http://www.uem.br/acta ISSN printed: 1679-9283 ISSN on-line: 1807-863X Acta Scientiarum Doi: 10.4025/actascilangcult.v34i1.9987 Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 34, n. 1, p. 113-120, Jan.-June, 2012 Tendências à explicitação em A Legião Estrangeira traduzido para o inglês com o título The Foreign Legion por Giovanni Pontiero Celso Fernando Rocha* e Diva Cardoso de Camargo Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, R. Cristóvão Colombo, 2265, 15054-000, São José do Rio Preto, São Paulo, Brasil. *Autor para correspondência. E-mail: celsotrad@yahoo.com.br RESUMO. Este artigo tem como objetivo analisar traços de explicitação no processo tradutório de um corpus literário na direção português-inglês. Os objetos de análise selecionados são A Legião Estrangeira, de Clarice Lispector e a tradução feita por Giovanni Pontiero, The Foreign Legion. Utilizando o aparato teórico- metodológico dos Estudos da Tradução Baseados em Corpus (BAKER, 1993, 1995, 1996, 2000) e da Linguística de Corpus (BERBER SARDINHA, 2004), focalizam-se as inter-relações entre texto original e texto traduzido, bem como as soluções apresentadas por Pontiero na tradução de vocábulos ou expressões preferenciais e recorrentes. Palavras-chave: estudos da tradução baseados em Corpus, Linguística de Corpus, tradução literária, Clarice Lispector, Giovanni Pontiero. Tendencies to explicitation in ‘A Legião Estrangeira’ translated into English with the tittle The Foreign Legion by Giovanni Pontiero ABSTRACT. Some aspects involving explicitness within the literary translation process from Portuguese into English are analyzed. Clarice Lispector’s ‘A Legião Estrangeira’ and its translation by Giovanni Ponteiro as The Foreign Legion, have been selected for current investigation employing the theoretical and methodological approach based on Baker’s Corpus-based Translation Studies (1993, 1995, 1996, 2000) and Berber Sardinha’s Corpus Linguistics (2004). The interrelations between the original and the translated texts and Ponteiro’s solutions in his translation of preferential and recurring terms and idiomatic expressions are underscored and discussed. Keywords: Corpus-based translation studies, Corpus Linguistics, literary translation, Clarice Lispector, Giovanni Pontiero. Introdução Ao perguntarmos a um leigo sobre o que seria ‘tradução’, provavelmente, receberíamos uma resposta que a equacionaria à transferência de significado. Por muito tempo, tal concepção serviu de norma para os tradutores. A própria palavra ‘tradutor’, do latim traductore, ‘o que conduz além’, ‘o que transfere’, nos remete à ideia de um trabalho meramente mecânico e não-passível de interferência. Por este viés, a tradução transferiria da língua de partida (LP) todos os aspectos formais e conteudísticos, toda a carga semântica e cultural, incluindo a possível ‘intenção do autor’ do texto para a língua de chegada (LC). Neste caso, o tradutor torna-se responsável por garantir que a tradução seja espelho do texto original (TO). Tal concepção, além de reduzir a complexidade do processo tradutório, não leva em conta que a partir do contato entre duas culturas, duas épocas históricas, dois autores, bem como as diferenças entre léxico, sintaxe e estilo são tão marcantes que dificultam ou, até mesmo, chegam a impossibilitar uma mera transferência de significados. A tradução é responsável, há milênios, pelo contato entre povos e pela difusão do conhecimento. Apesar de tal período ser longo, não chega a conferir aos estudos da tradução a aceitação e penetração, lograda pelos séculos, de que gozam as ciências, uma vez que a maior parte dos estudos sistemáticos ocorreu no século XX. Com a disponibilidade de ferramentas computacionais, já é possível, neste início do século XXI, maior aproximação do processo tradutório. Com a utilização dos corpora paralelos, a ênfase passa da prescrição para a observação, para uma descrição com maior tendência à objetividade de fenômenos que ocorrem no texto de chegada (TC), levando-nos a perceber na prática tradutória como são, ou não, superadas as dificuldades de tradução. Neste artigo, embora não estejamos analisando diretamente a questão da fidelidade em tradução, 114 Rocha e Camargo Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 34, n. 1, p. 113-120, Jan.