unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP CAMILA PINTO DE SOUSA O IMAGINÁRIO DECADENTE NA CONSTITUIÇÃO DO OLHAR POÉTICO EM AL BERTO ARARAQUARA – S.P. 2016 CAMILA PINTO DE SOUSA O IMAGINÁRIO DECADENTE NA CONSTITUIÇÃO DO OLHAR POÉTICO EM AL BERTO Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP/Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica da poesia Orientadora: Profª Drª Maria Lúcia Outeiro Fernandes ARARAQUARA – S.P. 2016 Camila Pinto de Sousa O IMAGINÁRIO DECADENTE NA CONSTITUIÇÃO DO OLHAR POÉTICO EM AL BERTO Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP/Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica da poesia. Orientador: Prof.ª Drª Maria Lúcia Outeiro Fernandes. Data da defesa: 24/05/2016 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Outeiro Fernandes Faculdade de Ciências e Letras (FCL) Universidade Estadual Paulista Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Andressa Cristina de Oliveira Faculdade de Ciências e Letras (FCL) Universidade Estadual Paulista Membro Titular: Profª Drª Beatriz Moreira Anselmo Universidade Estadual de Maringá - UEM Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara RESUMO As raízes do movimento literário simbolista, no final do século XIX, embaralham-se com uma tendência de natureza mais cultural, definida como certo mal-estar diante do vazio de sentido do mundo e de um sentimento generalizado de decadência da civilização burguesa. Trataremos a Decadência não como uma etapa de preparação para o Simbolismo, mas sim como um estado de espírito, um modo de olhar o mundo, assim como evidencia Jean Pierrot, em seu livro L´Imaginaire decadent. A Decadência, portanto, constitui uma concepção pessimista da existência humana, que privilegia temas relacionados ao medo, à melancolia, à solidão, à dor de cunho existencial, à incerteza e ao fascínio pela ruína, campos semânticos que dão o tom negativo na focalização do mundo, o que fundamenta o imaginário decadente. Os textos poéticos de Al Berto, um dos poetas mais instigantes da produção portuguesa contemporânea, apresentam significativo diálogo com obras de vários poetas de diferentes períodos e com outras formas de linguagem artística, principalmente a pintura, a fotografia e o cinema. A poética de Al Berto fundamenta-se em vestígios herdados de muitas tradições líricas, entre elas o Simbolismo/Decadentismo. O imaginário decadente configura o modo como o poeta percebe e retrata o mundo em seus poemas. Este trabalho investiga, utilizando a obra do poeta Camilo Pessanha como paradigma, em que medida e de que maneira esse imaginário concorre para a configuração do olhar que fundamenta a obra poética de Al Berto, fazendo com que esta reflita as características que o contexto decadentista abarca. Palavras – chave: decadentismo; simbolismo; Al Berto; Camilo Pessanha; poesia portuguesa, imaginário decadente. ABSTRACT The roots of the Symbolist literary movement at the end of nineteenth century, shuffle up with a more cultural trend, defined as a certain discomfort with the void of meaning in the world and a general feeling of decay of bourgeois civilization. We will treat the Decadence not as a preparation step for the Symbolism, but as a state of mind, a way of looking at the world, as evidenced Jean Pierrot, in his book L'Imaginaire decadent. The Decadence therefore constitutes a pessimistic conception of human existence, which emphasizes topics related to fear, melancholy, loneliness, the pain of existential nature, to uncertainty and fascination with ruin, semantic fields that give the negative tone in the focus of the world, which underlies the decadent imagery. The poetic texts of Al Berto, one of the most exciting contemporary poets of the Portuguese production, have meaningful dialogue with works of several poets of different periods and with other forms of artistic expression, especially painting, photography and cinema. The poetic of Al Berto is based on inherited traces of many lyrical traditions, among them Symbolism/Decadentism. The decadent imaginary sets the way the poet sees and portrays the world in his poems. This work investigates, using the work of the poet Camilo Pessanha as a paradigm, to what extent and in what way this imaginary contributes to the look configuration underlying the poetry of Al Berto, making this reflects the features of this context covers. Keywords: decadentism; symbolism; Al Berto; Camilo Pessanha; portuguese poetry, decadent imagery. Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios. (Manoel de Barros) AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus por sempre me sentir tão protegida e por toda beleza que eu enxergo no mundo. À mamãe, por simplesmente tudo. Por me apoiar incondicionalmente, por ser exemplo e por seu cuidado. Por me apresentar o bem e o valor às coisas simples. Aos meus avós, pela existência em minha história e por mudá-la para sempre com amor, dedicação e memórias de um tempo que não conheço. Aos meus tios, Gilda e Bernardino, Débora e Agnaldo, pelo carinho tímido, mas constante. Por sentirem orgulho e sempre acharem que posso mais. Aos meus primos, Junior, Julia e Julio, por serem irmãos. Por me ensinarem a cuidar, me preocupar e amar, pelo crescimento e pelas diferenças. À Vivian, por ser a minha metade, pela sintonia, pela saudade rotineira, pelo companheirismo e pela irmandade. Por sempre acreditar tanto em mim, por ser a melhor amiga para qualquer circunstância e estar perto, sempre. Por me apresentar o Felipe, a quem também devo agradecer, por ser um grande amigo. À Nayara, pela animação que sempre demonstra, por ter gostos tão parecidos com os meus e, ao mesmo tempo, ser tão diferente. Por ser companheira, sincera e, sobretudo hoje, por fazer muito mais esforços do que eu para estarmos fisicamente juntas e por compreender esse momento. À Karen, por ser tão doce, por ter sempre uma palavra carinhosa e compreensiva. Por ser saudade, pelas experiências divididas e por sempre, sempre mesmo, entender cada sutileza nas palavras que digo. À Beatriz, por ser tão inocente e verdadeira, por demonstrar carinho e amor sem reservas. Por ser desligada e nos fazer rir com cada fala sem sentido, por me entender pelo olhar. À Mariana, minha amiga querida, por ter permanecido, pela verdade sempre, pela companhia e por ser. Ser, em um mundo em que isso falta. Ser e entender o incômodo causado pela falta de sensibilidade e humanidade justamente onde se dizem tão sábios. Sejamos, agora e sempre, o oposto do que jamais perpetuaríamos. À Teresa, pela companhia deliciosa, pela alegria, pelas jantas, por ter sempre disposição para mais uma palavra, por me ouvir e por seu carinho. Por ser uma amiga muito especial, que acompanhou de perto as dificuldades para que esse trabalho desse certo. À Isabela, pela timidez, pela simplicidade, pela discrição e por sempre ouvir, aconselhar e entender até as questões mais complexas. Por não julgar, mas sempre ser um ponto de equilíbrio. À Ingrid, por sempre se doar tanto e fazer o possível para que todos fiquem bem. Por sempre incentivar cada passo meu. Ao Robson, pelo ser lindo que é. Pela fé e por ser leveza, quando pesa. Por permanecer e ser cúmplice em todas as situações. Por melhorar os meus dias com seu apoio, seu humor e sua simples presença. Pelo seu modo raro de enxergar a vida e as pessoas. Ao Bruno, meu mais velho amigo, por conhecer todas as minhas facetas, desde sempre. Por ser o amigo mais compreensivo desse mundo e por ter entendido cada momento meu, inclusive de ausência. À Tati, amiga do cursinho que permanece. Por ser alguém sem frescuras, ser honesta, por sua inteligência e posicionamento crítico. Por sermos amigas sem cobranças, mas com a certeza de que somos. À Natália, pela infinita ajuda com o francês. Por ter sido minha vizinha, com quem troquei tantos olhares pela janela, por ser uma amiga divertida e companheira e por fazer de mim sua madrinha. Às amigas Bruna Redondo, Rosana e Marisa, por fazerem parte da minha história e serem, cada uma a sua maneira, especiais e importantes. À Joana, pela sua alegria, por ser um exemplo, por ser sempre sincera e por reacender meu olhar para a fé. Por me permitir ser titia postiça do Heitor e ser uma amiga especial. Aos meus colegas da EMEF “Professor Henrique Scabello”; alguns, hoje, bem mais que colegas: amigos. Por me fazerem entender o porquê de minha profissão, pelo acolhimento, pelo respeito, por dividir tantos aprendizados comigo e me proporcionarem a alegria em acordar e ir para o trabalho. Aos meus alunos, de hoje e aqueles que passam por mim desde 2014. Obrigada por desfazerem todas as minhas certezas, quebrarem os meus preconceitos e paradigmas e me ensinarem tanto sobre a vida. Por me fazerem esquecer qualquer problema quando estamos juntos, por serem a minha certeza de que eu trilho o melhor caminho, por me transformarem a cada dia. À Maria Lúcia, orientadora e pessoa tão querida. Por tudo que aprendi, pelo apoio, por sempre ser doce e honesta comigo, por ter compreendido minhas escolhas e por ser humana. Ao Al Berto, pela melancolia. À Literatura, por me apresentar tantas possibilidades e experiências. Sumário INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 12 1 A LÍRICA MODERNA E O DECADENTISMO ................................................... 16 1.1 MOVIMENTOS DO FIN-DE-SIÈCLE ............................................................ 20 1.2 O IMAGINÁRIO DECADENTE ..................................................................... 24 1.3 DECADENTISMO EM PORTUGAL .............................................................. 28 2 AL BERTO E O OLHAR DECADENTE: MEDO E MELANCOLIA ................. 48 3 AL BERTO: OLHAR DE MEDO PELO INSONDÁVEL .................................... 52 Considerações finais ............................................................................................... 66 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 70 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 72 ANEXOS ....................................................................................................................... 76 Anexo A ..................................................................................................................... 76 Anexo B ...................................................................................................................... 77 Anexo C ..................................................................................................................... 78 Anexo D ..................................................................................................................... 79 Anexo E ...................................................................................................................... 80 ANEXO F – O Retrato de AL Berto, 1996, Luísa Ferreira .................................. 