unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP JOÃO JORGE DA SILVA PEREIRA A música em “As Báquides”, de Plauto: tradução e análise dos cantica ARARAQUARA – S.P. 2014 JOÃO JORGE DA SILVA PEREIRA A música em “As Báquides”, de Plauto: tradução e análise dos cantica Dissertação de Mestrado, apresentada Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: História Literária e Crítica Orientador: Prof. Dr. João Batista Toledo Prado Bolsa: CAPES/CNPq ARARAQUARA – S.P. 2014 JOÃO JORGE DA SILVA PEREIRA AAA MMMÚÚÚSSSIIICCCAAA EEEMMM “““AAASSS BBBÁÁÁQQQUUUIIIDDDEEESSS”””,,, DDDEEE PPPLLLAAAUUUTTTOOO::: tradução e análise dos cantica Dissertação de Mestrado, apresentada Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: História Literária e Crítica Orientador: Prof. Dr. João Batista Toledo Prado Bolsa: CAPES/CNPq Data da defesa: 30/04/2014 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. João Batista Toledo Prado Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara. Membro Suplente: Prof. Dr. Robson Tadeu Cesila Universidade de São Paulo – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Membro Titular: Prof. Dr. Brunno Vinicius Gonçalves Vieira Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Aos meus pais, sempre. Aos sábios Benedito Noel e dona Aida “cara-de-bolacha”, com muitas saudades...puluis et umbra sumus. AGRADECIMENTOS Aos meus pais, pelos sacrifícios, pelos ensinamentos, e, sobretudo, pelo amor. Ao meu orientador, professor João Batista, pela amizade, pela acolhida, pela força, pela paciência (e quanta!), e por guiar meus passos incertos no trajeto. Aos meus “orientadores adotivos”, os professores Brunno e Rodrigo pelos papos, congressos, pelas cervejas, pelo incentivo, pelos livros indicados, enviados por e-mail, emprestados, escaneados, etc. Ah, e pelas cervejas. Sem vocês essa caminhada teria sido muito, mas muito mais árdua. Aos meus companheiros de pós-graduação, em especial à Isa por enlouquecer junto comigo e por me ligar no meio da noite pra me encorajar a prosseguir quando a vontade era fraca, além de perambular comigo pelas ruas de Jaú, ao Emerson pelas risadas, bobagens, conversas sobre filmes e livros, cafés, cigarros. Ah, e cervejas. Ao Fábio (Gerônimooo!) pela amizade de longa data desde os tempos de graduação, e por não ter me deixado desistir da prova do processo seletivo da pós. Ao Rafael pelo Metânia, e goiabas. À Laure por me encorajar a tentar entrar no mestrado de maneira totalmente destrambelhada e impulsiva, afinal, se não tivesse sido assim, talvez não fosse...pelo carinho, pela amizade, show do Carcass e fuscas azuis. Ao José Fernando Bachega, vulgo gordão, pelo violão, e ao Brunão e ao Ricardo, por aturarem o matuto aqui. Aos meus companheiros de banda Érik, Denílson e Júlio pelos sete anos de irmandade, e que venham muitos mais, ainda tem muito som pra rolar. À minha vó dona Aida, por ter sido simplesmente o ser humano mais bonito que já vi pisar neste mundo. Ao Benedito Noel, o Junião, pelo companheirismo, pelos cigarros, confidências e prosas madrugada adentro, e por me ensinar a difícil arte de ser simples. E, finalmente, à CAPES/CNPq, pelo financiamento da pesquisa, tornando possível a feitura deste trabalho. “Deixar o pensamento em liberdade, divagar, é regressar ao ritmo.” Octavio Paz (2009, p.12) RESUMO Titus Maccius Plautus, ou simplesmente Plauto para os lusófonos, foi um dos mais representativos comediógrafos da antiguidade. Suas peças foram traduzidas para os mais diversos idiomas ao longo do tempo e serviram de inspiração para dramaturgos do calibre de Shakespeare e Moliére, e movimentos artísticos como a Commedia Dell'Arte italiana. Apesar de ter se inspirado em grande parte na Comédia Nova grega, especialmente em Menandro (como é o caso de As Báquides, adaptada da comédia intitulada Δὶς ἐξαπατῶν (Dis Exapaton), cujo nome pode ser traduzido por “O que engana duas vezes”), e a exemplo de outro comediógrafo latino de grande renome, Publius Terentius Afer, ou Terêncio, as comédias plautinas apresentam numerosas diferenças em relação a suas contrapartidas gregas, inclusive no que tange aos nomes das personagens e localidades retratadas. Uma delas, em especial, e justamente a que se pretende abordar neste trabalho, é a presença constante do canto, com ou sem acompanhamento musical, em grande parte das performances, os chamados cantica, em que o instrumento utilizado geralmente era a tibia, a versão latina do αὐλός grego, e a utilização de diferentes metros para as partes musicadas ou cantadas, em contraste com aquelas simplesmente dialogadas. O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma proposta de tradução em versos dos cantica presentes na peça As Báquides, de Plauto, assim como uma análise acerca da expressividade dos metros utilizados em sua composição, de seu propósito e também dos efeitos pretendidos por Plauto ao utilizá-los. Palavras-chave: Comédia latina. Métrica latina. Cantica. Báquides. Expressividade poética. ABSTRACT Titus Maccius Plautus, or simply Plautus, was one of the most important playwrights in antiquity. His plays have been translated into several languages over time and have been a source of inspiration for writers such as Shakespeare and Molière, and for artistic movements such as the Italian Commedia Dell'Arte. Although he was greatly influenced by the Greek New Comedy playwrights, especially by Menander (as it occurs in Bacchides, adapted from Menander's Δὶς ἐξαπατῶν (Dis Exapaton), whose title can be roughly translated as “Twice a Swindler”) just like another renowned Latin playwright, Publius Terentius Afer, or Terentius, plautine comedies show numerous differences when compared to their Greek counterparts. One of them in particular, which is the one this work seeks to study, is the constant presence of song in great part of their performances, played with or without musical accompaniment: the so-called cantica, in which the instrument used was the tibia, the latin version of the Greek αὐλός, as well as the use of various different meters for the sung parts, in contrast with the ones that are merely spoken. This work has as its primary objective to present a translation in verse of the cantica present in the play Bacchides, by Plautus, as well as to provide an analysis of the poetic expressiveness in the meters used in their making, and of the purpose and also of the effects intended by the author with the usage of such meters. Keywords: Latin comedy. Latin metric. Cantica. Bacchides. Poetic expressiveness. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO: ORIGENS DO TEATRO ROMANO: OS LUDI SCAENICI 10 2 PLAUTO: VIDA E OBRA 14 3 RISO E RITMO EM PLAUTO 16 3.1 Riso e ritmo em Plauto: onomástica em As Báquides 17 3.2 Riso e ritmo em Plauto: Numeri Innumeri 20 3.3 Riso e ritmo em Plauto: os cantica 23 4. Os cantica em As Báquides 26 4.1 Tradução 27 4.2 Análise 61 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 76 REFERÊNCIAS 78 10 1. INTRODUÇÃO: ORIGENS DO TEATRO ROMANO – OS LUDI SCAENICI É praticamente impossível discorrer sobre o teatro romano sem tocar no nome de Plauto. Entretanto, apesar de este ser, entre os escritores do período arcaico, além daquele de maior renome, aquele cuja obra chegou a nossos tempos em maior estado de integridade, faz- se necessário conhecer, para uma melhor compreensão de seus escritos, os poetas que o antecederam, bem como as origens do teatro em Roma. Acerca dessas origens, um dos primeiros testemunhos de que se tem notícia é o de Tito Lívio1, historiador romano, no sétimo livro de sua história de Roma ab Vrbe condita. Segundo ele, os então cônsules C. Sulpinius Peticus e C. Licinius Stolo, no ano de 364 a.C., após tentativas de aplacar uma peste que afligia a população causando grande mortandade, tentativas essas que chegaram a incluir um lectisternium, i.e., um banquete cerimonial para os deuses, o terceiro desde a fundação da cidade de acordo com o historiador, instituíram festivais de representações cênicas que ficaram conhecidos como ludi scaenici. Estes incluíam diversas formas de representação cênica, em oposição aos já existentes ludi circenses, que por sua vez abarcavam diferentes formas de entretenimento, como as corridas de bigas e o pugilato. Embora o testemunho de Tito Lívio possa ser tomado como confiável, em especial por ter ele sido também cidadão romano, alguns estudiosos recentes, como Moore, não o aceitam sem alguma ressalva, como se pode atestar na introdução de Music in Roman Comedy: “Dificilmente podemos aceitar o testemunho de Lívio de forma acrítica. Em toda a probabilidade ele deriva, direta ou indiretamente, de uma ou mais obras do antiquário e estudioso Varrão, do primeiro século a.C. Varrão parece ter tido um mau hábito de aplicar explicações gregas aos fenômenos romanos, quando ele não tinha nenhuma evidência romana; e partes de sua versão se parecem, de maneira suspeita, com a descrição de Aristóteles sobre as origens do teatro ático (Po. 1449a). O relato de Tito Lívio pode ser ainda mais distorcido por seu viés claro contra o teatro.” (MOORE, 2012, p.2).2 1 Titus Livius, The History of Rome, 7.2, p.176 2 “We can hardly accept Livy's account uncritically. In all likelihood it derives, directly or indirectly, from one or more works of the first-century BCE antiquarian and polymath Varro. Varro appears to have had a bad habit of applying Greek explanations to Roman phenomena when he had no Roman evidence; and parts of his account look suspiciously like Aristotle's description of the origins of Attic theater (Po. 1449a). Livy's account may be further distorted by his clear bias against theater.” 11 Não se pode, no entanto, excluir por completo a credibilidade do testemunho de Tito Lívio. Ele cita também, no relato sobre a instituição dos jogos, o fato de que, para as primeiras representações desses festivais, foram trazidos artistas da Etrúria, chamados histriones, que dançavam, ainda sem proferir quaisquer palavras ou versos, ao som da tíbia, instrumento de sopro que posteriormente foi popularizado nessas apresentações, conforme elas foram evoluindo. Em um estágio ulterior, além da dança acompanhada pela música, começaram a ser empregados versos burlescos de caráter satírico, arranjados metricamente e adaptados à melodia e aos movimentos da performance, que, no entanto, ainda não eram organizados de modo a constituir uma trama. Houve, então, intenso intercâmbio cultural não só com a civilização etrusca nessa época, mas também com a civilização grega, de quem a posteriori foram importados também os protótipos daquilo que viria a se tornar a literatura romana, com Lívio Andronico, que teria criado, muitos anos depois, peças com um enredo, e, dessa forma, daria início à tradição de adaptar obras gregas, vertendo-as para o latim. Dupont e Letessier (2011, p.14) alertam para a influência grega na consolidação dessas formas de manifestação artística, bem como para seu caráter multicultural, já desde seu nome, que comporta uma palavra de origem latina, ludi, e a palavra scaenici, derivada do grego skènè. Tais jogos constituíam um círculo de festividades públicas, a princípio de fundo religioso, como já se observou pelo testemunho de Tito Lívio acerca de sua finalidade, a de aplacar a cólera dos deuses que teriam enviado a peste inclemente, e quer sua origem tenha sido etrusca, grega, ou ambas, tornaram-se uma parte essencial do cotidiano romano, e fundamental na manutenção do status quo vigente na época. Durante a sua realização, haveria uma espécie de suspensão das atividades mundanas, geralmente para a acolhida de uma nova divindade, com a derrubada de valores hierárquicos e o cultivo do ócio, o estabelecimento de um não-lugar, em um não-tempo. Tudo isso conferia aos espetáculos cênicos um caráter ritualístico, como se pode comprovar pelas fórmulas recorrentes utilizadas nos prólogos das comédias, em que, através da captatio beneuolentiae, os autores requeriam de sua audiência, antes da exposição da trama, a interrupção de todos os seus afazeres e a atenção irrestrita às apresentações, que eram abertas a toda a população, sem distinção de classe3. Como exemplo, 3 Dupont & Letessier, 2011, p. 14-18. 