930), e foi citada por Miotello (2010, p.169) “Por ideologia entendemos todo o conjunto dos reflexos e das interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem e se expressa por meio de palavras [...] ou outras formas sígnicas.” Levando-se em consideração esse conceito de ideologia, os discursos das revistas em foco transmitem conteúdo de caráter social valorativo, tornando-se ideológicos sob dois aspectos, segundo Faraco: “qualquer enunciado se dá na espera de uma das ideologias (uma das áreas da atividade intelectual humana)”. Ao mesmo tempo, os enunciados ideológicos expressam “uma posição avaliativa, pois não há enunciado neutro”. (2009, p. 47) Dessa forma, cada revista constrói seu discurso embasada em ideologias, sejam elas no campo da política, da ética, ou da ciência. É durante esse embate de forças sociais e posicionamentos axiológicos que as publicações estabelecem relações dialógicas de polêmica, contraste, oposição, divergência e, às vezes, até aceitação. Nesse espaço de luta de vozes, ocorre o cruzamento de múltiplas “verdades sociais”. No caso deste estudo, tais “verdades” tentam estabelecer através da mídia, aquilo que deveria ser considerado um discurso “ideal” a ser seguido e difundido pela população. Assim, os veículos midiáticos com maior adesão popular ou de maior alcance na sociedade podem tentar interromper esse movimento das vozes em busca de um posicionamento definitivo, adequado, socialmente aceito e aparentemente incontestável. Trata-se de um claro exemplo de como as vozes sociais enunciam ideologias e transmitem índices de valor que podem caracterizar-se como tentativas de estabelecer na sociedade um consenso acerca de algumas questões ideológicas. Essa tentativa de oficializar apenas uma “verdade” como socialmente aceitável atua contra várias outras vozes transmissoras de valores opostos, o que configura um movimento contra a diversidade de vozes, buscando apagar as diferenças e homogeneizar os discursos em prol da vontade de um grupo específico, geralmente detentor de algum tipo de poder. A luta social se dá, então, no campo da comunicação, pois a palavra traz em si ideologias que representam diferentes formas de ver o mundo. De acordo com Bakhtin, “a palavra, como fenômeno ideológico por excelência, está em evolução constante, reflete fielmente todas as mudanças e alterações sociais. O destino da palavra é o da sociedade que fala”. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p. 199) 19 O autor diz, ainda, que ao refletirem as mudanças sociais, os discursos abrem caminho para que as alterações na sociedade se concretizem e sejam registros de seus valores: As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p. 40) Considerando que todos os discursos analisados versam sobre o uso da maconha, seus efeitos na sociedade, no indivíduo, nas discussões e nas políticas sobre drogas, há, nesse espaço de luta de vozes antagônicas, uma luta ideológica que vai além do consumo da droga e considera, também, o impacto social, biológico e psicológico, compondo um cenário muito mais complexo para essa discussão. Essa alternância de discursos, quando analisada através de textos publicados na mídia impressa brasileira, toma proporções ainda maiores ao envolver diversos setores da sociedade, compondo uma luta de interesses para além do que podemos notar com um olhar superficial, justificando, mais uma vez, a importância dos trabalhos de análise do discurso. Segundo essas concepções, a diversidade de vozes, valores e ideologias compõe nossas diferentes formas de atribuir sentido ao mundo, tornando-nos seres dinâmicos e ativos no sistema social em que estamos inseridos e do qual fazemos parte, como explica Faraco: “Mergulhados nas múltiplas relações e dimensões de interação sociológica, o sujeito vai-se constituindo discursivamente, assimilando vozes sociais e, ao mesmo tempo, suas interrelações dialógicas.” (2003, p.83) Essa complexa dinâmica das vozes sociais que nos compõe como sujeitos integrantes de diversos grupos sociais, ao ser registrada pela mídia, pode funcionar como um retrato das mudanças sociais pelas quais estamos passando. Assim, os exemplares analisados neste trabalho registram um momento de aprofundamento das discussões sobre 20 a questão da maconha, que caminha, em último caso, rumo a uma mudança das leis sobre drogas. Essa alternância de dizeres que reflete em diversas esferas de atividade humana constitui, segundo Bakhtin/Voloshinov (2006), parte de uma discussão maior, cultural, axiológica e social. O reflexo dessa discussão se dá em diversos setores da sociedade de maneira interdependente, pois os debates sobre a maconha povoam discursos que ocorrem nos mais variados meios: as conversas de bar, as pesquisas científicas, os discursos oficiais e as leis, os discursos jornalísticos. Em meio à diversidade de discursos e valores, nota-se, também, a diferença de classes. As vozes se opõem e revelam a luta social, os conflitos culturais e o embate de forças dominantes e outras resistentes. Essas relações dialógicas através das quais o sujeito se constitui socialmente e as lutas sociais são trazidas a público são mais profundamente abordadas pelo círculo em Bakhtin/Voloshinov (2006). Nessa obra, a palavra é concebida como uma arena que recebe as lutas de classes. Os discursos retratam as mudanças e evoluções pelas quais uma sociedade passa, ao mesmo tempo em que as mudanças na sociedade trazem à discussão novos discursos, valores, ideologias, assim como novas significações às palavras. O autor distingue dois tipos de ideologia: a oficial e a cotidiana. Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia. [...] Ora, essa avaliação crítica, que é a única razão de ser de toda produção ideológica, opera- se na língua da ideologia do cotidiano. Esta coloca a obra numa situação social determinada. A obra estabelece assim vínculos com o conteúdo total da consciência dos indivíduos receptores e só é apreendida no contexto dessa consciência que lhe é contemporânea. A obra é interpretada no espírito desse conteúdo da consciência (dos indivíduos receptores) e recebe dela uma nova luz. É nisso que reside a vida da obra ideológica. Em cada época de sua existência histórica, a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com a ideologia cambiante do cotidiano, a impregnar-se dela, a alimentar-se da seiva nova secretada. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p. 121) Faraco, em outros termos, também explicita essa relação dinâmica entre os dizeres do cotidiano e os dizeres mais elaborados - chamados por Voloshinov, respectivamente, de ideologia do cotidiano e sistemas ideológicos constituídos. A primeira consiste na “totalidade das atividades sociológicas centradas na vida cotidiana” enquanto o segundo 21 consiste na “totalidade das práticas sociológicas culturalmente mais elaboradas, como as artes, as ciências, o direito, a filosofia.” (2003, p.63) Segundo os autores do círculo, ambas as esferas ideológicas são interdependentes. As ideologias culturais, por exemplo, consolidam-se através das práticas cotidianas. Podemos pensar, então, que os debates sobre a maconha gerados em diversas camadas da sociedade podem culminar em mudanças nas esferas mais elaboradas culturalmente, como o direito e a legislação antidroga. Entendemos que esse tipo de discurso oficial se renova através das práticas cotidianas e retrata as mudanças sociais em curso. Ao mesmo tempo, os discursos oficiais ou de maior impacto cultural influenciam as ideologias cotidianas, permeiam o comportamento e as discussões sociais, bem como a compreensão do sujeito acerca do grupo humano em que está inserido. Entende-se, então, que as posições e os valores enunciados pelos veículos de comunicação analisados – consequentemente, adotados pelos seus leitores - passam a fazer parte do cotidiano; influenciam, por