UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DOCÊNCIA PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA THALITA FERNANDA DE OLIVEIRA MACEDO EXPECTATIVAS DE APRENDIZAGEM E PROCESSOS AVALIATIVOS NA EDUCAÇÃO FÍSICA PARA OS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: ANÁLISE DE PROPOSIÇÕES TEÓRICAS E DE PERSPECTIVAS DE PROFESSORES BAURU 2016 THALITA FERNANDA DE OLIVEIRA MACEDO EXPECTATIVAS DE APRENDIZAGEM E PROCESSOS AVALIATIVOS NA EDUCAÇÃO FÍSICA PARA OS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: ANÁLISE DE PROPOSIÇÕES TEÓRICAS E DE PERSPECTIVAS DE PROFESSORES Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências, Campus de Bauru – Programa de Pós-Graduação em Docência para a Educação Básica, sob orientação da Profa. Dra. Lílian Aparecida Ferreira. BAURU 2016 Macedo, Thalita Fernanda de Oliveira. Expectativas de aprendizagem e processos avaliativos na educação física para os anos iniciais do ensino fundamental : análise de proposições teóricas e de perspectivas de professores / Thalita Fernanda de Oliveira Macedo, 2016 205 f. Orientador: Lílian Aparecida Ferreira Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências, Bauru, 2016 1. Expectativas de aprendizagem. 2. Processos avaliativos. 3. Educação física escolar. 4. Anos iniciais do ensino fundamental. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências. II. Título. DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a todos os professores atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental comprometidos com o ensino da Educação Física na escola. AGRADECIMENTOS A Deus, pois ele é fiel e justo com seus filhos. Aos meus pais Vilma Baptista de Oliveira e Cláudio Alves de Oliveira, que sempre estiveram ao meu lado em todos os momentos de minha vida, sendo responsáveis por tornarem este sonho realidade. Ao meu marido Sérgio Roberto de Macedo e Silva, a quem, sem dúvida, devo muito nessa caminhada. Obrigada pelo apoio, carinho e compreensão. Aos amigos do Mestrado Profissional, que acompanharam de perto todas as angústias, inquietações, mas também alegrias, por meio de palavras de conforto e incentivo. Aos amigos e colegas, companheiros dе trabalho е irmãos nа amizade qυе fizeram parte dessa longa jornada. Aos amigos no NEPATEC, Isabella, Angela, Rodrigo, Lia e Talita, que sempre estiveram à disposição para as longas conversas. Aos professores participantes, obrigada por compartilhar esse sonho comigo e por ter participado para a sua realização. As professoras Fernanda Rossi e Ângela Pereira Teixeira Victoria Palma que aceitaram o convite para compor a banca como suplentes. Aos professores Fernando Donizete Alves e Dagmar Aparecida Cynthia França Hunger, agradeço por terem aceitado compor a banca para contribuir com esta pesquisa. A professora Lílian Aparecida Ferreira, pela orientação no mestrado. Obrigada por tudo, pelo carinho dedicado, pela amizade e compreensão, e pela confiança que você depositou em mim e acreditar que eu era capaz. À Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, em especial ao corpo docente e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Docência para a Educação Básica. Ao Programa Mestrado & Doutorado de Formação Continuada de Educadores da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, pela concessão da bolsa de estudos no período do mestrado. Obrigada a todos, pois sou muito grata a todos vocês! RESUMO A temática em torno das expectativas de aprendizagem e os processos avaliativos vêm sendo discutida há muito tempo, avançando bastante, mas obviamente ainda existem lacunas e o momento atual é muito propício para se pensar nisso, dada a discussão que se coloca em torno das proposições curriculares nas redes de ensino e da base nacional comum curricular. Em face da importância de se realizar pesquisas sobre esse assunto e pelo interesse na implantação de ações direcionadas a amenizar os dilemas que vão se colocando neste âmbito, pretendemos, neste estudo, investigar e analisar as expectativas de aprendizagem e os processos avaliativos na Educação Física para os 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental, culminando numa matriz orientadora na qual estejam presentes tanto as expectativas de aprendizagem quanto os processos avaliativos. Para tanto, essa pesquisa se orientou pela abordagem qualitativa de investigação a partir de um estudo exploratório. Como técnica de coleta utilizamos as entrevistas semiestruturadas com trinta professores de Educação Física atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental, em especial, com os três primeiros anos. Com base no eixo Expectativas de aprendizagem, emergiram do estudo as categorias de análise “Dimensões dos conteúdos” e “Associação entre objetivo e conteúdo”, e do eixo Avaliação,as categorias foram “Processos avaliativos”, “Dificuldades para avaliar” e “Expectativas para facilitar o processo avaliativo”. Podemos apontar que o cenário da literatura e o contexto da pesquisa estabelecem uma perspectiva acerca das dimensões dos conteúdos (atitudinais, conceituais e procedimentais), a Educação Física sendo entendida como uma disciplina que integra o aluno na cultura corporal de movimento, a organização curricular pensada por ciclos de escolarização e uma diversificação dos procedimentos e instrumentos de coleta de dados para a avaliação nas aulas. Como considerações, registramos nossas impressões a respeito da importância de sistematizar as expectativas de aprendizagem por ciclos escolares, contemplar os conteúdos a partir dos saberes para conhecer e para praticar e a utilização dos instrumentos de avaliação, com o objetivo de descobrir os caminhos percorridos pelos alunos ao longo do processo de ensino e de aprendizagem no intuito de oportunizar a efetiva aprendizagem.Também, reconhecer que existem caminhos possíveis para trabalhar a avaliação em Educação Física, explorando a temática das expectativas de aprendizagem nos anos iniciais do Ensino Fundamental e valorizando os saberes produzidos pelos professores. A expectativa com esta investigação foi, a partir da articulação entre as produções bibliográficas e os dados coletados com os professores, por meio de entrevista, a possibilidade de construir um livreto no qual estivessem demarcadas tanto as expectativas de aprendizagem quanto os processos avaliativos na Educação Física escolar para os 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental. Este material elaborado teve como propósito sistematizar as expectativas de aprendizagem e os instrumentos de avaliação, a fim de orientar os professores de Educação Física no desenvolvimento das práticas avaliativas na escola. Além disso, fornecer subsídios para tomadas de decisão sobre o trabalho pedagógico, contribuindo dessa forma para o processo de ensino e aprendizagem nas aulas de Educação Física. Palavras-chave: Expectativas de aprendizagem. Processos avaliativos. Educação Física escolar. Anos iniciais do Ensino Fundamental. ABSTRACT The theme around the learning expectations and the availability processes has been discussed since long, having come forth quite a bit, but there are still gaps obviously seen, and the current moment of time is rather proper for this kind of discussion, considering the debate around propositions for learning programs within the school systems and the national learning program. Upon the importance of performing research about this subject, and for the interest in the implementation of actions directed towards lessening the dilemmas that are being faced in this context, this study intends to investigate and analyze the expectations of learning and the evaluation processes of Physical Education within the first three years of the elementary level of school, culminating in an orienteering compass in which both the learning perspectives and the evaluation processes are present. For this purpose, the research was guided by the qualitative approach of investigation based on an exploratory study. As a technique for collecting data, we have used semi-structured interviews with thirty Physical Education teachers working on the first years of elementary school, in special the first three years. Based on the guide of Learning expectations, from this study emerged the analysis categories “Dimensions of content” and “Association between goals and content”, while from the guide of Evaluation, the categories were “Evaluation processes”, “Difficulties of evaluating” and “Expectations to make the evaluation process easier”. We can point out that the contexts of literature and research establish a perspective around the dimensions of content (within the levels of attitude, concept and method), in which Physical Education is comprehended as a subject that integrates students in a corporal culture of movement, in addition to the curricular organization thought of by learning circles and a diversification of procedures and data-collecting instruments used for the classes’ evaluation. As considerations, we have registered our impressions on the importance of systematizing the learning expectations in learning cycles, as well as covered contents based on the knowledge required to absorb and practice the use of the evaluation instruments, having the objective of finding the paths walked by the students during the learning process, with the intent of making effective learning to be available. In addition to that, we have recognized the fact that there are possible ways to work with evaluation processes on Physical Education, exploring the themes of learning expectations in the first few years of elementary school, and recognizing the values of the knowledge produced by teachers. The expectative of this investigation, based on the articulation between bibliographical productions and the data collected from interviewing the teachers, was the possibility of building a booklet in which both the learning expectations and the availability processes for Physical Education in the first three years of elementary schools were clearly traced. This elaborated material had the goal of systematizing the learning expectations and the evaluation instruments, having the goal of orienting Physical Education teachers in the development of the evaluation practices in school. In addition to that, it strives to provide basis for decision-making about the pedagogical labor, in this manner contributing to the teaching and learning process on Physical Education classes. Keywords: Learning expectations. Evaluation processes. Physical Education in schools. First years of elementary school. LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Organização do Ensino Fundamental de nove anos .................................. 27 Quadro 2 - Equivalência idade e série/ano escolar em diferentes legislações para o Ensino Fundamental ..................................................................................................... 27 Quadro 3 - Objetivos de aprendizagem de Educação Física nos anos iniciais do Ensino Fundamental ..................................................................................................... 49 Quadro 4 - Eixo apreciação das diferentes manifestações das linguagens da cultura corporal na Educação Física ......................................................................................... 51 Quadro 5 - Eixo Execução nas Diferentes Linguagens da Cultura Corporal na Educação Física ............................................................................................................ 51 Quadro 6 - Eixo Criação nas Diferentes Linguagens da Cultura Corporal da Educação Física ............................................................................................................ 52 Quadro 7 - Eixo Conhecimento e Reflexão Sobre as Experiências, Saberes e Fazeres nas Linguagens da Educação Física ............................................................... 