LORENA FERREIRA PORTES A crítica da crítica pós-moderna: uma análise da área do serviço social brasileiro sobre as premissas do pensamento pós-moderno à luz do referencial teórico- metodológico marxiano Relatório de Pós-doutorado realizado na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Estadual Paulista, campus Franca/SP Supervisor(a): Prof. Dr. José Fernando Siqueira da Silva Londrina 2025 Sumário 1. Apontamentos iniciais: de onde partimos e para quê? ....................................... 3 2. Plano de Atividades ....................................................................................................9 3. Situando a crítica do Serviço Social ao pensamento pós-moderno ...................... 10 3.1. A crítica pós-moderna: renúncia ao legado da Modernidade .............................17 3.2 De onde vem os termos? ......................................................................................... 18 3.3 A crítica da pós-modernidade à modernidade ..................................................... 24 3.4 No que se sustentam as críticas à modernidade? O que argumenta o pensamento pós-moderno? .......................................................................................... 29 4. O pensamento pós-moderno e seu anti-universalismo: a morte das metanarrativas .............................................................................................................. 38 5. Os pós-modernistas e a morte da classe social: a defesa das identidades e da diferença ........................................................................................................................ 53 6. Pensamento pós-moderno e neoconservadorismo: as inflexões para o debate do Serviço Social brasileiro. .............................................................................................. 69 Referências .................................................................................................................... 97 Apêndices ..................................................................................................................... 104 3 A crítica pós-moderna: uma análise da área do Serviço Social brasileiro sobre as premissas do pensamento pós-moderno à luz do referencial teórico-metodológico marxiano 1. Apontamentos iniciais: de onde partimos e para quê? O interesse pela temática do pensamento pós-moderno está vinculado à experiência profissional e acadêmica na área do Serviço Social, especificamente, sobre o debate dos fundamentos do Serviço Social com ênfase na formação profissional. A coordenação do Grupo de estudos e pesquisas sobre a formação profissional em Serviço Social no Brasil (GEPFOR) alimentou a motivação pela investigação da temática em questão e, também, trouxe elementos para adensar a compreensão sobre a teoria social crítica de Marx e os caminhos de aproximação do Serviço Social brasileiro a esse referencial teórico-metodológico. Este adensamento e construção de um processo de estudo mais acurado das obras marxianas, ocorreu por meio das disciplinas ministradas na graduação e na pós-graduação em Serviço Social. Outro ponto a destacar diz respeito às atividades desenvolvidas em um projeto de ensino que proporcionou um curso de extensão sobre os fundamentos do Serviço Social. Desde o processo de construção da pesquisa de doutorado, temos desenvolvido estudos para aprofundar a compreensão das matrizes teórico-metodológicas que serviram de suporte analítico para o Serviço Social brasileiro em relação à interpretação da realidade social e da própria profissão. No mesmo caminho, os estudos vêm evidenciando os desdobramentos das interlocuções construídas, apontando equívocos, problematizações, bem como as tarefas que são urgentes e necessárias para reafirmar a vertente teórico-metodológica marxiana como teoria social capaz de explicar as contradições sociais oriundas do modo de produção capitalista e as possibilidades revolucionárias de sua suplantação, considerando as mediações teórico-práticas a serem desenvolvidas no campo profissional. Diante de um conjunto de reflexões tecidas durante essa trajetória acadêmico- profissional, enfatizamos o posicionamento na defesa da discussão sobre os Fundamentos do Serviço Social, reafirmando sua importância na formação profissional (graduada e pós-graduada) e para o trabalho profissional. 4 A partir das Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Serviço Social, que toma como referência o currículo mínimo de 1996, o debate sobre os fundamentos do Serviço Social teve um destaque central. Não caberá, neste momento, a explicitação de todo o percurso que foi percorrido a partir da construção do currículo mínimo de 1982, nem das críticas posteriormente apresentadas. Da mesma forma, não explicitaremos sobre as contribuições que a interlocução com o referencial teórico-metodológico marxiano proporcionou para o debate profissional. No entanto, é importante salientar que quando abordamos a questão dos fundamentos da profissão, estamos diante de uma discussão que, embora esteja sustentada no projeto de formação profissional, sobretudo a partir de uma nova lógica curricular que aponta para a indissociabilidade de três núcleos de fundamentação , não há homogeneidade - seja na compreensão e defesa do debate sobre Fundamentos do Serviço Social de uma forma mais ampla, seja na interpretação e mediações construídas para a profissão tendo por alicerce teórico-analítico a teoria social crítica de Marx. O que se faz presente são tônicas que se auto complementam e reforçam os fundamentos do Serviço Social como condição elementar para compreender a realidade social nas suas múltiplas determinações, na perspectiva da totalidade social e, portanto, da explicitação das contradições sociais geradas pelo modo de produção capitalista; e, por outro lado, da interpretação da própria profissão, destacando seu caráter profissional que possui um estatuto de assalariamento e que está inserida nos processos de produção e reprodução social. Nesse sentido, o referencial teórico-metodológico capaz de explicitar essas determinações do real é a teoria social crítica de Marx. Isso posto, tem sido presente um conjunto de críticas à matriz teórico- metodológica marxiana, anunciando (como já se fez presente em outros momentos de crise capitalista) a sua morte, a morte da modernidade, a morte das classes sociais, a morte da sociedade capitalista, enfim, a morte da possibilidade de construirmos uma nova formação social, econômica e política no horizonte da emancipação humana, ou seja, o comunismo. Diante dessas considerações, o Serviço Social não está despido dos antagonismos e divergências que se colocam no debate sobre o marxismo nas ciências humanas e sociais e, sendo assim, não está imune ao espraiamento de um pensamento (neo) conservador, que nos últimos anos, vem ocupando lugar na academia, inclusive, com argumentos 5 “sedutores e progressistas”, espraiando-se em diversas áreas do conhecimento. Estamos falando do pensamento pós-moderno1. Nos últimos anos temos identificado, seja na produção do conhecimento e nos eventos da categoria profissional, determinados pronunciamentos e posicionamentos críticos em relação ao pós-modernismo, pós-modernidade, cultura pós-moderna, pensamento pós-moderno e outras denominações. A crítica é pautada de forma central nas ameaças que colocam em questão a direção social da profissão que foi construída coletivamente sobretudo na década de 1990, ou , de forma mais genérica, na direção do projeto ético político do Serviço Social. Ainda, que há um forte ataque ao marxismo ou à tradição marxista e que esta crítica tem, por finalidade estratégica, contribuir com a preservação da ordem do capital, mascarando as contradições sociais que são inerentes ao modo de produção capitalista. Embebida do discurso e da defesa do “pluralismo”, de uma perspectiva progressiva em defesa dos direitos, as tendências pós-modernas são apontadas como falseadoras do real, pois anulam a totalidade social na análise da realidade, reduzindo às questões “identitárias” o teor investigativo e das lutas sociais da atualidade. Colocam-se também, possíveis riscos ao projeto de formação profissional em Serviço Social no Brasil, denunciando essas tendências pós-modernas de estarem atreladas ao fortalecimento do neoconservadorismo. Para tanto, partimos do pressuposto que é preciso ter um conhecimento mais aprofundado e rigoroso sobre o que seria o pensamento pós-moderno, quais seus argumentos e teses centrais, quais os desdobramentos para o debate no campo do Serviço Social brasileiro e, de forma ainda mais ampla, para a construção de uma direção política das lutas sociais da classe trabalhadora. Um dos pontos centrais da crítica pós-moderna será endereçada aos ditos fracassos, insuficiências e totalitarismo da metanarrativa marxista. Como destaca Ellen Wood (1999), os pós-modernistas (considerando um amplo espectro deste pensamento), interessam-se por linguagem, cultura e discursos; em determinadas manifestações insistem na impossibilidade de qualquer política libertadora baseada em algum tipo de conhecimento ou visão “totalizantes”; a crítica e luta política contra o capitalismo é 1 Escolhemos o termo pensamento pós-moderno por entender que o mesmo é capaz de fazer referência tanto ao momento histórico de emersão da pós-modernidade (crítica e renúncia à modernidade), quanto ao movimento cultural que foi oriundo do pós-modernismo nas artes, arquitetura, pintura, música, literatura e outras áreas como respostas ao modernismo. 6 substituída pela luta política fragmentada de “políticas de identidade “ou mesmo “pessoal como político”. Wood (1990) expõe que o pós-modernismo nega a história e o universalismo, ligando-se a uma espécie de pessimismo político, pois para alguns pós- modernos “as oportunidades de oposição ao capitalismo são fortemente limitadas” (WOOD, 1999, p. 15). Para contribuir com a exposição, ainda que breve, reforçamos o que Terry Eagleton (1999) traz no seu texto “De vem os pós-modernistas?”. Se para os pós- modernistas “nenhuma forma de ação política realmente ambiciosa parece possível no momento, se a chamada micropolítica parece ser a ordem do dia, é sempre tentador converter essa necessidade em virtude”. Assim, diz o autor, seríamos consolados ao pensar que nossas limitações políticas têm como que “um fundamento objetivo na realidade, no fato de que a “totalidade” social é, de qualquer modo, apenas uma ilusão” (EAGLETON, 1999, p. 25). Tendo por base essa negação do universalismo e da totalidade social, da presença de um derrotismo político, a morte da teoria marxiana é posta exatamente em um momento histórico, econômico, político e social em que mais ela se justifica e se legitima: momento de transformações em que as contradições sociais se agudizam, em que se dão as crises econômicas, que concentra-se um enorme poderio econômico em tempos de financeirização do capital, do aviltamento da precarização das condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora, de expressão máxima da barbárie do capitalismo contemporâneo e do esgotamento de qualquer perspectiva progressista ou humanizada do capitalismo e das respostas via Estado. Diante do exposto a conclusão a que se chega (para os pós-modernistas) é a de que, na impossibilidade de superar as contradições capitalistas, de negação do sujeito revolucionário, de afirmação de novas identidades, de negação da verdade e do universalismo, da proclamação do fim da história, o que está posto é a conformação da lógica do capital, expressando um pensamento conservador. É fundamental esse conhecimento para poder adensar os elementos críticos em relação aos fundamentos deste pensamento pós-moderno e contrapor-se rigorosamente a estes, reafirmando a matriz teórico-metodológica marxiana para a interpretação da realidade, de suas contradições sociais, da explicitação das categorias econômicas que sustentam o modo de produção capitalista, visando a suplantação da ordem do capital. Sim, a teoria social marxiana é revolucionária. Desta