12 temos alguns versos do prólogo do Amphitruo, de Plauto, apresentado pelo deus Mercúrio, aqui em tradução de Leandro Cardoso (2012, p. 137, vv. 89-96): “Por que vós estranhais? Até parece novidade dizer que Jove agora faz papel de ator. Um ano atrás, atores neste mesmo palco chamaram Júpiter, que veio em seu auxílio. Também se mostra certamente nas tragédias. Estou dizendo: nesta peça age hoje Júpiter, e eu com ele. Agora, voltem para cá o espírito, enquanto o argumento da comédia vou expor.” Em 240 a.C., Lívio Andronico, escravo liberto de origem grega, é contratado para traduzir para a língua latina tragédias e comédias gregas para os jogos. Essa não teria sido sua primeira experiência como tradutor. Em um período de crescente helenização da cultura latina, um cidadão romano de quem ele teria sido escravo pediu-lhe que traduzisse a Odisseia de Homero para o latim. Esse seria o início de uma tradição à qual outros dramaturgos pertenceram antes de Plauto, ou concomitantemente a ele. De suas obras restaram, quando muito, apenas fragmentos. Escritores como Gneu Névio e Cecílio Estácio são mencionados nas Noites Áticas, de Aulo Gélio, em comentários esparsos sobre como Gneu Névio havia sido preso por desacatar figuras públicas em seus escritos4 (denotando neles a influência dos poetas gregos, em especial aqueles representantes da Comédia Antiga grega, sobretudo Aristófanes) ou sobre como Cecílio teria traduzido uma peça de Menandro intitulada Plócio, porém, segundo Gélio, sem a mesma força do texto original5. Este último comentário é de extrema importância, pois além da crítica em si, traz fragmentos da peça de Menandro e sua respectiva adaptação para o latim por parte de Cecílio. E é justamente nesse contexto que surge a figura mais proeminente do teatro latino, cujas comédias lhe renderam sucesso e glória ainda em vida: Plauto. Diferentemente de seus antecessores, Plauto teria sido o primeiro poeta latino a dedicar-se exclusivamente à comédia, e como eles, utilizou como base para seus escritos as peças de poetas gregos como o já citado Menandro, de cuja obra nos resta apenas uma comédia completa (o Dyskolos), algumas quase completas e alguns fragmentos de outras peças, vários deles descobertos recentemente, ao 4 Aulo Gélio, Noites Áticas, III,3. p. 142 5 Idem, Ibidem, II, 23. pp. 114-119 13 longo do século XX. Além de Menandro, outros comediógrafos teriam servido de base para a feitura das comédias romanas, tais como Dífilo e Filêmon. Todos estes escritores pertenceram à chamada Comédia Nova grega, em oposição à chamada Comédia Antiga, cujo principal representante era Aristófanes. As maiores diferenças entre a Néa e a Comédia Antiga residiam na diminuição da participação do coro, com menores variações rítmicas e métricas em seus versos, e numa mudança de paradigma em relação às personagens. Enquanto a Comédia Antiga era caracterizada pela invectiva pessoal, pelo ataque a figuras públicas (As Nuvens, de Aristófanes, satiriza os filósofos gregos, em especial a figura de Sócrates) e enredos fantasiosos, a Comédia Nova utiliza-se de personagens típicas, e se restringe a um ambiente familiar, sendo, portanto, mais realista6. Plauto, assim como um sucessor seu de igual renome, Publius Terentius Afer, ou simplesmente Terêncio, dedicou-se ao gênero denominado comoedia palliata, cujo nome deriva de pallium, a vestimenta típica grega. O nome palliata aqui é utilizado para distinguir esse gênero, em que as personagens e a ambientação são gregas, da comoedia togata, em que o enredo, a situação e as personagens seriam tipicamente romanos. Aos poucos, a palliata teria suplantado a togata, o que reflete não só o início da crescente helenização nesse período em Roma, momento em que a Vrbs começava a expansão que a tornaria um grande império, tendo recentemente vencido a Primeira Guerra Púnica (264 – 241 a.C.). O aumento de prestígio da palliata também abria espaço para a exploração da comicidade originada a partir do distanciamento gerado pelo fato de tratar-se de estrangeiros sendo representados nas situações mais ridículas.7 6 Hunter, 2010, pp. 17-25 7 Cardoso, 2006, pp. 30-31 14 2. PLAUTO: VIDA E OBRA Poucos dados concretos existem sobre o nascimento, a vida e a obra de Plauto. De fato, até mesmo seu nome foi motivo de controvérsia por parte daqueles que se dedicaram a seu estudo. Teria o poeta nascido em Sársina, região da Úmbria, em meados do século III a.C. (a datação é imprecisa, variando entre 254 a.C. e 259 a.C.), e migrado ainda jovem para Roma8. Sua fama é comprovada pelos comentários de diversos escritores romanos, em especial Aulo Gélio. Outro grande poeta latino, Horácio, em sua Ars Poetica, também o cita, ainda que com certa reserva quanto ao fato de ter como grande preocupação o ganho financeiro através de suas peças e um certo desleixo quanto à utilização da métrica em seus textos. Poder-se-ia tomar tais críticas como injustas, pois ignoram o fato de que tanto Plauto, como outros comediógrafos e tragediógrafos do período arcaico, necessitavam do aplauso do público para que viessem a receber o seu pagamento, que dependia do êxito de suas peças quando representadas nos jogos9. Ademais, escritores desse período como Lívio Andronico, Gneu Névio, Pacúvio e Plauto, foram pioneiros em transladar e adaptar não só os enredos das obras de poetas gregos, mas também a forma e os metros utilizados, iniciando um trabalho que, nos dias de Horácio, encontrar-se-ia já consolidado. Também não se pode esquecer de que muitos poetas no período clássico da literatura latina não tinham que se preocupar com o ganho material através de seus escritos, tendo sido subsidiados por mecenas, pessoas que investiam em sua arte. Aulo Gélio, diferentemente de Horácio, já não se encontra entre os detratores da obra plautina, mas sim entre aqueles que muito a admiravam. No mesmo episódio em que narra a já citada ocorrência da prisão de Névio, conta-nos também sobre um revés na vida de Plauto, dado biográfico que atualmente é contestado pelos doutos, mas que, no entanto, ainda constitui interessante anedota. Em dificuldades financeiras, o sarsinate teria arrumado trabalho em um moinho, empregado por um padeiro, girando mós então denominadas trusatiles. Nessa ocasião, teria escrito algumas de suas peças. 8 Cardoso, 2006, p.26 9 Dupont & Letessier, 2011, p.14 15 Nesse mesmo livro de suas Noites Áticas, Aulo Gélio fala sobre as peças deixadas pelo comediógrafo para a posteridade10. Devido a seu grande renome, teria sido atribuída a ele a autoria de cerca de cento e trinta peças. Apesar de ter sido um poeta prolífico, esse número decerto incluiria diversas obras consideradas espúrias por gramáticos e eruditos romanos. Aulo Gélio reproduz, assentindo, o juízo e a conclusão a que outro escritor, Varrão, teria chegado; a de que, dentre essas cento e trinta peças, somente vinte e uma, certamente, seriam de autoria do sarsinate, conclusão essa que é tomada hodiernamente como consenso entre grande parte dos escolásticos plautinos. Das vinte e uma peças consideradas legítimas por Varrão, e, portanto, denominadas varronianas, todas chegaram até nós em bom estado de conservação, através do chamado Palimpsesto Ambrosiano, um pergaminho descoberto no séc. XIX na Biblioteca Ambrosiana de Milão contendo manuscritos de suas obras, com exceção de uma, a Vidularia, da qual restam alguns poucos excertos. As outras vinte, aqui dispostas em ordem cronológica proposta por Ettore Paratore em introdução ao primeiro volume de sua tradução completa das obras de Plauto (1992), são: Asinaria (207 a.C.); Mercator (206 a.C.); Miles gloriosus (205 a.C.); Cistellaria (203-2 a.C.); Stichus (200 a.C.); Epidicus (195 a.C.); Trinummus e Menaechmi (194 a.C); Curculio (193 a.C.); Poenulus, Aulularia e Pseudolus (191 a.C.); Truculentus (190 a.C.); Bacchides, Rudens e Captivi (189 a.C.); Mostellaria (dubitativamente) e Amphitruo (188 a.C.); Persa (186 a.C.) e Casina (184 a.C.). Plauto teria morrido aproximadamente em 184 a.C., após ter escrito aquela que seria sua última peça, Casina, e depois de ter desfrutado de grande sucesso em vida. Sobre a ocasião de sua morte, Aulo Gélio escreve, nas Noites Áticas, acerca de um epitáfio supostamente de autoria do próprio poeta (hipótese hoje considerada duvidosa) e registrado anteriormente pelo já citado Varrão em sua obra De Poetis: “Postquam est mortem aptus Plautus, Comoedia luget,/scaena est deserta, dein Risus, Ludus Iocusque/et Numeri innumeri simul omnes conlacrimarunt”.11 10 Aulo Gélio, Noites Áticas, III, 3. 11 “Depois que Plauto foi atado à morte, a Comédia está de luto/ a cena está deserta, além disso o Riso, o Jogo e o Divertimento/ e os Ritmos sem-números, todos simultaneamente choraram em conjunto.” Tradução de José Rodrigues Seabra Filho (2010. pg. 76). Todas as traduções contidas neste trabalho, quando não indicadas por meio de referência ou notas, são de nossa autoria. 16 3. RISO E RITMO EM PLAUTO O epitáfio cuja autoria é atribuída ao próprio Plauto por Varrão, além de confirmar a admiração pelo comediógrafo e o êxito de suas comédias, enaltece algumas das características mais salientes em seus escritos, como o fato de terem, por prioridade, o entretenimento de sua audiência, em detrimento de um enredo verossímil, apesar de complexo, cheio de reviravoltas e quebras de expectativas (poder-se-ia dizer, quiçá, que é repleto de peripécias), porém também voltado ao jogo constante com as palavras, recheado de neologismos e double- entendres, inclusive no que tange ao nome das personagens, o que demonstra que, apesar de ter como objetivo principal despertar o riso da plateia, o texto também era ricamente elaborado poeticamente. Chama a atenção, além disso, no já citado epitáfio, o uso da palavra aptus, que em latim poderia ter dois sentidos, o de “atado”, como mostra a tradução de Seabra Filho, citado em nota na seção anterior deste trabalho, relacionando-se, portanto, ao acusativo mortem, mas que pode também significar “hábil”, “apto” se tomado talvez fora do contexto da frase, como um sintagma separado, ligando-se ao nominativo Plautus, como um predicativo. A própria ordem em que os vocábulos são dispostos no verso sugere essa dupla acepção, num jeu de mots que, decerto, o próprio sarsinate aprovaria. A música constante nas peças apresentadas nos ludi scaenici, como mostra o testemunho de Tito Lívio, citando os tibicenos que se tornariam figura sempre presente no teatro romano, é outro aspecto em que poucos rivalizaram com o sarsinate. Tal presença transparece em referências feitas pelo próprio Plauto ao tibiceno, o instrumentista que acompanha as apresentações, como na cena final da peça Estico: “(…) Tene, tibicen, primum. Postidea loci, Si hoc eduxeris, proinde ut consuetu's antehac, celeriter Lepidam et suauem cantionem aliquam occipio cinaedicam, Vbi perpruriscamus usque ex unguiculis” (vv. 758-61)12 Em introdução a sua tradução do Estico, Cardoso ainda faz uma observação importante sobre a presença da música nas comédias plautinas, e da possibilidade da 17 inferência dos ritmos nelas empregados, a despeito da inexistência das melodias que acompanhavam os versos: “É notório que a música das peças plautinas está irremediavelmente perdida. No entanto, pode-se inferir acerca do seu ritmo a partir da métrica. Na segunda interpelação ao flautista, chama a atenção a variação no ritmo. Enquanto o escravo falava com ele, a métrica sugeria um ritmo dançante, propício ao acompanhamento por flauta (septenários trocaicos). A seguir, têm-se seis versos “falados”, isto é, versos supostamente declamados sem acompanhamento musical (senários iâmbicos, Stich. 