outro lado, os discursos oficiais, leis, políticas públicas, pesquisas científicas, ao mesmo tempo em que são influenciados pelos discursos do dia a dia, tornando-se, assim, parte importante dessa dinâmica social. Essa interação entre os discursos cotidianos e culturalmente formalizados é discutida por Miotello, que explica a importância da comunicação cotidiana para o desenvolvimento do pensamento e aceitação de novas ideologias. [...] a comunicação na vida cotidiana [...] tem vínculo direto tanto com os processos de produção materiais da vida, no lugar da infraestrutura, quanto com as esferas das diversas ideologias especializadas e formalizadas na superestrutura, entendida como sistema de referência que troca sentido com toda a sociedade. Tal posição manifesta respeito profundo pelos encontros casuais e fortuitos, que se dão no dia-a-dia, e em qualquer situação, aparentemente sem maiores consequências para o desenvolvimento do pensamento, mas base fundamental para que a ideologia encontre solo propício para sua instalação. (MIOTELLO, 2010, p. 171), Podemos identificar como ocorre essa relação dialógica entre vozes sociais e poderes políticos nas palavras de Bakhtin/Voloshinov, que discorre sobre a expansão econômica e social: Os novos aspectos da existência, que foram integrados no círculo do interesse social, que se tornaram objetos da fala e da emoção humana, não coexistem pacificamente com os elementos que se integraram à existência antes deles; 22 pelo contrário, entram em luta com eles, submetem-nos a uma reavaliação, fazem-nos mudar de lugar no interior da unidade do horizonte apreciativo. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p. 139) Isto é, repensamos antigos sistemas, leis, hábitos, tabus, costumes, crenças; promovemos a mudança em nosso espaço social, valendo-nos de uma arma poderosa, a palavra. Nisso consistirá o cerne deste estudo: analisar o indício dessa mudança de discursos sobre a maconha. Tais discursos formadores de opinião, tais ideologias e as complexas relações entre elas, bem como as conexões intrínsecas que estabelecem com o meio social são os objetos de estudo desta pesquisa, embasada nos pilares teóricos do círculo, que foram apresentados neste capítulo e cuja compreensão pode ser resumida no fragmento abaixo. A época, o meio social, o micromundo – o da família, dos amigos e conhecidos, dos colegas – que vê o homem crescer e viver, sempre possui enunciados que servem de norma, dão o tom: são obras científicas, literárias, ideológicas nas quais as pessoas se apoiam e às quais se referem, que são citados, imitados, servem de inspiração. Toda época, em cada uma das esferas de vida e de realidade, tem tradições acatadas que se expressam e se preservam sob o invólucro das palavras, das obras, dos enunciados, das locuções. Há sempre um certo número de ideias diretrizes que emanam dos luminares da época, certo número de objetos que se perseguem, certo número de palavras de ordem. (BAKHTIN, 2010, p.313) A maneira como esses enunciados dialogam e compõem nossa compreensão acerca da questão da maconha e de seus usuários é o centro desse estudo, que compartilha o desejo bakhtiniano de contestar e tentar diminuir o efeito monologizante das forças centrípetas que visam estabelecer um único discurso como correto. Durante esta análise, tentou-se explicitar e exaltar a pluralidade de vozes que compõe a existência humana, o mundo polifônico, como retratado no trecho a seguir de Faraco: Um mundo radicalmente democrático, pluralista, de vozes equipolentes, onde nenhum ser humano é reificado, nenhuma consciência é convertida em objeto de outra; nenhuma voz social se impõe como última e definitiva palavra. Um mundo onde qualquer gesto centrípeto seja corroído pelas forças vivas do riso, da carnavalização, da polêmica, da paródia, da ironia. (FARACO, 2009, p.78) 23 Essa contenção das forças centralizadoras -responsáveis por limitar e censurar discursos e ideias - é o projeto utópico do círculo com o qual este trabalho visa estabelecer uma relação de concordância: a intenção de “superar qualquer monologização da existência humana”. Essa é, também, a utopia de qualquer indivíduo interessado numa democracia verdadeira, num mundo onde seremos agentes causadores de mudança, onde o sujeito é parte essencial da realidade social, da história e das melhorias pelas quais nossa sociedade precisa passar. Finalmente, essas ideias acerca da linguagem e seu caráter responsivo e ideológico nos ajudarão a compreender que os discursos só fazem sentido se colocados numa relação dialógica e, portanto, não há discursos incontestáveis, pois “o signo verbal não pode ter um único sentido” e sobre isso Miotello acrescenta que “vozes diversas ecoam nos signos e neles coexistem contradições ideológico-sociais entre o passado e o presente, entre várias épocas do passado, entre vários grupos do presente, entre os futuros possíveis e contraditórios.” (2010, p. 172). Essa tentativa de desvendar os significados ocultos dos signos é um passo contra a homogeneização dos discursos, visto que “a manutenção da divisão social e a perpetuação da hegemonia da classe dominante exige que os sinais contraditórios ocultos em todo signo ideológico sejam mantidos apagados.” (MIOTELLO, 2010, p. 173). Essa abordagem da língua permite que as relações de poder não limitem os discursos, e que as ideias dominantes não suprimam outras formas de ver o mundo, em constante mudança assim como os diversos discursos que compõem nossa compreensão da sociedade. 3. DIÁLOGO E IDEOLOGIAS EM CONTRASTE 3.1 Títulos e capas anunciando valores Para uma análise dos diversos discursos sobre drogas correntes na mídia, é necessário que se atente aos enunciados concretos e contextos dos quais fazem parte. Segundo Brait e Melo (2010, p. 63), os enunciados são únicos dentro de situações específicas e, assim, as palavras e frases adquirem sentidos diferentes. Dessa forma, o sentido do termo “maconha” aparece em cada uma das reportagens de maneira distinta, representando os variados pontos de vista acerca do uso da droga e seu consumidor. Visando uma análise detalhada dessas diferentes vozes sociais, o título da matéria e a capa de cada uma das revistas analisadas antecipam a abordagem que a questão terá 24 em cada um dos veículos. Sabendo-se que o título é um enunciado que se coloca como porta de entrada de outro enunciado, esse será o primeiro passo desta análise. A revista Veja é contundente ao afirmar que a maconha representa um perigo à sociedade. O título “Maconha faz mal, sim” enfatiza essa postura e antecipa todo o discurso politicamente correto da revista, colocando a droga como fonte de diversos problemas. Considerando o contexto em que a discussão se desenvolve, essa é uma abordagem limitada, pois ignora outros aspectos associados à droga além dos danos à saúde do usuário. Através deste título, fica claro, então, que a alegação veemente sobre os males causados pela planta se opõe a outros discursos que minimizam esses danos em comparação com os efeitos de outras drogas, explicitando a posição da revista dentro de um debate maior acerca de uma nova abordagem da questão das drogas. Publicada em 31 de outubro de 2012, a revista faz parte deste debate e parece ignorar novos discursos tolerantes à droga e novas descobertas quanto a seu uso em tratamentos de algumas doenças, não reconhecendo a validade de plebiscitos e pesquisas que embasam o posicionamento daqueles a favor da descriminalização da substância. Entretanto, lembrando que devemos considerar o enunciador e o público para o qual ele se dirige, a revista apenas afirma sua posição conservadora e mantenedora dos valores tradicionais da classe média, visto que o público da revista é composto, em sua imensa maioria, por assinantes. Sabendo-se que no Brasil a parte da população com renda suficiente para arcar com os custos de uma assinatura de revista semanal é pequena, podemos concluir que os 902.416 assinantes da revista Veja – com tiragem de 1.036.134 exemplares – devem ser parte de uma classe dominante, cujos valores incluem a preservação dos ideais tradicionais da família e do comportamento politicamente correto, baseado no que é permitido pela lei e aceito socialmente. Dessa forma, a revista se posiciona com o intuito de preservar esses valores, fornecendo e recebendo apoio dos defensores de uma sociedade sem drogas, vistas como empecilho à harmonia do lar e da família tradicional. Já a Revista Galileu, publicada em janeiro de 2013, traz uma clara resposta aos valores enunciados por Veja. Juntamente com o título “Maconha. Sim, faz mal. Mas proibir não é pior?”, a capa traz uma pequena descrição do contexto maior em que o título está inserido: “O grande laboratório da legalização começa no Uruguai e nos EUA em 2013”. Esse pequeno texto já contextualiza a posição da revista dentro de uma discussão global e de um momento de abertura a novos estudos e novas tentativas no que diz respeito à abordagem e às novas políticas sobre maconha. 