81 12 INTRODUÇÃO As raízes do movimento literário simbolista, no final do século XIX, embaralham-se com uma tendência de natureza mais cultural, definida como certo mal- estar diante do vazio de sentido do mundo e de um sentimento generalizado de decadência da civilização burguesa. Jean Pierrot, em seu livro L´Imaginaire décadent (1880-1900), primeiramente define quais foram os fundamentos do imaginário decadente. O primeiro ponto importante é a estética do final do século XIX cuja denominação soa confusa: “Symbolisme ou Decadènce”? Pierrot evidencia que a perspectiva geralmente adotada de que o Simbolismo tem início em 1885-1886, com a publicação do manifesto de Moréas não é correta, uma vez que o movimento já vinha sendo preparado alguns anos antes por um período de transição, em que se desenvolveu a Decadência poética. Pierrot, portanto, considera restrito o ponto de vista que trata a Decadência apenas como uma etapa de preparação para o Simbolismo e é nessa perspectiva que nós iremos nos pautar para desenvolver este trabalho. Seria um erro, pois, considerar a Decadência como um simples transformador do movimento poético: “en réalité, cette même Décadence constitue le dénominateur commun de toutes les tendances littéraires qui se manifestent dans les vingt dernières aneés du siècle.”1 (PIERROT, 1977, p.16). O progresso e as ideias de modernidade não devem ser postos, segundo Calinescu (1987), do lado oposto ao sentido de decadência. Para ele, pode-se dizer que essa é uma relação complexa e que decadência é o progresso, na mesma medida em que o progresso é a decadência. Ambos têm em comum o fato de serem conceitos relativos; já que não existem conteúdos que, em si, são caracterizados como decadentes; a decadência, portanto, não é uma estrutura, mas sim uma direção ou tendência, apontada por Calinescu como uma das faces da modernidade. O sentimento da decadência é agudo e febril de urgência: 1 Na realidade, essa mesma Decadência constitui o denominador comum de todas as tendências literárias que se manifestam nos últimos vinte anos do século (tradução nossa). 13 A decadência é sentida, com uma intensidade antes desconhecida, como uma crise única; e, como o tempo é cada vez mais curto, torna- se crucialmente importante fazer, sem mais delongas, o que cada um tem de fazer para a sua salvação e para a do seu próximo. Na perspectiva de uma rápida aproximação do fim do mundo cada momento singular pode ser decisivo. A consciência de decadência produz desassossego e uma necessidade de auto-examinação, de compromissos agônicos e renúncias momentâneas (CALINESCU, 1999, p. 140). Alfredo Bosi, em texto intitulado “Fenomenologia do olhar”, publicado no livro O olhar (1988), organizado por Adauto Novaes, menciona que “o ato de olhar significa um dirigir a mente para um ato de ‘in-tencionalidade’, um ato de significação”. O que também faz o autor é diferenciar olho de olhar, atribuindo ao primeiro o significado de órgão receptor, enquanto define o olhar como “um movimento interno do ser que se põe em busca de informações e de significações” (BOSI, 1988, p. 66). Na mesma coletânea de textos, Fayga Ostrower, em “A construção do olhar”, fala sobre o papel desempenhado pela percepção, este “espontâneo olhar-avaliar-compreender”. Segundo a autora, os processos de percepção se interligam com os processos de criação: “O ser humano é por natureza um ser criativo. No ato de perceber, ele tenta interpretar e, nesse interpretar, já começa a criar” (OSTROWER, 1988, p.167). Os textos poéticos de Al Berto, um dos poetas mais instigantes da produção contemporânea, apresentam significativo diálogo com obras de vários poetas de diferentes períodos e com outras formas de linguagem artística, principalmente a pintura, a fotografia e o cinema. Al Berto tem uma obra rica, que aborda uma temática tão instigante quanto variada, transfigurada numa variedade de facetas líricas como a poesia homoerótica, a contracultura, a poesia marginal, que coloca em evidência uma série de questões importantes na arte contemporânea como o eu fragmentado, oprimido por um mundo em crescente desconcerto, o medo da morte, a melancolia, a dor existencial e a fixação pela cidade de Lisboa. Certamente não seria possível realizar uma pesquisa de modo a abranger todos os temas e nuances dessa obra tão plural em uma dissertação de mestrado e, por esse motivo, selecionamos uma dessas facetas para nos aprofundarmos. A poética albertiana revisita muitas tradições líricas, entre elas o decadentismo enquanto imaginário, o que contribui para uma poesia carregada de sentimentos como o medo, a melancolia e a angústia de existir, representados por imagens que remetem ao escuro e à noite. Portanto, o foco deste trabalho é entender de que modo o imaginário decadente influencia na constituição do olhar, tal como 14 transparece na obra de Al Berto, buscando perceber como esse olhar – olhar-percepção, modo como se compreende o mundo – contribui para a construção da temática e das imagens observadas em sua poesia. Não temos a intenção, em absoluto, de comparar Al Berto com Camilo Pessanha, tampouco classificá-lo como um poeta simbolista/decadentista ou mesmo reduzir toda uma linha histórica, deixando para trás todos os poetas que viveram entre Pessanha e Al Berto e criaram obras semelhantes ou com os mesmos referenciais. Camilo Pessanha, grande representante da estética simbolista/decadentista, é autor de poemas que carregam uma temática bastante parecida com a de Al Berto e aparece neste trabalho como exemplo e como contraponto para que, em certos momentos, possamos demonstrar de modo mais claro o que se entende, neste trabalho, como aspectos líricos da obra de Al Berto que identificamos com o imaginário decadente. Para que possamos atingir esse objetivo, selecionamos como corpus os dez seguintes poemas de Al Berto, retirados do livro O Medo, que reúne sua obra poética (O medo é dividido em partes, cujos títulos são distintos, por isso há numeração em alguns poemas que, compondo o mesmo agrupamento, são assim diferenciados): “[rasgo o melancólico interior dos insectos]”, “Doze moradas de silêncio – I”, “Eras novo ainda – I”, “2./ Cromo”, “Eremitério – I”, “Eremitério – II”, “Os dias sem ninguém – 4”, “Vigílias – 6”, “Regresso às histórias simples – 5” e “[no exíguo espaço do corpo ou da casa]”, e cinco poemas de Pessanha, que fazem parte de “Clepsidra”: “Caminho I”, “Caminho II”, “Caminho III”, “Depois das bodas de oiro” e “Branco e vermelho”. Os instrumentos teóricos que fundamentaram a pesquisa e forneceram subsídios para a elaboração deste trabalho são os textos selecionados da fortuna crítica dos dois poetas, que integram as referências bibliográficas da dissertação; textos específicos sobre linguagem poética; manuais de análise de textos poéticos, com especial destaque para as estratégias analíticas definidas por Antonio Candido, focalizadas principalmente no livro O estudo analítico do poema; estudos sobre o simbolismo e decadentismo, como o livro L´Imaginaire décadent, de Jean Pierrot que nos auxiliou a compreender os aspectos essenciais que caracterizam o imaginário decadente; a obra Five faces of modernity: Modernism, Avant-Garde, Decadence, Kitsch, Postmodernism, de Matei Calinescu, importante para situar a decadência como uma das faces da modernidade; o livro de Hugo Friedrich, Estrutura da Lírica Moderna; além de livros de História Literária, que focalizam estes movimentos em Portugal, como o do especialista José Carlos Seabra Pereira. 15 Quanto à organização, a dissertação apresenta primeiramente um capítulo teórico, abordando questões sobre a linguagem poética, relacionadas principalmente ao simbolismo e decadentismo, tendo por objetivo configurar o que tomamos, neste trabalho, como imaginário decadente; no segundo capítulo trataremos da vida e da obra do poeta Al Berto e de suas conexões com o imaginário decadente; esse capítulo traz, além disso, alguns poemas do poeta e suas respectivas leituras interpretativas; o capítulo três trará a leitura interpretativa dos poemas selecionados e culminará, por fim, nas considerações finais. 16 1 A LÍRICA MODERNA E O DECADENTISMO A poesia coloca o homem fora de si e simultaneamente o faz regressar ao seu ser original: volta-o para si. O homem é sua imagem: ele mesmo e aquele outro. Através da frase que é ritmo, que é imagem, o homem é. A poesia é entrar no ser. (Octavio Paz)2 Em seu livro “Estrutura da lírica moderna”, Friedrich menciona que “a lírica européia do século XX não é de fácil acesso. A poesia moderna fala de maneira enigmática e obscura”. Embora torne a obra incompreensível, tal obscuridade causa nos leitores um tipo de fascinação. A união de incompreensibilidade e fascinação é considerada, por Friedrich, como uma das várias formas de dissonância, o que, segundo ele, constitui um dos objetivos das artes modernas em geral. A obscuridade passa a ser, portanto, algo intencional no que se refere à linguagem poética. O crítico chama atenção para o fato de que essas tensões verificadas na lírica são, em grande parte formais, mas que elas aparecem também nos conteúdos: Quando a poesia moderna se refere a conteúdos – das coisas e dos homens – não os trata descritivamente, nem com o calor de um ver e sentir íntimos. Ela nos conduz ao âmbito do não familiar, torna-os estranhos, deforma-os. A poesia não quer ser mais medida em base ao que comumente se chama realidade. [...] Das três maneiras possíveis de comportamento da composição lírica – sentir, observar, transformar – é esta última que domina na poesia moderna e, em verdade, tanto no que diz respeito ao mundo como à língua (FRIEDRICH, 1978, p. 16- 17). Ainda de acordo com Friedrich, a poesia moderna prescinde da humanidade no sentido tradicional, da “experiência vivida”, do sentimento e, muitas vezes, até mesmo do eu pessoal do artista. Este não mais participa em sua criação como pessoa particular, porém, como inteligência que poetiza, como operador da língua, como artista que experimenta os atos de transformação de sua fantasia imperiosa ou de seu modo irreal de ver num assunto qualquer, pobre de significado em si mesmo (FRIEDRICH, 1978, p. 17). 2 PAZ, O, 1982, p. 138. 17 Camilo Pessanha, poeta português que produziu sua obra na transição do século XIX ao XX, e maior representante do Simbolismo/Decadentismo em seu país, foi um precursor dessa nova maneira de ser da lírica européia, uma vez que se pode perceber em sua obra essa maneira enigmática e obscura de desenvolver seus temas. Já na contemporaneidade, Al Berto também se utiliza de vestígios formais e temáticos herdados de muitas tradições líricas, entre elas o Simbolismo/Decadentismo, apresentando alguns traços muito semelhantes àqueles encontrados na poesia lírica de Pessanha: Na segunda metade do século XIX, resultou daí uma radical diversidade entre a língua comum e a poética, uma tensão desmedida que, associada aos conteúdos obscuros, gera perturbação. A língua poética adquire o caráter de um experimento, do qual emergem combinações não pretendidas pelo significado, ou melhor, só então criam o significado. O vocabulário usual aparece com significações insólitas. [...] Os mais antigos instrumentos da poesia, a comparação e metáfora, são aplicados de uma nova maneira, que evita o termo de comparação natural e força uma união irreal daquilo que real e logicamente é inconciliável (FRIEDRICH, 1978, p.17-18). A exemplo do que diz Friedrich, Al Berto, tal como fizera Pessanha no século anterior, vale-se de imagens e metáforas que instauram, ao longo dos textos poéticos, significados muito diferentes do sentido usual das palavras. Ambos criam sua própria linguagem lírica, rejeitando a clareza, a obviedade e a função referencial da linguagem. Na poesia de ambos há uma valorização especial da linguagem, que deixa sua função de comunicar, absorvendo o tom obscuro, descrito por Friedrich, capaz de gerar perturbação e fascínio em seus leitores. Mário Faustino menciona que, quanto à utilidade social da poesia, pode-se pensar em duas maneiras: passiva e ativa. No primeiro caso, a poesia “serve à sociedade testemunhando-a, interpretando-a, registrando as diversas fases espaciais e temporais de sua expansão e evolução”. A poesia é, pois, um documento vivo de certo povo, em dada época; e também possui um outro sentido, que é o de se realizar como simples manifestação da beleza. Por outro lado, de acordo com Faustino, a poesia é capaz de agir sobre um povo. [...] a poesia é instrumento de realização existencial do próprio poeta, que através dela se organiza, se afirma e se harmoniza com o resto da humanidade e com o universo; a poesia age sobre o leitor ou ouvinte, individualmente considerado, ensinando-o (comunicando a 18 experiência vivenciada do poeta), deleitando-o (comunicando-lhe a satisfação