-June, 2012 não podemos deixar de mencionar que, para o senso comum, uma boa tradução deve ser fiel ao seu original. O TC acaba sendo visto inevitavelmente como inferior (de qualidade questionável), e o texto de partida (TP) sendo supervalorizado. Desta forma, tal postura crítica impede maiores elucidações quanto aos processos característicos da tradução, bem como a identificação de padrões (traços específicos) que ocorrem na maioria dos textos traduzidos (TT). A partir da proposta de Mona Baker (1993), algumas escolhas tradutórias, que outrora eram desconsideradas, ou, até mesmo, nem percebidas, estão sendo sistematizadas e categorizadas em várias análises em diversas línguas, contribuindo, desse modo, para o estudo de princípios gerais e conceitos-chave do processo de tradução. Um exemplo é o conceito de ‘equivalência’, que se baseia na crença de uma correspondência formal entre as línguas e no enfoque dado ao texto e à cultura de partida, levando, desse modo, a orientações de cunho prescritivo. Com os estudos de tradução baseados em corpus e com o desenvolvimento de ferramentas informatizadas, passamos a ter acesso a uma grande quantidade de dados, possibilitando um novo enfoque a respeito da equivalência. Fazendo uso de programas de computador, como WordSmith Tools, tais dados são coletados de maneira menos árdua e dispostos de tal modo que o pesquisador tem maior acesso à totalidade do TC e do TP. No entanto, mesmo com o avanço tecnológico, o pesquisador tem papel fundamental na interpretação de dados, pois o uso de ferramentas computacionais dinamiza a coleta e seleção de dados, tornando o trabalho mais preciso e menos suscetível a erros. Dentro de uma concepção de tradução mais moderna, o tradutor torna-se coautor do TO. Tendo isso em mente, podemos perceber, por exemplo, a complexidade para traduzir a obra de Clarice Lispector, dada a sua escrita enigmática, introspectiva, retratando temas como morte, vida e existencialismo. Além disso, para possibilitar o acesso à crítica internacional e o decorrente reconhecimento como um dos expoentes da literatura brasileira contemporânea, tornou-se imprescindível a tradução de sua obra. Sobre as dificuldades em traduzir a obra de Lispector, Giovanni Pontiero (1997) menciona que as barreiras linguísticas e culturais são consideráveis. Sendo uma escritora não- convencional e desafiadora, seu texto força o tradutor a realizar um estudo profundo sobre a concepção que Lispector tem de processo literário. Acresce-se, ainda, que um estudo descritivo da obra original e de sua tradução pode permitir, aos alunos de tradução e aos profissionais da área, maior conscientização das aproximações e distanciamentos linguísticos e culturais, além de propiciar melhor compreensão das convergências e divergências entre a LP e a LC que se realizam na tradução. Desta maneira, nosso objetivo é observar o grau de distanciamento e proximidade tradutória entre o TP e o TC com relação a vocábulos e expressões preferenciais ou recorrentes apresentados pelo tradutor Giovanni Pontiero diante dos contos claricianos. Para tanto, nesta pesquisa, o corpus de análise é composto por A Legião Estrangeira (LE) (LISPECTOR, 1991), que encerra 13 contos, com um total de 29.485 palavras, bem como por sua tradução para o inglês, The Foreign Legion (FL) (LISPECTOR, 1992), realizada por Giovanni Pontiero, com os respectivos 13 contos, totalizando 33.937 palavras. Foram efetuadas as seguintes etapas: - escaneamento, digitalização e correção do TP e do TC, a fim de prepará-los para análise; - geração de listas de palavras preferenciais do TO e do TT por ordem alfabética e por ordem de freqüência; - extração da WordList Statistics (cálculo estatístico entre a forma/ocorrência, em que cada vocábulo é considerado uma forma ou type, e cada ocorrência de palavra é considerada um token); - identificação de vocábulos ou expressões preferenciais de maior recorrência no TC em relação ao TP; - estudo do grau de similaridades e diferenças na tradução dos vocábulos e expressões preferenciais e recorrentes; - exame de tendências ou estratégias apresentadas pelo tradutor. Perspectiva teórica Baker (1993) defende o estudo de textos traduzidos como registros de eventos comunicativos que devem ser considerados em pé de igualdade com outros eventos comunicativos. Justifica a existência de uma disciplina cujo objeto principal seja a tradução; para tanto, acredita ela que os estudos da tradução devem desvencilhar-se, de certa maneira, das concepções de equivalência, correspondência e mudança quando tais concepções refletirem preocupação apenas com TC e TP específicos. A teórica enfatiza a importância de Tendências à explicitação em A Legião Estrangeira... 