25 Tal contexto de mudanças é ignorado na capa da revista Veja, que traz em seu subtítulo uma negação veemente das mesmas: “As novas descobertas da medicina cortam o barato de quem acha que ela [maconha] não faz mal.” Tal proposição antecipa o conteúdo ideológico da matéria e deixa claro que a revista abordará apenas os males causados pela droga, enquanto descarta pesquisas que focam no caráter terapêutico e medicinal da substância. Por último, a revista Carta Capital, publicada apenas em maio de 2013, traz em seu título uma clara contraposição aos enunciados anteriores, ao clamar pela legalização das drogas, de forma geral. Trazendo na capa os dizeres “Legalizem as drogas!”, a revista parece tentar acabar com o impasse levantado pelos dois títulos anteriormente analisados, enaltecendo todos os supostos benefícios da legalização das drogas em detrimento dos impactos causados pelo seu uso na saúde e nas relações sociais dos usuários- aspectos que parecem ser negligenciados pela reportagem, especialmente ao considerarmos o subtítulo: “seria o fim do tráfico e da violência e corrupção a ele associadas”. O ponto de exclamação nesse título dá ao enunciado principal da capa um tom de apelo, de clamor. A legalização das drogas realmente aparece como solução de outros problemas sociais e, com isso, a revista parece clamar ao poder público que se adote a legalização como forma de lidar com essa questão no país. Trata-se de uma clara tentativa de levar às esferas oficiais o discurso cotidiano de uma parcela da população que acredita nessa nova abordagem. Tais valores vão ao encontro das expectativas de legalização do interlocutor que acredita na liberação de todas as drogas como solução para os problemas a elas relacionados, levando às últimas instâncias os argumentos daqueles favoráveis à descriminalização e ignorando possíveis dificuldades que a sociedade enfrentaria para adaptar-se a esse novo discurso liberalizante. Através dessa breve análise dos títulos, já é possível perceber que as revistas estabelecem entre si uma clara relação dialógica, na qual cada enunciado faz parte de uma trama de ideias acerca do mesmo tema e comportam-se como réplicas, pois se opõem ao discurso do outro apresentando-se como uma contrapalavra (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006). Esses enunciados, entretanto, só podem ser analisados em seus vários sentidos quando considerados dentro da situação social em que surgiram. Por isso, é necessário aprofundar a relação entre os enunciados e o contexto. Cada um dos títulos acima citados é uma réplica do grande debate acerca da liberação da maconha para consumo e fins medicinais. Considerando-se que desde seus 26 primórdios a humanidade tem estabelecido complexas relações com as drogas - vistas como substâncias não produzidas pelo corpo, mas que atuam sobre o seu funcionamento - inúmeras práticas vêm sendo associadas ao uso dessas substâncias. A maconha, por exemplo, vem sendo usada desde tempos remotos para diversas finalidades, sejam elas relacionadas ao uso do cânhamo na fabricação de fibra, uso ritualístico, lúdico, terapêutico ou medicinal da planta. Assim, a discussão acerca de sua proibição pode ser considerada recente, visto que a droga passou a ser oficialmente combatida em mais de 200 países em 1961, após a Convenção Única de Entorpecentes, realizada pela ONU. Teve início, então, uma cruzada contra as drogas, endossada por Richard Nixon em 1971 nos Estados Unidos. Enquanto isso, na Holanda, em 1976, permitia-se o consumo de maconha em locais licenciados para tal. Hoje, no mundo, o combate à droga perde força, mas ainda divide opiniões no que diz respeito à criminalização da maconha (CARTA CAPITAL, 2013). No rumo inverso do que ocorreu em meados dos anos 70, percebemos que atualmente o mundo segue uma tendência iniciada pelos próprios Estados Unidos, que consiste numa mobilização em prol da liberação da maconha para fins recreativos ou medicinais. Na reportagem de Carta Capital (CARTA CAPITAL, 2013, p. 28-29), uma análise cronológica acerca do tratamento político que a maconha vem recebendo mostra que na década de noventa, a Califórnia legalizou o consumo de maconha para fins medicinais e, ao longo do anos, outros estados americanos como Washington e Colorado vêm fazendo o mesmo. Na América Latina, nos anos 2000, esse também parece o caminho a tomar, pelo menos para Argentina, Colômbia e Uruguai, que modificaram suas leis que regulam o consumo da droga. No Brasil, as primeiras vozes a favor dessas medidas começam a ser ouvidas e, apesar do conservadorismo ainda permear as discussões sobre o assunto, elas se acirram, mas as leis sofrem poucas mudanças e continuam a causar interpretações dúbias e aumento nos índices de criminalidade no país. Com a organização e mobilização dos que são em favor da descriminalização da planta, é possível perceber que chegou o momento em que apenas combater as substâncias psicoativas com leis severas parece não ser suficiente para coibir o uso da maconha, por exemplo, que apesar de ilícita em muitos países permanece sendo a droga proibida mais consumida no mundo. Assim surgiu a Marcha da Maconha, em 1998, que visa reunir e mobilizar pessoas favoráveis ao uso da planta em manifestações em prol de sua liberação. Participam dessas discussões estudantes, pesquisadores, cientistas, biólogos, advogados, religiosos, políticos, enfim, há nesse debate representantes das mais diversas esferas da 27 sociedade e, portanto, pontos de vistas diferentes, conflitantes e que permitem inúmeras interpretações e posicionamentos axiológicos sobre a questão da maconha. Um exemplo no cenário nacional é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que tem aparecido frequentemente na mídia após fazer parte de um documentário sobre a droga e sua proibição no Brasil, no qual defendia a descriminalização da planta. Ao perceber que há representantes das camadas da sociedade das quais seus leitores fazem parte nessas discussões, as revistas analisadas neste trabalho decidem pronunciar-se, transmitindo uma das possíveis posições a serem adotadas nesse debate segundo os valores e ideologias compartilhadas, ao mesmo tempo em que reproduzem os discursos cotidianos, reforçando-os e dando-lhes respaldo para que se enraízem nos discursos oficiais e assim, tornem-se aceitos socialmente. Entre as possíveis posições a se tomar frente a tamanho impasse sobre a questão da maconha, estão aquelas enunciadas pelos títulos dos exemplares analisados neste estudo. Veja enuncia os perigos da droga e enfatiza que apesar da onda de tolerância para com seu uso, os males causados pela substancias são comprovados e inegáveis. A revista fala pela e para a família