52 Quadro 8 - Proposta de sistematização dos conteúdos para a Educação Física de 1ª série/2º ano ................................................................................................................... 53 Quadro 9 - Proposta de sistematização dos conteúdos para a Educação Física de 2ª série/3º ano ................................................................................................................... 55 Quadro 10 - Objetivos do docente propostos para o Ensino Fundamental (1º ao 5º ano) ............................................................................................................................... 59 Quadro 11 - Organização Curricular para Educação Física 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental ..................................................................................................... 63 Quadro 12 - Quadro das Expectativas de aprendizagem de Educação Física para o 1º ano do Ensino Fundamental ..................................................................................... 66 Quadro 13 - Quadro das Expectativas de aprendizagem de Educação Física para o 2º ano do Ensino Fundamental ..................................................................................... 67 Quadro 14 - Quadro das Expectativas de aprendizagem de Educação Física para o 3º ano do Ensino Fundamental ..................................................................................... 68 Quadro 15 - Perfil de formação e atuação dos docentes ............................................. 115 Quadro 16 - Expectativas de aprendizagem para as séries iniciais do Ensino Fundamental ................................................................................................................. 166 Quadro 17 - Concepções dos professores sobre as Expectativas de aprendizagem para séries iniciais do Ensino Fundamental .................................................................. 169 Quadro 18 - Expectativas de aprendizagem em Educação Física para os 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental ........................................................................................ 170 Quadro 19 - Avaliação em Educação Física nas séries iniciais do Ensino Fundamental ................................................................................................................. 171 Quadro 20 - Perspectivas dos professores sobre os Processos avaliativos para as séries iniciais do Ensino Fundamental .......................................................................... 175 Quadro 21 - Processos avaliativos em Educação Física para os 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental ..................................................................................................... 178 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Matriz Curricular Básica para o Ensino Fundamental - 1º ao 5º ano ....... 32 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BNCC Base Nacional Comum Curricular CEB Câmara de Educação Básica CNE Conselho Nacional de Educação DE Diretoria de Ensino DCN Diretrizes Curriculares Nacionais EF Educação Física FAEFI Faculdade de Educação Física FEFISA Faculdades Integradas de Santo André FIB Faculdades Integradas de Bauru LDB Lei de Diretrizes e Bases LDB-EN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MEC Ministério da Educação PCN Parâmetros Curriculares Nacionais PCN-EF Parâmetros Curriculares Nacionais de Educação Física PCNP Professor Coordenador do Núcleo Pedagógico PEB Professor de Educação Básica PNAIC Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa PNE Plano Nacional de Educação PPP Projeto Político Pedagógico SEE-SP Secretaria de Estado da Educação de São Paulo UB Universidade de Bauru UEL Universidade Estadual de Londrina UFSCar Universidade Federal de São Carlos UNESP Universidade Estadual Paulista UNIMAR Universidade de Marília SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 13 CAPÍTULO 1 AS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL E A EDUCAÇÃO FÍSICA: EXPECTATIVAS DE APRENDIZAGEM ......................................................... 22 1.1 A Educação Física nos anos iniciais do Ensino Fundamental: aspectos legais ............................................................................................................................ 23 1.2 Um olhar para as crianças: as infâncias e suas culturas .................................. 35 1.3 Educação Física escolar e as Expectativas de aprendizagem .......................... 46 CAPÍTULO 2 PROCESSOS AVALIATIVOS NA ESCOLA: AVALIAÇÃO NA EDUCAÇÃO E NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR ................................................... 72 2.1 A perspectiva da escola ........................................................................................ 72 2.2 A questão avaliativa .............................................................................................. 77 2.3 Avaliação em Educação Física escolar ............................................................... 91 CAPÍTULO 3 METODOLOGIA ..................................................................................... 113 3.1 Abordagem de pesquisa ....................................................................................... 113 3.2 Técnica de coleta .................................................................................................. 114 3.3 Participantes do estudo ........................................................................................ 115 3.4 Contexto da pesquisa ........................................................................................... 118 3.5 Procedimento de análise dos dados ................................................................... 119 CAPÍTULO 4 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ...................... 122 4.1 Expectativas de aprendizagem ............................................................................ 123 4.1.1 Dimensão dos conteúdos .................................................................................. 123 4.1.2 Associação entre objetivo e conteúdo ............................................................. 128 4.2 Avaliação ................................................................................................................ 134 4.2.1 Processos avaliativos ........................................................................................ 134 4.2.2 Dificuldades para avaliar ................................................................................... 147 4.2.3 Expectativas para facilitar o processo avaliativo ............................................ 154 CAPÍTULO 5 PRODUTO .............................................................................................. 165 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 182 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 186 APÊNDICE A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ................ 197 APÊNDICE B - ROTEIRO DA ENTREVISTA ............................................................... 198 APÊNDICE C - QUADRO PERGUNTAS E RESPOSTAS ........................................... 199 APÊNDICE D - QUADRO DE CARACTERIZAÇÃO DAS ENTREVISTAS .................. 200 ANEXOS - PARECER CONSUBISTANCIADO DO CEP ............................................ 201 13 INTRODUÇÃO As experiências como estudante, as relações diretas com os professores de Educação Física e a prática docente, influenciaram e influenciam diretamente na investigação desse estudo. A temática em torno das expectativas de aprendizagem e os processos avaliativos vêm sendo discutida há muito tempo, avançando bastante, mas obviamente ainda existem lacunas e o momento atual é muito propício para se pensar nisso, dada a discussão que se coloca em torno das proposições curriculares estaduais e da base nacional comum. Então do ponto de vista mais geral e amplo, o assunto é extremamente pertinente, principalmente para mim enquanto profissional que estou na escola, ali no dia a dia tentando achar caminhos para resolver os dilemas que vão se colocando tanto no âmbito das expectativas de aprendizagem quanto no da avaliação em Educação Física. Essa temática possui uma estreita relação com a minha história de vida, pois pensar em expectativas de aprendizagem e em avaliação na Educação Física são questões que desde sempre me inquietaram enquanto estudante, docente e pesquisadora. A preocupação com esse tema perpassa a formação acadêmica (2004-2007), a atuação profissional (2009 até os dias atuais), a Especialização (2008-2010) e a Pós-Graduação Stricto Sensu (2014-2016). A formação acadêmica ocorreu no Curso de Licenciatura em Educação Física, realizado na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), campus de Bauru. Minhas expectativas quando ingressei na graduação reforçaram o que eu queria desde o começo, atuar na escola. Nesse contexto, algumas disciplinas delinearam minha trajetória e me prepararam durante a formação inicial, como por exemplo, Educação Física escolar, Didática da Educação Física, Estrutura e Funcionamento do Ensino Fundamental, Práticas de Ensino em Educação Física escolar, Atividades Lúdicas, as quais proporcionaram experiências críticas e reflexivas do ponto de vista das ações metodológicas desenvolvidas pelos docentes. Enquanto estudante de graduação, somando-se todo o embasamento teórico apropriado nas disciplinas, também vivenciei diversos estágios no âmbito da 14 Educação Física escolar, onde pude observar a prática docente de vários professores da área em algumas escolas públicas estaduais e particulares de Bauru. Dentre algumas experiências não muito boas, pude observar que alguns professores demonstravam não planejar as atividades dentro dos conteúdos específicos da Educação Física, também não adequavam os objetivos para cada nível de ensino, e baseavam a avaliação da aprendizagem dos alunos apenas na observação do comportamento e desempenho dos movimentos. A compreensão de tais práticas mobilizaram meu interesse a ponto de se materializar na presente pesquisa de mestrado, abrindo espaços para discussão e reflexão em torno de questões importantes acerca das concepções de ensino e aprendizagem, dos conteúdos, dos objetivos e dos processos avaliativos em Educação Física. Após a conclusão da graduação, essas experiências me influenciaram a chegar a escola, assim meu primeiro contato como profissional nesse contexto formal de trabalho, no universo da docência, se deu a partir da aprovação em processo seletivo pela rede pública municipal de ensino de Pederneiras/São Paulo, como professora de Ensino Fundamental e Médio na área de Educação Física (Esporte, Jogos e Recreação), atuando nas escolas municipais, nos anos letivos de 2009 e 2010. Neste início de carreira, lecionando para crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental, diversas foram às dificuldades enfrentadas na prática docente. Dentre elas posso ressaltar as questões referentes aos aspectos pedagógicos: adaptar as atividades de acordo com os níveis de desenvolvimento dos alunos, definir os objetivos da Educação Física, selecionar os conteúdos para essa faixa etária, as expectativas de aprendizagem para cada ano de escolarização e a forma de avaliá-los, tanto na prática como na teoria. Para sanar as dificuldades vivenciadas enquanto professora, cabe destacar o quanto foi importante o curso de Pós-Graduação em Educação Física escolar (nível Lato Sensu) na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) concluído no ano de 2010, o qual me proporcionou aprendizagens significativas para prática profissional, favorecendo a resolução de diversos problemas encontrados neste início da carreira. Somando-se a essas experiências, para dar suporte a minha prática e auxiliar na organização dos planos de ensino e elaboração dos planejamentos, recorri também há algumas leituras e livros, já iniciadas na graduação, como por exemplo: “Educação de Corpo Inteiro – Teoria e Prática