de permanecer vivo e a alegria imanente a toda coisa bela) e comovendo-o (comunicando-lhe o sentimento de importância de viver, e provocando-lhe aquela catarse característica de quem experimenta uma obra-prima) (FAUSTINO, 1977, p. 40). Evidenciaremos no decorrer deste trabalho que Camilo Pessanha e Al Berto, poetas mergulhados em situações e vivências de tempos diversos, experimentando situações e sentimentos próprios do momento em que vivem, desenvolvem a temática do decadentismo e criam metáforas e imagens de modo muito parecido. Trata-se de imagens capazes de configurar nos poemas uma angústia existencial, um medo em relação ao futuro e um ser humano em ruína, que constituem aspectos essenciais de um imaginário decadente. A figura de Pessanha, um dos maiores intérpretes do Simbolismo europeu, situa- se no quadro histórico-cultural de uma Europa em fins do século XIX, na qual um sentimento de incômodo, inquietação e até de revolta disseminava-se, em decorrência da tomada de consciência de um estado irreversível de decadência social e cultural. Segundo Spaggiari, a obra de Pessanha encena o estado de espírito do homem contextualizado no final do século XIX. Trata-se de um homem consciente da sua fragilidade e fraqueza, incapaz de aceitar a realidade e de conquistar um equilíbrio interior. O progresso da ciência destruiu grande parte dos antigos valores, sobretudo morais e religiosos, deixando o homem ainda mais só diante das angustiosas perguntas sobre o significado da existência, o objectivo da vida, as origens e os limites do universo. O homem debruça-se sobre o abismo do ignoto, sentindo o fascínio do mistério e do desconhecido, exaltando – por contraste com o racionalismo científico ― as suas faculdades irracionais e sensitivas. Procura subtrair-se ao determinismo que guia cegamente a vida do universo; mas, desiludido e frustrado, descobre na morte e no aniquilamento a única possibilidade de libertação (SPAGGIARI, 1982, p. 7). O Simbolismo, transformando-a em estética, transferiu para o plano literário a visão do mundo própria do Decadentismo. A poesia passa a ter, então, a função de decifrar o mistério do universo e, para traduzir as correspondências entre homem e universo, o simbolista deve sugerir e não descrever a realidade. É assim que nasce o símbolo para aludir aos sentimentos e sensações. Pessanha adere não somente à temática decadentista, mas também aos procedimentos formais privilegiados pelo Simbolismo, tornando-se um dos poetas mais representativos da estética simbolista em 19 Portugal. Praticando uma poética da sugestão – como havia proposto Mallarmé – Pessanha evitava nomear os objetos direta e imediatamente, valendo-se dos símbolos para sugerir sensações e sentimentos. Segundo Álvaro Cardoso Gomes, esta capacidade sugestiva é um dos traços característicos do Simbolismo, juntamente com a musicalidade da expressão e o idealismo de origem platônica. Al Berto, pertencente a um momento diferente de Pessanha, escreve igualmente baseado em suas reflexões sobre questões vivenciadas em seu cotidiano, sem mencionar o contexto de modo direto. A sociedade de sua época também passava por acontecimentos diversos, sendo marcado principalmente pela abertura cultural e política vivida pelo país naquele momento. O medo, muito recorrente na poesia de Al Berto, remete-nos à estética decadente do século XIX, mas está inserido acima de tudo no seu contexto histórico. Ainda que suas razões sejam distintas e diversos sejam os seus contextos históricos, os dois poetas configuram, em sua obra lírica, um olhar, ou seja, uma forma de ver e sentir o mundo, bastante semelhante, e que fundamenta a obra poética de ambos: A mudança que se verificou na poesia do século XIX trouxe consigo uma mudança correspondente nos conceitos da teoria poética e da crítica. Até o início do século XIX, e, em parte, até depois, a poesia achava-se no âmbito de ressonância da sociedade, era esperada como um quadro idealizante de assuntos ou de situações costumeiras, como conforto salutar também na representação do demoníaco, em que a própria lírica, embora distinta como gênero de outros gêneros, não foi, de forma alguma, colocada acima deles. Em seguida, porém, a poesia veio a colocar-se em oposição a uma sociedade preocupada com a segurança econômica da vida, tornou-se o lamento pela decifração científica do universo e pela generalizada ausência de poesia; derivou daí uma aguda ruptura com a tradição; a originalidade poética justificou-se recorrendo à anormalidade do poeta; a poesia apresentou- se como a linguagem de um sofrimento que gira em torno de si mesmo, que não mais aspira à salvação alguma, mas sim à palavra rica de matizes; a lírica foi, de ora em diante, definida como o fenômeno mais puro e sublime da poesia que, por sua vez, colocou-se em oposição à literatura restante e arrogou-se a liberdade de dizer sem limites e sem consideração tudo aquilo que lhe sugeria uma fantasia imperiosa, uma intimidade estendida ao inconsciente e o jogo com uma transcendência vazia (FRIEDRICH, 1978, p. 20). Percebe-se que os dois poetas expostos trazem muitas das características apontadas por Friedrich como componentes da lírica moderna. No trecho citado acima, o crítico faz menção às mudanças percebidas na poesia, também no que diz respeito à 20 sua crítica. Ao pensarmos que a “poesia apresentou-se como uma linguagem de um sofrimento que gira em torno de si mesmo”, podemos, portanto, retomar o que anteriormente foi dito sobre Pessanha e Al Berto: ambos são criadores de uma poética cujo trabalho com a angústia individual é fortemente percebido, embora os mesmos sentimentos possam ser universais e vivenciados pelos contemporâneos de Pessanha e Al Berto, que conviviam, respectivamente, com a angústia de uma sociedade em decadência e a abertura de uma sociedade à liberdade artística e, ao mesmo tempo, a vivência de situações conflituosas. Atentemos para a primeira estrofe do poema Caminho-I, de Pessanha: Tenho sonhos cruéis, n´alma doente Sinto um vago receio prematuro. Vou a medo na aresta do futuro, Embebido em saudades do presente... Nela pode-se notar a presença de alguns dos traços anteriormente mencionados, que configuram um olhar decadente em relação ao mundo. O eu-lírico nutre sonhos, que são cruéis e julga sua própria alma como doente. Ademais, a temática do medo, que tanto nos interessa, já se deixa perceber nesses versos, nos quais o poeta retrata o medo pelo futuro, ou seja, pelo insondável. Do mesmo modo, o poema Os dias sem ninguém-4, de Al Berto, aborda situações como o medo, a dor e a solidão: dizem que a paixão o conheceu mas hoje vive escondido nuns óculos escuros senta-se no estremecer da noite enumera o que lhe sobejou do adolescente rosto turvo pela ligeira náusea da velhice Além disso, pode-se perceber, na estrofe acima exposta, a criação de imagens que remetem à escuridão para, na realidade, demonstrar o estado de espírito desse eu- lírico fragmentado, sozinho e melancólico. 1.1 MOVIMENTOS DO FIN-DE-SIÈCLE A França viveu, nos últimos vinte anos do século XIX, um período conturbado, de instalação definitiva da República e de novos ideais políticos. 21 No campo da literatura e das artes, o panorama também não era simples. Em poesia, os dez primeiros anos após a instauração da República foram dominados pela figura de Victor Hugo. Por outro lado, os mestres da futura geração eram praticamente ignorados: Mallarmé, bien qu´habitant Paris depuis 1871, publie fort peu, et demeure absolument inconnu du grand public; après ses deux années de prison en Belgique, Verlaine séjournera pour de longs mois en Angleterre, et revenu en France, ne reprendra contact avec les milieux littéraires parisiens qu´en 1882. Quant à Rimbaud, dont les deux oeuvres capitales, les Illuminations et Une Saison en Enfer, ne seront publiées qu´en 1886, c´est, on le sait, aux environs de 1875 qu´il renonce définitivement à la littérature, puis quitte l´Europe; de sorte que la plupart de ceux qui avaient pu faire sa connaissance au cours de ses brefs séjours à Paris en 1870 et 1871 le tiendront pour mort. (PIERROT, 1977, p.16).3 Pierrot ressalta, ainda, no que diz respeito aos romances, que esses mesmos anos foram de ascensão do Naturalismo, sobretudo com Zola e Flaubert. Sabe-se que a década de 1880-1890 foi marcada pelo surgimento de várias novas tendências que, por hábito, foram nomeadas com o termo “Simbolismo”. Segundo Edmund Wilson, no fim do século XIX o mundo do Romantismo havia sido reduzido, mas a maneira de expressão do Naturalismo passou a parecer, aos poetas, inadequada para exteriorizar o que eles sentiam. Então, a Literatura desloca-se outra vez da baliza clássico-científica para a romântico-poética. E esta segunda reação, no final do século, esta contraparte da reação romântica em fins do século anterior, ficou conhecida em França por Simbolismo (WILSON, 1967, p.15). Wilson, em seu famoso livro, O Castelo de Axel, aborda os autores que levaram o Romantismo adiante e que se tornaram os principais precursores do Simbolismo. Um desses nomes foi o escritor francês Gérard de Nerval, que tinha ataques de insânia e confundia suas fantasias com a realidade exterior. 3 Mallarmé, embora vivesse em Paris desde 1871, publica muito pouco, e continua absolutamente desconhecido do grande público; depois de seus dois anos de prisão na Bélgica, Verlaine passará longos meses na Inglaterra, e de volta à França, só retomará o contato com os meios literários parisienses em 1882. Quanto à Rimbaud – cujas duas obras capitais, as Iluminações e Uma temporada no Inferno, só serão publicadas em 1886 – sabemos que é por volta de 1875 que ele renuncia definitivamente à literatura, depois deixa a Europa; de modo que a maior parte daqueles que poderiam ter aprendido durante suas breves estadias em Paris em 1870 e 1871 o deram por findado. (tradução nossa). 22 De acordo com a concepção de Wilson, as primeiras produções do Movimento Simbolista são os textos críticos de Poe, que corrigiam e criticavam a extravagância dos românticos. Ainda havia algo em comum entre a poesia de Poe e a poesia romântica; entretanto, ao cultivar determinados pontos do Romantismo foi que o poeta ajudou a transformá-lo em algo diferente. Tal como predicara Poe, o principal objetivo do Simbolismo seria aproximar-se da indefinição da música. Por outro lado, para Álvaro Cardoso Gomes, o movimento simbolista tem início por volta de 1857, com a publicação de As Flores do Mal, de Baudelaire. Em contrapartida, Anna Balakian diz ser surpreendente que o texto “Correspondências” tenha sido apontado pelos poetas posteriores como origem do simbolismo, já que todo o livro de Baudelaire evidencia influências de Swedenborg, mais visíveis ainda neste soneto. Balakian, Wilson e outros críticos consideram Baudelaire precursor e centro irradiador de praticamente todas as correntes importantes de poesia do final do século XIX: o Parnasianismo, o Decadentismo e o Simbolismo. Baudelaire não é, de fato, um simbolista; entretanto, fornece combustível essencial para o desenvolvimento do simbolismo. O poeta influencia ainda o simbolismo no que diz respeito ao arquétipo do poeta “decadente”. Ele teria sido o último a promover propositalmente este tipo. Entretanto, o próprio Baudelaire considerava-se muito mais um dândi do que um decadente. Encontramos, em boa parte dos escritores simbolistas, uma configuração platônica da visão de mundo: duas realidades distintas se sobrepõem, sendo uma a material, considerada como anúncio simbólico da segunda; e outra a espiritual, que é plena. Os procedimentos simbolistas, tais como a busca do vazio e/ou do Nada, a impessoalidade e o controle das emoções deram à poesia simbolista um caráter hermético, misterioso, difícil de ser entendido. A lírica simbolista, portanto, era de certo modo considerada inacessível. Na