tradicional da classe média brasileira, preocupada em preservar seus filhos dos efeitos prejudiciais da droga, e acredita que a onda de tolerância com a droga vai de encontro aos malefícios comprovados pela medicina. Ao analisarmos o título de Veja dentro desse contexto de mudanças no trato da questão da maconha, a revista parece querer manter o discurso de combate às drogas, em prol da manutenção da família, da segurança e da saúde dos jovens, partindo do princípio de que a legalização ignora tais aspectos e que a proibição evitaria o envolvimento dos mesmos com substâncias ilícitas e, consequentemente, atuaria no combate à criminalidade e violência associadas às drogas. Por outro lado, a Revista Galileu se posiciona nesse contexto como palavra de oposição ao combate à droga incitado pela Veja. No título de sua reportagem, o veículo assume os males causados pela planta, baseando-se na ciência (pilar da publicação). Entretanto, também considera as profundas mudanças pelas quais a sociedade vem passando e propõe uma reflexão sobre o fim da proibição como forma de reduzir danos, dando aos leitores outra possibilidade de interpretação dos debates sobre o assunto, ao mesmo tempo em que reflete o ponto de vista dos leitores que acreditam numa mudança legislativa que acompanhe as novas descobertas e políticas sobre drogas que surgem pelo mundo. 28 A revista parece querer conciliar os dois discursos: sobre os males causados pela droga e sobre o impacto social de sua proibição. O veículo mostra que está atento às mudanças sociais e políticas no rumo da descriminalização da droga e sugere que essa seria uma arma para reduzir o impacto dos diversos problemas ligados à maconha. Mais uma vez o título da reportagem se mostra claramente atrelado ao contexto das discussões atuais sobre o assunto, enquanto dialoga não só com os enunciados da revista Veja, mas com os diversos discursos que versam sobre o uso da planta. No caminho totalmente inverso ao da Veja, a revista Carta Capital, conhecida por sua abordagem esquerdista dos temas políticos, vê na legalização das drogas (em geral) uma ferramenta para o fim da corrupção e da violência associadas ao tráfico. A revista, tida como uma alternativa aos veículos mais populares da mídia brasileira, tenta apresentar uma abordagem diferente ao defender a legalização de todas as drogas e uma mudanças radical nas políticas de combate a elas. Ao fazê-lo, a publicação dirige-se à parcela da população que procura se posicionar de maneira crítica em relação às decisões tomadas pelo governo vigente, e adota uma postura que contradiz totalmente os enunciados das duas publicações anteriormente citadas. Para que as posições inicialmente enunciadas pelos títulos sejam evidenciadas e reconhecidas como verdadeiras ou não pelos leitores, é necessário que se prossiga a leitura do texto, aprofundando a reflexão até que o leitor se sinta apto a participar desse debate. Assim o título é parte de um enunciado concreto e, através dele, fatores importantes sobre o conteúdo do discurso são determinados (BRAIT; MELO, 2010). Dessa forma, cada revista define, desde o título, o público a que se dirige e os valores em que se embasa e apresenta, de antemão, a maneira como abordará o assunto no conteúdo das reportagens. Essas são, entretanto, apenas proposições levantadas pela análise inicial dos títulos, que compõem os enunciados mais explícitos das capas; são, por enquanto, hipóteses que devem ser reforçadas por outros elementos enunciativos e sustentadas por argumentos desenvolvidos ao longo das reportagens. São esses os elementos analisados a seguir. 3.2 Sentidos visualmente enunciados Os aspectos principais de cada uma das reportagens já apresentados no título são reforçados por outros elementos visuais e pela forma como são dispostos nas capas das revistas; nelas se encontra um “enunciado verbo-visual e, portanto, imagens (cores, 29 figuras, lugar que ocupam no espaço enunciativo, etc.) e sequências verbais estão inteiramente articuladas, interatuantes, a partir de um projeto ‘gráfico’, de um projeto discursivo” (BRAIT e MELLO, 2010, p.72) Sendo assim, uma breve análise dos aspectos gráficos e visuais das capas pode ajudar na sua compreensão. A capa branca de Veja (Figura 01) aparece como neutro pano de fundo para as grandes letras em verde que formam o nome da revista disposto acima da palavra “maconha”, centralizada em letras vermelhas. A cor parece enunciar os perigos da droga e lembra um sinal de alerta. FIGURA 01- Capa Revista Veja 1 Fonte: VEJA. São Paulo: Editora Abril, ano 45, edição 2293, nº44, Outubro de 2012. Centralizada na parte de baixo da capa, aparece uma folha de maconha, pequena, aparentemente inocente, mas precedida dos dizeres: “As novas descobertas da medicina cortam o barato de quem acha que ela não faz mal”. O olhar do leitor é automaticamente levado a pensar nos males causados pela substância e nos riscos que seu uso trazem à saúde do usuário. A capa parece, então, tentar “desmentir” o caráter 30 inofensivo que a droga tem adquirido nas manifestações e pesquisas devido a seu uso recreativo e medicinal, dando sua resposta a esses discursos. Já Galileu, numa minimalista capa branca com letras prateadas (Figura 02), ostenta no centro uma grande folha de Cannabis em vistoso verde, parecendo remeter às propriedades naturais da planta, que nesse cenário não parece ter qualquer relação com uma ameaça à saúde ou ao bem-estar social quando analisada sob essa perspectiva. A ausência de qualquer outro sinal não verbal nesta capa também pode remeter à ênfase dada à planta, sua substância ativa e às pesquisas científicas sobre ela, sem mencionar visualmente nenhum dano ou risco ao usuário. Entretanto, o pequeno texto descritivo posicionado na lateral inferior da capa, ao lado da palavra “maconha” em letras maiúsculas, amplia o contexto da discussão e a abordagem da reportagem acerca do tema: “Sim, faz mal. Mas proibir não é pior? O grande laboratório da legalização começa no Uruguai e nos EUA em 2013”. FIGURA 02 - Capa Revista Galileu 1 Fonte: GALILEU. São Paulo: Editora Globo, nº258, Janeiro de 2013. 31 Com essa pequena introdução, a capa da revista já antecipa que sua posição é influenciada pelas mudanças pelas quais as políticas antidrogas vêm passando e estabelece um diálogo direto com os dizeres da capa da Veja. Logo no início do subtítulo, “sim, faz mal”, já é possível perceber uma aceitação dos malefícios enunciados pela concorrente. Contudo, Galileu parece querer ir mais fundo nessa discussão e inclui em sua abordagem outros fatores relevantes ao considerarmos a questão da maconha, tais como seu impacto político e social e a geral mudança de atitude no trato do tema. A publicação, desde sua capa, sugere que ponderemos sobre os efeitos positivos e negativos da droga e sua descriminalização, em busca de uma abordagem mais completa e equilibrada, sem demonizar a planta ou elevá-la a patamares sublimes, como abordagens mais ingênuas ou tendenciosas poderiam se limitar a fazer. Após apresentar rapidamente os contrastes que cercam o assunto, Galileu vale- se de uma pergunta para incitar no leitor uma reflexão antes de tirar suas conclusões: “mas proibir não é pior?”