da Educação Física” (1997) de João 15 Batista Freire; “Educação como Prática Corporal” (2003) de João Batista Freire e Alcides José Scaglia; “Metodologia do Ensino de Educação Física” (1992) do Coletivo de Autores, Carmen Lúcia Soares, Celi Nelza Zulke Taffarel, Elizabeth Varjal, Lino Castellani Filho, Micheli Ortega Escobar e Valter Bracht; “Para Ensinar Educação Física – Possibilidades de Intervenção na Escola” (2008) de Suraya Cristina Darido e Osmar Moreira de Souza Júnior; e os “Parâmetros Curriculares Nacionais - Educação Física (PCN-EF)” (1997). Vale ressaltar, que neste momento o sistema educacional brasileiro passava por importantes alterações, sendo o Ensino Fundamental objeto de diversos debates, e entre as mudanças significativas, ocorreu à ampliação do Ensino Fundamental para nove anos com matrícula obrigatória aos seis anos de idade. Neste novo contexto, como professora de Educação Física e atuando com alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental, destaco que sempre tive mais interesse em ministrar aulas para os alunos do 1º ao 3º ano, porque trabalhando com essa faixa etária, pude perceber uma maior interação e participação dos alunos nas aulas; a grande receptividade pelas aulas de Educação Física; por ser esta uma das fases do desenvolvimento na qual a criança está se descobrindo; pela minha preferência pelos conteúdos de jogos, brincadeiras, ginástica, atividades rítmicas, expressivas, lúdicas e recreativas; pelo fato de nas atividades que eu propunha os alunos se empenharem em realizá-las e demonstrarem sua satisfação pelas novas aprendizagens; e principalmente, pela relação afetiva entre os alunos e eu. Quanto à avaliação na Educação Física escolar, durante o período em que estive na rede pública municipal de Pederneiras, as avaliações eram realizadas por mim ao final do ano ou bimestres letivos, ou ao final de uma unidade de conteúdos de ensino. As práticas avaliativas desenvolvidas com os alunos dos 1º, 2º e 3º anos se davam por meio de atividades e trabalhos, nas quais os alunos tinham que pintar, marcar um X ou circular objetos que poderiam usar nos membros superiores, inferiores e na cabeça; desenhar, completar ou ligar os órgãos dos sentidos; montar quebra-cabeças do corpo humano, avaliando assim seus conhecimentos sobre o corpo; desenhar objetos do lado direito ou esquerdo, observando a noção de lateralidade; atividades práticas sobre a noção de corpo, noção de espaço e de tempo, noção de direita e esquerda; circular as habilidades motoras; ligar as capacidades físicas, avaliando seus conhecimentos sobre esses conteúdos; 16 desenhos sobre os brinquedos e brincadeiras populares, além da confecção dos próprios brinquedos; e também eram realizadas rodas de conversa no início e ao final das aulas para discussão e reflexão com os alunos sobre o que aprendiam. No fechamento do ano letivo, era realizada uma avaliação cooperativa, onde todos os alunos trabalhando em grupo deveriam fazer um desenho em uma folha grande. A orientação era para que desenhassem o que eles haviam aprendido durante o ano nas aulas de Educação Física. Após esse momento, os alunos sentavam-se em círculo e dialogavam sobre as seguintes perguntas: o que eles haviam desenhado e o que era Educação Física para eles? Durante as vivências eram avaliados o comportamento e as atitudes dos alunos, principalmente a participação; através da observação era verificado se os alunos estavam aprendendo e desenvolvendo os objetivos e conteúdos propostos, e ao final era também pontuada a frequência nas aulas. Em 2011 fui aprovada no concurso público da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (SEE-SP) na Diretoria de Ensino (DE) de Bauru/São Paulo, efetiva como Professora de Educação Básica - II (PEB-II)1 na disciplina de Educação Física, atuando nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Ainda assim, uma inquietação continuava presente em minha prática pedagógica, a questão das expectativas de aprendizagem (o que se espera que o aluno aprenda) e os instrumentos de avaliação (como avaliar o aluno e onde/de que forma será registrado o que o aluno aprendeu) na Educação Física. Esta problemática surgida em decorrência das dificuldades e consequentes práticas por mim vivenciadas promoveram profundas reflexões e discussões sobre as importantes considerações acerca das propostas avaliativas na Educação Física escolar. Os motivos que conduziram a essas reflexões são procedentes das dificuldades sentidas em relação aos procedimentos avaliativos, como por exemplo, na avaliação dos alunos quanto à participação nas aulas, as necessidades avaliativas teóricas e práticas, como avaliar as dimensões atitudinais nas aulas, dificuldades em avaliar os alunos nos aspectos motores relacionados à dimensão 1 Professor licenciado na área específica em que atua. No contexto dos anos iniciais do Ensino Fundamental da rede de ensino da SEE-SP, concebemos como professor especialista o professor de Educação Física e o professor de Arte. 17 procedimental do conteúdo, ou seja, relacionadas às habilidades desenvolvidas nas práticas da cultura de movimento2. Podemos verificar que a literatura sobre a temática avaliação apresenta importantes contribuições teóricas e metodológicas, mas embora a proposição seja avaliar o aluno dentro dos aspectos da cultura corporal, esta é explicitada de modo genérico (DARIDO, 1999; SILVA, 1998-1999; AMARAL, 2008; PAULA, 2009; SILVA, 2009), apenas enfatizam alguns critérios e instrumentos de avaliação. Isto evidencia a grande dificuldade dos professores com relação ao ensino da Educação Física nas escolas e quanto à adequação do que as propostas apresentam para tal realidade. Assim, nos livros referenciados na área (SOARES, et al., 1992; BRASIL, 1997; FREIRE, 1997; FREIRE; SCAGLIA, 2003; DARIDO; SOUZA JÚNIOR, 2008) podemos ver que as propostas avaliativas estão centradas em questões mais amplas do que nas práticas específicas de avaliação e por isso, por vezes, deixam a desejar no que se refere a avaliar ou construir e aplicar um processo avaliativo específico para as distintas populações, aqui em específico, os alunos do 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental. A impressão, muitas vezes, em algumas obras (BRASIL, 1997; FREIRE, 1997) é de que os professores já sabem o que é um registro avaliativo e já sabem como fazê-lo. Entretanto, as produções se preocupam muito mais com discussões sobre a avaliação do que em seus processos de construção efetivos. Ou seja, revelam discursos gerais e amplos sobre a avaliação e não propriamente os modos de fazer a avaliação escolar. Tais referências propõem muito pouco em termos de instrumentos, registros, processos de avaliação, sendo o ensino, a metodologia, a didática e o planejamento, conceitos pouco abordados. A valorização dessa questão no contexto deste trabalho, acontece justamente na medida em que ele poderia/pode ajudar os professores no momento em que estarão a frente de uma turma. Todavia, é importante enfatizar que os estudantes de graduação demonstram pouco interesse por esses temas, reconhecendo-o, muitas vezes, como uma burocracia das disciplinas e da escola, principalmente quando chegam aos estágios. Assim, vão sendo construídas as dificuldades em reconhecer que essas questões são importantes ao longo de toda a formação docente. Contudo, 2 “[...] pertencem à cultura de movimento todas aquelas atividades que envolvem o movimentar-se humano com características lúdicas, de jogo, de brincadeira, de ginástica, de apresentação e competição, reconhecidas num determinado contexto sociocultural.” (KUNZ, 2008, p. 112) 18 quando estes professores, agora recém formados, chegam à prática profissional da docência e se deparam com os alunos é que se lembram da avaliação, transformando-a em um de seus maiores dilemas. Em se tratando do processo de avaliação, o mesmo não se restringe apenas em estabelecer uma nota, mas destacar os aspectos qualitativos das relações entre professor e aluno, que expressam e fazem parte do ensino e da aprendizagem, e não apenas como um produto final resultante dele. Além disso, a avaliação se revela como um elemento contínuo da ação educativa e está diretamente relacionado às finalidades propostas inicialmente, contemplada nos objetivos e conteúdos. Para avaliar bem é necessário se ter clareza de onde se quer chegar, tanto em termos de aquisição das competências e habilidades, quanto em termos de utilização desses conhecimentos para a vida do aluno, voltados para uma participação crítica, autônoma e reflexiva na sociedade. Nessa direção, é preciso analisar o contexto do desenvolvimento das aulas de Educação Física nos anos iniciais do Ensino Fundamental, levando em consideração, identificar os objetivos, os conteúdos, a avaliação da aprendizagem e os procedimentos metodológicos envolvidos. Sem esta sistematização, os processos organizacionais e as metas que o professor pretende alcançar com seus alunos tendem a ficar comprometidos. Como escreve Vasconcellos (2002, p. 42) sobre a necessidade de planejar: “Uma clareza deve ser resgatada: a reprodução, o ensino desprovido de sentido, pode existir sem planejamento, todavia a recíproca não é verdadeira: se desejamos uma educação democrática, temos que ter um projeto bem definido nesta direção.” Reconhecer a avaliação como um acesso ao universo infantil nos permitirá conhecer os interesses das crianças, os conhecimentos que estão sendo produzidos e apropriados por elas, assim como os elementos culturais do grupo social em que estão inseridas. A partir daí, será possível desenvolver um trabalho pedagógico no qual a criança esteja em destaque, ou seja, o professor como mediador do processo de ensino interage com o aluno de modo a potencializar seu aprendizado e desenvolvimento, por meio do acesso ao conhecimento, para melhor se posicionar frente ao contexto atual, e dessa forma, o aluno é motivado a interagir ativamente na prática educativa, confrontando suas próprias vivências individuais e coletivas com o conteúdo ministrado pelos professores. 19 Como ponto de partida é necessário conhecer as crianças, saber quais são os seus interesses e preferências, suas formas de aprender, suas facilidades e dificuldades, por sua vez, conhecer implica sensibilidade, conhecimentos e disponibilidade para observar, indagar, devolver respostas para articular o que as crianças sabem com os objetivos da área. Diante disso, centrando os olhares junto aos alunos de 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental e, por causa das dificuldades mais acentuadas para avaliar este público no que tange à Educação Física, algumas indagações surgiram: O que é preciso garantir em cada ano da escolaridade, em relação à aprendizagem do aluno? O que se espera que os alunos aprendam ao final do 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental? O que avaliar nas aulas de Educação Física escolar? Como fazer este tipo de avaliação? e Por quê? A priori, nós temos que ter muito claro a concepção de sociedade, de homem, de formação do cidadão, para termos clareza do que está se avaliando, dos objetivos e dos conteúdos que devem ser desenvolvidos. Sendo assim, se a educação prioriza os valores da formação humana integral, a avaliação que lhe corresponde também estará vinculada a essa concepção, assim, de acordo com Sobrinho e Ristoff (2002, p. 53): A concepção de educação fundada nesses valores e sua consequente avaliação confere prioridade ao sujeito e à subjetividade, o que implica na afirmação dos princípios societários, como a solidariedade, a cooperação, a democracia, a cidadania. Em outras palavras, preocupa-se com a formação, no sentido de que os cidadãos, à medida que se educam continuamente, tenham melhores condições para participar mais crítica e produtivamente da produção do mundo humano. Com base nessa ação educativa, as expectativas de aprendizagem podem vir a auxiliar nos momentos finais do processo avaliativo, contribuindo