762-68). A alteração rítmica leva a crer, pois, que, enquanto o flautista estava bebendo em cena, a música da peça seria interrompida.” (CARDOSO, 2006, pp. 55-56). Os próximos subcapítulos deste trabalho têm como objetivo investigar três propriedades peculiares ao texto plautino: 1), a questão da onomástica, i.e., os jogos de palavras envolvendo os nomes das personagens como recurso cômico; 2), a variedade de ritmos empregados, já citada no comentário de Cardoso; 3), a presença constante dos cantica, que, nesse caso, compõem o córpus a ser aqui traduzido e analisado, na peça As Báquides. 3.1 Riso e ritmo em Plauto: onomástica em As Báquides As Báquides consta entre as últimas comédias escritas por Plauto, datando, segundo Ristchl (1845, p. 344), um dos primeiros estudiosos a debruçarem-se sobre a obra Plautina (em seu Parerga zu Plautus und Terenz), de cerca de 188 a.C.13, mais ou menos quatro anos antes da morte do poeta. Seu modelo é a peça de Menandro Dis Exapaton (que pode ser traduzida por “aquele que engana duas vezes”). A descoberta de vários fragmentos de peças de Menandro, entre diversos outros manuscritos de obras não só sobre literatura, mas também sobre religião, filosofia, e, até mesmo, correspondências pessoais, os chamados Oxhyrynchus 12 “Tome você primeiro, flautista. Depois,/quando tiver esvaziado isto, então, do jeito que você até hoje sempre fez,/comece a tocar, rápido, uma canção maliciosa,/com que nos excitemos desde a menor unhazinha.” Tradução de Isabella Tardin Cardoso (2006, p. 181). 13 Não há consenso sobre a datação exata e a cronologia das obras plautinas. Sedgwick (1949, p. 377), em artigo dedicado exclusivamente a esse tópico, e Parattore (1992, p.14) situam a peça no ano de 189 a.C. 18 Papyri, no Egito, ofereceu novas perspectivas sobre o modo como as peças da comédia nova grega foram trazidas para o contexto romano e adaptadas por autores como Plauto e Terêncio. Compilados por Edward Handley (1968), alguns fragmentos esparsos de Dis Exapaton puderam finalmente ser contrastados com passagens de As Báquides, e diversas diferenças de imediato saltam aos olhos. Além da inserção dos cantica, comprovadamente ausentes nas peças de Menandro, o poeta latino alterou os nomes de todas as personagens, e apesar de mantê-los no idioma grego, o que se percebe ao examiná-los é mais uma prova cabal da capacidade inventiva de Plauto e de seu pendor inegável para o jeu de mots, característica marcante de toda sua obra; os nomes por ele utilizados são neologismos relacionados a características dos tipos de personagens ou sua função na peça. Cardoso (2006, pp.31-32), na introdução de sua tradução do Estico, ao discorrer sobre algumas particularidades da produção plautina, dedica parte de sua análise a esse fato, utilizando-se da relação entre os nomes em Dis Exapaton e a peça de Plauto, a que o texto grego deu origem, para posteriormente estender sua observação ao Estico. O latinista italiano Ettore Paratore (1992), em sua tradução das peças de Plauto, tenta utilizar-se do estratagema do poeta para trasladar os nomes próprios para o italiano. Expediente deveras interessante, porém o leitor atento da obra, em seu idioma original ou em outras traduções, lembrar-se-á de que, no caso do sarsinate, tinha-se um estrangeirismo, ou, mais precisamente, um grecismo, que, de fato, seria de difícil transposição (qual língua “estaria” para o italiano, assim como o grego “está” para o latim?) e que se perde no caso, pois, então, tem-se ambos, a peça e os nomes, em italiano. Ainda assim, certamente é válido transcrever aqui alguns dos nomes adotados por Paratore em sua tradução de As Báquides, com seus correlativos gregos, à guisa de exemplo. Comecemos com aquela que, com certeza, é a personagem típica mais significativa da peça, espécie de anti-herói, que não só nessa, mas em várias outras, é a responsável por grande parte da ação e de seu desenredar, causando e desfazendo confusões a todo o tempo: a figura do seruus callidus, o escravo que, através de estratagemas intrincados e de sua astúcia, convence, rouba e, no caso da comédia supracitada, torna-se figura central no desenvolvimento da trama, que aqui, como em tantas outras plautinas, gira em torno do amor de um jovem (adulescens) por uma cortesã (meretrix) e da impossibilidade da realização do desejo amoroso, geralmente pela falta de dinheiro. A solução vem com a extorsão do pai do jovem, a figura do senex, através das estratégias e engodos mais mirabolantes. É interessante 19 nesse ponto salientar que, no caso de As Báquides, assim como no texto de Menandro, tem-se tudo isso duplicado: dois jovens, dois pais, duas cortesãs. Sem mais delongas, daremos, pois, nomes aos servos: no caso do original grego, tem- se o escravo Syros, ou simplesmente Siro, que, na versão latina, se torna Chrysalo, ou Crísalo, aportuguesado. Examinando a etimologia grega do nome, percebe-se a alusão ao fato de que, mais de uma vez, o escravo subtrai ouro a seu patrão (em grego, crysós quer dizer justamente “ouro”). Daí o fato de Paratore traduzir o nome de Crísalo com o intento de transpor o neologismo para sua própria língua; o escravo em italiano passa a chamar-se Rubaloro, literalmente, “Rouba-ouro”, utilizando-se o mesmo processo de justaposição de que se serve o tradutor, ou ainda, se se desejar manter o jogo de palavras etimológico e a naturalidade um tanto quanto absurda ali criada, aglutinando-se os nomes, quem sabe, ter-se ia algo como “Robauro”, ou “Robouro”, com a licença poética aqui como justificativa para a corruptela de “roubar” sem a letra u, já que a sonoridade em português brasileiro seria praticamente a mesma. Vale também lembrar que o próprio Crísalo faz troça do próprio nome em determinados trechos da peça, como em “opus est chryso chrysalo”14 (v. 240), e não só brincando com o seu significado, mas também com a sonoridade, de modo a demonstrar a habilidade do poeta em trabalhar o material fônico de sua própria língua (o que só confirma e reforça a poeticidade do texto plautino) para criar o efeito de comicidade desejado; vide o verso que diz “facietque extemplo Crucisalum me ex Chrysalo”15 (v. 362), em que ocorre um jogo de palavras de dificílima tradução, envolvendo o nome de Crísalo e a palavra latina crux (cruz). Neste trecho, o escravo sofre imaginando o tipo de punição “excruciante” que poderá sofrer caso seu imbroglio seja descoberto pelo patrão. Uma passagem especialmente marcante nesse sentido também é aquela em que Crísalo, além de mais uma vez confirmar a cômica etimologia de seu próprio nome, ainda faz troça do escravo da peça de Menandro, Siro, e de um outro, chamado Parmenão, quando diz “non mihi isti placent Parmenones, Syri,/ qui duas au tris minas auferunt eris”16 (vv. 649-650). Outros exemplos de nomes de personagens da mesma peça encontram-se já no próprio título, ou seja, no nome das duas irmãs e meretrices, Bacchide, que remetem o leitor, ou espectador (não se deve esquecer do fato de que ainda se trata de teatro, e de que, por muito 14 “Crísalo precisa de ouro.” 15 “E fará imediatamente de mim, Crísalo, um Crúzalo.” 20 tempo, as peças foram encenadas, e ainda são) de imediato a Bacchanalia, vocábulo utilizado para designar as festividades em honra a Baco, deus do vinho, geralmente caracterizadas pela embriaguez e pela lubricidade. Também encontramos os exemplos dos dois adulescentes, que, na versão grega, são chamados Sostrato e Moscho, tornando-se, na romana, Mnesilochus e Pistoclero. Na tradução de Paratore, eles se transformam em Ricordinsidia (junção do verbo italiano ricordare, equivalente ao português “lembrar”, “recordar” e do substantivo insidia, que pode ter como correlatos lusos os termos “emboscada”, “engano” e mesmo “sedução”, talvez, portanto, traduzível como “aquele que se recorda da sedução”, aludindo ao fato de ele se encontrar sob o domínio dos encantos da meretrix) e Fedesindacato (da mistura de fede, “fé”, “credo” ou ainda, por extensão “confiança”, com sindacato, “sindicato”, “corporação”, “união”, já que Pistoclero é o representante designado por Mnesíloco para cuidar de seu interesse, i.e., a missão de encontrar seu objeto de paixão, e, assim, proporcionar o cumprimento de seu desejo amoroso, sendo, portanto, o “amigo-de-fé”, ou o “camarada de confiança”) respectivamente. 3.2 Riso e ritmo em Plauto: Numeri innumeri A expressão numeri innumeri, que frequenta o epitáfio citado por Varrão pode referir- se, segundo Seabra (2010, p.76), tanto ao grande número de versos compostos por Plauto, quanto à variedade de ritmos por ele empregados na feitura de suas comédias. Cabe, neste ponto, uma breve análise da questão, bem como uma definição acerca do que seriam esses ritmos, cujo veículo seriam os metros utilizados. Em algumas traduções do epitáfio atribuído a Plauto, o vocábulo numerus aparece como “metro”. Entretanto Cícero nos fornece uma definição diferente: “Falamos sobre ritmo (numerus), na verdade, onde quer que o ouvido ouça alguma medida marcando o encerramento; e independentemente do verso; a este numerus os gregos o chamavam rythmos; seus próprios ouvidos medem os ritmos (numeros), não é necessário para eles nem acrescentar as palavras 16 “Eu não gosto desses Parmenões, Siros/ que só duas ou três minas surrupiam dos patrões.” 21 nem o sentimento que nelas também há.” (Cícero apud DUPONT & LETESSIER, 2011, p. 64)17 Dupont e Letessier (2011, p. 64) ainda alertam para o fato de que não se deve confundir numerus com o metro, ao qual correspondia a palavra latina modus, vocábulo que compreendia de forma conjugada “metro” e “música”, chamando a atenção para o fato de que numerus diz respeito às palavras e seu arranjo no verso, independentemente do número de sílabas e de sua quantidade, e que numerus e modus combinam-se de modo a formar o chamado versus quadratus, versos simétricos compostos de quatro partes, organizadas duas a duas, e que caracterizam todos os textos teatrais, tragédia, comédia, atellanae e mesmo o mimo.18 Entretanto, os ritmos em Plauto nem sempre são regulares, pelo contrário: a infinidade de metros utilizados por Plauto denota a infinidade de ritmos que podem ser inferidos a partir deles. É justamente o que ocorre com os cantica plautinos, em que a polimetria é praticamente uma constante. Daí os numeri serem innumeri. Ainda assim, parece que tal irregularidade não constituía um obstáculo à fruição de sua poesia, haja vista o grandioso êxito que suas comédias obtiveram. Murray Schafer (1992), em seu livro O ouvido pensante, mesmo fora do contexto da literatura, dá disso uma pista interessante, quando diz que “ritmo é direção”, e continua: “No seu sentido mais amplo, ritmo divide o todo em partes. O ritmo articula um percurso, como degraus (dividindo o andar em partes) ou qualquer outra divisão arbitrária do percurso.