. Cabe a ele analisar as informações apresentadas e adotar uma posição nesse complexo embate de forças entre proibição e liberação. A revista constrói a imagem de que faz parte do grupo de veículos que pretende contribuir para um debate mais aprofundado da questão, ao invés de tentar impor apenas uma “verdade social” que deve ser socialmente aceita com base em valores morais ou preconceitos enraizados na sociedade. Na contramão da tentativa de imparcialidade de Galileu, a revista Carta Capital – última das três em ordem de publicação - não é nada sutil ao explicitar sua posição de forma contundente logo na capa: clama pela legalização das drogas. Apesar de usar o termo de forma a abranger outras drogas, a maconha parece receber destaque nesta capa. Predominantemente verde e com inúmeras folhas da planta ilustrando a página de frontal, a revista chama atenção para a Cannabis como carro chefe da liberação de diversas substâncias ainda ilícitas no país e cuja proibição, não o consumo, é a raiz de problemas sociais como a violência e a corrupção. A escolha da maconha para ilustrar a capa de uma reportagem em favor da legalização das drogas (Figura 03) parece ter base no caráter pacificador da droga, pois suas folhas aparecem saindo do canos de revólveres em meio a borboletas em pleno voo, enfatizando talvez os aspectos naturais da planta, assim como seus efeitos calmantes, pacificadores e sua possibilidade de cessar a guerra do tráfico e acabar com a violência, simbolizada pelas armas. O projeto gráfico dessa capa está totalmente atrelado a um 32 projeto ideológico que tem as drogas como símbolo de liberdade e paz em meio aos problemas sociais causados pelo tráfico e pela proibição. FIGURA 03 - Capa Revista Carta Capital 1 Fonte: CARTA CAPITAL, São Paulo: Editora Confiança, nº XVIII nº 748, Maio de 2013. Diferente dos outros dois veículos, Carta Capital não se limita a tratar da maconha, mas abrange em seu discurso todas as drogas ilícitas. Apesar disso, vale-se da atual tolerância com a maconha para sustentar todo seu discurso libertário. Ignorando os males causados por outras substâncias ilícitas, a revista parece tentar pôr um fim ao debate sobre a questão das drogas, pois assim como Veja, faz asserções veementes sobre suas posições desde o título e da capa. Ambas parecem fazer parte do grupo da mídia que tenta utilizar-se das forças centrípetas para suprimir e talvez homogeneizar os discursos sobre o assunto, de forma a considerar apenas os aspectos que sustentam sua argumentação em favor da legalização, em detrimento de uma análise mais profunda sobre o impacto da mesma na sociedade brasileira. Para dar ainda mais respaldo a seus pontos de vista, o periódico apresenta no índice uma outra matéria ainda relacionada ao assunto: “Quem leva a melhor neste enredo? Roberto Saviano desnuda o fracasso da guerra às drogas”. Este parece ser um apêndice da reportagem principal, utilizado para enfatizar a ineficiência do combate às 33 drogas como principal argumento dos que sugerem a legalização das mesmas. O autor italiano documentou em seu livro a atuação das máfias e o jogo de poder envolvido no tráfico de drogas e serve como testemunha de que o combate aos entorpecentes é ineficiente, o que reforça a tese da revista de que a legalização seria um melhor caminho. Também apresentados no índice desta edição da revista, os termos “Legalizem as drogas! Seria o fim do tráfico e da violência e corrupção a ele associadas” retomam a ênfase recorrente nesse argumento e sugerem que a reportagem realmente clama ao poder público que uma mudança na legislação seja feita através de um apelo social. Esse enunciado traz consigo as ideologias que circulam através dos discursos do cotidiano e solicita que esses valores sejam incorporados pelos discursos oficiais. A revista tenta desconstruir o discurso baseado nas leis antidrogas e propõe uma profunda alteração nas ideologias oficias. Trata-se de uma tentativa de esclarecer as contradições sociais causadas pela proibição das drogas e de alterar os efeitos do poder público e dos discursos da mídia dominante na forma de ver o mundo considerada “correta” pelas leis e pelos pontos de vista mais conservadores. Na perspectiva do círculo de Bakhtin, conforme Miotello (2010), os discursos do dia-a-dia e as ideologias do cotidiano são influenciados e influenciam os discursos oficiais, estabelecendo uma eterna relação dialética, recíproca e dinâmica. Juntas, então, as duas esferas compõem o contexto completo desta discussão e reafirmam a inexistência de discursos inquestionáveis. No caso do embate que analisamos, entendemos que há uma oposição de forças para se definir o que ficará como discurso dominante. No índice de Veja (Figura 04), outra referência aos discursos dominantes aparece nos dizeres “Maconha: o que a ciência já comprovou”. Apresentando a reportagem dessa forma, a revista parte do princípio de que os malefícios da maconha já foram comprovados e que são indiscutíveis, visto que o discurso oficial da ciência embasa esse ponto de vista. Seu conteúdo será, portanto, a apresentação de argumentos irrefutáveis contra a droga, a despeito de todas as discussões em rumos contrários que rodeiam o assunto, mais uma tentativa de afirmar um discurso como correto e inquestionável, mais um exemplo dos discursos dominantes tentarem se consolidar definitivamente. 34 FIGURA 04 - índice Revista Veja 1 Fonte: VEJA. São Paulo: Editora Abril, ano 45, edição 2293, nº44, Outubro de 2012. Ao mesmo tempo, Veja tenta fortalecer os aspectos nocivos da maconha enquanto contribui para a solidificação do discurso de que as drogas fazem mal e devem ser evitadas. Dessa forma, o veículo tenta manter o discurso oficial de proibição à droga e serve como suporte à opinião pública daqueles que veem a substância como uma ameaça ao bem-estar físico e social dos consumidores (ao mesmo tempo em que se baseia no discurso consensual de combate às drogas, muitas vezes preconceituoso ou superficial, mas já enraizado na sociedade). Finalmente, a revista Galileu apresenta sua reportagem no índice (Figura 05) valendo-se do texto a seguir: “Dossiê maconha: como as propostas de regulamentar a venda da droga no Uruguai e nos EUA pretendem vencer uma série de problemas ligados à maconha”. Ao valer-se do termo dossiê, a revista parece sugerir que ao longo da matéria será efetuada uma complexa investigação, baseada em inúmeros dados e documentos que suportam a tese de que os benefícios de uma nova abordagem sobre a questão da maconha são maiores e mais significativos do que os malefícios causados pela droga e sua proibição. Um dossiê visa esclarecer e reforçar os argumentos e uma disputa, que geralmente está relacionado a um jogo de poderes, sejam eles políticos, sociais, etc. 35 FIGURA 05 - Índice revista Galileu 1 1 Fonte: GALILEU. São Paulo: Editora Globo, nº258, Janeiro de 2013. Ao analisar os enunciados concretos apresentados nas capas e índices das três importantes publicações impressas da mídia brasileira, podemos concluir que nessa complexa trama de ideias sobre o tema, cada veículo procura se posicionar de forma a defender seus valores e participar de um grande diálogo numa esfera muito maior do que a midiática. Trata-se de um momento de discussão em todos os setores da sociedade e essas publicações também se posicionam a respeito, criando uma polêmica e controversa discussão sobre a maconha já em suas capas, chamando a atenção do leitor e incitando-o a tomar partido nesse imenso debate. Depois desta breve análise, é possível, também, reafirmar a inexistência de discursos neutros ou incontestáveis: os enunciados analisados explicitam posições axiológicas, tomada de posição e nunca neutralidade. Os discursos estão engajados na defesa de interesses e valores específicos e tal aspecto motiva uma análise mais detalhada que busque compreender o enunciado nas entrelinhas, seu projeto de dizer e o jogo de poder por trás da argumentação contra ou a favor da droga. O embate de forças, a contraposição de valores, o conflito de interesses e o caráter ideológico dos enunciados serão objetos de estudo a seguir e esperamos que contribuam para a confirmação de que os discursos estarão sempre marcados pela pluralidade, pela responsividade, pela inconstância e pela capacidade de refletir e refratar valores. 