assim como recurso efetivo do processo de ensino da ação do professor em sala de aula (SÃO PAULO, 2013b). Desse modo, serão adotados, nesta pesquisa, o termo expectativas de aprendizagem, na medida em que são aqui identificados como um parâmetro orientador das aprendizagens pretendidas para os alunos. Cabe destacar aqui que as razões que levaram a priorizar este ciclo inicial de 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental, estão relacionadas às dificuldades já mencionadas anteriormente e, por este também ser um ciclo de alfabetização, no qual deve estar assegurado às crianças o direito às aprendizagens básicas nesse 20 tempo de três anos, com ações centradas nas crianças, em seus modos de ser, agir, pensar, expressar-se e aprender, repensando os espaços e tempos escolares, nas propostas pedagógicas, no uso dos materiais, no sistema de avaliação, nas ofertas de apoio às crianças com dificuldade, no investimento na formação inicial e continuada dos professores, e nos vários aspectos que direta ou indiretamente influenciam no direito de aprender das crianças (BRASIL, 2012b). Considerando as pretensões deste estudo, procuramos ampliar o debate acerca das expectativas de aprendizagem e a avaliação em Educação Física nos anos iniciais do Ensino Fundamental (1º, 2º e 3º anos). Sob este ponto de vista, o objetivo desta pesquisa foi investigar e analisar as expectativas de aprendizagem e os processos avaliativos na Educação Física para os 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental, culminando na produção de uma matriz orientadora na qual estejam presentes tanto as expectativas de aprendizagem quanto os processos avaliativos. A perspectiva com esta investigação é que da articulação entre as produções bibliográficas e os dados coletados com os professores, por meio das entrevistas, seja possível melhor compreender o cenário da avaliação na Educação Física junto aos alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental; como também construir um livreto no qual estejam demarcados as expectativas de aprendizagem e os processos avaliativos na Educação Física escolar para os 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental. Essa proposta, portanto, se faz importante na prática de sala de aula, pois dá visibilidade às expectativas de aprendizagem e pode favorecer a construção e implementação de processos avaliativos que se orientem para a formação integral do aluno, envolvendo as diversas dimensões da relação do aprendiz com o conhecimento. Por tal motivo a relevância desta pesquisa está em, além da importância de refletir sobre a avaliação do ensino em Educação Física, buscar elementos que fundamentem o processo avaliativo na Educação Física nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Tais elementos, sistematizados e aplicados na escola, podem ser um incentivo para que os professores identifiquem e estabeleçam as expectativas de aprendizagem dos alunos, construam processos avaliativos condizentes com estas expectativas, bem como, desenvolvam com mais facilidade seus planejamentos de aulas, promovendo reflexões que os mobilizem a buscar mais conhecimentos sobre 21 o tema. Assim, se faz necessário construir e oferecer referências, suporte pedagógico e material didático para a consolidação da prática docente no âmbito da avaliação, auxiliando os professores de Educação Física. Nesse contexto, este trabalho inicia-se no Capítulo 1 com um estudo das séries iniciais do Ensino Fundamental e a Educação Física, em relação à legislação para este nível de ensino, as temáticas infâncias, crianças e culturas infantis assentadas em uma abordagem sociocultural, e as expectativas de aprendizagem da educação escolar e da Educação Física. Em seguida no Capítulo 2, o foco se estabelece nos processos avaliativos na escola, na educação, abordando a perspectiva da escola e a questão avaliativa, como também a avaliação da Educação Física na escola e na Educação Física escolar nestes anos escolares. O delineamento metodológico, se caracteriza por uma abordagem de investigação qualitativa, a partir da modalidade de pesquisa exploratória. Como técnica de coleta utilizamos às entrevistas semiestruturadas com 30 professores de Educação Física atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental (1º, 2º e 3º anos). Em relação as categorias de análise que emergiram do estudo, no eixo temático Expectativas de aprendizagem, destacamos as “Dimensões dos conteúdos” e “Associação entre objetivo e conteúdo”, e no eixo temático Avaliação, as categorias de análise foram “Processos avaliativos”, “Dificuldades para avaliar” e “Expectativas para facilitar o processo avaliativo”. Neste sentido, o que se espera construir com esta pesquisa é a elaboração de um material (produto) com uma matriz orientadora na qual estejam presentes tanto as expectativas de aprendizagem quanto os processos avaliativos na Educação Física escolar, especificamente para os 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental. 22 CAPÍTULO 1 AS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL E A EDUCAÇÃO FÍSICA: EXPECTATIVAS DE APRENDIZAGEM A princípio, reforçamos a adoção do termo expectativas de aprendizagem, por entendermos que expressam aquilo que é essencial ao aluno conhecer ao final de cada ano do Ensino Fundamental. As expectativas de aprendizagem definem as intenções básicas de aprendizagem de um determinado processo de ensino para um estabelecido período de tempo. Dito de outro modo, as expectativas definem o conhecimento que se pretende que seja constituído/construído pelo aluno ao final de cada ano escolar dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Assim, ao definirmos as expectativas de aprendizagem, determinamos também o que é preciso ensinar a todos os alunos. Ou seja, ao orientarem o processo de ensino, as expectativas também procuram garantir que todos os alunos tenham oportunidade de aprender as mesmas coisas, ainda que cada um vá aprender de acordo com suas possibilidades pessoais e de acordo com seu repertório anteriormente constituído. Neste sentido, podemos dizer que a definição de expectativas é um instrumento que democratiza o aprendizado (SÃO PAULO, 2013b). Desse modo, as expectativas de aprendizagem devem se nortear pelo que podemos querer, propor, implantar para atingirmos a essência da aprendizagem, dentro de um projeto nacional de cidadania e de ideais republicanos de Educação de qualidade como direito de todos. A aprendizagem se realiza por padrões qualitativos, cujo parâmetro se dá pelas percepções, experiências, elaborações, vivências colaborativas individuais e grupais do que é possível e necessário (ALMEIDA, 2011). Associado às expectativas de aprendizagem também cabe destacarmos o termo objetivo(s) que, segundo Libâneo (1994), são antecipações de resultados e de processos que se espera alcançar com as situações de ensino e aprendizagem que acontecem na relação pedagógica, ou seja, são pontos de partida, indicando premissas gerais. 23 No esforço de esclarecermos ainda mais a proposição de Libâneo, os objetivos estão relacionados ao desenvolvimento de uma capacidade ampla que pode ser de natureza cognitiva, física, afetiva, social. Já as expectativas de aprendizagem se relacionam aos objetivos e estabelecem o que se espera que o aluno aprenda em um determinado tempo, considerando a faixa etária, as necessidades e interesses do grupo, contemplando a aprendizagem nas três dimensões do conhecimento de forma integrada, sendo elas: conceitual, procedimental e atitudinal3 (COSTA; ARMBRUST; TERAMOTO, 2014). Nessa perspectiva, consideramos importante os enunciados das expectativas de aprendizagem para que tenhamos orientações acerca da ação docente na relação com os alunos e o conhecimento escolar. Dessa forma, as expectativas servirão mais como um subsídio, orientando tanto o planejamento das aulas quanto o acompanhamento do trabalho pedagógico. Com o intento de nos familiarizarmos com as expectativas de aprendizagem, especificamente no âmbito das políticas públicas nacionais para a Educação Física escolar e na literatura da área, realizamos um levantamento do que está proposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), na Proposta Curricular do sistema de ensino estadual de São Paulo, nas Orientações Curriculares do Currículo Comum para o Ensino Fundamental Municipal de Bauru e em algumas obras da Educação Física, analisando estas produções numa perspectiva reflexiva. Tratar a Educação Física nos primeiros anos do Ensino Fundamental implica apontar seu processo de inserção neste espaço escolar. Por isso, torna-se necessário considerar sua configuração no contexto histórico educacional, materializando as trajetórias que marcaram/marcam e caracterizaram/caracterizam tal componente curricular hoje. 1.1 A Educação Física nos anos iniciais do Ensino Fundamental: aspectos legais 3 Esta definição, baseada em Coll et al. (2000) corresponde às seguintes questões: “o que se deve saber?” (dimensão conceitual), “o que se deve saber fazer?” (dimensão procedimental) e “como se deve ser?” (dimensão atitudinal), com a finalidade de alcançar os objetivos educacionais. 24 Neste primeiro momento, realizamos uma apresentação da legislação pertinente ao Ensino Fundamental, com destaque aos anos iniciais, e posteriormente buscamos elementos que contribuíssem para entender a Educação Física como componente curricular e como área do conhecimento na escola. Recentemente, o Ensino Fundamental tem sido objeto de diversos debates no Brasil (ARELARO, 2005; CURY, 2002; MORO, 2009; KLEIN, 2011), passando por importantes alterações. Desde sua promulgação, em 20 de dezembro de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB-EN) vem redesenhando o sistema educacional brasileiro em todos os níveis escolares. Entre as mudanças recentes, está a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos com matrícula obrigatória aos seis anos de idade. Segundo a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (BRASIL, 1996), a Educação Escolar é dividida em Educação Básica e Educação Superior. O Ensino Fundamental, juntamente com a Educação Infantil e o Ensino Médio, compõe a Educação Básica. A LDB no artigo 32 (BRASIL, 1996) define que o Ensino Fundamental tem como objetivo a formação básica do cidadão, mediante: I. O desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos, o pleno domínio da leitura e do cálculo; II. A compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III. O desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; IV. O fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social. Em seu artigo 87 (BRASIL, 1996, p. 29), podemos destacar o terceiro parágrafo que determina a matrícula para todas as crianças a partir dos seis anos de idade: Art. 87º. É instituída a Década da Educação, a iniciar-se um ano a partir da publicação desta Lei. § 3º Cada Município e, supletivamente, o Estado e a União, deverá: 25 I – matricular todos os educandos a partir dos 6 (seis) anos de idade no ensino fundamental. Diante da ampliação do Ensino Fundamental com matrícula obrigatória das crianças aos seis anos de idade, mais que uma determinação legal, o Ensino Fundamental de nove anos configura-se como a efetivação de um direito, especialmente às crianças que não tiveram acesso anterior às instituições educacionais. Além da LDB, o Ensino Fundamental também é pautado por outros documentos, que constituem o amparo legal para a ampliação do Ensino Fundamental, como as DCN, o Plano Nacional de Educação (PNE), os pareceres e resoluções do Conselho Nacional de Educação (CNE) e as legislações de cada sistema de ensino. Com a aprovação do PNE Lei nº 10.172, de 9 de Janeiro 2001 (BRASIL, 2001a), o Ensino Fundamental de nove anos se tornou meta progressiva da Educação Nacional. O PNE tem como objetivos a elevação global do nível de escolaridade, melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis, a redução das desigualdades sociais e regionais e a democratização da gestão do ensino público. Os objetivos e metas propostos visam garantir o atendimento do Ensino Fundamental, ampliando e universalizando o acesso. O item 2 dos objetivos e metas se destaca pela ampliação do Ensino Fundamental para nove anos, com início aos seis anos de idade, à medida que for sendo universalizado o atendimento na faixa etária de sete a 14 anos (BRASIL, 2001a). Segundo as DCN, para o Ensino Fundamental de nove anos (BRASIL, 2013), a ideia central das propostas contidas no PNE é que a inclusão definitiva das crianças nessa etapa educacional possa oferecer maiores oportunidades de aprendizagem no período da escolarização obrigatória e assegurar que, ingressando mais cedo no sistema de ensino, elas prossigam nos estudos e alcancem maior nível de escolaridade. No entanto, para que estas oportunidades de aprendizagem se concretizem ao longo dos níveis escolares, precisamos pensar em propostas de trabalhos pedagógicos que contemplem e priorizem os objetivos e conteúdos para essa faixa 26 etária, além do desenvolvimento das múltiplas linguagens que englobam as diversas formas de se expressar, brincar, socializar, criar e desenvolver a autonomia. Em 2005, a Lei nº 11.114, de 16 de maio de 2005 (BRASIL, 2005a), altera a redação da Lei 9.394/96, nos seus artigos 6º, 30º, 32º e 87º, com o objetivo de tornar obrigatório o início do Ensino Fundamental aos seis anos de idade: Art. 32º. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade [...] (BRASIL, 1996, p. 12). Art. 6º. É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos seis anos de idade, no ensino fundamental (BRASIL, 2005a, p. 1). A Lei 11.114/05 atende em parte a meta do PNE no que se refere à ampliação para nove anos do Ensino Fundamental, com início aos seis anos. O PNE determina a alteração do Ensino Fundamental para nove anos e estabelece uma idade de seis anos para o ingresso, conforme a Lei 11.114/05. Entretanto, o atendimento dessa meta ocorrerá logo em seguida com a promulgação da Lei 11.274/06. A duração do Ensino Fundamental, que até então era de 8 anos, passou a ser de 9 anos. A LDB foi alterada em seus artigos 29º, 30º, 32º e 87º, através da Lei 11.274, de 6 de fevereiro de 2006 (BRASIL, 2006), estabelecendo as diretrizes e bases da educação nacional, dispondo sobre a duração de nove anos para o Ensino Fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos seis anos de idade e delimitando o prazo de implantação pelos sistemas educacionais até 2010: Art. 5º. Os Municípios, os Estados e o Distrito Federal terão prazo até 2010 para implementar a obrigatoriedade para o ensino fundamental disposto no art. 3º. desta Lei e a abrangência da pré-escola de que trata o art. 2º. desta Lei. (BRASIL, 2006, p. 1) Cabe destacar, que a Lei nº 11.274/06 atende a meta estabelecida no item 2 dos objetivos e metas do PNE para o Ensino Fundamental, fixando um prazo para sua implantação em todo território nacional para o ano de 2010. Com relação à organização do Ensino Fundamental de nove anos, a Resolução nº 3, de 3 de agosto de 2005, do CNE (BRASIL, 2005b), indica as seguintes nomenclaturas a serem adotadas: 27 Quadro 1 - Organização do Ensino Fundamental de nove anos Etapa de ensino Faixa etária prevista Duração Ensino Fundamental Anos iniciais Anos finais Até 14 anos de idade de 6 a 10 anos de idade de 11 a 14 anos de idade 9 anos 5 anos 4 anos Fonte: BRASIL (2009, p. 12, grifo nosso) O Ensino Fundamental passou então a ser dividido da seguinte forma: Anos Iniciais – compreende do 1º ao 5º ano, sendo que a criança ingressa no 1º ano aos seis anos de idade; Anos Finais – compreende do 6º ao 9º ano. O quadro a seguir apresenta a equivalência da organização do Ensino Fundamental em oito e nove anos, com destaque para os anos iniciais do Ensino Fundamental: Quadro 2 - Equivalência idade e série/ano escolar em diferentes legislações para o Ensino Fundamental 8 anos de duração 9 anos de duração Idade correspondente no início do ano letivo (sem distorção idade/ano) 1º ano 6 anos 1ª série 2º ano 7 anos 2ª série 3º ano 8 anos 3ª série 4º ano 9 anos 4ª série 5º ano 10 anos Fonte: BRASIL (2009, p. 12) Com a reorganização do Ensino Fundamental no Brasil, ao ampliar o Ensino Fundamental para nove anos, o ingresso de crianças com seis anos de idade pode nos levar a perceber que essa política pode estar mudando a estrutura dos anos iniciais do Ensino Fundamental (SANTOS; VIEIRA, 2006; KRAMER, 2007; ARELARO; JACOMINI; KLEIN, 2011; ORLANDI, 2013). Com a alteração da faixa etária das crianças nas séries iniciais da Educação Básica, se antes a esta legislação as crianças entre cinco e seis anos de idade integravam a Educação Infantil, atualmente elas passam a fazer parte do 1º ano do Ensino Fundamental. Por consequência, a partir da nova organização, as crianças obrigatoriamente ingressarão mais cedo na escola, o que significa uma nova 28 estruturação dos espaços escolares sendo pensados para as crianças de seis anos, isto é, reorganizar a sua estrutura, os espaços, os tempos, os materiais, os conteúdos, as metodologias, os objetivos, o planejamento e a avaliação, suas formas de ensinar, aprender, avaliar, organizar e desenvolver o currículo, e trabalhar com o conhecimento, respeitando as singularidades do desenvolvimento humano, favorecendo a construção do aprendizado (BRASIL, 2007). Nesta perspectiva de continuidade do processo educativo, é necessário considerar os três anos iniciais do Ensino Fundamental como um bloco pedagógico ou um ciclo sequencial não passível de interrupção, voltado para ampliar a todos os alunos as oportunidades de sistematização e aprofundamento das aprendizagens básicas, imprescindíveis para o prosseguimento dos estudos (BRASIL, 2013). Considerando o contexto apontado, podemos compreender que o ingresso da criança com seis anos no 1º ano do Ensino Fundamental representou um grande marco político, suscitando, obrigatoriamente, uma demanda por novos olhares e discussões em torno dos professores que atuam neste nível de ensino, sua chegada ao espaço escolar, e principalmente sobre as práticas escolares estabelecidas. A entrada de crianças de seis anos no Ensino Fundamental implica assegurar-lhes garantia de aprendizagem e desenvolvimento pleno, atentando para a grande diversidade social, cultural e individual dos alunos, o que circunscreve espaços e tempos diversos de aprendizagem, com o intuito de zelar por uma educação de boa qualidade a todas as crianças. Nesta direção, as DCN (BRASIL, 2013, p. 122) recomendam que: [...] os sistemas de ensino adotem nas suas redes de escolas a organização em ciclo dos três primeiros anos do Ensino Fundamental, abrangendo crianças de 6 (seis), 7 (sete) e 8 (oito) anos de idade e instituindo um bloco destinado à alfabetização. Em vista disso, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) representa um compromisso formal assumido pelos governos federal, do Distrito Federal, dos estados e municípios de assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até os oito anos de idade, ao final do 3º ano do Ensino Fundamental. O PNAIC foi instituído pelo Ministério da Educação (MEC) com o objetivo de aprimorar o ensino de Língua Portuguesa e de Matemática desenvolvido pelos alfabetizadores que lecionam nas classes de alfabetização do Ensino Fundamental. A dinâmica do PNAIC organiza-se a partir do seguinte planejamento: a formação dos 29 orientadores de estudo acontece por meio de encontros presenciais nos diversos estados do país, organizados pelas Instituições de Ensino Superior. Na sequência, ocorre a formação com o professor alfabetizador, conduzida pelos orientadores de estudo (BRASIL, 2012a). Articulado a essas ações, temos o documento Elementos Conceituais e Metodológicos para Definição dos Direitos e Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento do Ciclo de Alfabetização (1º, 2º e 3º anos) do Ensino Fundamental (BRASIL, 2012b), que tem como objetivo subsidiar, em âmbito nacional, os sistemas e redes de ensino na elaboração de seus currículos, no que tange aos Direitos e Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento por Área de Conhecimento e Componente Curricular - em destaque a Educação Física - que se consubstanciam na aprendizagem das crianças de seis a oito anos. Porém, a proposta de organização dos três primeiros anos do Ensino Fundamental em um único ciclo exige mudanças no currículo para melhor trabalhar com a diversidade dos alunos e permitir que eles progridam na aprendizagem. Neste sentido, as DCN (BRASIL, 2013) buscam assegurar nos três anos iniciais do Ensino Fundamental: a) a alfabetização e o letramento; b) o desenvolvimento das diversas formas de expressão, incluindo o aprendizado da Língua Portuguesa, a Literatura, a Música e demais artes, a Educação Física, assim como o aprendizado da Matemática, de Ciências, de História e de Geografia; c) a continuidade da aprendizagem, tendo em conta a complexidade do processo de alfabetização e os prejuízos que a repetência pode causar no Ensino Fundamental como um todo, e, particularmente, na passagem do primeiro para o segundo ano de escolaridade e deste para o terceiro. Corroborando com estas diretrizes, temos o documento preliminar da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2015) com o objetivo de sinalizar percursos de aprendizagem e desenvolvimento dos alunos ao longo da Educação Básica, bem como, estabelecer os princípios orientadores da definição de objetivos de aprendizagem das áreas de conhecimento. De acordo com o documento: 30 Nos primeiros anos do Ensino Fundamental, em continuidade à Educação Infantil, ao lado do acolhimento integral à criança e do apoio a sua socialização, a alfabetização e a introdução aos conhecimentos sistematizados pelas diferentes áreas do conhecimento deve se dar em articulação com atividades lúdicas, como brincadeiras e jogos, artísticas, como o desenho e o canto, e científicas, como a exploração e compreensão de processos naturais e sociais. Por essa razão a orientação curricular para essas etapas precisa integrar as muitas áreas do conhecimento, centradas no letramento e na ação alfabetizadora. (BRASIL, 2015, p. 10, grifos do autor) Para a Educação Física, os objetivos de aprendizagem são apresentados em relação aos ciclos de escolarização mais amplos e, ainda, com referência às diferentes linguagens e práticas nas quais se desdobram esse componente curricular. A proposta é a de que cada sistema de ensino e/ou escola possa fazer suas escolhas em termos de quais linguagens e objetivos privilegiar a cada ano de escolarização (BRASIL, 2015). Vale ressaltarmos a inclusão da Educação Física, afirmando cada vez mais sua importância nos três primeiros anos do Ensino Fundamental. E a partir das DCN, LDB, PCN, BNCC, temos a possibilidade de elaborar uma proposta pedagógica que esteja integrada à proposta curricular da escola, visando ampliar o conhecimento do aluno justificando a Educação Física enquanto componente curricular . Sobre o currículo para o Ensino Fundamental brasileiro, a LDB em seu artigo 27 (BRASIL, 1996), apresenta uma base nacional comum, que deve ser complementada por cada sistema de ensino, de acordo com as características regionais e sociais, desde que obedeçam as seguintes orientações: I - a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática; II - consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada estabelecimento; III - orientação para o trabalho; IV - promoção do desporto educacional e apoio às práticas desportivas não-formais. O currículo do Ensino Fundamental é composto pelos seguintes componentes curriculares: Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Artes, História, Geografia e Educação Física (BRASIL, 1996). 