(...) Pode haver ritmos regulares e ritmos nervosos, irregulares. O fato de serem ou não regulares nada tem a ver com 17 “On parle de rythme (numerus), en effet, partout où l'oreille entend une certaine mesure marquant la clotûre; et cela indépendamment du vers; ce numerus les grecs le nomment rythmos; les oreilles d'elles mêmes mesurent les rythmes (numeros), il faut les donner l'envie ni d'ajouter les mots ni le sentiment qu'il y en a trop.” 18 As atellanae (farsas atelanas) consistiam em peças improvisadas e não escritas (pelo menos no tempo em que Plauto viveu, pois há registros de que posteriormente tenha ganhado um status literário, a exemplo do mimo) por trupes itinerantes de atores, em que o idioma utilizado era o dialeto Osco, originário da região da Campânia. Tais peças eram caracterizadas por um número limitado de personagens típicas, cada uma representada por uma máscara: Pappus, o velho, Maccus, o palhaço (existem especulações no sentido de que o nomen de Plauto se deve ao fato de ter representado tal personagem, tendo sido ele próprio um ator), Bucco, o bobo, Dossenus, o glutão, e Manduccus, o ogro. Já o mimo foi um gênero popular na Grécia e em cidades gregas no sul da Itália e na Sicília (posteriormente, com o declínio da comédia, o mimo tornou-se uma das manifestações artísticas mais populares em Roma) que seguia um determinado roteiro, porém que ao mesmo tempo continha certo grau de improvisação. Seus atores, diferentemente do que ocorria nas atellanae, não utilizavam máscaras, a atuação não era restrita aos homens, e o teor das performances era extremamente obsceno (cf. Marshall, 2006, pp .5-10). 22 sua beleza. O ritmo de um cavalo pode ser irregular, mas não faz com que cavalgar seja menos agradável.” (SCHAFER, 1992. p. 75). Entretanto, a definição de Schafer não chega, ainda, ao cerne da questão do ritmo em poesia, e de como a palavra grega rythmos pode sugerir “direção”, e, ao mesmo tempo, estar ligada à noção de “arranjo” como apontam Dupont e Letessier, ao esmiuçar o conceito de numerus, seu equivalente em latim. Schafer apóia-se na etimologia mais comumente conhecida do vocábulo grego, associado ao verbo rein, que significaria “fluir”, descrevendo, por exemplo, o movimento da correnteza de um rio. Benveniste (1976), ao analisar a noção de ritmo na linguagem, relembra a mesma origem levantada por Schafer, porém, aponta o uso da palavra rythmos em diversas outras circunstâncias, na poesia e na filosofia grega, instâncias em que assume outras acepções, como “forma” ou mesmo o “arranjo particular das partes de um todo”, aproximando-a semanticamente a outras expressões como skema (“forma”, “figura”, “aparência”, “semblante” e até mesmo “átomo” em contextos mais específicos”), morphé (“forma exterior”, “aparência”) e eidos (“aquilo que é visto”, “figura”, “forma”, em geral associada ao corpo humano). Contudo, não há sinonímia perfeita, portanto, deve-se entender como o rythmos distingue-se conceitualmente de tais expressões, e a etimologia original, sendo morfologicamente satisfatória segundo o linguista francês, também não deve ser de todo descartada. Estabelecendo a distinção entre rythmos e seus correlativos em grego, e aproximando-a da origem indicada pelo verbo rein, Benveniste conclui tratar-se da “forma no instante em que é assumida por aquilo que é móvel, fluido, a forma daquilo que não tem consistência orgânica.” (Benveniste, p. 367). Ainda assim, tal definição não satisfaz totalmente a noção moderna de ritmo existente, por exemplo, na música, e mesmo na poesia. Segundo o próprio Benveniste, a resposta aparece já no próprio idioma grego, em que a palavra rythmos assume posteriormente, com Platão, um novo sentido, quando este a associa com a música e também com a dança: “(...) a “disposição” (sentido próprio da palavra) é em Platão constituída por uma sequência ordenada de movimentos lentos e rápidos, assim como a “harmonia” resulta da alternância do agudo e do grave. E é à ordem no movimento, a todo o processo do arranjo harmonioso das atitudes corporais combinado com um metro, que se chama a partir daí rythmos. Poderemos então falar do “ritmo” de uma dança, de uma marcha, de um canto, da dicção, de um trabalho, de tudo o que supõe uma atividade contínua 23 decomposta pelo metro em tempos alternados.” (BENVENISTE, 1976, p. 369). O ritmo transmitido pelos metros plautinos e sua regularidade ou irregularidade apontam, assim como Schafer (1992, p.75) descreve quando se refere à música, uma nova direção: reviravoltas no enredo ou no estado emocional das personagens, fornecendo a direção da trama ou mesmo do ator, já que não existia no teatro romano em seus primórdios, segundo consta, uma direção de palco ou indicadores para a entrada, saída, de personagens ou mesmo seu posicionamento. Tudo isto que foi mencionado era, na verdade, indicado pelo próprio texto, haja vista a própria estrutura física precária dos palcos romanos, que eram, basicamente, estruturas de madeira improvisadas para a representação das peças, e desmontadas posteriormente19. Mas, como apontam Dupont e Letessier, o ritmo, por outro lado, depende da disposição que as palavras assumem nos versos, organizadas metricamente, bem como da duração das sílabas e de seu arranjo, se levamos em conta a definição levantada por Benveniste, que harmoniza as duas anteriores, a antiga, de Cícero, e a moderna, de Schafer. Tentaremos abordar essas questões de maneira mais aprofundada no próximo tópico, bem como na análise dos cantica a serem traduzidos neste trabalho. 3.3 Riso e ritmo em Plauto: os cantica Uma das características mais marcantes do teatro romano, e nesse caso, em particular, de Plauto, é a utilização de trechos marcados pelo acompanhamento musical da tíbia, instrumento de sopro semelhante ao aulós grego, e também a presença de metros variados (como já citado na seção anterior deste trabalho), destinados ao acompanhamento musical e ao canto, chamados de cantica. Os primeiros estudiosos a estabelecerem a distinção entre as partes faladas e recitadas ou cantadas a partir de manuscritos de Plauto (mais especificamente, a partir do conjunto chamado Palimpsestus Ambrosianus) foram Friedrich Wilhelm Ritschl e Theodor Bergk, que o fizeram interpretando indicações contidas nos manuscritos através de 19 O primeiro teatro fixo de Roma, construído em pedra, data de 55 a.C. (cf. Conte, 1999, p.32). 24 siglas, C para os cantica (partes cantadas), e DV, interpretado como diverbia (partes dialogadas ou faladas). Acerca de tal feito discorre Timothy Moore, em um de seus artigos: “Bem mais de um século atrás, Friedrich Ritschl e Theodor Bergk chegaram independentemente à mesma conclusão sobre as marcas de DV e C em alguns dos manuscritos de Plauto: as iniciais significam diverbium e canticum; e sua associação, respectivamente, com cenas em senário jâmbico e cenas em outros metros implica que na comédia romana passagens em senários jâmbicos não eram acompanhadas, enquanto passagens em todos os outros metros eram cantica, acompanhados pelas tibiae (Ritschl 1871-72, Bergk 1872). As conclusões de Bergk e Ritschl fornecem a melhor explicação não apenas das rubricas nos manuscritos, mas também de descrições de performance nos gramáticos e outros autores antigos, e várias alusões ao tibicen nas peças de Plauto. Portanto, não é surpreendente que, embora tenha havido alguns dissidentes, a maioria dos estudiosos concorde com a distinção básica de Ritschl e Bergk entre senários jâmbicos e outros metros com base no acompanhamento.” (MOORE, 1998, p. 245)20 O metro utilizado nas passagens caracterizadas como diverbia, isto é, aquelas dialogadas, não-musicadas, como se pode ver na colocação de Moore, é o senário jâmbico, derivado do trímetro jâmbico grego, diferindo aquele deste último principalmente por uma maior flexibilidade e pela possibilidade da substituição na maioria dos pés. Ambos possuem seis pés, ou três metra, como indica a nomenclatura grega, compostos primordialmente por jambos, pés que possuem uma sílaba breve seguida de uma longa, totalizando três tempos; entretanto, no senário jâmbico latino, pode ocorrer a substituição no segundo e no quarto pés, ou ainda no primeiro, terceiro e no quinto, havendo normalmente uma cesura no terceiro ou no quarto pé, e sendo que o último deve ser necessariamente um jambo, ou um equivalente de três tempos que não o troqueu (o inverso do jambo, caracterizado por uma sílaba longa seguida de breve), portanto, a única alternativa equivalente nesse caso é um tríbraco (três sílabas breves, totalizando os mesmos três tempos do jambo). Os outros pés permitem uma 20 “Well over a century ago, Friedrich Ritschl and Theodor Bergk independently reached the same conclusion regarding the markings of DV and C in some of the manuscripts of Plautus: the initials stand for diverbium and canticum; and their association, respectively, with scenes in iambic senarii and scenes in other meters implies that in Roman comedy passages in iambic senarii were unaccompanied, whereas passages in all other meters were cantica, accompanied by the tibiae (Ritschl 1871-72, Bergk 1872). Ritschl's and Bergk's conclusions provide the best explanation not only of the rubrics in the manuscripts, but also of descriptions of performance in the grammarians and other ancient authors, and several allusions to the tibicen in the plays of Plautus. It is therefore not surprising that while there have been a few dissenters, most scholars have agreed with Ritschl's and Bergk's basic distinction between iambic senarii and other meters based on accompaniment.” 25 grande variedade de substituições que incluem o espondeu (duas longas), o dátilo (uma longa e duas breves), o anapesto (duas breves e uma longa), e o proceleusmático (quatro breves). Nota-se que estes últimos pés comportam quatro tempos, e, a partir dessas possibilidades, observa-se também a grande variedade de ritmos que podem ser obtidos em um só pé21. Segundo Duckworth (1994, p.363), o senário jâmbico, em muitas peças de Plauto, constitui apenas um terço, ou até menos, do total das comédias, diferentemente de Terêncio, por exemplo, em que o uso do senário jâmbico ocorre até duas vezes mais, o que revela a grande presença de metros musicalmente acompanhados nas comédias plautinas. Os metros utilizados por Plauto nos cantica incluem principalmente o setenário trocaico (sendo este o mais utilizado), o octonário trocaico, o setenário jâmbico e o octonário jâmbico, e geralmente são utilizados em combinação com diversos outros metros, em especial, os anapestos, os dátilos, os créticos (longa, breve, longa), e os baquíacos (breve, longa, longa). Os cantica ainda são motivo de grande debate por parte dos estudiosos plautinos, e ainda não há consenso sobre sua origem, sobre sua função, nem mesmo quanto à escansão dos versos polimétricos neles presentes. O trabalho mais completo no sentido da métrica nos cantica, apesar de não ser também ele definitivo (se é que haverá alguma definição acerca desse aspecto, haja vista a exiguidade de material), é o de Questa (1995), que compilou e forneceu sua escanção para os cantica de todas as peças plautinas, com exceção da Vidularia, em decorrência de seu estado extremamente fragmentário. O texto do metricista italiano foi o utilizado aqui para a tradução, e sua escanção foi tomada como base para a análise dos cantica, constituindo, portanto, o córpus deste trabalho. Outros autores também se debruçaram sobre a questão dos cantica, sendo os principais Law (1922), em um dos primeiros estudos exclusivamente sobre as canções nas peças plautinas, Duckworth (1994), Fraenkel (2007), e Moore (2012), cujos trabalhos investigaremos mais a fundo para a obtenção de dados mais concretos acerca da origem e função dos cantica. 21 Para mais detalhes sobre os metros utilizados em Plauto e sua composição, cf. Moore, 2012, pp.171-209. 