forma, alertamos que para a crítica do pensamento pós-moderno no campo do Serviço Social é preciso levar em consideração 7 as mediações necessárias, pois não se pode confundir e querer “enquadrar” uma vertente teórica em uma profissão (estatuto de assalariamento), expressando uma orientação idealista e politicista, o que já seria, de antemão, uma postura antimarxista. É neste caminho de ampliar o conhecimento sobre o pensamento pós-moderno que desenvolvemos a pesquisa que teve por objetivos: Objetivo Geral: o Analisar quais são as críticas presentes na produção do conhecimento da área do Serviço Social brasileiro sobre o pensamento pós-moderno, na reafirmação dos fundamentos do Serviço Social alicerçados na teoria social crítica de Marx. Objetivos específicos: o Explicitar os principais pressupostos defendidos pelo pensamento pós- moderno; o Apresentar as tendências presentes na produção do conhecimento da área do Serviço Social sobre o pós-modernismo e sua influência no Serviço Social; o Apontar elementos a serem aprofundados e reafirmados na crítica marxiana sobre o pensamento pós-moderno. Para atingir as finalidades postas, construímos um percurso metodológico que explicitaremos a seguir. Inicialmente indicamos que a pesquisa é de natureza qualitativa e caracteriza-se por ser uma pesquisa bibliográfica. Na construção de uma pesquisa bibliográfica é preciso considerar alguns elementos fundamentais. Para Lima e Mioto (2007) a pesquisa bibliográfica não se confunde com revisão de literatura ou revisão bibliográfica, uma vez que a revisão de literatura é pré-requisito no desenvolvimento de toda e qualquer pesquisa. Assim, a pesquisa bibliográfica implica um “conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções, atento ao objeto de estudo, e que, por isso, não pode ser aleatório” (Lima, Mioto, 2007, p. 02). Nessa direção, ao construir uma pesquisa bibliográfica é preciso definir os critérios que balizarão a delimitação das bibliografias que serão utilizadas, caracterização do material bibliográfico, o que se buscará, que tipo de leitura será realizada. Apontam Lima e Mioto (2007, p. 38) que é possível construir um instrumento que “que permita pinçar das obras escolhidas os temas, os conceitos, as considerações relevantes para a compreensão do objeto de estudo”. 8 Diante do exposto, na pesquisa que está sendo desenvolvida, a natureza das fontes bibliográficas consideradas são: livros, dissertações e teses dos Programas de Pós- Graduação da Área do Serviço Social e artigos publicados nos periódicos específicos da Área do Serviço Social avaliados como Qualis A1 e A2 (quadriênio 2017-2020, considerando a recente alteração Qualis Capes). Para o estudo da produção do conhecimento da área do Serviço Social sobre o tema em questão recortamos as publicações de autores/as que são reconhecidos pela abordagem do tema e que possuem uma produção expressiva como José Paulo Netto, Josiane Soares Santos, Ivete Simionatto e José Fernando Siqueira da Silva. Em relação às dissertações e teses dos Programas de Pós-Graduação em Serviço Social, levantamos as produções disponibilizadas e com acesso no banco de dissertações e teses dos programas: pesquisa pelos descritores pós-modernidade, pós-modernismo, pensamento pós-moderno, fundamentos do Serviço Social e pós-modernidade, pós- modernidade e conservadorismo. Nessa primeira fase de levantamento identificamos doze (12) produções, sendo oito (8) dissertações e quatro (4) teses. Lendo as dissertações e teses, a partir do resumo, sumário e introdução, das doze (12) publicações identificadas pelos descritores, oito (8) estavam direcionadas ao tema de forma mais direta, trazendo os pressupostos da pós-modernidade e reflexões para pensar o Serviço Social. Assim, consideramos como material investigativo, cinco (5) dissertações e três (3) teses. Os mesmos descritores foram utilizados para identificar os artigos publicados nos periódicos da área avaliados como Qualis A1 e A2. A partir do levantamento realizado nos portais dos periódicos (disponibilizados online) identificamos treze (13) artigos. Considerando o critério de selecionar artigos que abordassem de forma mais enfática o tema da pesquisa, identificamos oito (8) artigos. Importante registrar que a Revista Temporalis (jan/jun 2016) teve uma edição especial para tratar da temática da formação profissional. Encontramos quatro (4) artigos que abordavam a discussão sobre o pensamento pós-moderno e o Serviço Social. Em edições posteriores (2018 e 2022) encontramos mais quatro (4) artigos. Apresentada a proposta da pesquisa partiremos para a exposição das sínteses construídas no percurso investigativo. Para tanto, organizamos o texto em dois momentos. Primeiramente, descrevemos as atividades realizadas durante o pós-doutoramento que foram previstas no Plano de Atividades apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Unesp/Franca-SP. Como segundo momento, apresentaremos os resultados e sínteses elaborados durante o desenvolvimento da pesquisa. 9 2. Plano de Atividades: Durante o período de pós-doutoramento (14/08/24 a 14/02/25), enquanto desenvolvíamos a proposta de pesquisa, participamos de atividades que agregaram conhecimento e aprimoraram o debate sobre o tema investigado. Destacamos as seguintes atividades: a) Participação nas reuniões realizadas pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Marxistas (GEPEM), coordenado pelo Professor Dr. José Fernando Siqueira da Silva. As reuniões ocorreram quinzenalmente, na quarta-feira, das 19h às 22h. Iniciamos a participação a partir do mês de agosto, contribuindo com as discussões realizadas a partir do estudo de textos e apresentação de pesquisas (mestrado/doutorado); b) Participação em eventos: a. II Encontro Internacional de Fundamentos, Formação e Trabalho Profissional e II Seminário Nacional de Fundamentos do Serviço Social – Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) – 19 e 20 de setembro de 2024, com carga horária de 20 h; b. Ouvinte da Mesa – Crise do Capital, lutas sociais e desafios para o Serviço Social, realizada em 24 de setembro de 2024 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, durante o VII Simpósio Internacional – Lutas Sociais, anticapitalismo e Serviço Social- América latina e Europa, com carga horária de 3 horas; c. VIII Congresso Paranaense de Assistentes Sociais realizado na Universidade Estadual de Londrina, de 26 a 28/09/2025; d. X seminário internacional – Teoria política do socialismo “política, filosofia e revolução 100 anos após a morte de Lenin”, realizado de 11 de novembro de 2024 a 14 de novembro de 2024. e. 43º Congresso Nacional do Andes-SN, realizado na Universidade Federal do Espírito Santo, de 27/01/2025 a 31/01/2025. c) Artigos/Trabalhos apresentados: a. Trabalho apresentado no VIII Congresso Paranaense de Assistentes Sociais: “O trabalho da(o) assistente social no atendimento regionalizado do Tribunal de Justiça do estado do Paraná: o cenário pandêmico da Covid- 10 19 e as implicações por parte do Serviço Social”. – Autoras: Flávia Laura Soares e Lorena Ferreira Portes; b. Trabalho apresentado no VIII Congresso Paranaense de Assistentes Sociais: “A crítica sobre o pensamento pós-moderno no debate do serviço social brasileiro”. Autora: Lorena Ferreira Portes; c. Trabalho apresentado no X seminário internacional – teoria política do socialismo “política, filosofia e revolução 100 anos após a morte de Lenin”: “As contradições mundiais do "modo de produção capitalista: tecnologia, imperialismo e luta de classes, de autoria de Lorena Ferreira Portes e Guilherme Bernardi. d. Realização de Palestra intitulada “O debate crítico do Serviço Social brasileiro e o pensamento pós-moderno” para estudantes do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – Unesp/Franca-SP no dia 12 de março de 2025; e. Participação externa (Suplência) na banca de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – Unesp/Franca-SP do estudante Bruno Lopes da Silva intitulada “Atribuições profissionais e Serviço Social: representações de assistentes sociais sobre as demandas das (os) sujeitas (os) atendidas (os) nos Centros de Assistência Social de Araraquara/SP, realizada no dia 06/03/2025. 3. Situando a crítica do Serviço Social ao pensamento pós-moderno Apresentaremos nossas sínteses sobre a crítica do Serviço Social brasileiro ao pensamento pós-moderno. Tendo por referência as fontes bibliográficas selecionadas (livros, dissertações, teses e periódicos da área do Serviço Social), foi possível explicitar os/as autores/as que são recorrentemente utilizados para contextualizar e situar os aspectos críticos lançados ao pensamento pós-moderno. Os/as autores/as e textos mais citados e estudados foram: José Paulo Netto, sobretudo com o texto clássico publicado na revista Serviço Socia & Social nº 50, no ano de 1996, “Transformações societárias e Serviço Social – notas para uma análise prospectiva da profissão no Brasil” e um texto mais recente publicado na revista Serviço Social & Sociedade em 2012, com o título “Crise do Capital e consequências societárias” ; Josiane Soares Santos com a publicação do livro fruto da sua dissertação de mestrado intitulado “Neoconservadorismo pós- 11 moderno e Serviço Social brasileiro (2007)”; e Ivete Simionatto, autora do texto “As expressões ideoculturais da crise capitalista na atualidade e sua influência teórico- política” publicado pelo CFESS em 2009. Para trazer uma primeira exposição sobre o que essa produção do conhecimento pontuou sobre o tema investigativo da pesquisa, acrescentamos as publicações de José Fernando Siqueira da Silva que tem se destacado no debate sobre o que denomina de “tendência teórico-prática” influenciada pela pós- modernidade (2016), “tendência teórica inspirada nas teses pós-modernas” (2018) e “tendência teórica de inspiração pós-moderna” (2022). Diante desses apontamentos o texto que produzimos está organizado em dois momentos articulados: 1) situar o ponto de partida da crítica de autores/as da área do Serviço Social sobre o pensamento pós-moderno; 2) discorrer sobre a emergência e aparecimento do pensamento pós-moderno, destacando a crítica pós-moderna ao legado da modernidade. José Paulo Netto, em um texto clássico publicado na Revista Serviço Social & Sociedade, n. 50, em 1996, situa que na entrada da década de 1990 estava ocorrendo registro da emergência da crítica formal às correntes marxistas no campo profissional. Em relação à crítica apontava que não se apresentava como antimarxista, mas uma crítica à ortodoxia (entendida pelos críticos como dogmatismo) e uma crítica às lacunas (e não aos equívocos) existentes nos seus trabalhos. A crítica à considerada ortodoxia dirigia-se no sentido de “ampliar”, “flexibilizar” e “abrir” a perspectiva teórica, “incorporando autores que sejam do gosto crítico (Habermas par uns, Foucault para a maioria) e as tendências mais prestigiadas e mais up to date nos círculos acadêmicos e na indústria cultural (os pós-modernos)” (Netto, 1996, p. 114). Sobre o segundo elemento de crítica, constatando que a elaboração dos anos oitenta do século passado não dispensou debates de um amplo rol de objetos (questão de gênero, de cultura, de minorias etc.), delegou à inépcia imanente das correntes marxistas a falta de enfrentamento de tais objetos, portanto, das lacunas presentes. Netto (1996) ainda reforçou que em pouco tempo (nos próximos quatro ou cinco anos) o debate mais determinante no campo do Serviço Social seria travado em torno da direção social estratégica que foi afirmada na transição dos anos oitenta aos noventa do século passado. Assim, enfatiza o autor: “o que estará no centro da polêmica será a seguinte questão: manter, consolidar e aprofundar a atual direção social estratégia ou contê-la, modificá-la e revertê-la” (Netto, 1996, p. 117). Nesse sentido, Netto apresenta uma prospecção sobre cinco vertentes teórico-profissionais que estariam presentes no 12 debate do Serviço Social brasileiro. Dentre elas, destacamos o que o autor chamou de