introdução deste trabalho já foi dito que Jean Pierrot, em seu livro L´Imaginaire décadent (1880-1900), define quais foram os fundamentos do imaginário decadente. O primeiro ponto importante é a estética do final do século XIX cuja denominação soa confusa: “Symbolisme ou Decadènce”? Definir esses movimentos é, de fato, atitude complexa. Há os que caracterizam o decadentismo como parte do simbolismo, aqueles que consideram dois movimentos literários distintos e, ainda, os 23 que acreditam que simbolismo é corrente literária, enquanto o decadentismo é um estado de espírito que percorre inclusive outros movimentos e épocas. Pierrot desconsidera que a publicação de Moréas tenha dado início ao simbolismo e evidencia que o movimento já vinha sendo preparado pela Decadência poética. Portanto, adotar como certo que a decadência tenha sido apenas preparação para o simbolismo é, de acordo com o crítico, um ponto de vista restrito, já que ela é denominador comum de diversas tendências que se manifestaram no final do século XIX. Além de ser denominador comum de todas as tendências que se manifestaram no fim do século XIX, a Decadência não se limita à poesia, estendendo-se a outros gêneros literários. Pontuando, ainda, sobre a importância da decadência, Pierrot diz que Du point de vue de l´histoire de l´imaginaire, elle constitue une étape capitale dans l´évolution qui, partie du fantastique romantique, aboutit au merveilleux surréaliste. Elle acentue les tendances que nous avions discernées chez des écrivains comme Baudelaire, Flaubert ou Gautier dans la période antérieure.4 (PIERROT, 1977, p. 19). De tudo que se fala sobre o simbolismo, três aspectos permanecem constantes: a ambiguidade da comunicação indireta, a associação com a música e, ainda, o espírito “decadente”. De acordo com Anna Balakian, a década de 1890 foi a época em que o simbolismo associou a técnica simbolista com o espírito “decadente” numa escala cosmopolita e universal. “De um lado a outro da Europa, sob a bandeira do simbolismo, a poesia se tornou uma danse macabre, em que a morte, a grande e formidável intrusa, espera na sombra misturar-se conosco e arranca sua máscara no momento menos esperado” (BALAKIAN, 1967, p. 91). Considerados por alguns como sinônimos, simbolismo e decadentismo são conceitos distintos. Assim como Jean Pierrot e Calinescu, por exemplo, Guy Michaud estabelece essa distinção. O decadentismo ou movimento decadentista do século XIX, segundo o próprio Manifesto Decadente, escrito por Baju, é: 4 Do ponto de vista da história do imaginário, ela [a estética decadente] constitui uma etapa capital na evolução que, saída do fantástico romântico, conduziu ao maravilhoso surrealista. Ela acentua as tendências que nós havíamos discernido em escritores como Baudelaire, Flaubert ou Gautier no período anterior (tradução nossa). 24 uma tendência antiga nas literaturas, ganhando relevo principalmente a partir do século XVIII. Trata-se de um fluxo e refluxo dinamizador da historia cultural e se explica talvez por essa dialética entre o real e o irreal que assinala a trajetória do homem e, portanto, os movimentos literários. Parece refletir o lado negativo da polaridade vida/morte e, também, o pessimismo da observação de que as civilizações acabam por entrar em decadência (BAJU, 1972, p.71). Neste trabalho, o decadentismo é tomado como esta tendência que, embora intimamente relacionada com a estética simbolista, ultrapassa o período do final do século XIX, podendo ser encontrado em outros momentos históricos e tendo forte ligação com o sentimento de declínio da civilização, quando os poetas se sentem mergulhados numa espécie de torpor pessimista, paralisados pela angústia existencial, pela melancolia e pelo medo. É por isso que, em vez de estética simbolista-decadentista, vamos preferir adotar o termo imaginário decadente. 1.2 O IMAGINÁRIO DECADENTE Nesse sentido, Renata Soares Junqueira chama a atenção para o fato de Michaud caracterizar o decadentismo como reação mais radicalmente negativa contra o objetivismo e o racionalismo dos parnasianos e naturalistas: Decadência e simbolismo não são duas escolas, como se quer geralmente fazer crer, mas duas fases sucessivas dum mesmo movimento, duas etapas da revolução poética [...] a decadência ou, como se costuma dizer, o “decadentismo” aparece-nos como o momento do lirismo, a expansão de uma sensibilidade inquieta, em estado de crise, sendo o simbolismo o momento intelectual, a fase de reflexão sobre esse lirismo, à procura de uma unidade que, na França, o romantismo não soubera descobrir e que permitirá definir a poesia na sua essência e estabelecer as bases de um regime novo [...]. A passagem da decadência ao simbolismo é a passagem do pessimismo ao otimismo e, ao mesmo tempo, a descoberta da poesia. Como explicar esse milagre? Pelo encontro de um certo número de forças com a influência de um homem. Como se verá, a nova “escola” dará à sensibilidade decadente e à sociedade mais que uma doutrina literária: uma metafísica, uma concepção de mundo. Só então, pelo simbolismo triunfante, abrir-se-ão para a poesia novas perspectivas (MICHAUD, apud JUNQUEIRA, 2003, p. 25). 25 Tal concepção se assemelha àquilo que diz Fulvia Moretto em seu livro Caminhos do Decadentismo Francês. A autora aponta para o surgimento, na França, a partir dos anos 1870, de uma sensação de mal-estar, uma agitação voltada contra a ideologia positivista; surge a ideia de um mundo em decomposição. Além disso, Moretto aponta que o decadentismo é: o resgate de um eu, é o novo lirismo que combate e substitui o Naturalismo e o Parnasianismo nas letras francesas. Na revolução fim- de-século, é a literatura e a arte que desenvolvem a imaginação, o sonho, que haviam desaparecido depois de Ronsard [...] O decadentismo é um novo Romantismo. Basta observar a preocupação com o novo verso que seria configurado em 1886, no verso livre, com a publicação das Illuminations de Rimbaud, e dos poemas de Gustave Kahn e Jules Laforgue. O verso livre é uma das facetas, e não a menor, da liberdade poética que o Romantismo de 1820 não pudera ou não ousara realizar. Pois a verdade é que faltou ao Romantismo francês uma linguagem poética. E Decadentismo e, depois dele, o Simbolismo, irão criá-la. [...] Além disso, o vocabulário que o Decadentismo usa ou inventa é formado de palavras arcaicas ou neologismos, de palavras técnicas, de palavras compostas e derivadas; há o uso plural de palavras que só possuem singular, há deslocamentos de palavras dentro da frase, repetições e supressões de verbos, o que significa a retomada, acentuada é claro, do trabalho dos poetas da Plêiade, do grupo de Ronsard, no final do século XVI. [...] O Decadentismo não é uma escola, mas um espírito de revolta em que cada autor cria sua língua e seu estilo. Ele é de fato uma atmosfera comum de desconfiança dentro da interrogação do que será este mundo a que a ciência tanto promete (MORETTO, 1989, p. 30-31). Portanto, o Decadentismo configura o retrato do artista que, tendo renegado seus valores atuais, está em busca de uma nova forma e por esse motivo mesmo é que se interessa pelo verso livre, pela sintaxe desordenada e pela temática de cunho popular. É importante salientar, novamente, que o ponto de vista aqui adotado é, de fato, o do Decadentismo enquanto estado de espírito, enquanto movimento e não escola literária. É preciso pensar no Decadentismo como um movimento histórico, retirar-lhe a conotação moral e política pejorativa que carrega, para ver nele um movimento de alto valor artístico que deseja valorizar a consciência de finitude das coisas. [...] O Decadentismo é um clima, é o extremo e exacerbado individualismo. [...] O que importa é que a poesia não será mais um psicologismo mais ou menos especulativo, mas um eu isolado diante de uma interrogação metafísica, diante de uma realidade que o ultrapassa infinitamente. Sabe que a razão não lhe dará respostas. Resta-lhe o caminho da intuição solitária, para responder a todos os porquês que o angustiam e que só ele ouve em sua solidão (MORETTO, 1989, p.32-33). 26 A Decadência constitui uma concepção pessimista da existência humana, configurando características como o medo, a melancolia, a solidão, a dor de cunho existencial, a incerteza e a fixação pela ruína, que dão o tom negativo em relação ao mundo. Estes aspectos fundamentam o imaginário decadente, que redunda num olhar específico, uma maneira singular de ver o homem e o mundo. De acordo com esse olhar, a existência humana é dirigida pelo determinismo psíquico, psicológico e social, o que condena o homem às leis da hereditariedade. A natureza, que até então tinha uma conotação romântica, agora aparece como um mecanismo insensível e impiedoso. Por isso mesmo, o homem decadente, em meio à angústia, tristeza e um sentimento de culpa, irá tentar escapar dessa natureza, afastando- se do mundo que o cerca; ele fica atento ao seu universo interior, por vezes se assusta com os sentimentos monstruosos e estranhos, e nessa busca ansiosa por compreensão de si mesmo acaba por encontrar muitas vezes as realidades do inconsciente. Por dissociar definitivamente a arte do propósito vigente até a irrupção da poesia romântica (a imitação fiel da natureza, considerada como padrão supremo), a época decadente é o marco de um momento de ruptura fundamental entre a estética clássica e a estética moderna. Jean Pierrot considera que, no que concerne à elaboração dessa nova estética e sensibilização para estas novas tendências, há dois nomes de extrema importância: Paul Bourget, romancista e crítico literário francês, e Oscar Wilde, influente escritor, poeta e dramaturgo britânico, de origem irlandesa. O crítico considera ainda que os elementos essenciais da visão de mundo decadente já estavam contidos nas obras de Baudelaire, Poe, Quincey, Flaubert e Gautier são os autores que, certamente, influenciaram profundamente as novas gerações. Pierrot descreve a atmosfera de pessimismo tomou a produção literária na França no final do século XIX e logo se espalhou por toda a Europa: Une atmosphere de pessimisme imprègne en effect l´ensemble de la production littéraire française de la fin du XIX siècle. Partisans et adversaires du mouvement Décadent se sont accordés pour reconnaître l´ampleur du phénomène, qui d´ailleurs déborde largement 27 le domaine national, pour affecter toute la littérature européenne. 5(PIERROT, 1977, p. 61) Nesse momento, seguidores e adversários do movimento Decadente reconheceram a importância desse fenômeno. Pierrot reflete sobre os motivos que levaram essa grande corrente de tristeza para a literatura francesa e pontua, em primeiro lugar, a crença compartilhada por alguns contemporâneos acerca das condições físicas e biológicas da humanidade moderna. O sentimento da Decadência nasce de um tema pseudo-médico: a degeneração da raça. Há uma forte ideia da degradação geral das raças europeias difundida naquele momento: “À cette heure des histoires où une civilisation finit, le grand fait est un état nauséeu de l´âme et, dans les hautes classes surtout une lassitude d´exister”6 (PIERROT, 1977, p. 64). Ademais, contribuem para o pessimismo crescente, a crença de que as pessoas são condenadas a defeitos hereditários e a influência da ciência positivista. Sentimentos como o tédio, a tristeza, o desânimo e uma enorme obsessão pela morte são os efeitos do pessimismo sobre a sensibilidade decadente e, ao mesmo tempo, elementos essenciais na alma dos heróis do fim do século. Grande parte desses heróis decadentes eram figuras incapazes de tomar uma decisão, sempre tomados pela dúvida e vivendo completamente isolados da sociedade; trancados nesse círculo de preocupações próprias, eles se entregavam a evasões que a vida real não permitia. Toda essa tristeza decadente foi alimentada pela percepção de uma existência monótona, na qual tudo se repetia; pela banalidade da natureza; pela banalidade dos homens; pela solidão do indivíduo preso em sua própria consciência e o amor a grandes ilusões coletivas, que são o progresso e a democracia. A alma decadente é um exemplo de atitude de rejeição total à vida, de condenação absoluta da existência. 