26 4. OS CANTICA EM AS BÁQUIDES O enredo de As Báquides, mencionado já en passant na seção anterior deste trabalho, é comum à maior parte das peças plautinas, em que um jovem se perde de amor por uma cortesã, geralmente encontrando-se em dificuldades financeiras para que possa manter o seu amor. Entra em cena, pois, a figura do seruus callidus, o escravo astuto que se utiliza das mais variadas artimanhas para a obtenção do dinheiro para o amo apaixonado, assim, desfazendo os nós da trama. Os cantica, em As Báquides, a serem traduzidos na próxima seção da dissertação, ocorrem em momentos de exaltação emocional das personagens e indicam importantes reviravoltas no enredo da peça. Questa (1995) inclui alguns fragmentos do início da peça (o início completo foi perdido, nos manuscritos). Além desses fragmentos, temos três momentos importantes retratados nas passagens cantadas: o primeiro deles (vv.612-670) mostra Mnesíloco lamentando-se por haver retornado o dinheiro obtido por Crísalo do senex Nicobulo, após desconfiar que seu amigo Pistoclero o havia traído, enamorando-se de sua amada, sem saber que havia, na verdade, duas irmãs gêmeas de nome Bacchis, e seu posterior reencontro com o amigo. A seguir, o escravo aparece e inquire o amo sobre a situação, sem obter resposta, a princípio. No segundo canticum (vv.925-996a), Crísalo, após obter novamente o ouro perdido para o velho, e ainda mais duzentas moedas de ouro, para que pudesse obter a liberdade de uma das irmãs, o amor de Mnesíloco, que estava em posse de um soldado (miles), gaba-se do feito comparando-se a Ulisses, que planejara o assalto à cidade de Tróia através do ardil do cavalo de madeira, e entoa um lamento em um trecho de extrema comicidade, em uma monodia de tom hiperbólico e grandiloquente (que se pode interpretar como uma espécie de “paródia” do estilo épico) e ainda preparando mais um engodo contra Nicobulo, através da entrega de uma carta forjada por ele em conjunto com Mnesíloco. O canticum encerra-se em um diálogo entre o escravo e o velho, exatamente no instante em que aquele entrega a missiva a este, no mesmo momento em que o senex se encontra prestes a iniciar a sua leitura. E o último canticum, mais extenso (vv.1076-1206), dá-se no momento do encerramento da trama, em que o velho Nicobulo e seu amigo Filoxeno (pai do amigo de Mnesíloco, Pistoclero) descobrem as maquinações perpetradas pelos filhos em conjunto com o escravo, e acabam seduzidos pelas meretrices. Segue-se, na próxima seção, a tradução dos 27 cantica e, posteriormente a esta, sua análise, que será norteada em grande parte pelos estudos de Moore (2012). Os versos encontram-se numerados de acordo com a edição de Questa (1995). 4.1 Tradução No comentário já citado da adaptação do Plócio de Menandro por Cecílio, Aulo Gélio censura o poeta romano pela perda da força do original grego e pela excessiva liberdade com que tratou o texto de Menandro, superior em sua opinião. Acerca do comentário, Duckworth tece uma observação que revela, de certo modo, o procedimento que seria adotado pelos contemporâneos e sucessores do próprio Cecílio, e que advém de uma tradição que já estaria se consolidando em Roma desde Lívio Andronico: “É significativo que Gélio critique Cecílio por se afastar do original e não reproduzir fielmente as palavras de Menandro. Se Cecílio como tradutor segue o texto mais de perto do que Névio e Plauto, ele ainda está longe de ser o que consideraríamos um tradutor literal; ele omite ou acrescenta ideias, introduz novas piadas, transforma uma passagem de trímetro jâmbico em um canticum lírico, e, em geral, parece adaptar o original ao gosto do seu público. A passagem mostra a vivacidade rítmica que havia feito as comédias de Plauto tão bem sucedidas, e revelam as liberdades que um dramaturgo romano pode ter em relação ao original grego.” (DUCKWORTH, 1994, pp. 47-48).22 A crítica de Aulo Gélio é significante, de fato, pois faz objeção a um modelo de tradução que havia se tornado comum em Roma em seu tempo, não só por parte dos comediógrafos que o faziam muito provavelmente, como Duckworth sinaliza, buscando agradar ao público, mas que posteriormente encontrou respaldo em oradores como Cícero e poetas como Horácio, que rechaçavam uma tradução palavra por palavra, ou, por assim dizer, 22 “It is significant that Gellius criticizes Caecilius for departing from the original and not reproducing faithfully the words of Menander. If Caecilius as a translator follows the text more closely than did Naevius and Plautus, he is still far from what we should consider a literal translator; he omits or adds ideas, introduces new jests, transforms a passage of iambic trimeter into a lyrical canticum, and in general seems to adapt the original to the tastes of his audience. The passage displays the rhythmic vivacity that had made the comedies of Plautus so succesful, and reveal the liberties that a Roman dramatist might take with the Greek original.” 28 mais “literal”. Em sua Ars Poetica, nos versos 133-134, Horácio deixa clara essa visão quando diz “nec uerbo uerbum curabis reddere fidus/ interpres”.23 Observa-se, na máxima horaciana, o uso de duas palavras relacionadas ao conceito da tradução, trasladadas aqui como “tradutor” (interpres), e “traduzir” (reddere), que refletem a visão de tradução vigente na época em que foi escrita, pois interpres, além de tradutor, pode ser um intérprete, alguém que explica, ou ainda um áugure, um intérprete dos deuses, e reddere, como verbo, pode ter, entre outras acepções, a de fazer voltar, conceder, expelir, dizer, proferir, recitar e mesmo responder, de modo que caberia ao tradutor realmente interpretar, ou mesmo explicar em determinados casos, e exprimir em sua própria língua o que teria sido dito, de outra forma, sem fidelidade à língua de partida, privilegiando a língua materna, ou aquela para a qual se visa a traduzir. Plauto, que em alguns dos prólogos de suas peças chegou a revelar a autoria do original adaptado, utiliza-se, para referir-se à tradução, o verbo uertere; um exemplo é o prólogo da Asinaria, cujo modelo teria sido o comediógrafo grego Demófilo, nos versos 10-11, em que se lê: Huic nomen Graece Onagost fabulae;/ Demophilus scripsit, Maccus uortit barbare, “O nome desta peça em grego é Onagos;/ Demófilo a escreveu, Maco a traduziu em língua bárbara”. Plauto refere-se, na passagem, comicamente ao latim como uma língua bárbara, da mesma maneira que os gregos o faziam (lembremo-nos que no caso da palliata o ambiente e as personagens eram gregos, e Plauto, nesse caso, utiliza-se disso para satirizar a própria língua). O verbo uertere, ali empregado, sugere, além da ação de traduzir, a de voltar, desviar, mudar, trocar, transformar, o que, de fato, ocorria quase sempre quando as peças eram adaptadas. Pode-se entender, assim, que a crítica de Gélio se estenda para além do âmbito da comédia, como se disse, para uma visão de tradução consolidada em Roma, em que os originais eram suplantados24. Bettini (2012), em seu Vertere, vai mais além, discorrendo sobre os diversos termos utilizados para referir-se ao processo tradutório em Roma. Segundo ele, por exemplo, o uso do termo uertere, que ocorre repetidamente em vários prólogos de peças plautinas, como já foi exemplificado acima, sugere “a intervenção de uma força mágica, sobrenatural, capaz de operar uma transformação com matiz de metamorfose”25 (BETTINI, 2012, p. 39), e reforça seu argumento lembrando a 23 “nem palavra por palavra tratarás de traduzir como tradutor fiel”. 24 Cf. Berman, 2007, pp.30-33. 25 “l’intervento di uma forza magica, soppranaturale, capace di operare uma transformazione che sa di metamorfosi” 29 passagem do Amphitruo em que Jove se disfarça de Anfitrião (in Amphitruonis uertit sese imaginem)26. E conclui: “Podemos, portanto, formular a hipótese de que a pessoa que uertit em em latim um texto composto em outro idioma – por exemplo, uma comédia de Plauto que uertit Filemon – opera uma espécie de metamorfose. Ela muda radicalmente sua forma, faz com que seja algo que, aparentemente, é totalmente 'outro' em relação ao que era antes.” (BETTINI, 2012, p.39)27 Também em As Báquides percebemos uma analogia em relação ao processo de metamorfose ao qual, segundo Bettini, alude o verbo uertere, mais especificamente quando Crísalo, gabando-se da façanha de ter enganado o senex Nicobulo, e enaltecendo sua próprias qualidades, diz, em tom de admoestação, que “convém ao homem valoroso ser uersipellem”(v.658), cuja proposta de tradução neste trabalho é “multiforme”. O crítico italiano relembra que o uso do mesmo vocábulo ocorre também no Amphitruo, e examina mais detalhadamente seu significado, que literalmente, em português, soaria como um 'vira- pele', alguém capaz de alterar identidade colocando sobre si a pele de outrem, assumindo uma nova forma. Entretanto, vale frisar também que a estratégia do chamado uersipellis modifica o seu aspecto externo, sua pele, como bem nos lembra novamente Bettini, referindo-se a Lúcio, protagonista de O Asno de Ouro, de Apuleio, ao afirmar que “a metamorfose do “vira-pele” se focaliza sobre a superfície corpórea, o pelo do cão ou as asas da mosca são vestidos, como uma roupa ou como uma segunda pele.” (BETTINI, 2012, p.40) Contudo, se a metamorfose pode ser considerada como uma mudança aspectual exterior, entende-se, por conseguinte, que sob a nova pele ou a nova aparência, a identidade original permanece, de certa maneira, inalterada; Júpiter sob a pele de Anfitrião ainda continua sendo o pater deorum, apesar da transformação radical que lhe altera a forma, deixando-o irreconhecível. Tratava-se, para os comediógrafos romanos, sobretudo para o sarsinate, objeto deste estudo, de um expediente comum, tanto que o fato de as comédias gregas serem “vertidas” para o latim, mudando de forma inclusive através da inserção de 26 PLAUTO, Amphitruo, v.121 27 “Potremmo dunque formulare l'ipotesi che colui che vertit in latino un testo composto in un'altra lingua – per esempio Plauto che vertit una commedia di Filemone - ne opera una sorta di metamorfosi. Ne muta radicalmente la forma, ne fa qualcosa che all'apparenza risulta totalmente "altro" rispetto a ciò che era prima.” 30 trechos de outras peças (expediente o qual se convencionou, à época, denominar contaminatio), era anunciado de antemão aos espectadores, e à fonte original por diversas vezes era dado o devido crédito, nos prólogos das peças. O mesmo processo ecoa em Cícero tempos depois, em seu De Optimo Genere Oratorum, em que o arpinate se propõe a não traduzir palavra por palavra, mas ainda assim conservar o valor e a força de todas elas.28 Para compreender melhor tal processo, torna-se mister também entender o que poderia motivar tal visão da tradução por parte dos romanos. As análises de Bettini fornecem um insight importante, e a elas podemos acrescentar algumas reflexões importantes de Lefevere, segundo o qual as reescrituras (entre elas as traduções) “são produzidas a serviço, ou sob as restrições, de certas correntes ideológicas e/ou poetológicas.”29 Mas o quê exatamente quer dizer com isso Lefevere? Esse estudioso utiliza-se do conceito de “sistema”, elaborado pelos formalistas russos para definir de que forma a reescrita pode manipular tanto os textos como o cânone literário, preservando determinadas correntes e/ou obras literárias em detrimento de outras. A relação que isso guarda com a tradução é que o ato de traduzir, sendo responsável pela pervivência das obras literárias, confere ao tradutor (ou reescritor, ou ainda intermediário, segundo a terminologia do próprio Lefevere) um enorme poder. Até que ponto os antigos romanos eram conscientes de tal poder não se pode afirmar com certeza, entretanto, pode-se tentar analisar o que os levou a fazer versões (uertere) dos textos literários gregos da forma como o faziam, e sem as mesmas restrições encontradas hodiernamente (como a questão do plágio, por exemplo), entretanto, provavelmente encontrariam outras: Lefevere cita como importante, por exemplo, a questão do “mecenato”; lembremo-nos, aqui, de que os ludi scaenici eram financiados pelo próprio Estado romano, e que o pagamento dos comediógrafos dependia do êxito de suas peças, que, por sua vez, era condicionado à aprovação do público. Roma, à época de Plauto, dava os primeiros passos rumo ao grande império que viria a se tornar; países e culturas eram absorvidos e subjugados, e o intercâmbio cultural, inevitável. A religião, a música e as artes gregas eram incorporadas em larga escala pelos patrícios. Acerca disso, Bettini (2012, p.72) mais uma vez relata um episódio interessante envolvendo um dos principais sucessores de Plauto, e tão renomado quanto ele último, entre cujas obras, além das do sarsinate, estiveram 28 CICERO, De Optime Genere Oratorum, 14. 