vertente neoconservadora que estaria “inspirada fortemente na epistemologia pós- moderna, afinada com as tendências da moda das chamadas ciências sociais e tende seu gume crítico apontado para a revisão dos substratos das conquistas anticonservadoras dos anos oitenta” (Netto, 1996, p. 127). O autor reforça que as profundas raízes antimodernas do conservadorismo no Serviço Social brasileiro tornaram-no habilitado a capitalizar e a integrar, na sua luta contra os avanços profissionais, muito das concepções e proposições pós-modernas. Desse modo, indica que a probabilidade da aliança do Serviço Social com segmentos conservadores é fortíssima. Essa aliança no plano ídeo-político se estende ao plano da cultura profissional e, especialmente, no âmbito teórico-analítico, destaca Netto. Continua argumentando em relação a essa aliança mencionando que “a recusa pós- moderna da metanarrativa, da macroteoria, da categoria da totalidade etc., vem ao encontro do conservadorismo profissional, que privilegia o microssocial”. Ao estender- se para o plano operativo, essas implicações são evidenciadas “no privilégio da “mudança cultural”, a centralização nas singularidades, a ênfase nas especificidades, a valorização do trabalho focalizado etc.” (Netto, 1996, p. 118). Sobre o pensamento pós-moderno no Serviço Social brasileiro, em 2007, Josiane Soares Santos publica um livro - fruto de sua pesquisa de mestrado. Para explicar o que dá fundamento teórico à pós-modernidade, a autora retoma pressupostos que sustentaram a modernidade na defesa do desenvolvimento em direção à emancipação humana e à razão dialética, situando que o projeto da modernidade foi útil à burguesia “enquanto seus interesses ainda eram expressões universais” (Santos, 2007, p. 34) e que, ao se tornar classe dominante, de revolucionária passa a ser conservadora, tentando “apagar as contradições inerentes ao ideário moderno, cujo potencial dialético está prenhe de possibilidades, de movimentos e negatividade” (Santos, 2007, p. 34). Reforça que o não cumprimento das promessas da modernidade pela burguesia não deve ser apreendidas como uma crise do projeto moderno amparado pela Ilustração, mas uma crise da modernidade capitalista. Santos problematiza a ofensiva neoconservadora representada no que chamou de teoria social da pós-modernidade, apontando os rebatimentos deste neoconservadorismo na profissão de Serviço Social. A autora discorre sobre esses rebatimentos mencionado que, no Serviço Social, “as influências da crítica pós-moderna ao ideário da modernidade tendem a ecoar fertilmente: sua profissionalidade foi saturada de elementos antimodernos 13 que, do ponto de vista ídeo-teórico, se expressam no conservadorismo”. Continua a argumentação afirmando que “esse componente é o fio condutor da aproximação pós- moderna, ordenada pelo sincretismo e sua habitual ausência de reservas críticas” (Santos, 2007, p. 69). Após duas décadas da publicação do texto de Netto, José Fernando Siqueira apresenta um texto presente no livro que organizou com Teresa Gutiérrez, como expressão de quatro anos de intercâmbio e troca de experiências entre docentes pesquisadores e seus respectivos países, também por meio de bolsas de doutorado e pós- doutorado fornecias pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), envolvendo Brasil e Cuba. No seu texto, intitulado “Sociedade do capital, América Latina e Serviço Social: contribuição brasileira ao debate”, o autor retoma as discussões feita por Netto em 1996 e apresenta o que denominou de tendências teórico- práticas em curso, sem a intenção de “enquadrar grupos ou individualidades e estabelecer matrizes teóricas exatas, homogêneas ou `” tipos ideais” inexistentes, como se, entre elas, não houvesse intersecções efetivas” (Silva, 2016, p. 165). Das cinco vertentes indicadas por Netto, Silva delimita três que seriam atuantes no Serviço Social brasileiro. Recortamos uma das tendências retomadas pelo autor: o desenvolvimento e o adensamento uma vertente neoconservadora, reprodutora da epistemologia pós-moderna. Silva afirma que a força da pós-modernidade esteve presente a partir dos anos de 1970, momento de implantação do receituário ultraliberal de Hayek e Friedman. Recupera que a tradição pós-moderna propõe a “superação” das metanarrativas, das teorias macroscópicas e das grandes lutas (do perfil classista); esvazia as oposições e os conflitos nos campos político, filosófico, social e cultural-artístico” (Silva, 2016, p. 168). Afirma que há uma negação da lógica objetiva do próprio real e que, portanto, a verdade estaria nas consciências que produzem o conhecimento sobre o real. Ilustra como intelectuais estra tradição, Jean-François Lyotard e Michel Foucault, além de outros autores. Em texto mais recente, Silva juntamente com Moljo (2018) ao exporem sobre a cultura profissional recolocam as análises sobre tendências teóricas no tempo atual. Explicam que tendências teóricas expressam posições teóricas que são sustentadas em determinadas matrizes do conhecimento; no entanto, advertem que as tendências com inspiração pós-moderna, utilizando-se do vocabulário de crise de paradigmas, não reivindicam uma determinada matriz, mas a crítica às metanarrativas contidas nas 14 narrativas da modernidade. Pontuam que uma posição teórica está em articulação com posicionamento político. Partindo das reflexões críticas de Netto sobre as tendências pós-modernas, Silva e Moljo (2018) afirmam que são expressões do conservadorismo, num campo demasiadamente heterogêneo, apresentando múltiplas inclinações políticas que se distinguem entre uma teorização pós-moderna de capitulação e outra de oposição. Para Netto (2012), Do ponto de vista dos seus fundamentos teórico-epistemológicos, porém, o movimento é funcional à lógica cultural do tardo-capitalismo: é o tanto ao caucionar acriticamente as expressões imediatas da ordem burguesa contemporânea quanto ao romper com os vetores críticos da Modernidade (cuja racionalidade os pós-modernos reduzem, abstrata e arbitrariamente, à dimensão instrumental, abrindo a via aos mais diversos irracionalismos (Netto, 2012, p. 420). Na esteira desta explicitação de Netto sobre a vinculação destas tendências na defesa da ordem burguesa, ou seja, do modo de produção capitalista, Silva e Moljo (2018) enfatizam que o foco predileto da conhecida “metralhadora giratória” dos pós-modernos é Marx e sua tradição. Simionatto (2009) discorrendo sobre as dimensões teóricas, políticas e culturais do pós-modernismo explicita que a análise da realidade social pela razão dialética é desqualificada em favor das tendências fragmentárias e em detrimento dos sistemas globalizantes de explicação do mundo. Assim, “prioriza-se a esfera da cultura como chave das análises dos fenômenos contemporâneos, deslocada, no entanto, da totalidade social” (Simionatto, 2009, p. 93). Enfatiza a autora que a produção do conhecimento se centra nas “práticas discursivas”, no superdimensionamento do cotidiano, na tematização sobre os “novos sujeitos sociais”, enfeixados na ideia de um novo paradigma que toma a realidade como um “caleidoscópio de micro-objetos” incapazes de ser captados a partir das perspectivas teóricas totalizantes (Simionatto, 2009, p. 92). Acusado de calcar-se numa visão dogmática e economicista, o marxismo é posto no debate da pós-modernidade como uma grande narrativa que exclui de suas análises as dimensões subjetivas dos processos sociais. Para elucidar essa crítica ao marxismo, retomamos as discussões de Silva. Silva (2022), ao sumariar as tendências teóricas no Serviço Social na América Latina, aponta a quarta delas que se adensou no âmbito do Serviço Social em um contexto 15 de avanço do neoliberalismo – a que deriva e se inspira na diversa orientação pós- moderna. Explica o autor que apesar da heterogeneidade presente nessa tradição pós- moderna é possível destacar um elemento central: a crítica veemente direcionada à teoria social crítica de Marx. Assim, reforça Silva (2022) que o neoconservadorismo possui determinações diversas das orientações sumariadas anteriormente nas outras tendências. O que identifica esse heterogêneo grupo como subserviente, mais comportado ou mais rebelde em relação aos genuínos problemas humanos vividos na ordem do capital, é essencialmente a crítica feroz à abordagem classista (como luta coletiva e horizonte socialista) (Silva, 2022, p. 85). Explica o autor que com forte demarcação antimarxista há um esvaziamento das lutas sociais enraizadas como lutas de classes, privilegiando o cultural e o identitário que relativiza o conhecimento e suas múltiplas “verdades”, calcados nos discursos, no “lugar de fala” que é desclassicizado. Sendo assim, não se responde analiticamente e, também, politicamente, às contradições sociais oriundas do modo de produção capitalista, pois escamoteia que essas são produtos das relações de produção e reprodução capitalistas. Essa rápida exposição reforça a importância teórica e política de se debruçar aos estudos sobre o pensamento pós-moderno e, consequentemente, sobre as implicações de suas teses para o campo do Serviço Social brasileiro. Desse modo, a partir da leitura dos textos indicados, conseguimos evidenciar pontos em comum dos/as autores/as no que diz respeito às principais premissas que orientam e subsidiam o pensamento pós-moderno e quais referências teóricas e filosóficas – no campo das ciências sociais e humanas - são as mais recorrentes. Sendo assim, destacamos quatro pontos centrais que reúnem as abordagens e críticas tecidas pelos textos produzidos por assistentes sociais, docentes e pesquisadores da área. Um primeiro ponto está relacionado ao momento histórico que possibilitou a ofensiva pós-moderna e o objeto da crítica pós-moderna. Como segundo ponto, destacamos a crítica ao universalismo e negação das metanarrativas; o terceiro ponto evidenciado da crítica diz respeito à morte da classe social e a defesa das identidades e das diferenças. Como quarto ponto encontra-se a denúncia de que o pensamento pós- moderno é neoconservador e as inflexões no debate do Serviço Social brasileiro. Considerando a natureza e a finalidade do texto que se apresenta, discorreremos somente sobre o primeiro ponto que se desdobra em dois aspectos: a) o momento histórico de ascensão do pensamento pós-moderno; b) o objeto da crítica pós-moderna. 