36 4. O EMBATE DE VOZES SOCIAIS 4.1 Explicitando posições valorativas Como já previam os enunciados apresentados inicialmente por títulos, índices e capas, as três revistas apresentaram abordagens muito distintas sobre o mesmo objeto. O embate de forças e o contraste de diferentes vozes sociais ficam evidentes depois da análise das reportagens na íntegra. O interminável diálogo e contraposição de argumentos é presença constante nas matérias, que participam ativamente na construção de um contexto complexo sobre o tema. Os diferentes valores e ideologias aparecem ao longo de todos as reportagens. As diferentes esferas de atividade humana envolvidas nas abordagens de cada veículo também ajudam a entender esse complexo jogo de forças e dizeres e elevam a questão a níveis mais complexos, que inter-relacionam os discursos cotidianos e os oficiais, de forma que a dominância de um em detrimento do outro é prejudicada, levando à previsível conclusão de os discursos que circundam a questão das drogas e principalmente da maconha não podem ser tomados como definitivos. Esses serão os aspectos abordados a seguir com base nos textos de cada uma das revistas consideradas nessa análise. Inicialmente, seguindo a ordem cronológica de publicação, a revista Veja traz na primeira página da reportagem a mesma imagem do índice, com destaque à fumaça do cigarro de maconha, direcionando a atenção do leitor aos aspectos nocivos do uso da substância. O texto inicial da matéria afirma que a tendência ao liberalismo em relação à maconha está em descompasso com as pesquisas médicas mais recentes e sugere que a permissividade em torno da droga é um engano cientificamente injustificado. Esse será o foco de toda a abordagem da revista: os danos à saúde causados pelo consumo da maconha. Desde a primeira página da reportagem, inúmeros argumentos e dados embasados em pesquisas médicas e científicas justificam seu posicionamento ideológico. Como as imagens do índice e de apresentação da matéria sugeriram, o foco dos danos causados pelo consumo da droga concentra-se na inalação da fumaça e não da substância ativa (THC), causadora de benefícios comprovados no tratamento de diversos males - dados inicialmente ignorados na análise de Veja. Dessa forma, a revista concentra seus esforços em enfatizar os malefícios do consumo da droga, visando enfraquecer os discursos correntes que pregam o uso medicinal ou recreativo da maconha como 37 toleráveis: “Na contramão da liberalidade oficial, legal e até social com o uso da maconha, a ciência médica vem produzindo provas cada vez mais eloquentes de que a fumaça da maconha faz muito mal para a saúde do usuário crônico” (LOPES, 2012, p. 93), considerado como aquele que fuma um cigarro por semana por no mínimo um ano. Outro ponto ressaltado pela reportagem é que o uso da substância feita por adolescentes pode trazer consequências “funestas” (LOPES, 2012, p. 93). Esse é um dos argumentos centrais nos quais a afirmação dos males causados pela droga se embasa. Trata-se de um risco à vida e à saúde dos jovens; é um apelo à família, que cuide dos seus e que evite acreditar nos discursos tolerantes à droga. Segundo resultados de análises feitas por universidades dos EUA e da Nova Zelândia, com 1000 voluntários analisados por vinte e cinco anos, aqueles que começaram a usar a droga a partir dos 13 anos apresentaram danos evidentes à saúde: queda do desempenho intelectual nos testes de QI, memória, concentração e raciocínio rápido. Segundo a reportagem, o uso da substância impede o usuário de atingir todo seu potencial nessas áreas. É interessante notar que, apesar de embasar-se em dados comprovados pela ciência, a reportagem ignora pesquisas científicas cujos resultados são diferentes daquelas que interessam à sua avalição valorativa, tratando-os como não confiáveis. É sabido, por exemplo, que testes de QI não têm eficiência comprovada por não considerarem especificidades dos seres humanos e por avaliarem apenas um tipo de habilidade. Dessa forma, a revista mostra-se tendenciosa ao ignorar outros discursos científicos valendo-se apenas daqueles que sustentam o ponto de vista escolhido. Aliada ao discurso oficial da ciência e da medicina, a revista opta por pregar a demonização da erva e vale-se da comparação com outras substâncias para explicitar que o caráter inocente da maconha faz parte de uma visão equivocada sobre a mesma. A autora da matéria vale-se do depoimento de um especialista, o psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo Ronaldo Laranjeira, para afirmar que os comparativos entre os efeitos da maconha e do álcool não são realizados por pesquisas científicas incontestáveis e que não passa de uma crença infundada defendida pelos usuários o discurso que afirma que maconha faz menos mal que o álcool. Para ele, ambos os vícios atingem o organismo de uma forma, e a diferença na aceitação social das drogas é apenas uma questão de simpatia dos usuários para com a droga, pois segundo o pesquisador, “ao contrário do que acontece com a maconha, ninguém sai em passeata defendendo o alcoolismo ou o tabagismo.” (LOPES, 2012, p. 93) 38 Essa parece apenas uma tentativa injustificada de desconstruir os discursos a favor do consumo da substância, pois o enunciador não considera em suas colocações que álcool e tabaco já são legalizados e, por isso, não há razões para que os consumidores saiam em passeatas, visto que as marchas e passeatas acerca da maconha não defendem o vício, mas o direito do usuário de consumir uma droga que faz tão mal quanto outras já legalizadas. É um claro contraste entre o discurso oficial de uma autoridade na área da ciência afirmando os malefícios da droga e o discurso popular dos manifestantes que pedem nas ruas mais reflexão acerca da legislação que rege seu uso. Não se trata de defender o vício ou ignorar os males, mas de um pedido de revisão sobre o que se pensa e sabe sobre a droga na tentativa de equiparar seus danos com os de outras drogas legais. Entretanto, a reportagem afirma que essa comparação entre drogas, que provaria a injustiça no trato à questão, não tem base científica confiável. Quando utiliza dados sobre o número de brasileiros cuja saúde foi realmente afetada pelo uso da maconha (dependentes), a revista parece não conseguir validar seu argumento pois afirma que “apenas 10% dos pacientes internados em clínicas de recuperação de dependentes foram parar ali para tentar se livrar do vício da maconha” (LOPES, 2012). Esse número parece não ter relevância na comparação com outras drogas, caminho adotado pela abordagem de Veja. No mesmo trecho, lê-se, ainda: Ainda assim, muitos dos usuários da droga nessas clínicas foram diagnosticados com esquizofrenia, bipolaridade, depressão aguda ou ansiedade – sendo o vício de maconha apenas um componente do quadro psiquiátrico e não seu determinante (LOPES, 2012, p.94) Apesar de tentar mostrar que realmente há casos em que o uso da maconha torna- se um problema grave, ao apresentar tais dados, a revista acaba provando que na comparação com outras drogas, a maconha não tem grande impacto negativo na vida dos usuários e depende da associação com outros fatores para tornar-se algo realmente nocivo. Ainda assim, a matéria insiste em pautar-se na comparação com outras substâncias legais e ilegais e apresenta um quadro comparativo entre seus efeitos em contraste aos da “erva maldita”, como a maconha é denominada nessa parte da reportagem - enfatizando, mais uma vez a demonização da planta (Figuras 6.1e 6.2). 39 FIGURA 6.1 – A erva maldita. 1 FIGURA 6.2 – A erva maldita. 