29 Cf. Lefevere, 2007, p.19 31 algumas das únicas comédias latinas preservadas integralmente até a atualidade. Trata-se de Terêncio, que, no prólogo de sua peça “Os Dois Irmãos” (Adelphoe), defende-se de uma acusação, feita por um rival, de que ele teria “roubado” uma cena da comédia Commorientes, de Plauto30. Não se pretende entrar aqui em maiores detalhes, e, sim, assinalar a natureza da acusação e uma de suas principais implicações, como as questões da originalidade e da fidelidade. Terêncio defende-se da acusação dizendo que, em verdade, não havia retirado a cena do Commorientes, mas sim do “original” grego, que teria sido escrito por Dífilo. As versões latinas de peças gregas eram aceitas, entretanto depreende-se da acusação que o mesmo procedimento de apropriação tornar-se-ia indébito quando feito a partir de outra obra romana. A invectiva da qual Terêncio se defende leva a concluir que existia, de fato, um modus operandi a partir do qual as obras gregas eram vertidas e adaptadas para o público latino; e isso baseando tal hipótese no que já era feito por autores aqui citados, como Lívio Andronico, e outros também anteriores aos comediógrafos, como Ênio e Pacúvio. Tais adaptações ocorriam de acordo com o que era ditado pelo “mecenato”, em uma forma de motivação extrínseca ao sistema literário vigente para tais adaptações, e pelos ditames do próprio fazer literário (as correntes poetológicas citadas por Lefevere), como motivação intrínseca do próprio sistema. Assim, no caso da fabula palliata, eram mantidos certos aspectos gregos das peças, os temas, localidades, mas, especialmente no caso de Plauto, outras características das peças eram alteradas de modo a satisfazer o gosto da audiência romana (o acréscimo da música, os cantica polimétricos, a influência de outras formas de manifestações artísticas existentes até então e que aqui já foram mencionadas, tal como os mimos e as atellanae, e os chamados “nomes falantes” são alguns exemplos) o que não implicava em demérito para os autores, pelo contrário; isso porderia ser o diferencial entre o êxito e o fracasso de suas apresentações, já que, como foi dito na introdução desta pesquisa, os ludi scaenici competiam com outras formas de entretenimento. O próprio Terêncio atesta o fato em um dos prólogos de sua comédia A Sogra (Hecyra), justificando o fracasso dela em sua primeira apresentação, em que o público se entretivera tanto com a performance de um funâmbulo que deste não desviara os olhos um segundo para a representação cênica.31 30 Cf. Bettini, 2012, pp.65-73. 31 Terêncio, Hecyra, Prólogo I, vv. 1-8. 32 Para Berman (2007), o modus operandi tradutório em Roma, que teria encontrado respaldo teórico em Cícero e Horácio, mas que, como observamos em seção anterior deste trabalho, originou-se de uma tradição anterior a eles, e que remete aos primórdios da literatura em Roma, deu origem a todo um modelo de tradução literária em vigência no ocidente, que ele critica, qualificando-o como etnocêntrico, i.e., focado na língua de chegada e, portanto, na cultura da qual ela é o principal baluarte, ignorando, assim, diversas particularidades da língua original, modelo este que veio a ser questionado e confrontado só muito tempo depois. Ele procede, depois, a uma análise sistemática de como esse modelo se desenvolveu, de seus aspectos principais e de como foi rechaçado posteriormente por escritores-tradutores como Hölderlin, para propor posteriormente sua própria visão acerca de uma tradução mais “ética, poética e pensante”, ecoando uma ideia já exposta anteriormente por Walter Benjamin, em seu ensaio Die Aufgaben der Übersetzen (“A tarefa-renúncia do tradutor”), no qual o crítico afirma que “A tradução é uma forma. Para apreendê-la, é preciso retornar ao original.” (BENJAMIN, 2002, p. 205). Curiosa e paradoxalmente, a questão do embate entre a liberdade do tradutor e a fidelidade ao texto de origem, de acordo com Bettini, origina-se já com o próprio Horácio, em consequência do trecho anteriormente citado, em que ele menciona a figura do fidus interpres. Segundo o italiano, o interpres poderia atuar como mediador em uma transação de negócios, portanto a metáfora aqui existia, a princípio, em um contexto mais amplo do que o estritamente literário, estendendo-se para o mundo dos negócios, em que a honestidade era virtude capital para o cidadão romano. Os ecos da máxima horaciana ter-se-iam deformado, por assim dizer, ao longo dos séculos, e o que, em realidade, era um convite à infidelidade deu origem também à interpretação contrária e à ideia atual da necessidade do retorno e do respeito ao texto de partida, ao original, defendidas por Benjamin e Berman, e outros escritores-tradutores que os antecederam. Pensando de modo hegeliano, a tese defendida por Horácio deu origem a sua própria antítese, ao longo do tempo, através do reforço da visão que Lefevere reafirma quando sentencia (ecoando outro provérbio antigo concernente ao processo tradutório) que “tradutores, de uma vez por todas, tem que ser traidores, mas eles não o sabem e quase sempre não tem nenhuma outra escolha.”32 32 Cf. Lefevere, 2007, p. 32 33 De acordo com a visão mais moderna que se estruturou ao longo do tempo a partir da antítese do postulado de Horácio, e da qual partilham Benjamin e Berman, infere-se que para o tradutor, portanto, e sobretudo para o tradutor de poesia, não basta captar somente o sentido daquilo que é dito, não basta somente decodificar uma mensagem e transportá-la adaptando-a a um outro código, transformando-a. De certo modo, é importante manter a forma original (e aqui a visão de Benjamin e Berman destoa claramente da concepção antiga de tradução apresentada na prática pelos primeiros tradutores, ou reescritores romanos, e posteriormente teorizada, como já se disse, por Cícero e Horácio) ou, pelo menos, buscar um meio-termo, aproximando-a o máximo possível do original, condição expressa no próprio título do ensaio de Benjamin (aqui traduzido como tarefa-renúncia, pois o vocábulo alemão Aufgaben comporta ambas as possibilidades semânticas33) que implica, para aquele que se propõe traduzir, a tarefa de renunciar à própria língua em prol da estranheza do que lhe é alheio, do que é estrangeiro. Isso representa um impasse para o qual não há, a princípio, uma solução ou fórmula pré-estabelecida, e que se complica ainda mais no caso da tradução de um texto poético, em que a forma, os arranjos sintáticos e rítmicos, comportam o cerne de sua expressividade, em que as palavras, polissêmicas por natureza, transbordam multiplicidade de significação. Jakobson também alerta para o problema da tradutibilidade em poesia: “Em poesia, as equações verbais são elevadas à categoria de princípio constitutivo do texto. As categorias sintáticas e morfológicas, as raízes, os afixos, os fonemas e seus componentes (traços distintivos) – em suma, todos os constituintes do código verbal – são confrontados, justapostos, colocados em relação de contiguidade de acordo com o princípio de similaridade e de contraste, e transmitem assim uma significação própria. A semelhança fonológica é sentida como um parentesco semântico. O trocadilho, ou para empregar um termo mais erudito e talvez mais preciso, a paronomásia, reina na arte poética; quer esta dominação seja absoluta ou limitada, a poesia, por definição, é intraduzível. Só é possível a transposição criativa: transposição intralingual – de uma forma poética a outra – transposição interlingual ou, finalmente, transposição inter-semiótica - de um sistema de signos para outro – por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura.” (JAKOBSON, 1985, p.72). Trata-se, portanto, ao traduzir o texto poético, de transpor todo um sistema linguístico que é alheio à língua de chegada, recriando-o. A tarefa parece impossível, mas apesar disso, 33 Cf. Benjamin, 2002, p. 229, nota da tradutora. 34 necessária, e a finalidade da tradução pode ser a de garantir, ainda que momentaneamente, a pervivência do original; trabalho efêmero e necessário, a renovar-se constantemente, como a pedra levada por Sísifo até o cume da montanha, para novamente despencar, rolando, para o outro lado, reiniciando assim, o processo. Benjamin deixa clara a transitoriedade da árdua tarefa, quando admite que “toda tradução é apenas uma forma, de algum modo provisória, de lidar com a estranheza das línguas.” (BENJAMIN, 2002, p. 215). Tem-se aqui, portanto, uma justificativa plausível para a tradução que se segue. No entanto, tal justificativa não é a única. Se verter uma obra para sua própria língua já admite o paradoxo da estranheza de recriá-la (ou recriá-la, como sugere Jakobson) a partir de uma outra, o que se dirá de uma tradução que traslada para uma outra, que, em tese, e somente em tese, temos como nossa? De fato, há muito que no Brasil não se fala a língua de Camões. A última flor do Lácio, ao aportar em terras tupiniquins, sofreu inúmeras transformações que a distanciaram de sua origem lusitana até tornar-lhe, em alguns casos, impossível o reconhecimento, fato que se deve em grande parte ao contato com os escravos vindos da África, que absorveram o idioma de forma irregular, informal, o que criou um efeito de heterogeneidade. O linguista Marcos Bagno, em texto recente, apresentado no X Deutscher Lusitanistentag, na Universidade de Hamburgo, em 13 de setembro de 2013, reflete sobre as mudanças ocorridas no português brasileiro desde a época da colonização, e a influência dos idiomas de origem africana (principalmente o banto) em sua consituição, negligenciada não só por pesquisadores, detentores do saber, mas pelo próprio povo, preconceituoso e envergonhado de suas origens, fato que se reflete no ensino e na difusão da chamada “norma culta” do português (muito mais aparentada a sua contraparte européia) em nosso país, concluindo: “Me parece urgente, diante desses argumentos, assumir o caráter marcadamente africano do português brasileiro, levar adiante descrições cada vez mais detalhadas da nossa língua à luz dessas constatações e, sobretudo, declarar e assumir de uma vez por todas que o português brasileiro é uma língua diferente do português europeu, decerto muito aparentada, mas já suficientemente distinta em seu próprio sistema sintático e, por conseguinte, semântico e discursivo.” (BAGNO, 2013, p. 13). Embora pareça forçoso à primeira vista, ao aparentar, de forma tão exacerbada, a língua falada entre nossos conterrâneos com as línguas africanas que indubitavelmente a 35 influenciaram, o argumento de Bagno evidencia a diferença clara que existe entre o português europeu e o brasileiro. Encontra-se aí, pois, mais um ponto em que se evidencia a necessidade e a importância da tradução que se propõe neste trabalho: além da transitoriedade do ato de traduzir, carente de constante renovação, i.e., de novas traduções, é imprescindível que sejam vertidas obras literárias para o português brasileiro, sobretudo as clássicas, e ainda mais as plautinas, em que se observa uma reconstrução poética do sermo familiaris, coloquialismos e jogos de palavras, fatores que engendram uma comicidade e um dinamismo que se perdem no caso das traduções de As Báquides existentes em português europeu. No levantamento bibliográfico feito durante a pesquisa tencionada foram encontradas duas delas, uma recente, lusitana, de Cláudia Teixeira, publicada em 2006, no primero volume de um projeto de tradução completa das comédias de Plauto, realizado pela Universidade