16 a) O momento histórico de ascensão do pensamento pós-moderno: Netto (1997) aponta a década de 1970 como demarcação histórica, pois apresentou grandes transformações societárias advindas da crise do capitalismo tardio (Mandel) e o exaurimento do regime de acumulação rígido para uma acumulação flexível (Harvey); pontua a translação da lógica o capital para todos os processos do espaço cultural (Jameson). Afirma que retórica pós-moderna é um sintoma das transformações em curso na sociedade tardo-burguesa, tomadas na sua epidérmica imediaticidade (Eagleton). Situa o impacto nas esquerdas da crise do socialismo real e o registro no espaço universitário da maré-montante da pós-modernidade. No texto de 2012, Netto retoma outros elementos como o contexto de revolução científica e tecnológica/informacional; as transformações no mundo do trabalho que desbordam os circuitos produtivos envolvem a totalidade social, configurando a sociedade tardo-burguesa que emerge da restauração do capital operada desde fins dos anos 1970. Destaca a financeirização do capital e as alterações profundas no plano econômico-objetivo da produção e reprodução das classes e suas relações, e no plano ideosubjetivo do reconhecimento da pertença de classe. Essas transformações foram alicerçadas por um projeto neoliberal que implementou a flexibilização, desregulamentação e privatização. Santos (2007) traz a pós-modernidade, ou melhor, a hegemonia ideocultural da pós-modernidade (Jameson), no contexto da crise do regime de acumulação capitalista pós-guerra e seu correspondente modo de regulação nos anos de 1970; momento econômico da desregulamentação das economias e dos Estados nacionais (aumento da área de aplicação de capitais especulativos); de reestruturação industrial/flexibilização (Harvey); de novos padrões de regulação (neoliberalismo, acumulação flexível); e, também, de crise do sindicalismo. Simionatto (2009) vai na mesma direção, afirmando que a emergência da pós- modernidade não é recente, mas pode ser verificada com maior intensidade a partir da metade dos anos de 1970 com a crise capitalista, provocando um novo tipo de hegemonia ideológica no estágio do capital globalizado. Em consonância com Netto, Soares e Simionatto, Silva (2016; 2022) expõe que a pós-modernidade se fez sentir a partir dos anos 1970, no mesmo momento em que o receituário neoliberal se objetivou. b) O objeto da crítica pós-moderna: Netto (1996; 2012) coloca que a pós-modernidade tem como ponto crítica a modernidade, alegando o exaurimento do seu programa. Santos (2007), na mesma 17 direção, aponta que a programática pós-moderna é apresentada como a saída para a falida era da modernidade ou crise do projeto da modernidade (Boa Ventura de Souza Santos). Simionatto (2009) explica que a pós-modernidade produz uma crítica à razão moderna e toma o marxismo como seu grande alvo. Silva (2018) coloca que o foco predileto dos pós-modernos é Marx e a sua tradição, produzindo uma crítica geral à razão, à verdade, à totalidade, à continuidade histórica, ao sujeito como capaz de atuar sobre sua história, ao progresso e a qualquer orientação emancipatória e libertadora. Uma questão a destacar é que todos os/as autores/as consideram que a pós- modernidade situa-se num campo muito heterogêneo, com diferenciadas ênfases e perspectivas. Ao denominar o que estamos chamando de pensamento pós-moderno, os/as autores/as assim se referenciam. Netto (1996) usa as expressões “ideologia pós- moderna”, “vertente teórico-profissional neoconservadora inspirada na epistemologia pós-moderna”, “movimento pós-moderno”. Santos (2007) escolhe o termo pós- modernidade para apresentar a sua emergência no contexto de grandes transformações econômicas, quanto para caracterizar uma certa “hegemonia ideocultural do capitalismo tardio”; denomina de “epistemologia pós-moderna”; também se utiliza da expressão “neoconservadorismo pós-moderno”. Silva e Moljo (2018) referenciam como “tendência pós-moderna”, Silva (2022) explica como um “discurso pós-moderno”, “tendência teórica de orientação pós-moderna” e “campo de inspiração pós-moderna”. Para dar sustentação teórica ao primeiro ponto evidenciado nos textos, os/as autores/as recorrem com frequência ao mesmo referencial bibliográfico. Salientamos os mais citados: Lyotard, Harvey, Mandel, Jameson, Santos, Rouanet, Eagleton, Habermas, Anderson e Foucault. A partir do delineamento feito, discorremos sobre o primeiro ponto comum identificado nos textos selecionados: o momento histórico que possibilitou a ofensiva pós-moderna e o objeto da sua crítica. 3.1. A crítica pós-moderna: renúncia ao legado da Modernidade “O Iluminismo está morto, o Marxismo está morto, o movimento da classe trabalhadora está morto ... e o autor também não se sente muito bem”. Neil Smith 18 A partir das leituras dos textos selecionados da área do Serviço Social para o estudo sobre o pensamento pós-moderno, não foi possível identificar com mais profundidade um aspecto que consideramos fundamental – o de caracterizar o que se compreende e se denomina por pós-modernidade e pós-modernismo. Assim, questionamos: qual a concepção sobre pós-modernidade? No que se assenta o movimento do pós-modernismo? Nos textos em questão, os/as autores/ ao se referirem ao pensamento pós- moderno, apontando alguns de seus pressupostos basilares que foram objeto de crítica, mas não aprofundam a emergência da pós-modernidade e no que se sustenta o pós- modernismo. Considerando a necessidade dessa demarcação, realizamos uma incursão em autores de vanguarda sobre o tema que trazem contribuições para que possamos alargar a compreensão sobre a questão. 3.2 De onde vem os termos? Iniciamos a exposição partindo de uma explicação feita por Eagleton (1996) no prefácio de sua obra “As ilusões do pós-modernismo” em que afirma que a palavra pós- modernismo “refere-se em geral, a uma forma de cultura contemporânea, enquanto o termo pós-modernidade alude a um período histórico específico” (Eagleton, 1996, p. 03). Embora faça essa distinção, o autor não se dedica a trazer mais elementos e opta por adotar o termo mais trivial “pós-modernismo”. Nesse sentido, considerando a imensa heterogeneidade que compõe o pós-modernismo, unifica o período histórico (pós- modernidade) e a consequente cultura dominante (pós-modernismo) no conceito de pós- modernismo. Indica que as análises que apresenta partem de premissas socialistas. Featherstone (1990) ao discorrer sobre as definições e interpretações sobre moderno e pós-moderno enfatiza que é proveitoso identificar a família de termos derivada de “pós-moderno”, podendo ser mais bem compreendida mediante a contraposição com a família de termos derivados de “moderno”. Assim, por serem termos genéricos (moderno e pós-moderno) é visível que o prefixo “pós” (post) significa algo que vem depois, uma quebra ou ruptura com o moderno, definida em contraposição a ele. Ao considerar o pós-moderno como um termo relativamente indefinido e que não estaria ainda plenamente desenvolvido capaz de ser definido em toda a sua amplitude, o autor 19 recomenda que é necessário olhar os pares mais profundamente. Nas palavras do autor “esse par sugere o sentido de época dos termos” (Featherston, 1990, p. 20). É importante mencionar a delimitação feita por Harvey (1992) de que a pós- modernidade deve ser apreendida como condição histórica, situada em um momento de crise da superacumulação capitalista iniciada no final dos anos de 1960 e que alcançou seu auge em 1973. Sobre essa delimitação abordaremos mais tarde. Ao nos referirmos à pós-modernidade/pós-modernismo precisamos considerar algo umas questões centrais. Nos valeremos de autores/as que situam o que seriam esses termos e como melhor compreendê-los. Feathersthone (1990, p. 17) alerta para o fato de que “qualquer referência ao termo “pós-modernismo” imediatamente nos expõe ao risco de sermos acusados de perpetuar uma moda intelectual passageira, fútil e sem importância”. Continua o alerta dizendo que um “dos problemas é que o termo está em moda e, ao mesmo tempo, é irritantemente difícil de definir”. Defende o autor que precisamos ter em mente uma noção mais clara do leque dos fenômenos geralmente incluídos sob o “guarda-chuva conceitual do pós-modernismo”, considerando o amplo leque de campos artísticos, intelectuais e acadêmicos nos quais o termo foi aplicado: música; artes plásticas, literatura, cinema, fotografia, arquitetura, teoria e crítica literárias, filosofia, antropologia e geografia. Embora alerte para os riscos de uma definição dos termos, Feathersthone (1990) traz indicativos importantes. Para o autor, falar em pós-modernidade é sugerir a mudança de uma época para outra ou a interrupção da modernidade, implicando na emergência de uma nova totalidade social, com seus princípios organizadores e distintos. O uso do termo pós-modernidade designa uma nova ordem social e uma mudança de época. Menciona o autor que assim como no par modernidade – pós-modernidade, o par modernismo – pós- modernismo estamos diante de um leque de significados distintos. No sentido restrito, “modernismo” indica para Feathersthone (1990, p. 24) “indica os estilos que associamos aos movimentos artísticos originados na virada do século (XIX para XX) e que até recentemente predominaram nas várias artes”. O pós-modernismo nas artes, contrapondo-se ao modernismo, tem como características centrais “a abolição da fronteira entre arte e vida cotidiana; a derrocada da distinção hierárquica entre alta- cultura e cultura de massa/popular; paródia, pastiche, ironia, diversão e a celebração da “ausência de profundidade” da cultura; o declínio da originalidade/genialidade do produtor artístico e a suposição de que a arte pode ser somente repetição” (1990, p. 25). 20 Há ainda uma utilização mais ampla dos termos “modernismo” e “pós-modernismo” que “designa complexos culturais mais abrangentes: isto é, o modernismo como a cultura da modernidade, e pós-modernismo como a cultura emergente da pós-modernidade” (1990, p. 25). Ao retomar as origens da pós-modernidade Perry Anderson (1999) produz uma obra considerável apresentando os primórdios do pós-modernismo como termo e ideia. Explica que nasceu numa periferia distante e não no centro do sistema cultural da época. Portanto, os termos pós-modernismo e modernismo não vêm da Europa ou dos Estados Unidos, mas da América hispânica. Explica que a criação do termo “modernismo” designou um movimento estético a um poeta nicaraguense que escrevia num periódico guatemalteco sobre um embate literário no Peru. Iniciado por Rubén Darío, em 1890, a corrente que levou o nome de modernismo inspirou-se em escolas francesas para fazer uma declaração da independência cultural face à Espanha, desencadeando um movimento de emancipação das próprias letras espanholas em relação ao passado. No inglês o a noção de “modernismo” só passou a ser usada de forma mais geral meio século depois. Situa historicamente a criação da ideia de um “pós-modernismo” no mundo hispânico, na década de 1930, uma geração antes do seu aparecimento na Inglaterra ou nos Estados Unidos. Quem imprimiu o termo postmodernismo foi Federico de Onís para indicar uma reação de menor importância ao modernismo. O termo ficou mais conhecido e popular na década de 1960, em Nova York, quando foi usado por jovens artistas, escritores e críticos para designar um movimento para além do alto-modernismo considerado esgotado e que era rejeitado por sua institucionalização no museu e na academia. O termo também foi utilizado amplamente na arquitetura dos anos de 1970 e 1980 e se espraiou no debate do pós-modernismo das artes. Anderson destaca que após a segunda guerra mundial, numa época de luta contra o comunismo, Charles Olson trouxe contribuições para fortalecer as críticas ao moderno, à modernidade, definindo o presente como pós-moderno ou pós-Ocidente, pós-humanista, pós-histórico. Esses termos vinham de um típico projeto poético. Anderson explica que no último dia de janeiro de 1949, após um cerco pacífico, tropas comunistas entraram em Pequim, completando a libertação do nordeste da China. Quase que imediatamente, Olson começou a compor um poema concebido como resposta à obra-prima modernista de Eliot. No ano seguinte Olson produziu o manifesto estético (Projective Verse) que teve repercussão. Como crítico feroz do humanismo racionalista, Anderson afirma que Olson podia parecer próximo de uma concepção heideggeriana do Ser como integridade 21 primordial. Segundo Anderson, o poeta via o futuro como um projeto coletivo da autodeterminação humana – o homem como “perspectiva”. Com Olson, “uma teoria estética ligou-se a uma história profética, com uma agenda que aliava a inovação poética à revolução política na tradição clássica das vanguardas europeias do período anterior à guerra” (Anderson, 1999, p. 18). No começo dos anos de 1950, a poesia de Olson tornou- se esporádica e sintética e a referência ao pós-moderno sumiu. Anderson menciona que em 1959, C. Wright Mill e Irving Howe (pertencentes à esquerda nova-iorquina) retomaram o termo pós-moderno como indicação negativa do que era menos, não mais, moderno. O sociólogo Mill usou o termo para indicar uma época na qual os ideais modernos do liberalismo e do socialismo tinham falido, quando a razão e a liberdade se separaram numa sociedade pós-moderna de impulso cego e conformidade vazia. O crítico, de modo mais brando, usou-o para descrever uma ficção contemporânea incapaz de sustentar a tensão modernista com uma sociedade circundante cujas divisões de classe tornavam-se cada vez mais amorfas com a prosperidade do pós-guerra. O emprego do termo por Howe e Mills foi invertido por Fiedler e Etzioni. A versão de Fiedler para o pós-moderno