1 Fonte: LOPES, Adriana Dias. Maconha faz mal, sim. VEJA. São Paulo, ano 45, edição 2293, nº44, p. 96- 97, Outubro de 2012. Nesse quadro, baseado nos relatos do mesmo profissional citado no início da matéria, Ronaldo Laranjeira, o contraste de vozes sociais fica evidente, assim como a tentativa de desconstrução do discurso popular e da visão inofensiva da maconha. O quadro opõe “o que se diz” e “o que se sabe” sobre os efeitos de outras drogas (cigarro, álcool e cocaína) comparados aos da maconha, mostrando que todas as crenças de que esta é menos danosa do que aquelas não passam de mitos que a ciência pode desmentir. Na comparação com o cigarro, o discurso dos defensores da maconha seria de que, por ser natural, a planta faria menos mal do que o tabaco, que contém inúmeras substâncias químicas. Entretanto, segundo o pesquisador, “devido às tragadas longas e sem filtro” (LOPES, 2012, p. 96) a maconha seria mais prejudicial. Portanto, o risco está na forma de consumo e não nos princípios ativos de cada uma das drogas. Ao comparar com o álcool, acredita-se que este traga mais malefícios ao organismo por atingir diversos órgãos, entretanto o especialista diz que os danos cessam ou podem ser revertidos com a interrupção do consumo, ao contrário da maconha (mesmo sabendo que as duas drogas 40 possuem efeitos bastante diferentes, cuja gravidade foi desconsiderada nesse ponto). Em comparação à cocaína, o que se diz é que esta oferece maior risco de dependência, enquanto aquela, na verdade, segundo Laranjeira, quando usada na adolescência, oferece o mesmo risco. Entretanto, em entrevista à Drauzio Varella, o mesmo profissional afirmou que os diferentes níveis de dependência causados pelo uso de cada droga dependem, em grande parte, do usuário e sua tendência ao uso crônico, assim como de sua história pessoal. Segundo estudo realizado pela instituição à qual Ronaldo Laranjeira pertence, a porcentagem de adolescentes usuários de maconha com sintomas de dependência é de 10%, enquanto entre adultos é de 37%, o que prova a variação e a refutabilidade dos dados apresentados pelo entrevistado, cujas fontes não são mencionadas. Entre outros argumentos relacionados aos danos causados à saúde do usuário de maconha estão 3,5 mais casos de esquizofrenia em relação à média da população; o dobro de casos clínicos de depressão e a persistência dos danos às sinapses, mesmo após a interrupção do uso. Apesar de haver danos indiscutíveis e cientificamente comprovados, os principais argumentos relacionados à saúde apresentados por Veja contra o uso da substância parecem insuficientes, pois inúmeros fatores da aquisição de doenças e dependência química são absolutamente ignorados, ainda que de conhecimento público. Além disso, apesar de citar pesquisas de universidades renomadas, cuja veracidade não é aqui contestada, os dados são apresentados de maneira superficial, sem referências específicas às fontes, exceto do entrevistado responsável por todo o discurso sobre saúde na reportagem, o especialista Ronaldo Laranjeiras (coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas na Faculdade de Medicina da UNIFESP). Em uma página de análise da ação da maconha no organismo (LOPES, 2012, p.94), a matéria apresenta descrições detalhadas do que ocorre no cérebro sob efeito da droga e, como efeitos à saúde e ao comportamento, são apresentados números relacionados aos riscos de desenvolver doenças psiquiátricas e prejuízos diários que “todos os usuários, sem exceção, sofrem” organismo (LOPES, 2012, p.95). A fonte é, mais uma vez, o psiquiatra da Unifesp, cujas conclusões representam o saber científico da medicina acerca do uso da droga. Especificidades da vida do usuário, seus hábitos, seu histórico médico, familiar e suas condições sociais são totalmente ignorados ao afirmar que todos os usuários desenvolvem pelo menos um dos sintomas listados, que incluem problemas de memória, 41 concentração, funções executivas, vida social, inteligência e vida profissional – conceitos abstratos, variáveis e relativos ao usuário, não apenas à droga. Cabe apontar, então, que o ponto de vista adotado pelo psiquiatra Ronaldo Laranjeira embasará, como argumento de autoridade, o argumento principal da reportagem: os malefícios e “falácias” criadas acerca da tolerância para com a maconha. Ele parece representar o discurso oficial e traz consigo o tipo de ideologia descrito por Miotello: [...] o nível da ideologia oficial – onde circulam os conteúdos ideológicos que passaram por todas etapas da objetivação social e agora entraram no poderoso sistema ideológico especializado e formalizado da arte, da moral, da religião, do direito, da ciência, etc., e portanto já se encontram mais estabilizados, mais aceitos pelo conjunto social, mais testados pelos acontecimentos e mais amparados pelos jogos de poder. (MIOTELLO, 2010, p. 174) O autor representa o que hoje é aceito como verdade, aquilo que foi provado pela ciência e, portanto não pode ser contestado. Trata-se de um claro posicionamento repressor de ideias inovadoras sobre o tema, preocupado em preservar a ordem atual, ainda que esta tenha se provado ineficiente no que diz respeito ao combate às drogas. A mesma ordem corrente que rege a legislação antidrogas é questionada pela abordagem da revista Galileu. A reportagem é iniciada pela foto de folhas de maconha ocupando uma página inteira. A página seguinte, com fundo verde, apresenta em letras garrafais o enunciado “Sinal Verde”. Trata-se de uma clara oposição aos valores enunciados por Veja, publicada um mês antes. Galileu propõe uma reavaliação da proibição da droga e abre caminho para a discussão com um questionamento inicial apresentado na primeira página da matéria: “O Uruguai e dois estados americanos querem vender maconha legalmente para reduzir o uso de drogas, conter a violência e economizar recursos, será que vai dar certo?” (ARAUJO, 2013, p. 31). Essa pergunta inicial abre espaço para o debate e deixa a conclusão em aberto, mostrando clara relação com os diálogos da memória do futuro, onde se encontra a continuidade e até mesmo um desfecho, ainda que temporário, da discussão. Ao mesmo tempo em que dialoga com o futuro, Galileu relaciona-se com discursos passados, associados às inúmeras discussões e manifestações sobre o assunto que acontecem em 42 nossa sociedade e interliga-se diretamente às posições e discursos enunciados por Veja no exemplar anteriormente analisado. Ocupando metade de uma página da reportagem, aparece o argumento central do poder executivo do Uruguai, ao propor a regulação do mercado da maconha no país. Ele é proferido pelo Secretário Nacional de Drogas do Uruguai, Julio Calzada, ao afirmar: “esperamos por 50 anos que o nível de consumo se reduzisse, ele só subiu. Então é melhor buscar uma política alternativa” (ARAUJO, 2013, p.32). Ao contrário do que a revista Veja sugere, nem todos que são a favor da legalização da maconha acreditam em sua total liberação. A revista Galileu, por exemplo, foca sua abordagem na “oportunidade de avaliar as vantagens e desvantagens de um comércio legal da droga” antes que se afirme sua completa proibição ou liberação, utilizando Uruguai e alguns estados americanos como exemplo de novas formas de tratar a questão que há muito tem se provado bastante controversa. Propor uma análise do discurso oficial corrente acerca da proibição da maconha e tomar outra posição no trato da questão não significa, entretanto, ignorar ou negar os males por ela causados, ao contrário do que defendeu a revista Veja. Galileu inicia seu dossiê sobre a planta segundo os seguintes termos: “Maconha faz mal, é claro, e isso não é objeto de discussão entre especialistas. Como acontece com qualquer substância psicoativa, o abuso provoca riscos à saúde” (ARAUJO, 2013, p. 32). Ao longo do primeiro parágrafo do texto, o autor, Tarso Araujo, retoma e reafirma a validade de muitos dos argumentos médicos propostos por Veja, estabelecendo um vínculo direto entre os enunciados e caracterizando um exemplo perfeito de diálogo: uma teia de ideias sobre o mesmo objeto que atuam como réplicas, segundo a definição de Bakhtin, opondo-se ao discurso do outro através da contrapalavra (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006). As oposições são constantes e enunciam uma contraposição de