de Coimbra, e uma brasileira, de Newton Belleza, já antiga, datando de 1977. Não se trata de desmerecer os esforços dos pesquisadores e tradutores da nação que nos deu origem, mas de ressaltar o fato de que é indispensável que os mesmos esforços também ocorram em terras brasileiras, e que haja traduções mais atuais (dada a já citada transitoriedade da reescrita em forma de tradução), fato reforçado pelo crescente número de pesquisas e traduções de Plauto e Terêncio em nosso país, algumas delas inclusive mencionadas e utilizadas na feitura desta dissertação. Deve-se ressaltar, também, que as traduções de As Báquides supracitadas parecem ignorar o aspecto poético inerente à sua composição. Os versos perdem sua unidade, os diálogos tornam-se prosaicos, perdendo grande parte do encantamento gerado pela rítmica, pelas aliterações, pelos arranjos sintáticos inusitados, falhas que tentaremos minorar com a versão dos cantica da peça aqui trazidos para o português brasileiro, e que abrem espaço também para uma possível continuação desta pesquisa: a tradução integral do texto da comédia em questão, nos mesmos moldes. Sobre a tradução que aqui se propõe, levaram-se em consideração todas as características e reflexões já mencionadas nestes escritos sobre a difícil tarefa: na medida do possível, tentou-se respeitar a riqueza poética dos versos do sarsinate, mantendo-se os arranjos sintáticos e as relações de contiguidade entre os vocábulos, tratando cada verso como uma unidade em si, entretanto não completamente dissociada do todo, já que ainda se trata de uma peça com um enredo. Foram utilizados versos livres, e, embora não tenha existido o intento de uma transposição da métrica plautina, e consequentemente, de sua rítmica, fez-se o 36 possível para preservar, ao menos em parte, a poeticidade do texto plautino. Notar-se-ão também mudanças de registro nas falas das personagens, como trechos coloquiais seguidos de outros, em que a grandiloquência é notória, como por exemplo, algumas falas de Crísalo, em especial na monodia em que compara, em tom zombeteiro, a extorsão, pela segunda vez, do senex Nicobulo, ao mítico relato da tomada de Tróia, através do conhecido estratagema do cavalo de madeira, oferecido pelos aqueus aos inimigos como presente de reconciliação. Tentamos reproduzir esses câmbios súbitos de registro, incongruência (ou estratégia?) também encontrada no texto de origem, por conta de diversos fatores que também serão abordados em posterior análise, podendo-se adiantar aqui que, muito possivelmente, se trata de um artifício, utilizado pelo próprio Plauto, de modo muitas vezes paródico, como mais um recurso objetivando a comicidade, principal intento de sua obra. Segue, portanto, abaixo, o texto em sua versão traduzida, intercalado página a página com o original latino, para mais fácil apreciação e cotejo. 37 I – 1. Para quem o caráter é útil na alma, é modesto sem ser servil II – 2. grilhões, varas, moinhos: o castigo ruim 2a. fica pior VIII – 9. Sei que seu sopro é muito maior 10. que o ar que há nos foles taurinos, quando liquefazem 11. as pedras, quando é feito o ferro. :: de onde ele dizia ser? 12. :: Prenestino eu penso que seja, era mesmo um fanfarrão. XII – 17. meu coração, minha esperança, 18. mel meu, doçura, alimento, alegria 26. (PI.) Que a mim e meu parceiro tem atormentado. 612. (MN.) Safado, sem-vergonha e esquentado, idiota indomado, Sem modos, imoderado sou, sem juízo nem honra, Incrível, insano das idéias, insuportável, impolido vivo, 615. com malévolo gênio nascido. Enfim, tenho em mim essas coisas que quero só pros outros. Dá pra acreditar? Não há ninguém mais nefasto nem mais indigno de que os deuses bem lhe façam nem de que os homens o amem e o acompanhem. Inimigos como amigos é justo que eu tenha; 620. Os maus e não os bons é que mais me ajudariam. De todos os vitupérios que dos homens vis são dignos, não há homem mais digno que eu, que devolvi ao pai todo o ouro que, apaixonado, 624. eu tinha na mão. Não sou mesmo um miserável? 624a. Acabei comigo mesmo e com o esforço do Crísalo. 625. (PI.) Devo consolá-lo, vou até ele. 626. Ô Mnesíloco, qualé? (MN.) Me lasquei! 626a. (PI.) Que os deuses te ajudem. (MN.) Me lasquei! 627. (PI.) Cala a boca, tá doido? (MN.) Cala a boca? 38 I – 1. Quibus ingenium in animo utibile est, modicum et sine vernilitate II – 2. uincla, uirgae, molae: saeuitudo mala 2a. fit peior VIII – 9. scio spiritum eius maiorem esse multo 10. quam folles taurini habent, cum liquescunt 11. petrae, ferrum ubi fit. :: cuiatem esse aiebat? 12. :: Praenestinum opino esse, ita erat gloriosus. XII – 17. cor meum, spes mea, 18. mel meum, suauitudo, cibus, gaudium. 26. (PI.) quae sodalem atque me exercitos habet. 612. (MN.) petulans, proteruo iracundo animo, indomito incogitato, sine modo et modestia sum, sine bono iure atque honore incredibilis imposque animi, inamabilis inlepidus uiuo, 615. maleuolente ingenio natus. postremo id mi est quod uolo 615a. ego esse aliis. credibile hoc est? nequior nemost neque indignior quoi di bene faciant nec quem quisquam homo aut amet aut adeat. inimicos quam amicos aequum est me habere; 620. malos quam bonos par magis me iuuare. omnibus probris quae improbis uiris digna sunt, dignior nullus est homo, qui patri reddidi omne aurum, amans, 624. quod fuit praet manu. sumne ego homo miser? 624a. perdidi me atque operam Chrysali. 625. (PI.) consolandus mi hic est, ibo ad eum. 626. Mnesiloche, quid fit? (MN.) perii! 626a. (PI.) di melius faciant. (MN.) perii! 627. (PI.) non taces, incipiens? (MN.) taceam? 39 627a. (PI.) Não tá batendo bem. (MN.) Me lasquei! 628. Dores doídas meu peito agora, 628a. acres e agudas, afligem: 629. Na acusação eu acreditei? 629a. Sem motivo contigo irritado fiquei. 630.(PI.) Ei, levanta essa cabeça. (MN.) De que jeito? 630a. Até um morto vale mais que eu agora. 631. O parasita do soldado há pouco 631a. veio aqui pra pedir o ouro: 632. falei um monte pra ele, 632a. botei pra fora daqui, praquela mulher 633. eu repeli, esculachei o homem. (MN.) De quê me adianta isso? 634. O que faço? Nada tenho, tô lascado: 634a. Com certeza ele vai levá-la, eu sei. 635. (PI.) Se eu tivesse a grana, não daria. (MN.) Sei que daria, te conheço. Mas se não estivesse apaixonado, não teria em você tanta confiança; Agora já se preocupa o bastante, você mesmo, com suas coisas Como posso esperar amparo de um desamparado como você? (PI.) Cale-se: algum deus nos ajudará. (MN.) Ah, que besteira! 640. (PI.) Espera. (MN.) Que é? (PI.) Seu reforço 640a. aí, é Crísalo que avisto. 640b. (CR.) A este homem que em ouro vale o que pesa, convém erigir uma estátua de ouro: pois hoje uma dupla façanha eu fiz, com duplos espólios estou carregado. Meu mestre, como hoje eu o engambelei legal, como o enrolei! O velho matreiro, com matreiros truques Compeli e impeli em tudo a me acreditar. 645. Agora, para o amo-amante, filho do velho Com quem eu bebo, com quem eu como e amo, Régios e áureos recursos eu trouxe para que não saísse de casa nem procurasse fora. 40 627a. (PI.) sanus satis non es. (MN.) perii! 628. multa mala mi in pectore nunc, 628a. acria atque acerba eueniunt: 629. criminim me habuisse fidem? 629a. inmerito tibi iratus fui. 630. (PI.) heiia, bonum habe animum. (MN.) unde habeam? 630a. mortuus pluris pretist quam ego sum. 631. militis parasitus modo 631a. uenerat aurum petere hinc: 632. eum ego dictis malis 632a. his foribus atque hac 633. reppuli, reieci hominem. (MN.) quid mihi id prodest? 634. quid faciam nil habeo miser: 634a. ille quidem hanc abducet, scio. 635. (PI.) si mi sit, non pollicear. (MN.) scio, dares, noui. sed nisi ames, non habeam tibi fidem tantam; nunc agitas sat tute tuarum rerum; egone ut opem mi ferre putem posse inopem te? (PI.) tace modo: deus respiciet. (MN.) nugae. 640. (PI.) mane. (MN.) quid est? (PI.) tuam copiam 640a. eccam Chrysalum uideo. 640b. (CR.) hunc hominem decet auro expendi, huic decet statuam statui ex auro: nam duplex hodie facinus feci, duplicibus spoliis sum adfectus. erum maiorem meum ut ego hodie lusi lepide, ut ludificatust! callidum senem callidum dolis compuli et perpuli mi omnia ut crederet. 645. nunc amanti ero, filio senis quicum ego bibo, quicum edo et amo, regias copias aureasque optuli ut domo sumeret neu foris quaereret. 41 Eu não gosto desses Parmenões, Siros, 650. Que só duas ou três minas surrupiam dos patrões. 651. nada é mais sem graça que 651a. um escravo sem recursos, que não tem um peito polivalente e que, onde quer que esteja, exponha seu peito. Nenhum homem pode ter valor, 655. a não ser que consiga fazer o bem e o mal. Que seja perverso com os perversos, ladrão com os ladrões e pegue o que puder: Ao varão de valor convém ser multiforme com o que experimenta o espírito: 660. que seja bom com os bons, mau com os maus E que em qualquer situação, seu ânimo seja conforme. Mas eu queria saber quanto ouro o patrão pra si pegou e quanto devolveu ao seu pai. 665. Se ele é esperto, um Hércules fez do pai: a décima parte lhe deu, e pra si tomou nove. Mas olha aí quem eu procuro, ótimo! Aí, bem no meu caminho! Por acaso deixou cair algum cascalho, ô patrão, 668a. pra pro chão assim olhar tanto? Por quê percebo vocês tão tristes e abatidos? 670. Não tô gostando, agora aí tem...porque não me respondem? 42 non mihi isti placent Parmenones, Syri, 650. qui duas aut tris minas auferunt eris. 651. nequius nil quam egens 651a. consili seruus, nisi habent multipotens pectus: ubicumque usus siet, pectore expromat suo. nullus frugi esse potest homo, 655. nisi qui et bene facere et male tenet. Improbis cum improbus sit, harpaget furibus, furetur quod queat: uersipellem frugi conuenit esse hominem pectus cui sapit: 660. bonus sit bonis, malus sit malis utcumque res sit, ita animum habeat. sed lubet scire quantum aurum erus sibi dempsit et quid suo reddidit patri. 665. si frugi est, Herculem fecit ex patre: decimam partem ei dedit, sibi nouem abstulit. sed quem quaero, otime eccum obuiam mihi est. numqui nummi exciderunt, ere, tibi, 668a. quod sic terram optuere? quid uos maestos tam tristesque esse conspicor? 670. non placet nec temerest etiam. quin respondetis mihi? 43 925. (CR.) Os dois irmãos Atridas ficaram famosos pelo feitio de façanha máxima, quando Pérgamo, pátria de Príamo, protegida por divina mão, com armas, cavalos, um exército e exímios soldados e mil navios, depois de dez anos subjugaram. Isso não foi uma pereba no pé perto do que aprontarei pro patrão 930. sem frota e sem exército e sem tantos guerreiros. (capturei, e extorqui, para o filho-amante, o ouro de seu pai.) Agora, antes que pra cá o velho venha, um lamento já entôo: Ó Tróia, ó pátria, ó Pérgamo, ó Príamo, pereceste, velho, que será, miserável, moído por quatrocentos Filipos áureos. 935. Agora estas tabuinhas seladas e assinadas que carrego 936. não são tabuinhas, e sim o cavalo de madeira que os Aques mandaram. 937. Pistoclero é Epeu: dele elas foram tomadas; Mnesíloco é Sinon, 938. relegado, ei-lo, não sobre a pira de Aquiles mas sobre um leito se deita; 939. A Báquide tem ele consigo; aquele outrora teve o fogo que daria o sinal, 940. este é chamuscado por ele; eu sou Ulisses, cujo conselho tudo isto dirige. 941. E então as letras que aqui estão escritas, são os soldados no cavalo encerrados, 942. animados e armados muito bem. Assim, para mim tudo foi um sucesso até agora! 943. E este cavalo não contra um castelo, mas na verdade contra um cofre investirá: 944. destruição, decadência, deslumbramento: é o que será este cavalo pro ouro do velho. 945. A este nosso velho estúpido, com certeza lhe chamarei Ílio. O milico é Menelau, eu Agamenão, e também Ulisses Laércio; Mnesíloco é Alexandre, que será a ruína de sua pátria: ele que raptou Helena, por cuja causa agora faço o cerco a Ílio. Pois ele, tal qual Ulisses (que sou eu), ouvi dizer, foi audaz e maligno. 