5 Uma atmosfera de pessimismo realmente impregnou a produção literária francesa do final do século XIX. Adeptos e contrários ao movimento Decadente acabaram por reconhecer a amplidão do fenômeno, que se estende bem além do domínio nacional para afetar toda a literatura europeia (tradução nossa). 6 Nesse momento das histórias em que uma civilização acaba, o grande fato é um estado nauseante da alma e nas altas classes sobretudo uma lassidão de existir (tradução nossa). 28 1.3 DECADENTISMO EM PORTUGAL Em Portugal, há três tendências que marcam o Fim-de-Século artístico: o Decadentismo, o Impressionismo e o Simbolismo, tendências que surgem como oposição ao Realismo e à sua intervenção social: Organizam-se pequenos grupos que em revistas de curta duração defendem que a poesia exige rigor e imaginação. Daí a poesia formal e muito elaborada de Eugênio de Castro, próxima dos parnasianos, que introduz o Simbolismo nas letras portuguesas (ELZENGA, 2009, p. 17). Compartilhando com Jean Pierrot a mesma ideia, Seabra Pereira considera que decadência foi anterior ao eclodir do movimento Decadentista, seja na França ou em outros países: Em relação ao século XIX francês, como para o europeu, impõe-se a dissociação do conceito de decadência com referência ao campo artístico-literário e a outras actividades diversas. Justamente quando um complexo estado interior impele o homem oitocentista a oferecer- se uma imagem expressiva na evocação de épocas históricas estigmatizadas pela decadência (de Bizâncio, e Roma, etc.) e na sua identificação com aqueles que de forma mais bizarra ou degenerada viveram essas épocas, torna-se patente uma valorização das formas artísticas geradas, de modo específico, como adequada tradução daquele modo de sentir a vida. (SEABRA PEREIRA, 1975, p.18) Verifica-se que nas épocas anteriores ao Decadentismo é que as características negativas da decadência são estendidas à literatura. Durante o realismo, alguns críticos, pensadores e escritores franceses (assim como Eça de Queirós e outros em Portugal) viam no subjetivismo fantasista, na sentimentalidade, na verbosidade, de aspecto romântico, que eles consideravam como o enfraquecimento literário, não só sintoma ou imagem da decadência ambiente, mas também a verdadeira causa da degeneração dos tempos: Ora, através de poetas e ficcionistas dessa época, perpetuam-se, no entanto, características dissonantes com os seus juízos e proposições de reformistas: metamorfoses do mal du siècle, formas requintadas de distorção da sexualidade (com a consequente atração por SADE e similes), deleite na excitação ou prostração nervosa, etc. E 29 progressivamente, pela consciencialização e gosto de tais propensões, a problemática literária da decadência vai adquirindo nova face, com Zola (!), os Goncourt, Gautier. (SEABRA PEREIRA, 1975, p.18-19). De acordo com Seabra Pereira, a passagem do sentido de Decadência para o Decadentismo teve como grande marco Charles Baudelaire, que sugere o uso do termo “decadência”. No entanto, foi por volta de 1880 que se tornou frequente e intencional o uso das denominações “decadência”, “decadente” e, em menor proporção, “decadentismo” e “decadentista”, e é a partir daí que se percebe que esses termos designam uma sensibilidade e uma temática predominante, uma nova forma de arte que é, por vezes, um modo existencial. Ao uso desses termos estava inerente a ambiguidade e variadas conotações, que iam do sarcasmo ao pejorativo. Os autores que davam corpo a esse estilo não escapavam dessa ambiguidade, e ao assumirem para si esses termos, não entendiam que sua arte fosse decadente, mas que essa decadência era atribuída pela arte a toda sua circunstância histórica. O fato de ocorrer essa ambiguidade fez com que alguns buscassem novos termos, mas estes não tiveram o uso perpetuado. “O que parece caracterizar primariamente o Decadentismo é um estado de sensibilidade. Este é, em simultâneo, o próprio do homem finissecular desgostado de si mesmo e de uma civilização em crise aberta”. (SEABRA PEREIRA, 1975, p. 22-23) Na França, assim como em toda a Europa, há a consciência de que passam por um momento de decadência social e cultural, no qual se incluem a vida materializada, a sociedade injusta, a destruição da beleza, a limitação e a vulgaridade ou o formalismo em arte. Ao mesmo tempo, surge a revolta contra as causas sistemáticas, que são, segundo Seabra Pereira, o tecnocratismo e o convencionalismo moral da sociedade burguesa, o Positivismo e o Cientificismo, o Naturalismo e o Parnasianismo. Entretanto, essa revolta é inconsistente e confusa, realizada pelo irracional e pela afetividade sendo facilmente afogada em melancolia e pessimismo para finalmente buscar derivativos (“o cenário medieval, a irrealidade do sonho, os perfumes, as flores e as jóias de raridade excitante”). “Tomando a forma de avatar reconhecível do mal du siècle romântico, o Decadentismo afirma-se como uma luta instintiva pela libertação da vida interior longamente amordaçada por dogmas racionalistas e convenções vitorianas”. (SEABRA PEREIRA, 1975, p. 23). 30 O homem decadentista é um ser aflito, circundado por uma realidade agitada, perturbadora e inquietante e busca por um sentido que transcenda a desagregação que o cerca e se vê por isso parte de uma crise ainda mais penetrante, num verdadeiro drama espiritual de dimensão coletiva: [...] a posição paradigmática do homem decadentista é a indecisão dolorosa do estar a meio caminho entre, de um lado, a satisfação positivista e agnóstica (que rejeita), o optimismo cientista e tecnicista (de que desiste, desiludido), a óptica naturalista (de que se sente saturado), e, de outro lado, a hesitante superação pelas filosofias idealistas, pelo espiritualismo renovado, pela fé religiosa. Peados na indefinição, os decadentistas sentem o apelo do Mistério, dão-lhe dimensão pessoal e cósmica, remetem para ele todo o acontecer e sentir. Todavia, não alcançam forças para o dilucidar: como Laforgue, sabem a existência do sobrerreal e sintonizam vibrantemente o seu chamamento, mas quedam-se, por fim, frustrados. (SEABRA PEREIRA, 1975, p. 25) Essa tendência decadentista está de acordo com os influxos filosóficos dominantes, bem como a doutrina do Incognoscível de Spencer e Schopenhauer, de cujo pensamento alguns tópicos têm grande expansão no Decadentismo, e com Hartmann, cuja filosofia do inconsciente influencia em grande escala os decadentistas. “O pessimismo desgarrado que irrompe na arte decadentista reveste-se, portanto, de uma profundidade que ultrapassa qualquer motivação político-social de circunstância”. (SEABRA PEREIRA, 1975, p. 27). A arte torturada e sua complicação formal devem ser interpretadas como expressão e, ao mesmo tempo, como tentativa de salvar o homem do Decadentismo deste drama espiritual que ele vive. A lírica decadentista, assim como a narrativa, emerge, muitas vezes, de um esgotamento de ordem física e moral e, assim, se expande no cansaço de um pensamento cético e de uma sensibilidade comovida. Os decadentistas simpatizam com o obscuro e com os ares brumosos e dão preferência ao vago, em detrimento da precisão dos parnasianos e naturalistas; realizam uma estética da sugestão e propiciam uma visão onírica ou fantasmagórica da paisagem. Em Verlaine, Moréas e Laurent Tailhade percebemos a coexistência dessa angústia e prostração misturados a muitos aspectos religiosos. Essa presença religiosa representa a entrega superior do poeta a uma evasão ou compensação: 31 A insatisfação da imanência e do material, a vocação do Mistério e do Além encontram, por vezes, autêntica continuidade salvífica no sentimento religioso que atravessa a arte decadentista. Um real abandono cristão ao Divino (mesmo quando não expresso na prece vivencial de Sagesse) está, portanto, presente nos elementos religiosos que nela tomam constante lugar de relevo. (SEABRA PEREIRA, 1975, p. 30) A religiosidade presente como tema ou elemento literário pode ser interpretada ainda como derivação de desequilíbrio psico-nervoso ou como refinada fruição sensível. Muitas vezes a religiosidade transfigura-se em valorização do ocultismo: “Coerente consigo mesmo, e sugestionado por idênticas inclinações de movimentos precursores, o Decadentismo apaixona-se pelas ciências ocultas e aspira à exploração de vias esotéricas de comunicação com o Além”. (SEABRA PEREIRA, 1975, 32-33). O individualismo caracteriza-se como marca indelével do escritor decadentista, obcecado pela necessidade de conhecer seu próprio mistério interior; a poesia decadentista, pois, debruça-se sobre o eu e suas angústias. No amor decadentista encontram-se o impulso de afastamento da mulher e uma incrível atração. A mulher adquire um caráter sobrenatural, de onde provém o irresistível domínio que exerce sobre o homem. Ocorre, portanto, um processo de perenização e transformação da mulher fatal romântica: Pelas vias paralelas ou convergentes da abulia, da nevropatia, da estesia sedenta de ineditismo, da contemplatividade esotérica, da bizarria diversiva de objectos ou actividades, das perversões sexuais – afirma-se o essencial da visão decadentista do Amor e da Mulher, enquanto reflexo de mais profundo drama espiritual: a perturbante compresença vital de ansiedade frenética (pelo que seja novo, mais pleno, infinito ou impossível) e de impotência reflectida. (SEABRA PEREIRA, 1975, p.38) Em suma, no Decadentismo o amor não é puro misticismo. A atitude amorosa decadentista resume-se em um hedonismo contemplativo. Convivem na pessoa amante representada pelo decadentismo o exacerbamento e, ao mesmo tempo, valores místico- religiosos. Esta representação amorosa é resultante da constituição histórica do homem decadentista, que vive penetrado pelo espírito da luxúria e, ao mesmo tempo, arrasta 32 uma sensibilidade saturada, que clama por coisas estranhas e ao mesmo tempo excitantes, como a luxúria e a morte. Entretanto, nada disso o satisfaz. O decadentismo abarca temas como as neuroses sexuais, o sadismo erótico, a homossexualidade, o lesbianismo, androginia, a permuta de sexo, o incesto e outras formas de sexualidade consideradas, na época, incomuns. Entretanto, é o androginismo, por vezes inseparável do narcisismo, que melhor expressa a particular tonalidade imposta ao drama espiritual do homem decadentista pelo seu individualismo extremo. Outro aspecto importante do decadentismo é o culto da artificialidade. Seabra Pereira enfatiza a necessidade decadentista do viver artificializado: A recusa total do culto romântico da Natureza, o desafecto pelo idealismo amoroso, a estreita fusão de sensibilidade e raciocinação, o afastamento constante do emocionalismo exaltado, o alheamento de postura ou linguagem heróicas, tornam as posições do Decadentismo diferentes das que, a propósito de temas e situações por vezes muito próximos, tomara o Romantismo. (SEABRA PEREIRA, 1975, p.45- 46) A poesia decadentista pode ser um grito ou uma paráfrase da dor e da alucinação sobre as faces decadentes do eu e do mundo exterior, ou a representação da ânsia pelo Além ou, ainda, apenas agitação diante do viver tenebroso e sem razão. A contribuição formal do Decadentismo é importante, pois distingue a linguagem poética da linguagem rigorosamente estruturada do pensamento discursivo e representativo. Os decadentistas tinham algo novo a dizer e, por isso, precisavam criar um novo modo de expressão que, antes de qualquer coisa, implicava a preocupação em recriar a linguagem poética: Era a exigência de, pela exploração da palavra nas suas mais fugidias virtualidades de sentido e eufonia, a elevar acima da expressividade empobrecida da língua da comunicação quotidiana ou da exposição abstrata e conceitual. É o sinal que Mallarmé há-de exprimir lapidarmente e que todo o Simbolismo prosseguirá. (SEABRA PEREIRA, 1975, p. 53) Desse modo, o historiador atribui aos decadentistas, principalmente a Verlaine, a afirmação da “estética do indeciso, do vago, do indefinido” (SEABRA PEREIRA, 1975, p. 54). Sem dúvida, os decadentistas tiveram um papel essencial na separação da 33 linguagem poética da linguagem comum, do cotidiano, voltada para a comunicação, que constitui uma das principais marcas da poesia moderna. Intensificam-se no Decadentismo o uso de sinestesia, o gosto pelo neologismo e arcaísmo, o alargamento e variabilidade extrema do vocabulário, a busca da plurissignificação analógica das palavras e a construção elíptica. A poesia também inicia uma renovada e limitada aproximação com a música: “A preocupação de musicalidade expressiva do ritmo e dos sons, tantas vezes conducente a maravilhas poéticas, assumiu tal importância no seio da poesia decadentista e, em linha direta, no Simbolismo [...]”