31 Atualmente, a Educação Física é assegurada no ambiente escolar através de leis como a LDB (BRASIL, 1996), que em seu artigo 26, § 3, destaca que a Educação Física está integrada à proposta pedagógica da escola, sendo um componente curricular obrigatório da Educação Básica. Isto também é confirmado no Parecer do CNE/Câmara de Educação Básica (CEB) nº 16, de 3 de julho de 2001 (BRASIL, 2001b) e ainda nos PCN (BRASIL, 1997), ou seja, a Educação Física faz parte de toda a vida escolar do aluno, devendo estar presente desde os primeiros anos da Educação Infantil, em todo o Ensino Fundamental até o último ano do Ensino Médio. O Parecer do CNE/CEB nº 16/2001 traz importantes contribuições sobre o significado e as relações existentes entre um componente curricular obrigatório e sua relação com o Ensino Básico. Ele toma como base a discussão estabelecida no âmbito da Educação Física, mas que, sem dúvida, também auxilia no debate sobre a concepção mais ampla de ensino e currículo. Esse parecer reafirma que a Educação Física é um componente curricular obrigatório e que deverá estar presente nas séries iniciais do Ensino Fundamental de forma integrada aos outros componentes e ao Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola (BRASIL, 2001b). Com relação à atual organização curricular do Ensino Fundamental nas escolas estaduais do Estado de São Paulo, a Resolução SE nº 81, de 16 de dezembro de 2011 (SÃO PAULO, 2011a, p. 1) estabelece diretrizes em seu artigo 3º, no segmento de ensino correspondente aos anos iniciais do Ensino Fundamental: Parágrafo único - As aulas das disciplinas de Educação Física e de Arte, previstas nas matrizes curriculares dos anos iniciais, deverão ser desenvolvidas: 1 - com duas aulas semanais, por professor especialista na conformidade do contido no Anexo I, que integra esta resolução; 2 - com acompanhamento obrigatório do professor regente da classe e do Aluno/Pesquisador da Bolsa Alfabetização, quando for o caso; 3 - em horário regular de funcionamento da classe; 4 - pelo professor da classe, quando comprovada a inexistência ou ausência do professor especialista. Em relação a carga horária destinada à Educação Física, com duas aulas semanais, e pensando no impacto disso no contexto mais significativo de aprendizagem, corroboramos com o entendimento de Soares et al. (1992), no qual enfatizam a atenção que deve ser dada ao tempo pedagogicamente necessário para 32 o processo de assimilação do conhecimento. Entendemos que este número reduzido de aulas é insuficiente para tratar de uma dada problematização e sistematização dos conteúdos. Assim, para que a aprendizagem se efetive, devemos levar em consideração o tempo adequado ao ritmo de aprendizagem de cada aluno e da turma. A tabela a seguir apresenta o Anexo I da Matriz Curricular para o Ensino Fundamental, que integra a Resolução SE nº 81/2011: Tabela 1 - Matriz Curricular Básica para o Ensino Fundamental - 1º ao 5º ano Disciplinas Ano/aula (%) 1º ano 2º ano 3º ano 4º ano 5º ano Língua Portuguesa 60% 60% 45% 30% 30% Base Nacional Comum História/Geografia - - - 10% 10% Matemática 25% 25% 40% 35% 35% Ciências Físicas e Biológicas - - - 10% 10% Educação Física/Arte 15% 15% 15% 15% 15% Total Geral 100% 100% 100% 100% 100% Fonte: SÃO PAULO (2011a, p. 1) No que a tabela 1 apresenta é possível verificar um desequilíbrio entre as disciplinas, o que não deveria acontecer, já que cada disciplina desperta aprendizagens sob diferentes pontos de vista, podendo uma área enriquecer o conhecimento da outra. Além disso, é evidenciada uma porcentagem maior em Língua Portuguesa e Matemática, se comparada a disciplina de Educação Física (15%), o que nos incita a reflexões sobre os motivos desta redução e que pode revelar certas tendências na valorização de determinadas áreas junto ao conhecimento escolar. Dessa maneira, concordamos com Soares et al. (1992, p. 28) quando afirmam: É o tratamento articulado do conhecimento sistematizado nas diferentes áreas que permite ao aluno constatar, interpretar, compreender e explicar a realidade social complexa, formulando uma síntese no seu pensamento à 33 medida que vai se apropriando do conhecimento científico universal sistematizado pelas diferentes ciências ou áreas do conhecimento. Transpondo tal identificação de carga horária para os diferentes componentes curriculares no Ensino Fundamental, em 1995, os profissionais de Educação Física do Estado de São Paulo que atuavam no antigo Ciclo Básico4, vinham, segundo Carvalho Pinto (2007), de uma formação inicial esportivizada, o que parecia comprometer a atuação nesse segmento escolar. O mesmo autor destaca que este aspecto pode ter contribuído para a suspensão dos especialistas da Educação Física que atuavam junto ao Ciclo I nas escolas estaduais de São Paulo. Neste sentido, desde 1995 até 2002, a rede pública estadual de São Paulo não contava com professor especialista (com formação específica) em Educação Física no Ciclo I, sendo a disciplina ministrada pela professora polivalente5. No ano seguinte, em 2003, houve o retorno do professor especialista de Educação Física para as aulas do Ciclo I (FERNANDES, 2010). Isso é afirmado na Resolução SE 1, de 6 de janeiro de 2004 (SÃO PAULO, 2004, p. 1), que altera em seu artigo 1º, a Resolução SE nº 184, de 27 de dezembro de 2002 (SÃO PAULO, 2002), que passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 1º - As aulas de Educação Artística e de Educação Física, previstas na matriz curricular do ciclo I do ensino fundamental das escolas estaduais, serão desenvolvidas, em todas as séries, por professor portador de licenciatura plena específica na respectiva disciplina [...]. Com base nesta conquista é que devemos, ainda mais, reforçar a questão da formação e atuação do professor de Educação Física nos anos iniciais do Ensino Fundamental. A esse respeito, os PCN (BRASIL, 1997, p. 15) destacam que: O trabalho de Educação Física nas séries iniciais do ensino fundamental é importante, pois possibilita aos alunos terem, desde cedo, a oportunidade de desenvolver habilidades corporais e de participar de atividades culturais, como jogos, esportes, lutas, ginásticas e danças, com finalidades de lazer, expressão de sentimentos, afetos e emoções. 4 O Ciclo Básico correspondia às duas primeiras séries do Ensino Fundamental: 1ª e 2ª série, que nos dias atuais corresponde aos anos iniciais do Ensino Fundamental que envolve o 1º e 2º ano. 5 Professor/a que leciona diversas áreas do conhecimento. 34 A citação oferece elementos importantes para que seja discutido, não apenas a presença da Educação Física nos anos iniciais do Ensino Fundamental, mas sua configuração no currículo escolar. Assim, entendendo a Educação Física na condição de componente curricular que trata como objeto de ensino a cultura corporal de movimento, concordamos com Bracht (2010, p. 3), na medida em que: “Isso vai ampliar em muito o conteúdo de ensino da Educação Física como disciplina escolar e indicar também uma mudança de sentido, de função para sua presença na escola”. Quando discorre sobre o objeto da Educação Física, o autor refere-se a um “saber” específico de que trata este componente curricular, cuja transmissão/tematização e/ou realização, seria atribuição desta particular área pedagógica. De acordo com os PCN-EF (BRASIL, 1997, p. 24): A concepção de cultura corporal amplia a contribuição da Educação Física escolar para o pleno exercício da cidadania, na medida em que, tomando seus conteúdos e as capacidades que se propõe a desenvolver como produtos socioculturais, afirma como direito de todos o acesso a eles. Além disso, adota uma perspectiva metodológica de ensino e aprendizagem que busca o desenvolvimento da autonomia, a cooperação, a participação social e a afirmação de valores e princípios democráticos. O conceito de cultura corporal apresentado no excerto acima dos PCN se orienta pela obra de Soares et al. (1992), nesta perspectiva a Educação Física é uma disciplina que trata, pedagogicamente na escola, do conhecimento de uma área denominada por cultura corporal, que está configurada com temas e atividades corporais como jogo, esporte, ginástica, dança e outras que poderão constituir seu conteúdo. Como componente curricular da Educação Básica, a Educação Física deve ser responsável por introduzir o aluno na cultura corporal de movimento, formando o cidadão que vai produzi-la, reproduzi-la e transformá-la, para usufruir do jogo, do esporte, das atividades rítmicas e dança, das ginásticas e práticas de aptidão física, em benefício da qualidade de vida (BETTI; ZULIANI, 2002). Nessa direção, a Educação Física que irá tratar a cultura corporal de movimento em suas aulas terá como objetivo integrar o aluno a essa cultura, contribuindo de maneira efetiva para o seu desenvolvimento global. Assim, deverá considerar as várias dimensões do ser humano, articulando os aspectos sociais e culturais das diferentes práticas corporais dos alunos (SOARES et al., 1992). 35 Dos apontamentos aqui realizados, é possível verificar um importante destaque para a Educação Física nas várias legislações nacionais e estaduais, bem como, na literatura da área, revelando, senão concretamente, no âmbito conceitual inúmeras possibilidades de reflexões e ações para a área, em especial aos anos iniciais do Ensino Fundamental. Para tanto, neste subcapítulo delimitamos nossa atenção à legislação voltada para a Educação Física na escola, em especial àquela que prescreve as diretrizes para os anos iniciais do Ensino Fundamental, sendo estas diretrizes imprescindíveis ao contexto de ensino da Educação Física escolar. Além disso, reconhecemos essa prática na escola através da compreensão dessa área do conhecimento enquanto componente curricular e no desenvolvimento da cultura corporal. Dessa forma, devemos levar em consideração as orientações e diretrizes para os anos iniciais do Ensino Fundamental, as quais nos oportunizarão reflexões teórico-metodológicas para a reorganização da proposta pedagógica neste nível de ensino, cabendo à Educação Física, integrada a essa proposta da escola, ajustar-se às faixas etárias e às condições da população escolar. Esse fato também exige alterações na forma de organização dos conteúdos de ensino em cada ano, destacando a área de conhecimento, o objeto (temas e conteúdos) em torno do qual se organiza o processo de ensino aprendizagem, as metodologias e os processos de avaliação (LIBÂNEO, 2010). Por isso, com o foco nos 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental, e pensando na adaptação das atividades de aula, nas expectativas de aprendizagem e nos processos avaliativos, destacamos as características desses alunos neste nível escolar e nas várias fases do processo de desenvolvimento desse período. Esses aspectos precisam ser considerados quando se busca definir caminhos curriculares para a Educação Física, e para melhor detalhar esses aspectos, convém compreendermos o que significa a infância e ser criança no mundo contemporâneo. 1.2 Um olhar para as crianças: as infâncias e suas culturas Ao abordamos as temáticas infâncias, crianças e culturas infantis, buscamos refletir sobre os significados e desafios deste novo contexto educativo, com o ingresso das crianças, a partir de seis anos de idade, junto ao Ensino Fundamental. 