centrava-se no apelo à emancipação do vulgar e à liberação dos instintos, como um eco despolitizado da insurreição estudantil da época. Etzioni, ficou famoso por sua pregação da comunidade moral, dedicando seu livro aos seus alunos em Colúmbia e Berkeley no ano da rebelião universitária. Falava num período pós- moderno a partir do fim da guerra em que se declinava o poder das grandes empresas e das elites estabelecidas e em que a sociedade estaria vendo pela primeira vez democrática, “senhora de si mesma”. Alerta Anderson que o uso do termo pós-moderno nesse período ainda carecia de uma definição mais bem construída, pois ainda se constituía uma improvisação terminológica ou posição causal”. Continua explicando que “uma vez que o moderno – estético ou histórico – é sempre em princípio o que se deve chamar um presente absoluto,e ele acaba criando uma dificuldade peculiar para a definição de qualquer período posterior, que o converteria numa passado relativo” (Anderson, 1999, p. 20). A necessidade ocasional de um marcador de diferença social se expressa no recurso a um prefixo (pós) denotando o que vem depois e, sendo assim, já conduz a um conceito. O autor enfatiza que “o uso nesse sentido do termo “pós-moderno” sempre foi de importância circunstancial” (Anderson, 1999, p. 20). Agora, o desenvolvimento teórico, diz Anderson, 22 é outra coisa, pois a noção de pós-moderno só ganhou difusão mais ampla a partir dos anos de 1970.2 O legado de Olson ressurge em 1972, com o lançamento de uma publicação que trazia o subtítulo Revista de Literatura e Cultura Pós-modernas – o periódico boundary 2. O ensaio chave na primeira edição, de autoria de David Antin, intitulava-se “Modernismo e pós-modernismo: abordando o presente na poesia americana”. Um ano depois, boundary 2 dedicou uma publicação dupla a “Charles Olson: reminiscências, ensaios, crítica” que foi a primeira avaliação integral desde sua morte. De acordo com Anderson (1999, p. 23), “foi essa acolhida que pela primeira vez estabeleceu a ideia de pós-moderno como referência coletiva”, que sofrerá alterações no processo. Esse retorno e apelo de Olson “por uma literatura prospectiva para além do humanismo foi lembrado e reverenciado” (Anderson, 1999, p. 24). No entanto, depois de mais de vinte anos de guerra fria, a revista boundary 2 ficou restrita na análise retrospectiva do próprio editor, caracterizando-se por uma revista literária, marcada por um existencialismo originalmente sartreano e depois cada vez mais atraído por Heidegger. Um dos primeiros colaboradores da revista foi Ihab Hassan, crítico que publicou seu primeiro ensaio sobre pós-modernismo pouco antes do lançamento de boundary 2. Hassan, quando lançou a noção de pós-modernismo em 1971, incorporou no que chamava de “literatura do silêncio”, um espectro mais amplo de tendências que ou radicalizavam ou rejeitavam as principais características do modernismo, estendendo às artes visuais, à música, à tecnologia e a sensibilidade em geral. Usando a noção de Foucault de corte epistemológico, Hassan indica mudanças semelhantes na ciência e na filosofia, na esteira de Heisenberg ou Nietzche. Anderson explica que a concepção de Hassan para o pós-moderno tinha um limite embutido, uma vez que barrava a passagem ao social. Interessante mencionar que em meados da década de 1980, Hassan, ao visitar uma exposição de design no Grand Palis intitulada Estilos 85, que exibia uma vasta coleção de objetos pós-modernos, “de clipes de papel a iates”, teve certa repulsa. Ao escrever a introdução da sua coletânea de textos sobre o assunto – A guinada pós-moderna em 1987- , deixou claro que o título era também uma espécie de despedida, anunciando 2 Para buscar mais informações sobre o pós-modernismo cultural/artístico ver Perry Anderson (1999) que no seu livro “As origens da pós-modernidade” apresenta elementos fundamentais para compreender os primórdios, a cristalização, a compreensão, os efeitos posteriores e o alcance da cultura pós-moderna. David Harvey (1992), no seu livro “A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural” também apresenta uma rica análise sobre a passagem da modernidade à pós-modernidade na cultura contemporânea”. 23 que o próprio pós-moderno mudou e deu uma guinada errada; para ele o pós-modernismo foi encurralado entre a truculência ideológica e a ineficácia desmistificadora, ficando preso no seu próprio Kitsch, tornando-se uma espécie de “pilhéria eclética, refinada lascívia de nossos prazeres roubados e descrenças fúteis” (Hassan, 1987, citado por Anderson, 1999, p. 28). O motivo da desilusão de Hassan com o pós-moderno serviu de inspiração da mais destacada teorização do pós-modernismo que veio depois da sua. Conta Anderson (1999 p. 28) que “ironicamente, foi a arte à qual deu menos atenção que afinal projetou o termo para o domínio público em geral”. Robert Venturi e seus colegas Denise Scott Brown e Steven Izenour publicaram, em 1972, o manifesto arquitetônico da década, Learning from Las Vegas. Foi um ataque ao modernismo e indicou uma renovação da histórica ligação entre arquitetura e pintura, artes gráficas e escultura, ou seja, um primado exuberante do símbolo sobre o espaço. Harvey (1992) aponta que o centro dessa obra, como diz seu título, era “insistir que os arquitetos tinham mais a aprender com o estudo de paisagens populares e comerciais do que com a busca de ideais abstratos, teóricos e doutrinários”. Assim, era hora “diziam os autores, de construir para as pessoas, e não para o Homem” (Harvey, 1992, p. 45) O lançamento em 1977 de “Language of Post-modern Architecture” de Charles Jenks, foi demarcador. Ele datou o final simbólico do modernismo e a passagem para o pós-modernismo em 15 de julho de 1972 às 15h32 , quando o projeto de desenvolvimento da habitação Pruitt-Igoe, de St Louis foi dinamitado como um ambiente inabitável para as pessoas de baixa renda que abrigava. As ideias do “alto modernismo” cederam cada vez mais espaço à irrupção de diversas possibilidades. Como pontua Harvey (1992, p. 45), “as torres de vidro, os blocos de concreto e as lajes de aço pareciam destinadas a dominar todas as paisagens urbanas de Paria a Tóquio e do Rio a Montreal, denunciando todo ornamento como crime, todo individualismo como sentimentalismo e todo romantismo como kitsch foram progressivamente sendo substituídos por blocos-torre ornamentados, praças medievais e vilas de pesca de imitação, habitações projetadas para as necessidades dos habitantes, fábricas e armazéns renovados e paisagens de toda espécie reabilitadas, tudo em nome da defesa de um ambiente urbano mais satisfatório”. Buscamos trazer, mesmo que superficialmente, as origens do termos pós-moderno e pós-modernismo no campo estético para situar o movimento de crítica à modernidade e ao modernismo que se espraiará em outras áreas. Sem a pretensão de se debruçar sobre as análises críticas do movimento estético do pós-modernismo, a intenção foi meramente 24 contextualizar o seu ponto de partida em que se desenvolverão múltiplas tendências. Nesse sentido, continuaremos a dissertar sobre o tema envolvendo outras áreas de sua manifestação. 3.3 A crítica da pós-modernidade à modernidade Na direção de aprofundar o conhecimento sobre os termos é legítimo reconhecer a afirmação elementar entre os estudiosos e teóricos que se debruçaram a pesquisar e produzir conhecimento sobre a questão da pós-modernidade, qual seja: a pós- modernidade consiste em escancarar uma crítica à modernidade. As críticas são construídas por diferentes ênfases, sendo reproduzida como apresenta Rouanet (1993) com as afirmações de que “a modernidade está em crise”, que está chegando a um encerramento, que há “um descrédito da modernidade” que resulta em um fracasso político (Eagleton, 1998), de que a “pós-modernidade apresenta-se deliberadamente sob os traços de uma anti-modernidade (crítico da Frankfurter Allgemeine Zeitung, citado por Habermas, 1980, p. 05), que o termo pós-moderno “situa o movimento em uma posição histórica e filosófica contrária ao modernismo” (Hicks, 2011) ou partilhando de outros enfoques como coloca Guiddens (1991) de que estaria ocorrendo “descontinuidades da modernidade”, ou ainda na exposição de Santos (1999) de que nos encontramos numa fase de “transição paradigmática da modernidade “expressando-se duplamente; por um lado denunciando que as promessas da modernidade “não foram nem poder sem cumpridas” e, de outro, “depois de dois séculos de promiscuidade entre modernidade e capitalismo, muitas promessas emancipatórias não podem ser cumpridas em termos modernos nem segundo os mecanismos desenhados pela modernidade (Santos, 1999, p. 35). Destacamos ainda o posicionamento de Habermas (1980) de que a modernidade é um projeto inacabado. Com esses rápidos apontamentos organizaremos a exposição sobre a proposta investigativa buscando cumprir duas tarefas. A primeira consiste em trazer as principais características da Modernidade para, em seguida, abordar as da Pós-Modernidade. Pois bem, no que consiste a Modernidade? Em termos gerais, enquanto momento datado historicamente, a modernidade surgiu com o Renascimento e foi definida em relação à Antiguidade, como no debate entre os Antigos e os Modernos. Do ponto de vista da teoria sociológica alemã do final do século XIX e do começo do século XX, a modernidade contrapõe-se à ordem tradicional, 25 implicando a progressiva racionalização e diferenciação econômica e administrativa do mundo social. Tem-se o nascimento do Estado Moderno, capitalista-industrial (Featherstone, 1990). Compreender a Modernidade é reconhecer que esse período histórico tem como demarcador geográfico o Ocidente e é fruto da Ilustração europeia “a partir de motivos da cultura judeo-clássica-cristã e aprofundando nos dois séculos subsequentes por movimentos como o liberal-capitalismo e o socialismo” (Rouanet, 1993, p. 09). Importante reforçar, a partir das elucidações feitas por Roaunet (1993), que a Ilustração não se confunde com o Iluminismo, pois a primeira diz respeito a um determinado momento na história cultural do Ocidente e, o segundo tem uma existência conceitual pois é a destilação teórica da corrente de ideias que floresceu no século XVIII em torno de filósofos enciclopedistas como Voltaire e Diderot, e de herdeiros dessa corrente, como o liberalismo e o socialismo. Ao selecionar a Ilustração, o liberalismo e o socialismo como as constelações históricas que decantam a ideia iluminista, não significam que essas três correntes esgotem o conteúdo do Iluminismo. A Antiguidade clássica, o cristianismo, a Renascença e a Reforma foram forças poderosíssimas, mas de certo modo todas confluíram para a Ilustração e já estão contidas nela. A modernidade constitui-se de uma parteira extraordinária: neste período histórico deu-se o desenvolvimento e amadurecimento de um sistema filosófico (até o século XVIII apenas a filosofia fornecia explicações sobre o mundo) que caminhou pelos debates e construções de diferentes tendências filosóficas desde os racionalistas e empiristas (Descartes, Locke, Bacon), pelo criticismo kantiano, pelas oposição entre idealistas e materialistas, com destaque à filosofia especulativa de Hegel e pelas críticas ao modo de produção capitalista tecidas por Marx e Engels; pela filosofia positiva de Comte, pelas correntes do século XIX que tiveram nas figuras de Schopehauer, Nietzsche e Kierkegaard seus expoentes. No século XX, como expôs Lara (1986) a filosofia vai ressentir-se dos traumas gerados pelas feridas e as limitações da ordem burguês-liberal que proporcionaram descrédito aos valores apregoados pela Revolução de 1789 e, sobretudo, desacreditou o ideal humanista. O humanismo, com seu ideal de racionalidade e liberdade, entrou em crise, pois as propagandas em defesa de uma visão prometeica do homem, da crença no progresso infinito, da exaltação do homem e a promessa de reconciliação universal dos homens para além das divisões irracionais, esvaem-se. Anuncia-se a morte do humanismo. Algumas correntes, como o neopositivismo e o