115 Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 34, n. 1, p. 113-120, Jan.-June, 2012 estudos de tradução baseados em corpus por possibilitarem uma investigação da natureza do TT como tal. Para a autora, a verdadeira virada nos estudos da tradução acontecerá [...] como consequência direta do acesso a grandes corpora de textos originais e traduzidos e do desenvolvimento de métodos específicos e de ferramentas para investigação desses corpora de forma adequada para os pesquisadores da área. Tais corpora, tanto de textos originais como de textos traduzidos, fornecerão aos teóricos da tradução uma oportunidade única para observar o objeto de seus estudos [...] (BAKER, 1993, p. 235, tradução nossa). Por meio das conquistas de Toury (1978) com o conceito de normas, e de Sinclair (1991) com estudos envolvendo a Linguística de Corpus, Baker (1993) propõe um arcabouço teórico-metodológico de estudos de tradução baseados em corpus: mudando de uma perspectiva conceitual e semântica da linguagem para uma perspectiva situacional de uso da linguagem em um contexto determinado. Com o uso de corpora, torna-se possível ao pesquisador lidar, de modo exequível, com dados extensos, além de diminuir sua dependência intuitiva. Em Baker (1995), observamos, ainda, que os corpora utilizados para a pesquisa podem ser: paralelos (consistem de TOs na LP e suas respectivas traduções na LC); multilíngues (conjunto de dois ou mais corpora monolíngues, que permitem estudar os itens e os traços linguísticos no ambiente de determinada língua, tal como produzida originalmente); e comparáveis (duas coleções separadas de textos na mesma língua, sendo um corpus de TOs na mesma língua, e outro de TTs para essa língua). Empregamos, em nossa pesquisa, um corpus paralelo por permitir observar, por meio de análise, como os tradutores superaram ou não, na prática, as dificuldades de tradução. Observação dos vocábulos mais frequentes: amor/love e casa/house Ao extrairmos a lista de frequência de palavras, notamos que love apresenta grande recorrência no TC e possui uma complexa simbologia nos contos claricianos em estudo. Tal tema está presente na obra de Lispector como um todo. Segundo Pasold (1987, p. 823), o amor, para Clarice, “[...] já nasce com o homem como uma necessidade e é despertado pela paixão [...]”. Em Os desastres de Sofia (LISPECTOR, 1991), por exemplo, pode-se dizer que há, por trás ou paralelamente, ao amor de Sofia por seu professor, um processo de construção da linguagem que é exposto em várias ocasiões. Como, por exemplo, no trecho em que vemos Sofia, dez anos após o elogio do professor, gritar por causa do que sentira quando tinha nove anos: […] I screamed ten years later because of a lost love, ‘who will witness my weakness!’ (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 23, grifo da autora mantido pelo tradutor). [...] gritei dez anos depois por motivos de amor perdido, ‘quem virá jamais à minha fraqueza!’ (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 21, grifo de Lispector). Quando lemos esse trecho no TC, vemos a materialização de um amor específico, sentido por Sofia e que foi perdido. Dessa forma, a lost love pode conferir ao trecho um significado que não recupere o tipo de relacionamento existente no conto - Sofia não ‘perde’ o amor por seu professor, na verdade, ela nunca o teve. Já no TP, podemos inferir que o constante choque de imagens (choque entre a imagem que Sofia faz de seu professor e a imagem que ela crê que ele faz dela mesma) impossibilitou um relacionamento mais ameno entre professor e aluna. No TP, tem-se o sintagma ‘motivos de amor’, empregado como justificativa de quem gosta de alguém e não sabe expressar-se, mas que, mesmo assim, vê nesse alguém a possibilidade de trocar experiências. Claro que o relacionamento de Sofia com seu professor não é tão simples assim: há contradições, vazios e processos linguísticos