36 Assim, importa reconhecer os conhecimentos a serem ensinados e aprendidos pelas crianças, considerando-as como sujeitos do momento presente, onde devemos pensar a escola como instância de formação cultural, vendo as crianças como sujeitos de cultura e história, sujeitos sociais (KRAMER, 2007). Atualmente, as temáticas infâncias, crianças e culturas infantis vêm sendo discutidas por pesquisadores e estudiosos nas mais diversas áreas (KRAMER; LEITE, 1998; DEBORTOLI; LINHALES; VAGO, 2002; SARMENTO, 2004; LIMA; MELO, 2006; MÜLLER, 2006; VASCONCELLOS, 2007; SARMENTO, 2007; MOTA, 2010; PEREZ, 2011; KRAMER; NUNES; CORSINO, 2011, CORSARO, 2011) com a preocupação de respeitar as crianças como sujeitos de direitos e produtoras de cultura. Segundo Sarmento (2004), a construção histórica da infância foi resultado de um processo complexo de produção de representações sobre as crianças, de estruturação dos seus cotidianos e mundos de vida e, especialmente, da constituição de organizações sociais para as crianças. A ideia de infância na atualidade não pode ser desvinculada da história, das diferentes visões em torno da criança, ou seja, o conceito de infância tem sido construído historicamente e reflete os valores presentes na sociedade atual. É com a institucionalização da escola que este conceito começa lentamente a ser alterado, através da escolarização das crianças. Podemos então, a partir do desenvolvimento de uma pedagogia para as crianças, falar da infância como uma construção social (CORSARO, 2011). Neste sentido, nos apoiamos no conceito de infância proposto por Sarmento (2007), no qual a infância é, simultaneamente, uma categoria social, do tipo geracional, e um grupo social, de sujeitos ativos, que interpretam e agem no mundo, e nessa ação estruturam e estabelecem padrões culturais. Além disso, as culturas infantis constituem o mais importante aspecto na diferenciação da infância. Essa concepção de infância permite, portanto, que se tenha um novo olhar do que vem a ser a criança. A definição de criança proposta por Kramer (2007), convergente com a nossa, pode ser assim explicitada: “Crianças são sujeitos sociais e históricos, marcadas, portanto, pelas contradições das sociedades em que estão inseridas” (p. 15). Ou ainda: “Crianças são cidadãs, pessoas detentoras de direitos, 37 que produzem cultura e são nela produzidas. Esse modo de ver as crianças favorece entendê-las e também ver o mundo a partir do seu ponto de vista” (p. 15). Do mesmo modo, visualizamos na contemporaneidade a pluralização dos modos de ser criança, a heterogeneização da infância enquanto categoria social e de relação entre as gerações, e o investimento das crianças em novos papéis sociais. Diante desse contexto, Vasconcellos (2007, p. 8) destaca: As crianças contemporâneas estão em contato - de forma direta ou não - com várias realidades e delas apreendem valores e estratégias de compreensão de mundo e de formação de suas próprias identidades pessoal e social. Vivem e interagem intensamente com outras crianças, partilhando experiências, quase sempre em situações mediadas por adultos, mas fazem-no de forma singular, ressignificando a cultura que lhes é apresentada, apropriando-se, reproduzindo e reinventando o mundo [...]. Com base nesse entendimento, acreditamos que a criança é um ser situado num contexto histórico, inscrita em uma determinada cultura, em um certo tempo/espaço, capaz de agir por si própria, de interagir nesse meio e também de modificá-lo. Assim, se infância é a construção social e cultural que vai fornecer o contexto das experiências possíveis para as crianças, estas se constituem em sujeitos concretos existentes em todas as sociedades humanas, e esta abordagem permite que se reconheça a existência de diferentes infâncias6. Ou seja, essas infâncias superam a visão tradicional de simples etapa da vida, pois as crianças são sujeitos plenos de direito e informantes competentes de suas histórias singulares, que, com especificidades próprias, expressam variadas dimensões culturais, presentes em toda ação/atividade humana (VASCONCELLOS, 2007). Segundo González e Schwengber (2012, p. 17): Admitir a pluralidade de infâncias, então, implica pensar a complexidade das ações das escolas, uma vez que tendem a ser cada vez mais frequentadas por crianças com histórias, percursos familiares e culturais diferentes. Trata- se, portanto, de considerar o conceito de infância no plural, pois, percorrendo a história, observa-se a diversidade de noções concretas de crianças, diferentes regimes e modos de viver a infância que coexistem, rivalizam, se sucedem e se transformam ao longo do tempo. A infância não é una, é múltipla. Nessa perspectiva, as crianças são marcadas pelo gênero, classe social, local em que vivem, sua origem, sua história pessoal e situação relacional. 6 Nascimento (2007, p. 27, grifo do autor), chama a “atenção para o fato de que existem infâncias e não infância, pelos aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos que envolvem essa fase da vida [...]”. 38 Nessa direção, a escola está associada à construção social das infâncias, e a educação escolar como prática social deve então oportunizar experiências com o conhecimento científico e a cultura. Para Asbahr e Nascimento (2013), é nessa relação entre produção/apropriação de objetos culturais que o homem se formou como homem cultural, com capacidades e condutas culturais. Somando-se a isso, os autores enfatizam: Para que esses objetos possam, de fato, ser internalizados, o sujeito deve realizar uma atividade que reproduza as características essenciais da atividade humana em questão. Tal ato, por sua vez, só pode se dar mediante a colaboração de indivíduos mais experientes, posto que os significados sociais contidos nos objetos, nas atividades humanas, só podem ser revelados em uma atividade coletiva (social). (ASBAHR; NASCIMENTO, 2013, p. 423) Para tanto, as possibilidades das crianças de viverem as infâncias estão profundamente ligadas às culturas infantis, que através de diferentes experiências culturais podem propiciar a construção e a aquisição de conhecimentos, como também a ampliação de competências e das interações sociais (KRAMER, 2007). As crianças, em seus grupos, já estão inseridas em seu próprio contexto de cultura, elas estão produzindo, construindo e se apropriando dessa cultura. A reflexão sobre estas práticas nos possibilita perceber as diferentes culturas infantis. Compreender como vivem e pensam as crianças, entender suas culturas, seus modos de ver, de sentir e de agir, e descobrir seus gostos e preferências é uma das formas de poder compreendê-las como grupo. Podemos definir a cultura da infância, conforme descreve Sarmento (2004, p. 12): “As culturas da infância exprimem a cultura societal em que se inserem, mas fazem-no de modo distinto das culturas adultas, ao mesmo tempo que veiculam formas especificamente infantis de inteligibilidade, representação e simbolização do mundo”. Corsaro (2011) entende as culturas da infância como culturas de pares. Entretanto, as culturas da infância não são apenas produzidas entre as crianças e seus pares, mas também nas suas interações com os adultos. As crianças reproduzem a cultura dos adultos através de uma interpretação que lhes é própria, 39 esta reprodução interpretativa7 permite configurar estes sistemas simbólicos articulados que constituem as culturas da infância. Sobre as características que definem este elemento, Sarmento (2004) apresenta quatro pilares das culturas da infância:  A Interactividade: as crianças aprendem com as outras crianças, nos espaços de partilha comum, como por exemplo na escola, seja nas relações escolares, nas relações de pares, nas atividades sociais que desempenham, estabelecendo dessa forma as culturas de pares. A cultura de pares permite às crianças apropriar, reinventar e reproduzir o mundo que as rodeia.  A Ludicidade: a ludicidade constitui um traço fundamental nas culturas infantis. Brincar não é exclusivo das crianças, é próprio do homem e uma das suas atividades sociais mais significativas, como também o brinquedo, que acompanha as crianças nas diversas fases de construção das suas relações sociais. Estes elementos são fundamentais na recriação do mundo em produção das fantasias infantis.  A Fantasia do real: nas culturas infantis, este processo de imaginação do real é fundamental, pois esta transposição imaginária de situações, pessoas, objetos ou acontecimentos, está na base da constituição da especificidade dos mundos da criança, ou seja, o fazer de conta permite continuar o jogo da vida em condições compreensíveis para a criança.  A Reiteração: o tempo da criança é um tempo recursivo, tanto se exprime na contínua recriação das mesmas situações e rotinas, como através da transmissão de brincadeiras e jogos das crianças mais velhas para as crianças mais novas, de modo continuado e incessante, permitindo que seja toda a infância que se reinventa e recria, começando tudo de novo. Entre essas formas culturais produzidas pelas crianças, Sarmento (2003) considera fundamental os jogos infantis, por exemplo, a amarelinha, brinquedos como o pião, papagaios de papel, como também modos específicos de significação 7 O conceito de reprodução interpretativa está relacionado com o que Corsaro (2011) observou como complementar: as crianças coletivamente participam na sociedade e contribuem ativamente para a preservação social (ou reprodução) e para a mudança social. 40 e de uso da linguagem que se desenvolvem especialmente no âmbito das relações de pares. Nesse cenário, cabe enfatizarmos as possibilidades do brincar, da brincadeira e do jogo como experiências da cultura, e que estão intimamente relacionadas às crianças e as infâncias, apresentando-se como elementos importantes nesse universo da cultura infantil. Com efeito, o brincar das crianças se constitui como um dos primeiros elementos fundamentais das culturas da infância, pois o brincar é a condição da aprendizagem e, desde logo, da aprendizagem e da sociabilidade, por isso que o brincar, o jogo e o brinquedo acompanham as crianças nas diversas fases da construção das suas relações sociais (SARMENTO, 2003). O brincar na infância é compreendido como um processo de significações e forma de ação social específica que estruturam as relações das crianças entre si, bem como, os modos pelos quais interpretam, representam e agem sobre o mundo. Por isso, brincar é uma construção social que faz parte da cultura da infância. É no brincar que as crianças vão se constituindo como agentes de sua experiência social, organizando com autonomia suas ações e interações, elaborando planos e formas de atuação conjuntas, criando regras de convivência social e de participação nas brincadeiras. Somando-se a isso, o brincar com o outro é uma experiência de cultura e um complexo processo interativo e reflexivo que envolve a construção de habilidades, conhecimentos e valores sobre o mundo. O brincar se dá no mundo e ao mesmo tempo contribui para expressá-lo, pensá-lo e recriá-lo, além disso, amplia os conhecimentos da criança sobre si mesma e sobre a realidade ao seu redor, instituindo coletivamente as relações entre pares e se afirmando como autoras de suas práticas sociais e culturais (BORBA, 2007). Segundo Lima e Melo (2006), nessas relações sociais a criança é um sujeito capaz de interagir, de comunicar-se, de internalizar conhecimentos, atribuindo sentido a eles a partir das experiências de que participa e do lugar que ocupa nessas relações. Dessa forma, na infância o brincar pode propiciar uma melhor relação entre os alunos e desenvolver o senso de coletividade nesse processo das relações sociais. Tendo em vista esta especificidade da infância, é necessário trazer para as ações pedagógicas o brincar na escola, como espaço de apropriação e produção de conhecimento, onde afeto, cognição e ludicidade possam caminhar juntos e 41 integrados (BRASIL, 2012b). Entretanto, de acordo com Borba (2007) para ampliar as possibilidades de criação no brincar é imprescindível, contudo, que as crianças tenham acesso a experiências e espaços coletivos de brincadeira, pois a mesma é um fenômeno da cultura e se configura como um conjunto de práticas, conhecimentos construídos e acumulados pelos sujeitos nos contextos históricos e sociais em que se inserem. Sobre os elementos fundamentais da brincadeira, Vygotsky (1994) destaca a situação imaginária, a imitação e as regras. Segundo o autor, sempre que brinca, a criança cria uma situação imaginária na qual assume um papel, que pode ser, inicialmente, a imitação de um adulto. Assim, ela traz consigo regras de comportamento que estão implícitas e são culturalmente constituídas. Num momento posterior, a criança se afasta da imitação e passa a construir novas combinações e, também, novas regras. Para Kishimoto (2005, p. 21), a brincadeira: “É a ação que a criança desempenha ao concretizar as regras do jogo, ao mergulhar na ação lúdica. Pode- se dizer que é o lúdico em ação”. Neste sentido, a brincadeira assume o papel de uma atividade cultural, ou seja, ao brincar a criança entra em contato com as regras, criando suas próprias normas e repetindo regras sociais do mundo adulto. Por conseguinte, ao falarmos do jogo e ao procurarmos definir a ideia que essa expressão exprime, Huizinga (2000, p. 33) enxerga o jogo como elemento da cultura, e assim o descreve: [...] é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana”. (destaque do autor) Conforme Kishimoto (2005), o jogo é considerado uma atividade lúdica que tem valor educacional, a utilização do mesmo no ambiente escolar traz muitas vantagens para o processo de ensino aprendizagem, pois mobiliza esquemas mentais, e estimula o pensamento, a ordenação de tempo e espaço, integra várias dimensões da personalidade, afetiva, social, motora e cognitiva. Visto dessa forma, o jogo e a brincadeira são atividades sempre reelaboradas e ressignificadas pela criança no processo de experimentar a atividade lúdica proposta no contexto educativo. 