estruturalismo, cujas raízes 26 estão no século XIX e mesmo antes, vão decretar a morte do homem. Outras como a fenomenologia, o existencialismo e o marxismo farão um esforço hercúleo para pensar o ideal humanista, colocando-o em novas bases. Ainda nesse cenário, importante reforçar que se a modernidade inaugurou a ciência moderna em que será notória a imanência da razão, também se assistirá um momento a-razão/antirazão/irracionalismo. A razão iluminista foi o guia da modernidade que teve como um de seus pontos sustentadores a ideia do progresso humano. O projeto da modernidade que entrou em foco durante o século XVIII, equivaleu a um extraordinário esforço intelectual dos pensadores iluministas no desenvolvimento da ciência em favor do progresso humano. Pontua Harvey (1992) que o “desenvolvimento de formar racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da nossa própria natureza humana” (Harvey, 1992, p. 23). Movido pela ideia do progresso, o projeto da modernidade foi “um movimento secular que procurou desmistificar e dessacralizar o conhecimento e a organização social para libertar os seres humanos de seus grilhões” (Harvey, 1992, p. 23). Sendo assim, a modernidade “é o produto dos processos globais de racionalização, que se deram na esfera econômica, política e cultural” (Rouanet, 1993, p. 120). Em relação à modernidade econômica, o autor destaca que a Ilustração ajudou a criar uma mentalidade favorável ao comércio, ao ganho e ao trabalho, reforçando a ética econômica gerada pela Reforma protestante. A Ilustração concorreu de modo decisivo para lançar as bases da nova fase do capitalismo – o capitalismo industrial. O papel da Ilustração é reforçado por Rouanet (1993) ao mencionar que ela minou as relações de produção do Ancien Régime, contribuindo para a criação de uma força de trabalho livre, ajudando a eliminar os últimos vestígios da servidão que ainda existiam na Europa, principalmente os servi glebae vinculados a mosteiros e ordens religiosas, facilitando a formação de mão-de-obra para a produção fabril. Sobre os aspectos econômicos Santos (1999) expõe que o projeto sócio-cultural da modernidade constituiu-se entre o século XVI e finais do século XVIII e que só a partir daí se inicia verdadeiramente o teste do seu cumprimento histórico e esse momento coincide com a emergência do capitalismo enquanto modo de produção dominante nos países da Europa que integraram a primeira grande onda de industrialização. Assim, “o trajecto histórico da modernidade está intrinsicamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo nos países centrais” (Santos, 1999, p. 79). 27 É inconteste reconhecer os avanços científicos e tecnológicos que a modernidade- no plano econômico, com o desenvolvimento capitalista -, trouxe para a sociedade a partir do século XVIII, mas estendendo-se dos dois séculos posteriores. Marx e Engels reconheciam esses avanços, não numa perspectiva de um elogio de redenção, de recepção acrítica dos desdobramentos nefastos que acabaram sendo proporcionados, mas enfatizando o papel revolucionário que a burguesia desempenhou na história. No Manifesto do Partido Comunista, elaborado pouco antes da eclosão das revoluções de 1848, um conjunto de passagens ilustram esse papel revolucionário da burguesia. “A burguesia, onde conquistou o poder, destruiu as relações feudais, patriarcais, idílicas”; “afogou a sagrada reverência da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia sentimental do burguês filisteu nas águas geladas do cálculo egoísta”; “foi ela quem primeiro provou o que a atividade dos homens pode realizar: criou maravilhas maiores que as pirâmides egípcias, os aquedutos romanos e as catedrais góticas”; “a burguesia, pela exploração do mercado mundial, conferiu uma forma cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países”. Marx, filho da Modernidade e do Iluminismo, foi um grande crítico do momento histórico-social em que viveu e elaborou sua teoria social. Ao passo que reconhece os avanços da burguesia no enfrentamento do poderio feudal e religioso, nas mudanças no campo da produção social que alavancou o desenvolvimento das forças produtivas, dedicou-se, inexoravelmente, a compreender a lei que rege o modo de produção capitalista, ou seja, a lei econômica da sociedade burguesa, seus alicerces estruturadores, como o mais-valor, o trabalho assalariado e a acumulação contínua e ampliada do capital. Partindo da premissa de que as lutas de classes movem a história e explicitam as contradições sociais inerentes a essa determinada formação econômica e social, Marx e Engels, ainda no Manifesto, alertam que “as armas que a burguesia empregou para abater o feudalismo volta-se hoje contra a própria burguesia (1998, p. 12). O caráter revolucionário e, portanto, o sujeito revolucionário (proletariado) está elucidado, a ideia do comunismo como suplantação do capitalismo e, portanto, como condição histórica e econômica (condição como possibilidade concreta e não como realização etapista e historicista) está posta. Ao escancarar, num processo científico longo e obstinado agregado à sua inserção política nas lutas sociais dos proletários e demais trabalhadores, Marx não só explica as leis tendenciais que regem o modo de produção capitalista, mas nos oferece as possiblidades de sua destruição e superação tendo por horizonte emancipatório a construção do comunismo. Sobre as contribuições da teoria social crítica 28 de Marx e sua reafirmação em contraposição ao pensamento pós-moderno, nos deteremos no decorrer do texto que se apresenta. Quanto à modernização política, tomando por referência Max Weber, Rouanet (1993) explica que os filósofos foram ativos em cada uma das dimensões da racionalização que exprimiu uma das marcas da modernidade: a racionalização do Estado para eliminação da anarquia feudal; racionalização da justiça; a racionalização das leis; racionalização do sistema fiscal; racionalização administrativa. Como pontua Rouanet, baseando-se em Weber, o programa da modernização política da Ilustração tem uma fórmula simples: dominação legal. Ocorre um distanciamento da dominação tradicional do Estado absolutista, legitimando a crença em regras normativas e o direito dos governantes de exercerem sua autoridade em função dessas regras. A modernização cultural impulsionada pela Ilustração foi marcada por sua contribuição ao processo de desencantamento (Entzauberung) como discorreu Max Weber retomado por Rouanet (1993). O elemento central da modernização cultural foi a crítica da religião. Era preciso “limpar o terreno até então ocupado pelo fanatismo e pela superstição” na criação de um mundo humano, regido pela razão. A batalha da Ilustração era “derrubar os altares e instalar no mundo o reino da razão. Era um mundo sem mitos, sem bruxas e sem fantasmas: um mundo desencantado, no sentido weberiano” (Rouanet, 1993, p. 132). A campanha antirreligiosa tem um correlato positivo, importante para o progresso e institucionalização da ciência quanto o processo de dessacralização: a campanha da ciência. No seu texto “O discurso filosófico da modernidade” (2000), resgatando a concepção de modernidade para Hegel, Habermas expõe que a modernidade - retomando os acontecimentos-chave históricos da Reforma, Iluminismo e Revolução Francesa -, estabeleceu o princípio da subjetividade. Com Lutero, a fé religiosa tornou-se reflexiva; contra a fé na autoridade na predicação e da tradição, o protestantismo afirma a soberania do sujeito que faz valer seu discernimento. Depois a Declaração dos Direitos do Homem e o Código Napoleônico realçaram o princípio da liberdade da vontade como o fundamento substancial do Estado, em detrimento do direito histórico. Além disso, continua Habermas, o princípio da subjetividade determina as manifestações da cultura moderna. Portanto, na modernidade, “a vida religiosa, o estado e a sociedade, assim como a ciência, a moral e a arte transformam-se igualmente em personificações do princípio da subjetividade” (Habermas, 2000, p. 28). 29 Primeiramente, isso vale para a ciência objetivante que, ao mesmo tempo, desencanta a natureza e liberta o sujeito cognoscente; os conceitos morais dos tempos modernos são talhados para reconhecer a liberdade subjetiva dos indivíduos. Fundam-se, por um lado, no direito do indivíduo de discernir como válido o que ele deve fazer; por outro, fundam-se na exigência de que cada um persiga os fins do bem-estar particular em consonância com o bem-estar de todos os outros. A arte moderna revela a sua essência ao romantismo; a forma e o conteúdo da arte romântica são determinados pela absoluta interioridade (Habermas, 2000). Rapidamente abordadas algumas características da Modernidade passaremos a compreender as críticas que são elaboradas e constituem o heterogêneo pensamento pós- moderno. 3.4 No que se sustentam as críticas à modernidade? O que argumenta o pensamento pós-moderno? Santos (1999) define a Modernidade, ou melhor, o paradigma cultural da Modernidade, como constituído antes de o modo de produção capitalista se ter tornado dominante e extinguir-se-á antes deste último deixar de ser dominante. Será superado uma vez que “a modernidade cumpriu algumas das suas promessas e, de resto, cumpriu- as em excesso”. Sendo assim, “é obsolescência na medida em que a modernidade está irremediavelmente incapacitada de cumprir outras de suas promessas”. O que Santos procura justificar é que o projeto sociocultural da modernidade é muito rico, capaz de infinitas possibilidades e, sendo assim, muito complexo. É um projeto ambicioso e revolucionário, pois apresenta possibilidades infinitas que contemplam tanto o excesso das promessas como o défice do seu cumprimento. O excesso estaria na aspiração em buscar conciliar valores tendencialmente contraditórios, como da justiça e da autonomia, da solidariedade e da identidade, da igualdade, da subjetividade e da liberdade (o pilar da emancipação) com a lógica da maximização do Estado, do mercado ou da comunidade (o pilar da regulação). Santos (1999) argumenta que o pilar da emancipação, trazendo aspectos no domínio moral-prático, não foi efetivado uma vez que o chamado socialismo científico foi marginalizado; embora reconheça as potencialidades da Revolução Russa e dos movimentos vanguardistas no campo estético-expressivo (futurismo, surrealismo, dadaísmo, construtivismo russo), afirma que estes movimentos ou foram liquidados pelo fascismo e pelo estalinismo ou foram absorvidos no cânone modernista. O autor reforça 30 seus argumentos mencionado que o princípio do mercado adquiriu pujança sem precedentes, extravasando o econômico e procurando colonizar tanto o princípio do Estado, como princípio da comunidade (um processo levado ao extremo pelo credo neoliberal). Ilustra a pujança com a propulsão das empresas multinacionais que neutralizaram a capacidade de regulação nacional da economia; os mecanismos de regulação dos conflitos entre capital e trabalho, a relação salarial torna-se mais precária; a flexibilização e automatização dos processos produtivos permitem a industrialização dependente do terceiro mundo; um certo abandono da produção em massa com o objetivo de promover a particularização dos gostos e o aumento das escolhas; a mercadorização e a digitalização da informação abrem perspectivas quase infinitas à reprodução alargada do capital. Na direção de apontar os pontos críticos sobre a modernidade e suas promessas não cumpridas, destacamos as contribuições de David Harvey. Na sua obra “Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre a origem da mudança cultural” de 1992, o autor explora, em um primeiro momento, os elementos primordiais para compreender modernidade e modernismo e a passagem da modernidade à pós-modernidade. Ao contextualizar o século XX, apresenta, por um lado, o entusiasmo e otimismo do projeto modernizador que gerou expectativa em relação à ciência, ao progresso, à justiça e até a felicidade dos seres humanos. No entanto, esse otimismo viu-se abalado no século XX com “seus campos de concentração esquadrões da morte, seu militarismo e duas grandes guerras mundiais, sua ameaça de aniquilação nuclear e sua experiência de Hiroshima e Nagasaki” proporcionado a suspeita de que “o projeto do Iluminismo estava fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipação humana num sistema de opressão universal em nome da libertação humana” (Harvey, 1992, p. 23). Sendo assim, situa as críticas feitas por Horkheimer e Adorno em The dialectic of Enlightenment (1972) sob as sombras da Alemanha de Hitler e da Rússia de Stalin, que alegavam que a lógica oculta por trás da racionalidade iluminista, estaria uma lógica de dominação e de opressão. Como resposta a essa situação, diz Harvey que existem aqueles que, como Habermas, continuem a apoiar o projeto iluminista com forte dose de ceticismo quanto às suas metas e com certo pessimismo no tocante à possibilidade de realizar tal projeto nas condições econômicas e políticas contemporâneas e há os que – no cerne do pensamento filosófico pós-modernistas -, que insistem que devemos, em nome da emancipação humana, abandonar por inteiro o projeto do Iluminismo. 