ideologias e posições axiológicas acerca da maconha. Um dos grandes contrastes entre as partes desse diálogo concentra-se na forma como a droga é entendida em comparação a outras substâncias psicoativas. Ao contrário da ênfase dada por Veja na demonização da maconha, chamada até de “droga maldita”, Galileu coloca a planta no mesmo grupo de qualquer droga utilizada em abundância e, baseada no discurso de Calzada, justifica o porquê dessa postura: 43 Sabemos que álcool e tabaco também trazem riscos à saúde e não são proibidos, mas precisam ser regulados. O que queremos é controlar o mercado, não ignorá-lo. É melhor ter maconha legal, sem indivíduos presos, com impostos sendo pagos e criminosos sem lucro. (p. 32) Esses são, a propósito, alguns os principais argumentos de Galileu para justificar sua abordagem reflexiva sobre a questão das drogas: as consequências da regulamentação do uso da planta para o tráfico e para os índices de criminalidade. Dessa forma, a matéria vai além das investigações pautadas nas descobertas da medicina sobre a substância, apesar do veículo geralmente pautar seus artigos na ciência. Pesquisas científicas apresentadas nessa matéria, e que são usadas como argumentos de autoridade, não são voltadas apenas para as ciências médicas, mas abrangem aspectos políticos, sociais, econômicos e legislativos. Apesar de confirmar os danos à saúde causados pelo cigarro de maconha inicialmente citados por Veja, Galileu faz uma ressalva em relação à comparação entre drogas. A maconha não é vista, portanto, como droga mais danosa à saúde humana se comparada a outras substâncias psicoativas, pois embora a comparação não seja preferência entre a comunidade científica, ela mostra que a Cannabis não é mais danosa. Numa pesquisa divulgada por The Lancet, “uma das publicações científicas mais respeitadas do mundo”, a maconha aparece na 12ª posição de uma lista de 20 drogas mais perigosas, ficando atrás do crack, da heroína, da metanfetamina e do álcool (que ocuparam respectivamente as quatro primeiras posições do ranking) e do tabaco (que ocupou a 8ª posição). Vale apontar que esses números aparecem em destaque na manchete da página 37, enfatizando que nesse comparativo entre drogas, a ciência não condena a maconha à posição de maior vilã. Além disso, a apresentação dos dados e números feita por Galileu é muito mais detalhada e abrangente do que a de sua concorrente. Num grande quadro que ocupa as páginas 34 e 35, é apresentada a ação da Cannabis no corpo a curto e a longo prazo, diferenciando efeitos imediatos dos impactos do uso crônico, tornando a explicação muito mais completa e menos generalizadora. As fontes das informações apresentadas são claramente citadas (data e nome da pesquisa, da publicação e da instituição responsável), e não ficam a cargo de apenas um especialista que carrega em seu discurso somente os aspectos principais necessários para defender os malefícios da maconha em detrimento de uma análise mais profunda da situação. 44 Outro aspecto médico apontado pela Galileu e que foi totalmente negligenciado por Veja é relevância dos estudos científicos sobre o uso medicinal da maconha. Segundo a reportagem (ARAUJO, 2013, p. 39), a erva é remédio e trata aproximadamente 1800 pacientes em países como Israel, por exemplo. Para que algo semelhante acontecesse no Brasil, seria necessário que o Conselho Nacional de Drogas regulamentasse o uso da substância, pois a falta de legislação a respeito prejudica os estudos e os avanços nesse rumo. Outro aspecto relacionado à saúde e questionado por Galileu são os riscos do consumo da droga na adolescência. Segundo a publicação, com a regulamentação o acesso de menores à maconha seria controlado, visto que a venda seria regulada para adultos e proibida para menores. Além disso, a teoria de que a regulamentação incentivaria o consumo é contrabalanceada pelo exemplo do Uruguai e dos Estados Unidos, onde existe a proibição de quaisquer formas de propaganda ou promoção da droga, visando evitar o incentivo ao consumo (ARAUJO, 2013, p. 34) – ao contrário do que acontece com drogas legais, como álcool e tabaco. De maneira geral, a revista Galileu apresenta os danos à saúde causados pelo consumo da maconha em contraste com outras drogas para que um contexto maior e mais complexo seja levado em conta na análise dos prós e contras de uma possível legalização da substância. Para tal, um outro quadro foi apresentado por Galileu (FIGURA 07), no qual os impactos do consumo abusivo de álcool e de maconha são contrastados, levando- se em consideração os danos relacionados à dependência, ao trânsito, ao coração, à cognição, ao sistema respiratório, gravidez, fígado, pâncreas, além da relação dessas substâncias com o câncer, overdose e número de mortes. O único aspecto em que a maconha se provou mais danosa do que o álcool foi em relação a danos pulmonares (não há danos comprovados causados pelo álcool, enquanto a maconha causa os mesmos danos do tabaco, sem relação comprovada com câncer de pulmão). No entanto, vale ressaltar que além se provar menos maléfica nos outros quesitos, “não há estimativas de mortes por acidentes ou doenças causados diretamente pela droga” (ARAUJO, 2013, p.36), argumento que nega a afirmação contida na reportagem de Veja de que a maconha é “a droga a ser banida”. 45 FIGURA 07 - Comparativo 1 FONTE: ARAUJO, Tarso. Dossiê Maconha. GALILEU, São Paulo, nº 258 p. 36, Jan 2013. 46 No caminho inverso, a última revista em foco, Carta Capital, aposta na afirmação da legalização das drogas, em termos gerais, como arma contra a violência. Apesar dos indícios da capa de que a matéria focaria sua abordagem na maconha, ao longo da matéria, poucas são as referências diretas à droga, que é colocada no mesmo grupo de quaisquer outras substâncias ilegais. Os danos em diferentes escalas trazidos pelo consumo abusivo de cada uma delas são totalmente omitidos na reportagem, cujo foco é mais nos impactos sociais do que nos relacionados à saúde e à medicina. Antes da matéria de capa, Carta apresenta um breve artigo que contextualiza a discussão e explicita, melhor do que a capa, a forma como o assunto será abordado da longo do texto principal. Intitulado “uma carta para Dilma”, a página é dedicada a um apelo aos governantes para que impeçam o retrocesso das leis sobre drogas no Brasil, sob a alegação de que caminhamos no rumo contrário de outras nações, fazendo-se necessária a intervenção de participantes do Congresso Internacional sobre drogas na tentativa de fazer um alerta sobre a postura de nossas autoridades a respeito. No subtítulo, fica explícita a posição da revista sobre esse tipo de legislação, denominada “retrógrada”, exemplificada na internação compulsória de viciados, adotada pelo governo de São Paulo. Logo no início fica claro que a principal crítica da revista, conhecida por seus posicionamentos de esquerda sobre assuntos dessa alçada, envolve aspectos políticos e o jogo de poderes entre as autoridades e a população. Para ressaltar o caráter obsoleto desse tipo de tratamento à questão das drogas, o texto se inicia com uma breve descrição do fracasso americano no combate às drogas; para o autor, há um “equívoco na crença conservadora do proibicionismo”. Segundo ele, a privação de liberdade imposta a um portador de drogas pego em flagrante nunca surtiu efeito contra o consumo, o que provaria a inefetividade desse tipo de política proibicionista na redução de danos sociais causados pelo uso de drogas. O autor vale-se ainda da comparação do suicídio e do uso de drogas como diferentes formas de oferecer dano ao próprio corpo, apesar de apenas o segundo caso ser enquadrado dentro do estatuto criminal e penal. Entretanto, a nova lei sobre drogas10, vigente desde 2006, não prevê privação de liberdade para o usuário, apenas medidas de reinserção do sujeito na sociedade.