42 Para Vygotsky (1994), a brincadeira, o jogo são atividades específicas da infância, nas quais a criança recria a realidade usando sistemas simbólicos, sendo uma atividade com contexto cultural e social. O autor relata sobre a zona de desenvolvimento proximal que é a distância entre o nível atual de desenvolvimento, determinado pela capacidade de resolver, independentemente, um problema, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da resolução de um problema, sob a orientação de um adulto, ou de um companheiro mais capaz. Além disso, não há uma fronteira fechada entre a fantasia e a realidade, existem diferentes formas de vinculação entre estas esferas da vida humana, fato que é, primeiramente, observado nos jogos e brincadeiras das crianças, que permite à criança reordenar o real em novas combinações. Esta atividade é marcada pela cultura, inicialmente passada à criança, por meio das pessoas com quem se relaciona. Ou seja, o brincar é uma atividade humana criadora, na qual imaginação, fantasia e realidade interagem na produção de novas formas de construir relações sociais com outros sujeitos, crianças e/ou adultos (VYGOTSKY, 1994). Em nosso olhar, a criança brinca para se expressar e demonstrar seus sentimentos, suas vontades, suas inquietudes e, por meio do brincar, a criança se apropria e internaliza papéis e valores necessários à sua participação nesse contexto cultural, de experiências e de prática social durante a infância. Diante dessas afirmações, a mediação pedagógica vem assumir uma categoria central na atividade educativa, na qual o educador é sujeito do processo de ensino e de aprendizagem, que organiza a atividade de ensino, assumindo o papel de mediador, buscando estabelecer a relação entre o imediato (os conhecimentos empíricos que os educandos trazem de suas vidas) e o mediato (os conhecimentos teóricos que o professor quer ensinar para os estudantes). Especialmente na escola, é preciso organizar de um certo modo esse desenvolvimento, modo esse que permita às crianças se apropriarem das possibilidades mediadas pela relação do ser humano com o mundo que foram sendo criadas. Por isso, valorizar as experiências cotidianas dos educandos como estratégia pedagógica mediadora para a organização do ensino (e, em consequência, para o desenvolvimento dos sujeitos) significa uma hipervalorização dessas experiências (que já são abundantes nas vidas cotidianas dos estudantes) 43 no processo de desenvolvimento cultural dos sujeitos em suas máximas possibilidades (ASBAHR; NASCIMENTO, 2013). Nesta perspectiva, essas infâncias, esse brincar inseridos no contexto das aulas de Educação Física, assumem um papel fundamental no processo de constituição da criança como sujeito, na medida em que cria condições para que ela se aproprie, por meio de mediações culturais planejadas e intencionais, dos conhecimentos acumulados pela humanidade. Conhecimentos esses que encarnam novas possibilidades de conduta das crianças de pensar, sentir, expressar, se movimentar para conhecer e compreender os significados presentes no seu meio sociocultural. Segundo Goulart (2006) os processos de ensino e aprendizagem são ações de ampliação e troca de conhecimentos pela cumplicidade e confiança, pelo afeto entre crianças e professores. Trabalho, esforço e prazer são compatíveis, se nos comprometermos efetiva e afetivamente com objetivos claros e compartilhadamente definidos. É fundamental que os professores tenham bem claro quais são os objetivos ao ensinar Educação Física, o que se espera que os alunos aprendam nas aulas, o que é preciso garantir em cada ano de escolaridade em relação a aprendizagem do aluno e quais são as expectativas de aprendizagem para este nível de ensino. Há portanto um enfrentamento por parte dos professores, na medida em que surgem inúmeras dúvidas de como ensinar tais crianças, além também das dinâmicas e estratégias de ensino mais coerentes para esta faixa etária. Nas séries iniciais do Ensino Fundamental (1º a 3º anos), para Betti e Zuliani (2002) é preciso levar em conta que a atividade corporal é um elemento fundamental da vida infantil, e que uma adequada e diversificada estimulação psicomotora guarda estreitas relações com o desenvolvimento cognitivo, afetivo e social da criança, privilegiando o desenvolvimento das habilidades motoras básicas, através de jogos e brincadeiras de variados tipos, porém só isso não basta. Além disso, podemos perceber que o conteúdo de jogos tem grande destaque nestas séries, principalmente os jogos em grupo e com regras, enfatizando a descoberta, a compreensão e a vivência coletiva na qual se valorizam as relações entre os pares, evidenciando o respeito e a cooperação na busca de objetivos 44 comuns. Por meio dos jogos e brincadeiras, a criança constrói novas realidades que se adaptam às suas necessidades, desenvolvendo lideranças e o respeito às regras. Ao conceber que cada criança tem seu ritmo, há a necessidade da escola trabalhar com esta concepção nas práticas pedagógicas, respeitando as diferenças e os distintos percursos de cada um. Assim, é preciso eleger metodologias que intencionalmente respeitem o ritmo de cada criança, isto é, que não concebam as crianças como um bloco homogêneo, mas que considerem o tempo de descobertas, de construção de hipóteses, de despertar o interesse de cada grupo. Crianças identificadas com seu grupo de origem e que são diferentes entre si têm grande potencial de troca e de enriquecimento na turma, trazem uma bagagem, uma forma de pensar e viver o mundo, um olhar para as questões desenvolvidas em aula que acabam por ampliar as referências umas das outras (BRASIL, 2012b). Neste sentido, Freire (1997, p. 114) afirma: Uma proposta pedagógica não pode estar nem aquém nem além do nível de desenvolvimento da criança. Uma boa proposta, que facilite esse desenvolvimento, é aquela em que a criança vacila diante das dificuldades, mas se sente motivada, com seus recursos atuais, a superá-las, garantindo as estruturas necessárias para níveis mais elevados de conhecimento. Em relação aos conhecimentos da Educação Física nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos apoiamos na proposta de González e Schwengber (2012), na qual a Educação Física escolar se organiza em três dimensões de conhecimento: as possibilidades do se-movimentar; as práticas corporais sitematizadas e; as representações sociais que constituem a cultura corporal de movimento. Quanto a primeira dimensão, os autores destacam: Trata-se de favorecer que a criança descubra e aprenda outras possibilidades de mover-se além daquelas oferecidas pelo seu contexto social imediato, contribuindo, dessa maneira, para que construa novas referências sobre seu corpo, as potencialidades para se-movimentar e interagir com o ambiente e as pessoas. Nessa dimensão, o conhecimento da Educação Física se materializa e se organiza principalmente com base em experiências de movimento. As práticas corporais são meios para explorar o corpo e as possibilidades de ação do sujeito e, ainda, objetos culturais a serem estudados, conhecidos e aprendidos. (GONZÁLEZ; SCHWENGBER, 2012, p. 24, grifo do autor) O universo de conhecimentos que compõe a segunda dimensão reúne tanto os saberes corporais, síntese do saber-fazer e dos conhecimentos produzidos pela experimentação das práticas corporais sistematizadas, como os saberes conceituais 45 vinculados aos conhecimentos técnicos e críticos da estrutura e da dinâmica das práticas corporais e os significados sociais a elas atribuídos. Os conhecimentos técnicos articulam conceitos necessários para o entendimento das características de experiências do se-movimentar e das práticas corporais em uma dimensão mais descritiva, como conhecer características dos jogos populares, principais regras, habilidades e estratégias básicas implicadas na realização dos jogos. Já os conhecimentos críticos tratam do processo de inserção das mesmas práticas corporais em determinados contextos socioculturais, como por exemplo, valorar os jogos populares tradicionais, a origem dos jogos, formas de jogar na região em que mora, a presença do jogo em outras gerações. E por fim, a terceira dimensão de conhecimentos da Educação Física refere-se às estruturas e representações sociais que atravessam as práticas corporais (os jogos, os esportes, as danças, as ginásticas, as lutas, etc.), composta pelos conceitos que permitem refletir sobre a origem e a dinâmica de transformação nas representações e práticas que se relacionam com as atividades corporais de tempo livre, o cuidado e a educação do corpo, seus vínculos com a organização da vida coletiva e individual, bem como os agentes sociais envolvidos em sua produção (Estado, mercado, mídia, instituições esportivas, organizações sociais, etc.). Para melhor representar essa dimensão em situações de aulas de Educação Física para os alunos das séries inicias do Ensino Fundamental, podemos exemplificar a questão de gênero, que não é apenas um assunto relacionado às práticas esportivas, mas também um marcador em quase todas as outras práticas corporais. (GONZÁLEZ; SCHWENGBER, 2012) Essa proposta traz para os anos iniciais do Ensino Fundamental, os conhecimentos que devem ser ensinados neste espaço/tempo, enfatizando as possibilidades de significação dos alunos, das experiências de movimento propiciadas e da reflexão crítica sobre o mundo social. Exclusivamente do 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental, os conhecimentos da Educação Física estão mais voltados para as possibilidades do se-movimentar e nas práticas corporais sistematizadas, a dimensão representações sociais que constituem a cultura corporal de movimento ganha espaço apenas nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Porém acreditamos que à problematização das representações sociais é uma dimensão do conhecimento da Educação Física muito pertinente nas séries iniciais e que deve também ser incluída nas aulas. 46 Desse modo, sob a perspectiva da cultura corporal de movimento, devemos pensar a partir das manifestações que são produzidas nas culturas das crianças e é isso que nós temos que ensinar na Educação Física. Sobre as considerações anteriormente apresentadas, estas sugerem a necessidade de mudanças na construção de propostas pedagógicas mais coerentes e voltadas para as especificidades das crianças. A partir dessas reflexões, compreendemos o jogo, a brincadeira e o brincar como espaços de apropriação e constituição pelas crianças de conhecimentos e habilidades no âmbito da linguagem, da cognição, dos valores e da sociabilidade, além do respeito às infâncias e à condição de aprender no mundo contemporâneo. Ao longo deste texto, procuramos refletir sobre os conceitos de criança e infância reconhecidas do ponto de vista teórico e