31 Buscando explicar a crise da civilização moderna, contrapondo-se ao argumento de que a modernidade estaria em crise, mas o que existe é uma crise de civilização, Rouanet (1993) discorre sobre os ingredientes principais do projeto civilizatório da modernidade: os conceitos de universalidade, individualidade e autonomia. Explica que neste projeto civilizatório A universalidade significa que ele visa todos os seres humanos, independentemente das barreiras nacionais, étnicas ou culturais. A individualidade significa que esses seres humanos são considerados como pessoas concretas e não como integrantes de uma coletividade que atribui valor ético positivo à crescente individualização. A autonomia significa que esses seres humanos individualizados são aptos a pensarem por si mesmos, sem a tutela da religião ou da ideologia, a agirem o espaço público e a adquirirem pelo seu trabalho os bens e serviços necessários à sobrevivência material (Rouanet, 1993, p. 09). Mas o que aconteceu com o projeto civilizatório da modernidade? Por que os conceitos de universalidade, individualidade e autonomia estão naufragando? Para o autor, o universalismo está sendo sabotado por uma proliferação de particularismos- nacionais, culturais, raciais, religiosos. O racismo e a xenofobia saem do esgoto e ganham eleições. A individualidade submerge cada vez mais no anominato do conformismo e da sociedade do consumo. A autonomia intelectual está sendo explodida pelo reencantamento do mundo e a razão secular da Ilustração é outro valor em baixa; a autonomia política é negada por ditaduras ou transformada numa coreografia eleitoral encenada de quatro em quatro anos; a autonomia econômica é uma mentira sádica para os três terços do gênero humano que vivem em condições de pobreza absoluta. Na seara dos ceticismos, das mortes anunciadas (Ilustração, razão, homem, modernidade), da negação e repúdio da totalidade social e das metanarrativas, de um novo mundo, de uma nova sociedade (pós-industrial), figura-se a pós-modernidade/pós- modernismo. Para Harvey (1992), “o “pós-modernismo” tornou-se um conceito com o qual lidar, e um tal campo de opiniões e forças políticas conflitantes que já não pode ser ignorado”. Referencia-se em Huyssens (1984) que declarou que “o que aparece num nível como o último modismo, promoção publicitária e espetáculo vazio é parte de uma lenta transformação cultural emergente nas sociedades ocidentais, uma mudança da sensibilidade para a qual o termo “pós-moderno” é na verdade, ao menos por agora, totalmente adequado” (Huyssens, 1984, citado por Harvey, 1992, p. 45). O fato é que o pensamento pós-moderno, nas mais diversificadas manifestações, não se configura como um mero modismo que está prestes a desaparecer a qualquer 32 momento. Ao contrário, vem ganhando espaço e seduzindo diferentes ramos da ciência, das áreas do conhecimento, espraiando-se na academia, imprimindo-se nos movimentos sociais e afetando, significativamente, os rumos da luta política e da construção de um projeto de sociedade de cariz emancipador. Ignorar ou desprezar as críticas construídas pelo pensamento pós-moderno é uma atitude anticientífica e atrofiante, no sentido de não enfrentar os nós-críticos que se colocam na atualidade em que a acumulação do capital segue sua rota expansionista, o construto ideológico e político para a sua sustentação vai de “vento em poupa”, negando qualquer possibilidade de superação do modo de produção capitalista e, desta forma, colocando a impossibilidade de reivindicar e lutar por uma nova ordem societária- o comunismo -, por meio de uma revolução social protagonizada pela classe que é explorada de forma aviltante. A própria esquerda vem sendo arrebatada por esse discurso atrofiante e derrotista. Eagleton (1998) chama atenção para essa situação, pois “nos vemos confrontados com a situação de certa forma absurda de uma esquerda cultural que mantém um silêncio indiferente ou embaraçado diante daquele poder que é a cor invisível da vida cotidiana em sim, que terminada a nossa existência – às vezes literalmente – em quase todos os cantos da terra, que decide em grande parte o destino das nações e os conflitos cruentos entre elas” (Eagleton, 1998, p. 21). Reforça Eagleton ao criticar a esquerda cultural que “é como se pudéssemos questionar quase todas as outras formas de sistema opressor – estado, mídia, patriarcado, racismo, neocolonialismo -, menos a que com tanta frequência define a agenda a longo prazo para todas a essas questões ou, no mínimo, está envolvida com elas até a alma” (Eagleton, 1998, p. 22). Qual seria essa forma? O poder do capital. Assim, “o poder do capital mostra-se agora de uma familiaridade tão desencorajante, de uma onipotência e onipresença tão elevadas, que mesmo grandes setores da esquerda lograram naturalizá-lo, aceitando-o como uma estrutura de tal modo inexorável, que é como eles mal tivessem peito para tocar no assunto” (Eagleton, 1998, p. 22) Se não é possível suplantar o poder do capital, o caminho a ser percorrido é o de buscar amenizar seus efeitos negativos e humanizá-lo, de construir respostas localistas, fragmentadas e potencializadoras de mudanças possíveis lideradas pelas coletividades, de disputar o Estado neoliberal e penal, mas subsumindo sua natureza classista. Que absurdo equívoco. Esse equívoco precisa ser situado no conjunto das transformações na economia política do capitalismo no final do século XX. A década de 60 do século passado exprimiu 33 o exaurimento do surto de grande prosperidade econômica, gerando uma imensa estagnação econômica. A idade áurea do capitalismo, seus “anos dourados”, mostra sinais de falência, sobretudo com a crise do capitalismo no final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970. Autores marxistas como David Harvey e Fredric Jameson situam a pós- modernidade como uma situação histórica, caracterizando uma fase do capitalismo tardio (Mandel), uma fase social e cultural. Harvey (1992) pontua que todos os grandes eventos ocorridos desde a primeira recessão econômica do pós-guerra, em 1973, devem sem entendidos de maneira que não perca de vista o fato de as regras básicas do modo de produção capitalista de produção continuarem a operar como forças plasmadoras invariantes do desenvolvimento histórico- geográfico. A transição no regime de acumulação e no modo de regulamentação social e político (ao longo do período de expansão de pós-guerra que se estendeu de 1945 a 1973) teve como base um conjunto de práticas de controle de trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico, configurando o sistema fordista- keynesiano. O colapso desse sistema a partir de 1973 iniciou “um período de rápida mudança, de fluidez e de incerteza”. Do fordismo passa-se para o regime da acumulação flexível. Destaca Harvey (1992) que o período pós-guerra viu a ascensão de uma série de indústrias baseadas em tecnologias amadurecidas no período entre-guerras e levadas a novos extremos de racionalização na Segunda Guerra Mundial. No entanto, o crescimento fenomenal da expansão de pós-guerra dependeu de uma série de compromissos e reposicionamentos por parte dos principais atores dos processos de desenvolvimento capitalista. O Estado teve de assumir novos papéis keynesianos e construir novos poderes institucionais; o capital corporativo teve de ajustas as velas em certos aspectos para seguir com mais suavidade a trilha da lucratividade segura; e o trabalho organizado teve de assumir novos papéis e funções relativos ao desempeno nos mercados de trabalho e nos processos de produção. Também situa a derrota dos movimentos operários radicais que ressurgiram nos período pós-guerra imediato como condição para o preparo do terreno político para os tipos de controle do trabalho e de compromisso que possibilitaram o fordismo. O Estado teve que se esforçar para controlar ciclos econômicos com uma combinação apropriada de políticas fiscais e monetárias no período do pós-guerra. Essas políticas eram dirigidas para as áreas de investimento público vitais para o crescimento da produção e do consumo de massa e que também garantiam um emprego relativamente pleno. O fordismo do pós-guerra também teve muito de questão internacional, 34 dependendo de uma grande ampliação dos fluxos de comércio mundial e de investimento internacional. A expansão internacional do fordismo ocorreu numa conjunta particular de regulamentação política-econômica mundial e uma configuração geopolítica em que os Estados Unidos dominavam por meio de um sistema bem distinto de alianças militares e relações de poder. Harvey (1992) pontua que o sistema fordista também provocou desigualdades que se expressarão em sérias tensões sociais e fortes movimentos sociais por parte dos “excluídos” que denunciam a maneira pela qual a raça, o gênero e a origem étnica costumavam determinar quem tinha ou não acesso ao emprego privilegiado. A insatisfação (o autor se refere à insatisfação dos países chamados então de Terceiro Mundo) se revelava na crítica do processo de modernização que prometia “desenvolvimento, emancipação das necessidades e plena integração ao fordismo”, mas que na prática, “promovia a destruição de culturas locais, muita opressão e numerosas formas de domínio capitalista em troca de ganhos bastante pífios em termos de padrão de vida e de serviços públicos, a não ser para uma elite nacional muito afluente que decidira colaborar ativamente com o capital internacional” (Harvey, 1992, p. 133). Sendo assim, a hegemonia geopolítica dos Estados Unidos estava ameaçada. Entretanto, apesar dos descontentamentos e das tensões manifestas, os padrões materiais de vida para a massa da população nos países capitalistas avançados se elevaram e um ambiente relativamente estável para os lucros corporativos prevalecia, destaca o autor. Será somente quando a aguda recessão de 1973 explodiu é que esse quadro “estável” se abala, gerando um processo de transição do fordismo para o regime de acumulação flexível. Com a expansão de pós-guerra e a política monetária adotada, o mundo capitalista estava sendo afogado pelo excesso de fundos e, com as poucas áreas produtivas reduzidas para investimento, esse excesso significava uma forte inflação. A profunda recessão de 1973, exacerbada pelo choque do petróleo, retirou o mundo capitalista da estagflação (estagnação da produção de bens e a alta inflação de preços) e pôs em movimento um conjunto de processos que solaparam o compromisso fordista. Como consequência, as décadas de 1970 e 1980 foram um conturbado período de reestruturação economia e de reajustamento social e político. Explica Harvey que a acumulação flexível é marcada por um confronto direto coma rigidez do fordismo, pois se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. A acumulação flexível, explica Harvey, envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando um 35 vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como conjunto industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas. Nesse sentido, ocorre que a flexibilidade e mobilidade gerados permitem que os empregadores exerçam pressões mais fortes de controle do trabalho sobre uma força de trabalho que vivencia a deflação, o desemprego estrutural, a rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais e o retrocesso do poder sindical que foi uma das colunas políticas do regime fordista. A acumulação flexível permitiu uma aceleração do ritmo da inovação do produto, ao lado da exploração de nichos de mercado altamente especializados e de pequena escala. O tempo de giro foi reduzido de modo dramático pelo uso de novas tecnologias produtivas e de novas formas organizacionais que reduziram o tempo de giro no consumo3. Não é nosso objetivo ampliar a discussão sobre a acumulação flexível e suas principais características, mas frisar que será neste processo de transformações econômicas que se alavancará os ideias pós-modernos e seu conjunto múltiplo de premissas. Não é à toa que será nos anos de 1960/1970 que uma vasta produção teórica/acadêmica será lançada e desenvolvida por diferentes autores/as e áreas do conhecimento científico. Produções que irão propagar o nascimento de uma nova era, de uma nova sociedade – a sociedade pós-industrial. As obras “A sociedade pós-industrial” de Alain Touraine publicada em 1969 e “A condição pós-moderna” de Jean-François Lyotard de 19794 destacam-se nessa direção. Ao publicar “A sociedade pós-industrial”, Touraine sustentou que o contexto dos anos 1960-1970 foi marcado por uma verdadeira mutação societal, ou seja, uma sociedade pós-industrial. Se no século XIX a contradição industrial entre capital e trabalho era presente, fundando os conflitos de classes como mecanismos de mudanças sociais e desenvolvimentos históricos, na segunda metade do século XX essa centralidade do fator econômico-produtivo já não existiria, tornando-se ausente o conflito de classes e sua capacidade de direcionar o dever histórico. Desta forma, conhecimento e informação, e 3 Explica Harvey que enquanto no fordismo a meia vida de um produto era de cinco a sete anos, com a acumulação flexível diminui u em mais da metade em certos setores, como têxtil e o vestuário. No setor das chamadas indústrias de “thoughtware” (por exemplo, videogames e programas de computador), a meia vida caiu para menos de dezoito anos. 4 Fazendo menção diretamente às palavras do autor, a obra constituiu-se em “um texto de circunstância. É uma exposição sobre o saber nas sociedades mais desenvolvidas, proposto ao Conselho das Universidades junto ao governo de Quebec, a pedido de seu presidente”. 36 não mais produção e distribuição da riqueza, seriam os elementos centrais. Não ocorreu o desaparecimento da indústria e nem dos conflitos de classes, apenas perdem a centralidade. Deslocam-se os conflitos entre as classes e planteia-se os conflitos culturais. Para Touraine, a sociedade industrial que havia gestado o movimento operário encontrava-se em declínio, emergindo uma outra sociedade denominada de programada ou pós-industrial. Enquanto a sociedade industrial havia atribuído um lugar central ao maquinismo e ao trabalho, a sociedade pós- -industrial era dominada pelos grandes aparelhos de produção do conhecimento e pela indústria cultural. Retira-se do centro do conflito a esfera produtiva, das contradições entre capital e trabalho, e a substitui para as dimensões culturais e simbólicas das relações sociais. Lyotard (1979) advogando em prol de tempos pós-modernos defendeu a tese de que, a partir de 1950, nascera a “sociedade pós-industrial”, trazendo modificações abruptas nos estatutos da ciência e da universidade. Antes de discorrer sobre essas modificações, insistimos na expressão sociedade pós-industrial. Argumentando que os tempos pós-modernos são marcados por avanços científicos e tecnológicos, viveríamos no sentido de informatizar a sociedade. Diz Lyotard (2009, p. 69) que “na sociedade e na cultura contemporânea, sociedade pós-industrial, cultura pós-moderna, a questão da legitimação do saber coloca-se e outros termos”. O declínio dos relatos especulativos e da emancipação foram efeitos do “desenvolvimento das técnicas e das tecnologias a partir da Segunda Guerra Mundial, que deslocou a ênfase sobre os meios da ação de preferência à ênfase sobre seus fins”. O redesdobramento do capitalismo liberal avançado após seu recuo, sob a proteção do keynesianismo durante os anos 1930-1960, acabou por eliminar a alternativa comunista e valorizou a fruição individual dos bens e dos serviços. É sob esses pilares distorcidos e distantes da realidade concreta que os pós-modernistas construirão suas “narrativas” e sustentarão suas teses argumentativas. Já sabemos onde essa história irá desembocar: vivendo a era dos serviços, a industrialização perde destaque e, desse modo, o operariado perde centralidade e não é mais expressivo. Dizendo “adeus ao trabalho” a análise sobre as classes sociais perde sentido e assim nega-se a luta de classe. Esse discurso desloca os serviços da produção material de forma a concebê-los de forma autônoma apartados da divisão social e técnica do trabalho. Aqui o trabalho assalariado inexiste e o mais-valor perde a validade. 37 As contribuições de Jameson5 reforçam o rechaço a essas falácias produzidas pelo pensamento pós-moderno. No seu texto “A lógica cultural do capitalismo tardio” (1991), traz considerações pertinentes sobre o que ele denomina de “teorias pós-modernas”. Sob o manto de descaracterizar a sociedade capitalista anunciam a chegada e inauguração de um tipo de sociedade totalmente novo, cujo nome mais famoso é “sociedade pós- industrial” que teve como expoentes Daniel Bell (1974), Alain Torraine (1969) e Lyotard (1979), com ênfases particulares. Essa “nova sociedade” é conhecida também como sociedade do consumo, sociedade das mídias, sociedade da informação, sociedade eletrônica ou high-tech e similares. Enfatiza Jameson que as “teorias pós-modernas” têm “a óbvia missão ideológica de demonstrar, para seu próprio alívio, que a nova formação social em questão não mais obedece às leis do capitalismo clássico, a saber, o primado da produção industrial e onipresença da luta de classes” (Jameson, 1991, p. 29). Argumentando contrariamente a essa premissa, o autor parte da concepção do economista Ernest Mandel de que as transformações atuais do capitalismo configuram um terceiro estágio ou momento na evolução do capital – o capitalismo tardio. A tese central de Mandel percorre a defesa e que houve três momentos fundamentais no capitalismo, quais sejam: o capitalismo de mercado, o estágio do monopólio ou do imperialismo e o que poderia ser designado como o do capital multinacional e não pós- industrial como alegam os pós-modernistas. O capitalismo tardio ou multinacional constitui a mais pura forma de capital que jamais existiu, ou seja, uma prodigiosa expansão do capital que atinge áreas até então fora do mercado. Partindo dessa compreensão, Jameson faz algumas inferências situando o cultural no capitalismo tardio, afirmando a articulação do “desenvolvimento histórico do capitalismo e a formação de uma cultura especificamente burguesa” (Jameson, 1991, p. 73). Entender o pós-modernismo na cultura “é ao mesmo tempo, necessariamente, uma posição política, implícita ou explícita, com respeito à natureza do capitalismo multinacional em nossos dias” (Jameson, 1991, p. 23). O pós-modernismo não é um estilo, mas uma dominante cultural ou a lógica cultural do capitalismo tardio. 5 Para Anderson (1999) Jameson identificou o campo de força da pós-modernidade nas mudanças estruturais do capitalismo avançado e um difuso escalonamento de identidade sob elas. A inovação de Jameson foi tópica. Até então, destaca Anderson, que toda sondagem do pós-moderno fora setorial. Destaque para Levin e Fiedler na literatura; Hassan na pintura e na música; Jencks na arquitetura; Lyotard na ciência e Habermas na filosofia. Para o autor, a obra de Jameson teve outro escopo pois gerou uma expansão do pós-moderno por praticamente todo o espectro das artes e grande parte do discurso sobre elas. 38 Diante dos equívocos analíticos produzidos pelo pensamento pós-moderno que tem, em última instância, a finalidade de escamotear as contradições sociais produzidas pelo modo de produção capitalista, servindo aos interesses do grande capital e inibindo a construção de possibilidades revolucionárias para a construção de uma nova ordem social (comunismo), é que reforçamos a importância e urgência de nos debruçarmos a conhecer, analisar e refutar as premissas pós-modernas no terreno da teoria socia crítica de Marx. A crítica deve converter-se na reafirmação dos fundamentos marxianos e, necessariamente, na elucidação das tarefas e caminhos a serem percorridos para transformar e suplantar a sociedade classista, desigual, exploradora e opressora por uma sociedade verdadeira livre, justa e igualitária – ou seja, comunista. 4. O pensamento pós-moderno e seu anti-universalismo: a morte das metanarrativas Retomando os objetivos da pesquisa, continuaremos a discorrer sobre premissas centrais que dão sustentação ao pensamento pós-moderno. Partiremos para a exposição do segundo ponto, destacando a crítica ao universalismo e a negação das metanarrativas. O livro de 1993 de Rouanet, no seu segundo texto (ensaio) denominado “A coruja e o sambódromo” é exemplar para que possamos compreender os argumentos pós- modernos de crítica e repulsa à modernidade, mas também, para alimentarmos nossa crítica à crítica. A heroína do ensaio é uma coruja que já foi uma ave arrogante, pois representava a razão universal, tanto a razão teórica, capaz de compreender o mundo, como a razão prática, tiritando de frio e com medo da própria sombra. A coruja resolve investigar o presente, decidindo viajar, sem pedir conselho e opinião de ninguém e levanta voo. Está interessada em visitar algumas regiões conflagradas do planeta. Recortemos uma parte se sua viagem, quando a coruja atravessa o Atlântico e pousa numa universidade americana que está realizando uma assembleia universitária. A discussão versa sobre a questão dos direitos humanos no campus. Não resistido, a coruja, que é um animal político por excelência, toma a palavra dizendo que assistiu à adoção da Declaração dos Direitos do Homem em 1789, mencionado que a doutrina dos direitos humanos tinha inaugurado uma nova era da liberdade na história do gênero humano e diz estar feliz por estar no país que antes mesmo dos franceses havia consagrado esses direitos em sua Declaração de Independência. Aí começam os ataques, relata Rouanet. Uma estudante acusa a ideologia dos direitos humanos de ser falocrática, 39 por ter usado “homem” como termo genérico, em vez de ter se referido, de forma específica, aos direitos da mulher. Um militante gay diz que as liberdades de 1789 se dirigiam apenas aos heterossexuais, enquanto um ativista negro afirma que a Declaração só pensara na emancipação dos europeus. Quais os pontos críticos lançados à modernidade? Rouanet explicita que há a denúncia ao individualismo da Ilustração que acabou por apagar todas as diferenças, esquecendo de situar o homem como parte de uma comunidade, de um grupo étnico, de uma cultura. Ou seja, visou o homem em geral, um indivíduo abstrato em vez de visar particularidades concretas, como os negros, as mulheres, os indígenas. Em defesa das particularidades concretas anuncia que libertar o negro, o judeu, o cigano, significa reforçar sua identidade como integrante da etnia negra, como aderente da fé judaica, como membro da comunidade linguística hispano-americana, contribuindo para que se sintam orgulhosos de pertencer a essas coletividades. Nesse trecho destacado é notória a refutação do universalismo herdado da Ilustração. O anti-universalismo contemporâneo “é aquela teórica ou política que nega a unidade do homem, contesta a validade universal do saber e questiona a existência de normas e princípios éticos universais” (Rouanet, 1993, p. 52) Como já expu