. (SEABRA PEREIRA, 1975, p. 56) Os decadentistas abusam dos versos que desprezam as convenções até então respeitadas. A maior inovação, proposta por Verlaine, foi a do alexandrino liberado e de sua forma sob construção ternária. O Simbolismo em Portugal caracteriza uma ruptura com a continuidade literária e uma adaptação a outras formas mais evoluídas, claramente francesas. O surgimento do Decadentismo/Simbolismo em terras lusitanas é marcado pela publicação de vinte sonetos de D. João de Castro na Revista de Portugal, em 1891, e com Eugênio de Castro e os seus livros Oaristos (1890), Horas (1891) e Silva e Interlúdio (1894). Os idealistas realizavam experimentações com a linguagem explorando novos acentos rítmicos, versos livres, imagens delirantes, vocabulário erudito e motivos exóticos na tentativa de criar um clima de degenerescência e profundo pessimismo. Esse sentido decadente é percebido nos poemas de Antero de Quental, em Guerra Junqueiro, nas narrativas de Raul Brandão, no Naturalismo de Fialho de Almeida, em Alberto Osório de Castro ou na obra de António Nobre, e cruza-se com correntes como o neo- garrettismo, o simbolismo e até com as estéticas de vanguarda, como, por exemplo, o paulismo de Fernando Pessoa (conhecida como tentativa de aperfeiçoamento do simbolismo). O esteticismo simbolista permitiu assim o aparecimento de certas experiências verbais, que conferem à lírica portuguesa, de Camilo Pessanha a Mário de Sá-Carneiro, uma unidade indiscutível, com desdobramentos significativos que chegam até a poesia contemporânea, como é o caso da obra de Al Berto. A poesia de Camilo Pessanha pode ser interpretada como matriz de inúmeros procedimentos que seriam privilegiados pelos modernistas, especialmente pelos poetas da Geração de Orfeu: 34 Em 1890, estando em plena crise as ideias da Geração de 70, torna-se artificial falar da Geração de 90 como um grupo de escritores mais ligados ao neogarrettismo (ou à lição de Garrett mal entendida: o regresso ao tradicionalismo, ao nacionalismo, ao folclorismo, no sentido mais restrito e obscurantista). A criação de uma linguagem nova, decadentista, impressionista, simbólica, baseada essencialmente na imagem visual e sonora, criando os seus próprios referentes, influiu também no Modernismo. Também com Camilo Pessanha a variedade rítmica associa-se ao ritmo da consciência e da sensibilidade numa poesia hesitante e fluida, que traduz sensações de tristeza e insegurança. Por um lado o Simbolismo revela um estado de espírito, sugerindo o objeto através de símbolos não explicitados e através de uma imagística obscura. Por outro lado, busca-se uma equivalência entre poesia e música, dada pela fusão de imagens, processos estes em que são verdadeiros mestres os poetas franceses, de Baudelaire a Mallarmé, sem esquecer o mais inovador de todos eles, Rimbaud. O símbolo estabelece o nexo entre o mundo físico e o mundo moral. Procuram-se as analogias universais, em domínios obscuros como o sonho, o nada, a morte, a inspiração. O poeta afirma-se “decadente”, e refugia-se num universo imaginário, construindo uma filosofia do nada, do desespero e do cepticismo. Pessanha, numa das últimas cartas que escreveu, fala da sua “anemia mental”, da sua “pobre alma, — há tantos anos morta [...].” (ELZENGA, 2009, p. 25). No texto crítico acima evidencia-se a permanência de procedimentos e de elementos temáticos cultuados pelos simbolistas, dos quais o mais evidenciado é a adoção de símbolos, que concorrem para a busca de um elo oculto entre a alma do indivíduo e o cosmos, que serão adotados até pela geração modernista. Além do uso de símbolos, a exploração de outros procedimentos formais e características singulares da linguagem, como as imagens inusitadas, o fusionismo, a musicalidade, as ambiguidades e obscuridades que suscitam uma infinidade de sugestões, concorrem para criar na poesia moderna, iniciada pelos simbolistas e continuada pelos modernistas, um clima de angústia, de pessimismo e niilismo, que caracteriza o imaginário decadente. Em Portugal, o Decadentismo, a neurose e a angústia dos finais do século XIX, não só devem ser associados à influência da cultura francesa, mas também a certas situações políticas e socioeconômicas, entre as quais avulta o episódio conhecido como Ultimatum inglês. Trata-se de um episódio político que afetou imensamente o estado de ânimo dos portugueses, espalhando um sentimento pessimista de derrota e de decadência entre o povo. O termo se refere a um memorando enviado pela Inglaterra, que exigia a retirada das forças militares do território compreendido entre as colônias de 35 Moçambique e Angola. A concessão de Portugal às exigências inglesas foi sentida pelos portugueses como uma humilhação nacional. A seguir, propomos uma leitura interpretativa de cinco poemas de Camilo Pessanha, com o objetivo de ilustrar as características decadentes que acabamos de descrever. Desse modo, pretendemos delinear alguns traços deste modelo de percepção e de olhar fundamentado no imaginário decadente que alimenta uma significativa tradição da poesia lírica portuguesa, desde Camilo Pessanha, passando pelos líderes da geração modernista e ecoando ainda em vários e significativos desdobramentos que se verificam na poesia contemporânea, como ocorre na obra de Al Berto. Caminho - I Tenho sonhos cruéis, n´alma doente Sinto um vago receio prematuro. Vou a medo na aresta do futuro, Embebido em saudades do presente... Saudades desta dor que em vão procuro 05 Do peito afugentar bem rudemente, Devendo, ao desmaiar sobre o poente, Cobrir-me o coração dum véu escuro!... Porque a dor, esta falta d´harmonia, Toda a luz desgrenhada que alumia 10 As almas doidamente, o céu d´agora, Sem ela o coração é quase nada: Um sol onde expirasse a madrugada, Porque é só madrugada quando chora. Como já dissemos anteriormente, os poemas de Pessanha foram retirados do livro Clepsidra, que reúne sua obra. Clepsidra é uma palavra grega e define-se como relógio de água, de origem egípcia ou chinesa, composto de recipientes sobrepostos em que o superior deixa escorrer a água lentamente para o inferior por um conduto comprido com algumas pequenas aberturas. Era usado para assinalar o tempo concedido aos oradores, vindo a designar também o próprio tempo marcado pela água da clepsidra. (SANTOS, 2007, p. 25) 36 Ainda, de acordo com Santos, a escolha deste símbolo como título do livro de Pessanha deve-se ao poder de invocar conotações enigmáticas e sibilinas, que tão bem caracterizam a estética deste poeta, marcada principalmente por uma forte oposição ao discursivo e ao biográfico (Idem, p. 25). Clepsidra é um trabalho singular que tematiza os grandes problemas universais do homem, tais como o fluir inexorável do tempo, a fragilidade do ser humano e o caráter breve da vida. Três poemas de Pessanha, encadeados e numerados, foram intitulados por João de Castro Osório como Caminho. No primeiro dos três poemas figuram duas constantes da poesia de Pessanha: a preocupação com o tempo e a dor existencial. O poema Caminho – I tem sua forma ainda presa aos moldes clássicos, fato perceptível pela estrutura de soneto, pelos versos decassílabos, pelo sistema de rimas adotado pelo poeta, com rimas intercaladas nos quartetos e interpoladas nos tercetos. A esta forma clássica, construída de maneira harmônica, o poeta acrescenta elementos rítmicos e sonoros que conferem aos versos intensa musicalidade, criando uma oposição entre forma e conteúdo. Ao mesmo tempo em que se percebe extremo labor na construção formal do poema, sua uniformidade é desestruturada pelos elementos temáticos, à medida que o eu lírico, ao descrever a dor sofrida, refere-se a ela como a total falta de harmonia. Neste poema há um caminhar virtual, metafórico. Ele encena um olhar que focaliza o espaço que deve ser percorrido, como se o sujeito seguisse por uma estrada, uma via ou uma rua. O caminho representa a própria vida e o percurso, a experiência dos dias. O eu lírico apresenta-se envolvido por sensações e sentimentos múltiplos. Nos dois quartetos, o poeta descreve uma dor existencial de cunho particular, encenando o drama existencial que perpassa o caminho de sua vida, incluindo passado, presente e futuro. A dor é percebida de modo paradoxal, como algo a ser eliminado e, ao mesmo tempo, como ideal a ser alcançado. Nos dois tercetos, o poeta amplia esse sentimento identificando a dor a uma total falta de harmonia. A dor, porém, não é rejeitada como um mal, mas vista como necessária aos corações humanos, sendo uma experiência geral da humanidade. As rimas construídas pelo poeta, em sua maioria do tipo rica, contribuem para a evidenciação da temática do poema. Percebe-se, ao longo dos versos, um eu-lírico sofrido, tomado por uma dor de cunho existencial, que não é desencadeada por nenhum motivo palpável, como a morte, o amor não correspondido ou a perda. Na primeira estrofe a rima de doente e presente contribui para a ideia de que neste momento vivido 37 pelo eu-lírico, sua alma encontra-se doente, assolada pela dor sugerida no poema. Em relação à sua própria trajetória, o eu-lírico menciona os sonhos cruéis, alimentados por sua alma. Entretanto, o sentimento que domina este sujeito poético é o receio, que o faz caminhar com medo pelo estreito caminho que o levará ao futuro. Ao enfatizar o sentimento do medo, o poema também o articula com outro sentimento, o saudosismo. A trajetória a ser percorrida até o futuro faz o poeta sentir saudade do presente, que logo poderá se transformar em passado, à medida que o caminho tiver sido completamente percorrido. O grande receio do eu-lírico, na realidade, é em relação ao futuro, como realidade insondável, ao contrário do presente que, embora doloroso, pode ser palpável. Ainda no primeiro quarteto, prematuro/futuro, dois termos que também se ligam pela rima, embora se contraponham em relação ao significado, ambos revelam uma ansiedade angustiada, que confere uma sofrida perenidade à experiência vital do poeta. A angústia do presente se projeta no futuro. O medo é antecipado, mesmo aquele que se relaciona ao futuro, ao incerto, ao que é apenas mistério insondável. Portanto, na primeira estrofe o eu-lírico descreve sua angústia em relação ao caminho que deve percorrer e se declara um sonhador, embora viva num momento de dor e medo, do qual, apesar de tudo, já sente saudade. No segundo quarteto, os termos procuro/escuro revelam que, embora procure livrar-se da dor, o escuro, o enigmático e o sofrimento são a grande resposta a que chega o eu-lírico. A difusão de sensações angustiadas prossegue e percebe-se que o saudosismo refere-se ao presente e à