950. Fui pego no ato, e ele, descoberto como mendigo, morreu quase, enquanto ali inquiria o paradeiro dos Ílios; o mesmo hoje me ocorreu. Fui amarrado, mas me safei pela esperteza; também ele se safou pela sua. 953. Sobre Ílio, foram três, dizer ouvi, 953a. Os fados que lhe indicaram a ruína: 44 925. (CH.) Atridae duo fratres cluent fecisse facinus maxumum, quom Priami patriam Pergamum, diuina moenitum manu, armis, equis, exercitu atque eximieis bellatoribus milli cum numero nauium decumo anno post subegerunt. non pedibus termento fuit praeut ego erum expugnabo meum 930. sine classe sineque exercitu et tanto numero militum. [cepi, expugnaui amanti erili filio aurum ab suo patre.] nunc prius quam huc senex uenit, lubet lamentari dum exeat: O Troia, o patria, o Pergamum, o Priame periisti senex, qi misere male mulcabere quadringentis Phillipis aureis. 935. nam ego has tabellas obsignatas consignatas quas fero non sunt tabellae, sed equos quem misere Achiui ligneum. 937. Epiust Pistoclerus: ab eo haec sumptae; Mnesilochus Sino est 938. relictus, ellum non in busto Achilli sed in lecto accubat; 939. Bacchidem habet secum: ille olim habuit ignem qui signum daret, 940. hic ipsum exurit; ego sum Ulixes, cuius consilio haec gerunt. 941. tum quae hic sunt scriptae litterae, hoc in ego insunt milites, 942. armati atque animati probe. ita res successit mi usque adhuc. 943. atque hic equus non in arcem, uerum in arcam facie impetum: 944. exitium, excidium, exlecebra fiet hic equos hodie auro senis. 945. nostro seni huic stolido, ei profecto nomen facio ego Ilio. 946. [miles Menelaust, ego Agamemno, idem Ulixes Lartius; 947. Mnesilochust Alexander, qui erit exitio rei patriae suae: 948. is Helenam auexit, cuia causa nunc facio obsidium Ilio.] 949. nam illi itidem Ulixem audiui, ut ego sum, fuisse et audacem et malum: 950. dolil ego prensus sum, ille mendicans paene inuentus interit dum ibi exquirit facta Iliorum; adsimiliter mi hodie optigit: uinctus sum, sed dolis me exemi: item se ille seruauit dolis. 953. Ilio tria fuisse audiui 953a. fata quae illi forent exitio: 45 954. Se o marco da cidade se perdesse; 954a. O segundo também, é a morte de Troilo; 955. E em terceiro, quando da porta Frígia 955a. A verga superior fosse rompida; 956. Parecidos, assim, também, a esses três, três sinais 956a. fadaram esta nossa Ílio. Pois há pouco, primeiramente, quando pro nosso velho menti Sobre o hóspede, e sobre o ouro e sobre o barco, aí eu já roubei o marco da cidade. Restavam então dois fados; não havia capturado totalmente a cidade, 960. pois assim que levei as tabuinhas pro velho, aí eu matei Troilo, e ele pensou que Mnesíloco estivesse com a “esposa” do soldado. (aí me livrei com dificuldade: e comparo esse perigo ao de Ulisses, como contam, reconhecido por Helena e revelado a Hécuba; mas como naquela época ele se safou com blandícias, e persuadiu-a a deixá-lo ir, 965. assim eu também me livrei daquele perigo e enganei o velho. Depois, com o soldado sonso, que desarmado captura cidades na conversa, eu me bati e o homem repeli; então travei combate com o velho: A ele venci completamente com uma só mentira, com um só golpe logo capturei os espólios. Ele agora duzentos Filipos ao soldado 970. dar prometeu, e dará. Agora é necessário outra vez que outros duzentos sejam distribuídos, De Ílio após a captura, para que haja vinho com mel com que os soldados celebrem. (mas este Príamo supera, e muito, aquele: não só cinquenta, mas quatrocentos filhos ele tem, e decerto todos escolhidos a dedo, perfeitos! 975. Eu hoje vou decapitá-los com dois golpes só. Agora se pro Príamo nosso há algum comprador, um velho imprestável que tenho aqui a venda eu venderei, assim que tiver tomado a cidade. Mas eis que vejo Príamo parado diante da porta. Vou até ele lhe falar. 979. (NI.) De quem é essa voz que próxima me soa? (CR.) Ô, 979a. Nicobulo! (NI.) Que foi? 46 954. signum ex arce si periisset; 954a. alterum etiamst Troili mors; 955. tertium, cum portae Phrygiae 955a. limen superum scinderetur; 956. paria item tria eis tribus sunt 956a. fata nostro huic Ilio. nam dudum primo ut dixeram nostro seni mendacium et de hospite et de auro et de lembo, ibi signum exa arce iam abstuli. iam duo restabant fata tunc, nec magis id ceperam oppidum. 960. post ubi tabellas ad senem detuli, ibi occidi Troilum, cum censuit Mnesilochum cum uxore esse dudum militis. [ibi uix me exsolui: atque id periclum adsimilo, Ulixem ut praedicant cognitum ab Helena esse proditum Hecubae; sed ut olim ille se blanditiis exemit et persuasit ut se amitteret, 965. item ego dolis me illo extuli e periclo et decepi senem.] poste cum magnifico milite, urbes uerbis qui inermus capit, conflixi atque hominem reppuli; dein pugnam conserui seni: eum ego adeo uno mendacio deuici, uno icto extempulo cepi spolia. is nunc ducentos nummos Phillipos militi, 970. quos dare se promisit, dabit. nunc alteris ducentis usus est qui dispensentur, Ilio capto ut sim mulsum qui triumphent milites. [sed Priamus hic multo illi praestat: non quinquaginta modo, quadringentos filios habet atque equidem omnis lectos sine probro: 975. eos ego hodie omnis contruncabo duobus solis ictibus. nunc Priamo nostro si est quis emptor, comptionalem senem uendam ego, uenalem quem habeo, extemplo ubi oppidum expugnauero.] sed Priamum adstantem eccum ante portam uideo. adibo atque adloquar. 979. (NI.) Cuianam uox prope me sonat. (CH.) o 979a. Nicobule! (NI.) quid fit? 47 980. Aquilo que te mandei fazer, por acaso você 980a. fez? (CR.) E ainda pergunta? Chega mais. (NI.) Chego. 981. (CR.) Um ótimo orador eu sou: às lágrimas 981a. o homem levei, castigando 982. cruelmente, com palavras, todas aquelas que consegui 982a. encontrar. (NI.) E ele? (CR.) Coisa 983. nenhuma disse: chorando em silêncio 983a. escutava o que eu lhe dizia; 984. Quieto escreveu estas tabuinhas, 984a. e assinadas ele me deu. 985. A você me mandou dar, mas temo que cantem o mesmo que as primeiras; 986. reconhece o selo: não é o dele? (NI.) Reconheço. Quero lê-las. (CR.) Leia. 987. Agora a verga superior é rompida, agora aproxima-se a ruína de Ílio. 988. O madeiro cavalo elegante empina. (NI.) Crísalo, fica aqui enquanto leio. 988a. (CR.) E porque é necessário eu ficar? (NI.) O que mando quero que faça, 989. para que saiba o que aqui estiver escrito. 989a. Não sei e não quero saber. 990. (NI.) Fique aí, mesmo assim. (CR.) Pra quê? (NI.) Cale-se: 990a. O que mando, você faz. (CR.) Ficarei. NI. Que beleza hein, letras diminutas! (CR.) Quiçá pra quem vê pouco, na verdade pra quem bem vê, bem grandes são. (NI.) Presta atenção, então. (CR.) Não quero, já disse. (NI.) E eu quero, já disse. (CR.) Pra quê? (NI.) Ora, porque o que te mando, você faz. (CR.) É justo que seu servo, segundo sua vontade, te sirva. 995. (NI.) Vamos, então, vou ler. (CR.) Quando quiser, 995a. pode ler; pra você sou todo ouvidos. 996. (NI.) Com certeza não poupou nem cera nem estilo; 996a. mas de qualquer maneira, tudo leio, isto é certo. 48 980. quid quod te misi, ecquid egis- 980a. ti? (CH.) rogas? congredere. (NI.) gradior. 981. (CH.) optumus sum orator: ad lacrimas 981a. hominem coegi castigando 982. maleque dictis, quae quidem quiui 982a. comminisci. (NI.) quid ait? (CH.) uerbum 983. nullum fecit: lacrumans tacitus 983a. auscultabat quae ego loquebar; 984. tacitus conscripsit tabellas, 984a. obsignatas mi has dedit. 985. tibi me iussit dare, sed metuo ne idem cantent quod priores; 986. nosce signum: estne eius? (NI.) nui. libet perlegere has. (CH.) perlege. 987. nunc superum limen scinditur, nunc adest exitium Ilio. 988. turbat equos lepide ligneus. (NI.) Chrysale, ades dum ego has perlego. 988a. (CH.) quid me tibi adesse opus est? (NI.) uolo ut quod iubeo facias, 989. ut scias quae hic scripta sient. 989a. nil moror nec scire uolo. 990. (NI.) tamen ades. (CH.) quid opust? (NI.) taceas: 990a. quod iubeo, id facias. (CH.) adero. (NI.) euge, litteras minutas! (CH.) qui quidem uideat parum uerum qui satis uideat, grandes satis sunt. (NI.) animum aduortito igitur. (CH.) nolo inquam. (NI.) at uolo inquam. (CH.) quid opust? (NI.) at enim id quod te iubeo facias. (CH.) iustumst tuus tibi seruus tuo arbitratu seruiat. 995. (NI.) hoc age sis nunciam. (CH.) ubi lubet, 995a. recita: aurium operam tibi dico. 996. (NI.) cerae quidem haud parsit nec stilo; 996a. sed quicquid est, pellegere certumst. 49 1076. (FI.) Quanto mais a pensar eu fico, em meu filho e nas peças que prega, a que vida e a que costumes precipitado, ignorante, se apega. maior a preocupação e maior o medo, que não se perca nem se corrompa. Sei, fui também dessa idade e fiz isso tudo, mas de modo moderado; 1080. nem agradam os costumes que vejo em geral entre filhos e pais. 1081. levei para casa cortesãs, bebi, presentes dei, mas vez ou outra. 1082. eu resolvi dar folga a meu filho para que possa se divertir; penso ser justo, mas não quero lhe dar rédea larga à indolência. 1084. Agora, Mnesíloco, que mandei, 1084a. verifico se acaso à virtude ou à 1085. prudência, por obra sua, o conduziu, assim 1085. como, se o encontrou, estou certo que fez: esse seu engenho é nato. (NI) Todos os que são, que foram, todos os que serão estúpidos, e tolos, tontos, toscos, burros, bestas, bobalhões, 1089. sozinho eu a todos de longe excedo 1089a. em estultícia e ações ignorantes. 1090. Me lasquei, que carão! E nesta idade 1090a. ser enganado duas vezes tão indignamente? 1091. Quanto mais penso a respeito, mais eu sofro 1091a. com as filiais trapalhadas. 1092. Perdido estou, destruído, decerto 1092a. estou, todos os suplícios sofro, 1093. todos os males me perseguem, 1093a. todos as mortes eu morro. 1094. O Crísalo hoje me lascou 1094a. O Crísalo me deixou lisinho: 1095. Aquele canalha o ouro, sem parar, tosqueou 1095a. com artimanhas manjadas, de mim, o tonto, à vontade. 1096. Assim o milico menciona que uma meretriz 50 1076. (PH.) quam magis in pectore meo foueo quas meus filius turbas turbet, quam se ad uitam et quos ad mores praecipitem inscitus capessat, magis curae est magisque adformido ne is pereat neu corrumpatur. scio, fui ego illa aetate et feci illa omnia, sed more modesto; 1081. duxi, habui scortum, potaui, dedi, donaui, sed enim id raro. 1080. nec placitant mores quibus uideo uolgo gnatos esse parentes: 1082. ego dare me [ludum] meo gnato institui ut animo obsequium sumere possit; aequum esse puto, sed nimis nolo desidiae ei dare ludum. 1084. nunc Mnesilochum, quod mandaui, 1084a. uiso ecquid eum ad uirtutem aut ad 1085. frugem opera sua compulerit, sic 1085a. ut eum, si conuenit, scio fe- cisse: eost ingenio natus (NI.) quicumque ubi sunt, qui fuerunt quique futuri sunt posthac stulti, solidi, fatui, fungi, bardi, blenni, buccones, 1089. solus ego omnes longe antideo 1089a. stultitia et moribus indoctis. 1090. perii, pudet: hoccin me aetatis 1090a. ludos bis factum esse indigne? 1091. magis quam id reputo, tam magis uror 1091a. quae meus filius turbauit. 1092. perditus sum atque [etiam] eradicatus 1092a. sum, omnibus exemplis excrucior, 1093. omnia me mala consectantur, 1093a. omnibus exitiis interii. 1094. Chrysalus me hodie lacerauit, 1094a. Chrysalus me miserum spoliauit 1095. is me scelus auro usque attondit 1095a. dolis doctis indoctum ut lubitumst. 1096. ita miles memorat meretricem es- 51 1096a. é a que ele dizia ser sua esposa. 1097. Tudo, tudo o que foi feito, ele falou: 1097. ele para si, neste ano, a conduzira, 1098. e o restante do ouro é o que eu, 1098a. estupídíssimo homem, lhe prometi; isso, 1099. isso é o que me exaspera; 1099a. É isso que, em suma, sofro, 1100. Nesta idade, me engambelar, 1100a. na verdade, por Pólux, duas vezes ludibriado; 1101. com cabeça branca e alva barba 1101a. de mim, miserável, o ouro ser surrupiado. Me lasquei, e pelo atrevime