dor que permeia o momento. Dor esta que se agrava com o anoitecer, como se percebe nos seguintes versos: “Devendo, ao desmaiar sobre o poente”/ “Cobrir-me o coração dum véu escuro!...” (v. 7 e 8). Portanto, o mesmo véu que cobre a noite também cobre o coração do sujeito poético, tornando-o sombrio, imerso em dor, estado que decorre das incertezas e do medo. No primeiro terceto, ainda falando sobre a dor, o eu-lírico a compara com a falta de harmonia, que se pode entender como um desconcerto entre o sujeito e o mundo, uma inadaptação à sociedade e a si mesmo. Além disso, a dor é a luz desregrada que ilumina as almas, a luz que ora é forte, ora é fraca, mas sem a qual ninguém pode sobreviver: “Sem ela o coração é quase nada”/ “Um sol onde expirasse a madrugada”/ “Porque é só madrugada quando chora” (v. 12, 13 e 14). Sem a luz e, consequentemente, privado da dor, que gera a luz, o coração é quase nada. Por fim, nos tercetos cujos últimos versos fazem rimar agora e chora, o sujeito poético demonstra, mais uma vez, o sofrimento associado a um tempo presente, que praticamente se 38 identifica a uma espécie de eternidade, já que não se trata apenas de experiência particular do poeta, mas de experiência que identifica a condição humana em sua universalidade. Em suma, percebem-se no poema palavras que se relacionam, sugerindo a ideia de que tanto o caminho que está sendo percorrido, quanto a mudança de tempo vivida pelo sujeito não modificam o sentimento pessimista de dor e solidão, que é parte constituinte do caminho e do próprio ser. No v. 7 há uma metáfora construída pela expressão desmaiar sobre o poente que sugere o sono ou o momento de adormecer. Além de sugerir a identificação do caminho com a vida, as imagens do poema apontam outras trajetórias semânticas, como a que sugere o caminho como aquele que transforma dia em noite, sol em escuridão. Já as imagens da escuridão e da madrugada, presentes no poema, aparecem como símbolos que dizem respeito à solidão, à dor e ao medo. O poema focalizado apresenta, portanto, todas as características do simbolismo/decadentismo que foram descritas anteriormente. O eu-lírico não explicita o que seja o caminho representado no poema. Este é sugerido pelas imagens, criadas com a finalidade de levar o leitor a identificar o caminho com a ideia de vida e o medo, sentido pelo eu-lírico como o sentimento propulsor dessa caminhada. O futuro é mostrado como um enigma, um mistério, algo a ser desvendado, exatamente como sugeriam os simbolistas no trabalho com a linguagem poética. O medo, a alma dolorida, a solidão e a escuridão que a dor causa na alma humana são sentimentos de decadência do ser, que chega a preferir a dor a decifrar o enigma a ele imposto. Desse modo, podemos ver as facetas da estética simbolista e do imaginário decadente entrelaçados no poema de Pessanha, que constitui uma espécie de paradigma que irá alimentar não somente as criações de poetas modernistas como Fernando Pessoa e Mário de Sá- Carneiro, mas até muitos poetas contemporâneos, como Al Berto. Caminho – II Encontraste-me um dia no caminho Em procura de quê, nem eu o sei. – Bom dia, companheiro – te saudei, Que a jornada é maior indo sozinho. É longe, é muito longe, há muito espinho! 05 Paraste a repousar, eu descansei... 39 Na venda em que poisaste, onde poisei, Bebemos cada um do mesmo vinho. É no monte escabroso, solitário. Corta os pés como a rocha dum calvário, 10 E queima como a areia!... Foi no entanto Que chorámos a dor de cada um... E o vinho em que choraste era comum: Tivemos que beber do mesmo pranto. Assim como Caminho – I, o poema Caminho – II é ainda preso às formas clássicas, constituindo-se como um soneto, com versos decassílabos heroicos. Entretanto, o quinto verso, que configura com maior clareza o significado: “É longe, é muito longe, há muito espinho!” A repetição do advérbio longe aumenta o sofrimento sugerido pela presença de muito espinho. E a presença de um ditongo decrescente confunde o leitor, que pode lê-lo, num primeiro momento como um verso maior que os demais, o que aumenta a sugestão de um lugar muito longe e repleto de sofrimento. Enquanto o poema “Caminho – I” transmite a experiência de um percurso metafórico, pelas imagens que sugerem o decorrer da vida, no soneto “Caminho – II”, o caminho parece referir-se a uma realidade concreta, embora também possa ser identificado, no plano metafórico, como a própria vida. O eu-lírico dirige-se a um tu, seu companheiro de viagem, com quem se encontra durante a caminhada. As rimas distribuídas ao longo do poema concorrem para o entendimento de sua temática, evidenciando o quanto o caminho e a dor estão imbricados numa só realidade. Nos dois quartetos três substantivos e um adjetivo são articulados por meio da rima: caminho, espinho, vinho e sozinho. Fica, pois, evidente que o caminho é perpassado por solidão e dificuldades – sugeridas pelos termos “sozinho” e “espinho”. O eu-lírico e o tu compartilham do mesmo vinho e do mesmo pranto, o que equivale a dizer, que passam pela mesma experiência da dor e da solidão. Além disso, no primeiro terceto, solitário e calvário constituem uma rima rica, elaborada com um adjetivo e um substantivo, que nos permite vislumbrar a solidão e a dificuldade, os percalços que o ser enfrenta em seu caminho. O é comparado pelo sujeito poético ao calvário ou a um martírio. À semelhança do primeiro poema, este também faz alusão à dor existencial sentida pelo eu-lírico, assim como à solidão e às dificuldades pelas quais ele precisa passar durante seu caminhar. Entretanto, em Caminho – II, o poeta recorre a um 40 interlocutor, que confere uma dramaticidade ao poema, além de assegurar maior autenticidade à experiência vivida não somente pelo eu-lírico, mas por toda a humanidade. O poeta não está sozinho na experiência da dor e da solidão que perpassam o seu caminhar pela vida. Ao descrever o momento em que se dá o encontro entre os dois, o eu-lírico apresenta-se como alguém perdido, que, enquanto caminhante, nem mesmo sabe o que procura ou o que espera: “Encontraste-me um dia no caminho/ Em procura de quê, nem eu o sei” (v. 1 e 2). Tortuosa, repleta de dificuldades e incertezas, a caminhada cantada no poema favorece a criação de um clima de decadência do ser em relação a sua própria existência. O que se quer alcançar, embora desconhecido, encontra-se muito distante dos caminhantes exaustos. Ambos compartilham dos mesmos sentimentos, da mesma dor e da mesma solidão. Ambos compartilham o mesmo destino. Em estado de comunhão, percorrem o mesmo caminho, são tomados pelos mesmos sentimentos e enfrentam os mesmos obstáculos: “Bebemos cada um do mesmo vinho.”/ “E o vinho em que choraste era comum:”/ “Tivemos que beber do mesmo pranto” (v. 8, 13, 14). Identidade e comunhão criam um clima especial, já que os dois partilham a mesma jornada, o mesmo repouso, a mesma venda, o mesmo vinho e o mesmo pranto. Esse clima só parece se romper no v. 12 quando o eu-lírico menciona “a dor de cada um”. Outro ponto relevante neste poema é o fato de existirem aqui alguns sintagmas vinculados a conotações religiosas cristãs: espinho, vinho, monte escabroso, calvário e pranto que, na maioria dos casos, vem como indicação de dificuldades enfrentadas no caminho deste sujeito, que percorre sua via-crucis, enfrentando padecimentos quase sobre-humanos. Os símbolos supracitados funcionam como intensificadores do sofrimento. As imagens predominantes no texto remetem ao ápice da dor vivida ao longo do trajeto. O uso dos símbolos intensifica o mistério, que torna obscuro e indecifrável o velado propósito do eu-lírico, almejado durante sua caminhada (v. 2: “Em procura de quê, nem eu o sei.”). Esta obscuridade, como vimos, é uma das características mais exploradas pela estética simbolista/decadente e, sobretudo, moderna. A própria constituição dos dois caminhantes é feita mediante alguns elementos que reforçam a imagem destes personagens como seres decadentes, que cultivam sentimentos de dor e medo em relação ao próprio existir. 41 Caminho - III Fez-nos bem, muito bem, esta demora: Enrijou a coragem fatigada... Eis os nossos bordões da caminhada, Vai já rompendo o sol: vamos embora. Este vinho, mais virgem do que a aurora, 5 Tão virgem não o temos na jornada... Enchamos as cabaças: pela estrada, Daqui inda este néctar avigora!... Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho, Eu quero arrostar só todo o caminho, 10 Eu posso resistir à grande calma!... Deixai-me chorar mais e beber mais, Perseguir doidamente os meus ideais, E ter fé e sonhar – encher a alma. Seguindo os mesmos procedimentos formais e explorando elementos temáticos semelhantes aos dos poemas anteriores, Caminho-III traz um novo motivo: a separação. O caminhante – que ora caminhava sozinho, ora caminhava junto a seu companheiro – agora redefine seus propósitos. Embora reconheça que a caminhada lhe fez bem – inclusive dando força à coragem que já se via diminuída – o eu-lírico muda seus planos e redefine seu trajeto. Percebe-se pela primeira estrofe que, depois de suas constatações, ele decide que é hora de ir embora. Pensando no todo, ou seja, nos três sonetos intitulados Caminho, este último, de fato, funciona como uma espécie de conclusão, que encena a finalização da caminhada. O poema representa o momento em que o eu-lírico analisa tudo aquilo que já passou e planeja o que virá. Sua maior decisão, entretanto, é pela solidão. Ele escolhe seguir sozinho, decide e deixa claro que o melhor é que ele e seu companheiro se separem. Deparamo-nos, novamente, com um dos grandes sentimentos decadentes: a solidão. Ainda que essa condição não seja imposta, pois o próprio eu-lírico decide por ela. Além do mais, a postura desse eu-lírico é de enfrentamento em relação ao desconhecido. Ele quer “arrostar só todo o caminho”, deseja, portanto, enfrentar as 42 situações que surgirem. A partir desse momento ele se considera capaz para seguir sem medo. Na última estrofe, ao finalizar sua exposição, o eu-poético deixa transparecer seu desejo de viver, ultrapassar seus próprios limites e buscar pelo que acredita, realizar, enfim, seus ideais. Ele deseja que o interlocutor o deixe em paz, fazendo aquilo que ambiciona e na medida que bem entender: chorar e beber mais, além de perseguir doidamente seus ideias, seguindo com fé e acreditando na possibilidade de sonhos. Dos três sonetos pode-se depreender uma unidade. Os poemas evoluem de maneira que o fim retoma o início: em Caminho-I vê-se a representação do “eu”, de sua solidão e isolamento; em Caminho-II percebe-se a presença do “tu” e do “eu”, isto é, do “nós”, configurando um momento de identidade e comunhão e, finalmente, Caminho-III inicia com o nós para, em seguida, adotar a ruptura, a separação, que recoloca o eu- lírico na situação de solidão inicial. [Depois das bodas de oiro] Depois das bodas de oiro, Da hora prometida, Não sei que mal agoiro Me enoiteceu a vida... Temo de regressar... 05 E mata-me a saudade... ─ Mas de me recordar Não sei que dor me invade. Nem quero prosseguir, Trilhar novos caminhos, 10 Meus pobres pés dorir, Já roxos dos espinhos. Nem ficar... e morrer... Perder-te, imagem vaga... Cessar... não mais te ver Como uma luz se apaga [Depois das bodas de oiro] é um poema cujos versos são hexassílabos. Evidencia-se, no poema, um contraste entre dois momentos: um passado talvez festivo, luminoso, e um presente funesto ou, como define o próprio eu-lírico, “enoitecido”. 43 Além disso, a voz poética mostra-se indecisa diante de três caminhos: “temo de regressar”/“E mata-me a saudade”, “Nem quero prosseguir,”/ “Trilhar novos caminhos”, “Nem ficar... e morrer...”. O eu-lírico mostra-se dividido entre regressar ao passado, prosseguir em busca de novos caminhos ou permanecer no lugar onde se encontra. Portanto, percebe-se que o poeta vive um dilema temporal e espacial, tomado por incertezas. Os primeiros versos das três últimas estrofes do poema, ao serem aproximados, abreviam o sentimento de paralisia do sujeito: “Temo de regressar...”/“Nem quero prosseguir,”/ “Nem ficar... e morrer...” (v. 5, 9, 13). A meta que o eu-lírico busca alcançar é indefinida, o que é reforçado pela imagens que enfatizam a ideia de um futuro vago. Não se sabe se o que ele busca e para onde deseja ir. Assim como em outros poemas de Pessanha, em [Depois das bodas de oiro] a escuridão, o anoitecer, a própria noite aparecem como símbolos da dor, da tristeza e da saudade. O eu-lírico menciona que sua própria vida encontra-se “enoitecida” (“Não sei que mal agoiro”/ “Me enoiteceu a vida...” – v. 3, 4), por algo que nem ele mesmo sabe o que seja, embora sugira que a causa poderia ser um mal agouro, um mal presságio. Ao que parece, depois desse momento, a vida passa a ser ocupada pela dor existencial, que paralisa o eu poemático a ponto de deixá-lo indeciso entre seguir em frente, regressar ou permanecer. Assim como no soneto Caminho – II, o termo espinho aparece como símbolo do sofrimento. A imagem dos pés doloridos e roxos simbolizam, por sua vez, o cansaço e a dor diante da possibilidade de prosseguir. O “eu” se mostra fragmentado, totalmente dividido entre três polos. Passado, presente e futuro interconectam-se, como três momentos difíceis, nos quais o ser decadente vive em desconcerto, em desarmonia com seus sentimentos e com sua existência de modo geral. O saudosismo daquele passado possivelmente alegre causa somente dor. Embora queira regressar, o sujeito teme o caminho de volta. Por outro lado, ele não se sente satisfeito e capaz de seguir em frente, e também não deseja permanecer, ficar estático, esperando pela morte. Portanto, o que se percebe é um impasse entre sensações, que prolongam a dor pelo tempo e pelo espaço, que acompanham a trajetória do poeta, ao lado de outra grande companheira, que é a dúvida. 44 Branco e vermelho A dor, forte e imprevista, Ferindo-me, imprevista, De branca e de imprevista Foi um deslumbramento, Que me endoidou a vista, 5 Fez-me perder a vista, Fez-me fugir a vista, Num doce esvaimento. Como um deserto imenso, Branco deserto imenso, 10 Resplandecente e imenso, Fez-se em redor de mim. Todo o meu ser suspenso, Não sinto já, não penso, Pairo na luz, suspenso... 15 Que delícia sem fim! Na inundação da luz Banhando os céus a flux, No êxtase da luz, Vejo passar, desfila 20 (Seus pobres corpos nus Que a distância reduz, Amesquinha e reduz No fundo da pupila) Na areia imensa e plana, 25 Ao longe, a caravana Sem fim, a caravana Na linha do horizonte, Da enorme dor humana, Da insigne dor humana... 30 A inútil dor humana! Marcha, curvada a fronte. Até ao chão, curvados, Exaustos e curvados, Vão um a um, curvados, 35 Os seus magros perfis; Escravos condenados, No poente recortados, Em negro recortados, Magros, mesquinhos, vis. 40 A cada golpe tremem Os que de medo tremem, E as pálpebras me tremem 45 Quando o açoite vibra. Estala! e apenas gemem, 45 A cada golpe gemem, Que os desequilibra. Sob o açoite caem, A cada golpe caem, Erguem-se logo. Caem, 50 Soergue-os o terror... Até que enfim desmaiem, Por uma vez desmaiem! Ei-los que enfim se esvaem, Vencida, enfim, a dor... 55 E ali fiquem serenos, De costas e serenos... Beije-os a luz, serenos, Nas amplas fontes calmas. Ó céus claros e amenos, 60 Doces jardins amenos, Onde se sofre menos, Onde dormem as almas! A dor, deserto imenso, Branco deserto imenso, 65 Resplandecente e imenso, Foi um deslumbramento. Todo o meu ser suspenso, Não sinto já, não penso, Pairo na luz, suspenso 70 Num doce esvaimento. Ó morte, vem depressa, Acorda, vem depressa, Acode-me depressa, Vem-me enxugar o suor, 75 Que o estertor começa. É cumprir a promessa. Já o sonho começa... Tudo vermelho em flor... O longo poema Branco e Vermelho não apresenta uma forma fixa e o número de sílabas poéticas oscila entre cinco e nove. Portanto, a ambiguidade, o senso de vago, a indefinição que antes prevalecia no nível temático, neste poema atinge também o nível formal. Verifica-se no poema uma ideia de progressão. A estrofe de abertura refere-se à “dor forte e imprevista” que assolou eu-lírico; a segunda estrofe surge como ponte que 46 une a consciência à semi-consciência, além de dar início, com as imagens do deserto e da luz intensa e muito branca, às visões e aos delírios que se estendem até a oitava estrofe; a nona estrofe é construída a partir de versos coletados das duas primeiras estrofes, representanto o clímax de sentimentos expressos pelo eu-lírico, bem como a passagem para um sonho maior. Finalmente, a décima estrofe surge como uma súplica à morte. Do título pode-se depreender uma bipartição: branco e vermelho. Partindo desses elementos, poderíamos fragmentar o poema também em dois movimentos, de dimensão desigual: primeiro pode-se pensar nas nove primeiras estrofes, que descrevem minuciosamente a dor, associada a branco e deserto e, posteriormente, a décima e derradeira estrofe que é, sobretudo, o clamor pela morte, que aparece associada a vermelho e flor. No primeiro momento, o eu-lírico admite sua triste condição e assume a dor que sente, deixando evidente que o único modo de se livrar de tal estado é por meio de um desmaio eterno. Associar essa condição ao branco enfatiza a ideia da passagem. Já no segundo momento, o eu-lírico pretende entregar-se àquela dor, sucumbindo à morte, como forma de libertação, com base na articulação entre esse momento e a cor vermelha, que lembra sangue. A construção do ritmo e das rimas do poema possibilita ao leitor perceber um pulsar, como que reproduzindo a dor que lateja no peito do eu-lírico. A repetição de termos iguais ou símiles, além de contribuir para a construção do ritmo, faz com que a frequência dos sentimentos seja reiterada, levando o leitor a, de fato, sentir esse pulsar. Percebe-se, pois, que é a dor que permite que o eu-lírico parta para um momento de lucidez. Só assumindo sua condição de sofredor, o poeta pode transitar entre uma e outra condição. Compreende-se, ademais, o porquê da ânsia pela morte vivenciada pelo eu-lírico de Branco e Vermelho: é somente por meio dela que o eu-líroco pode se libertar. A morte é a única maneira para se vencer a dor. 47 48 2 AL BERTO E O OLHAR DECADENTE: MEDO E MELANCOLIA A escrita é a minha primeira morada de silêncio a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras Doze moradas de silêncio. Salsugem. (Al Berto)7 Al Berto, pseudônimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares, é um poeta luso nascido em Coimbra, no ano de 1948 e morto em 1997, em Lisboa e era, antes de tudo, um artista plástico. A criação do pseudônimo está relacionada com a transição do pintor para o poeta e demonstra, antes mesmo de pensarmos em sua obra, um homem fragmentado. Al Berto é de uma família da alta burguesia, mas sua figura nada tem a ver com o status dos seus: desde adolescente apresentava uma atitude rebelde, demonstrando ousadia em suas indumentárias e atitudes e, posteriormente, colocando-se contra o sistema político ditatorial vigente em Portugal, vai para Bruxelas a fim de escapar da possibilidade de servir o Exército Nacional e acaba frequentando o curso de artes na École Nationale Supérieure d’Architecture et des Arts Visuels. O poeta conclui o curso e posteriormente decide abandonar a pintura e dedicar-se exclusivamente à escrita. É no ano de 1974 que Al Berto volta para Portugal e, então, escreve seu primeiro livro completamente em língua portuguesa: À procura do vento num jardim d´agosto, um livro híbrido que mescla poesia e prosa. Tatiana Pequeno da Silva (2006) salienta, em sua dissertação de mestrado, que desde muito cedo Al Berto, não sendo influenciado pela estirpe nobre, era alguém preocupado com a simplicidade. Este poeta é o responsável por introduzir em Portugal a chamada literatura queer, que foi um movimento forte nos Estados Unidos e na Europa e que aborda, direta ou indiretamente, temas como a homossexualidade e a arte erótica. Nesse momento, nas décadas de 1960 e 1970, Portugal havia passado pela Revolução dos Cravos, que trouxe ao país, depois de mais de 40 anos de ditadura, a liberdade. No campo artístico, a liberdade também era retomada, ocorrendo significativo rompimento com a tradição. 7 BERTO, Al, 1997, p. 252. 49 Concomitantemente, emergia nos Estados Unidos o movimento da contracultura, da cultura alternativa e marginal, assim como o movimento Hippie e a rebelião estudantil na França, em 1968. Tais acontecimentos influenciaram a literatura e a cultura portuguesa. Os portugueses buscavam a liberdade de expressão. Livres da censura, muitos artistas trabalhavam com novos temas e promoviam experiências com a linguagem. O que ocorreu, portanto, depois da Revolução dos Cravos, foi a abertura cultural e política e, com ela, a possibilidade de escrever sobre temas relacionados com o erotismo, inclusive com o homoerotismo. É nesse contexto que emerge Al Berto, com sua poesia de cunho homossexual, que também enfatiza temas como o uso de drogas, o ambiente de hotéis e bares noturnos, por meio de um vocabulário pertencente ao contexto do submundo cultural. Desse modo, a obra de Al Berto faz surgir uma literatura queer, relacionada à contracultura e à liberdade de expressão adquirida naquele momento, imprimindo significativas marcas na literatura portuguesa do século XX. Os ambientes undergrounds da Europa de então sugeriam antes uma posição deliberada de posturas políticas: os jovens eram a representação dos ideais democráticos, libertários, cujo símbolo havia sido o Maio de 68 em Paris. As influências de Al Berto também se erguem através de enunciações que questionam todo o aparato do status quo no qual o mundo de uma maneira geral estava inserido. O clichê sexo-drogas e rock´n roll parecia a única saída para a impossibilidade da enunciação e dos protestos. O corpo aparece nesta época como um grande manancial de liberdade, definindo a individualidade e projetando através de uma representação contínua os ideais coletivos. Talvez a grande satisfação dos regimes totalitários sofridos pelo mundo no século XX tenha sido a dissolução dos ideais coletivos em aprofundadas questões niilistas pessoais. Ou a fragmentação do sujeito, conforme os estudos pós-modernos concluíram a partir de Lyotard, Baudrillard e Stuart Hall (PEQUENO DA SILVA, 2006, p. 33). Al Berto representa o homem moderno em desconcerto e sua poesia é perpassada pelo sentimento do medo, que se manifesta, principalmente, pelos três principais receios do sujeito poético albertiano: o medo do tempo, relacionado com as preocupações acerca da finitude da existência, do “agora”, do envelhecimento ou da morte; o medo da perda, que se relaciona com o amor e com as preocupações existenciais e, ainda, o medo de permanecer, relacionado com a paixão pelas viagens (PEQUENO DA SILVA, 2006). O medo representado na poesia de Al Berto é 50 consciente. O sujeito não ignora seus sentimentos de medo e conclui que a única maneira de vencê-los é por meio da escrita. Outro traço importante da poética albertiana é a importância atribuída às imagens. Acima mencionamos que ele dedicava-se às artes plásticas. Talvez se deva a isso a grande preocupação do poeta em trabalhar a imagem em sua poesia; outro ponto importante é a reflexão sobre a morte e o caráter passageiro de todas as coisas. A poesia albertiana é composta por múltiplas temáticas e influências, além dos temas supracitados. Al Berto é o poeta da melancolia, fala sobre o espaço urbano (com especial destaque para a cidade de Lisboa), sobre o homoerotismo, a memória, as viagens e a fragmentação do eu, traço este que se pode perceber já pelo modo como ele próprio fragmentou seu nome: Alberto torna-se Al Berto. Essa fragmentação da obra albertiana é um dado