subjacentes à linguagem clariciana que impedem uma aproximação fundamentada única e exclusivamente na lógica. Portanto, essa possível explicação para o TP pode mostrar-se pouco elucidativa se utilizada em outros contextos senão o aqui proposto, que é estabelecer comparações entre TP e TC. Também, depreendemos de who will witness my weakness uma imagem mental distinta daquela sugerida pelo TP. Enquanto no TC percebemos um movimento em direção à personagem, alguém se acercando dela e jamais sentindo o mesmo que ela sente, (a posição do ‘jamais’ na frase é importante para essa interpretação), no TP, concebemos a personagem em um estado de solidão lançando uma exclamação cuja resposta é ‘ninguém’, atribuindo, assim, ao trecho, um tom irônico. Nesta outra passagem, temos ‘You are a very funny child, you are a foolish little girl’, he had said. ‘It was almost like being in love’ (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 26, grifo nosso). ‘Você é uma menina muito engraçada, você é uma doidinha’, dissera ele. ‘Era como um amor’ (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 24, grifo nosso). 116 Rocha e Camargo Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 34, n. 1, p. 113-120, Jan.-June, 2012 Novamente, na sentença it was almost like being in love, é possível notarmos que a situação era quase igual a de se estar apaixonado, o que é negado no início do conto: ‘[...] Não o amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança [...]’, (LISPECTOR, 1991, p. 24). Cremos que, no trecho do TP, o vocábulo ‘amor’ não está relacionado ao possível amor de Sofia, mas sim ao ‘quase’ entendimento entre Sofia e o professor. Tais diferenças sutis no uso da palavra amor, reforçadas por seu conceito radical deste sentimento nobre [...] amar é dar a alguém a própria vida e solidão, (PASOLD, 1987, p. 823), além da dificuldade de expressar - tanto a realidade quanto as relações humanas - por meio da linguagem, ocorrem em outras partes do texto clariciano. Em A mensagem (LISPECTOR, 1991), a temática do amor também se faz presente, bem como o processo de elaboração metalinguística. Neste conto, o amor de dois jovens gira em torno do uso que fazem de palavras, tais como ‘angústia’, ‘evoluir’, ‘superar’. A personagem masculina (assim como a protagonista do conto Os desastres de Sofia) não consegue expressar e realizar trocas materiais, sensíveis e espirituais. Há aproximação entre as personagens, mas não há doação recíproca. No fim do conto, vemos a separação de duas almas que não conseguiram estabelecer laços profundos e, por consequência, tornaram-se estranhos um para o outro. A figura do exterior de uma casa, que representa a aparência ou máscara do homem, aparece no momento em que as personagens tomam caminhos distintos. A máscara, dessa forma, poderia ser vista como um impedimento ao amor, ou como uma impossibilidade a maiores trocas entre os ‘amantes’. No trecho, The vague event around the old house only occurred because they were both prepared for it. It ‘was simply an old abandoned house’ (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 36, grifo nosso). O vago acontecimento em torno da casa velha só existiu porque eles estavam prontos para isso. Tratava-se apenas de ‘uma casa velha e vazia’ (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 36, grifo nosso). O termo ‘casa’ aparece no conto pela primeira vez. Note-se que no TC o modificador de casa é abandoned: a imagem mais provável, ao se utilizar esse adjetivo, seja a de uma casa abandonada, podendo ter móveis e objetos em seu interior. Abandoned apresenta uma abertura maior de significados, tais como ‘deserto, desocupado, vago, inabitado’; ‘deixado, esquecido’. Se atentarmos para o TP, vemos que a casa está ‘vazia’, ou seja, as qualidades da casa (velha e vazia) são mais objetivamente direcionadas. O leitor pode inferir, por exemplo, que não há mais nada para ser dito (entre as personagens), ou que a casa não continha mais nada em seu interior que pudesse ser intercambiado e encontra- se próxima de seu fim (velha). Em outro trecho, temos: No, no it had not been bombarded; it was ‘only’ a ‘broken-down’ house, as a child might say (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 38, grifo nosso). Não, não era por bombardeio: mas era uma casa ‘quebrada’, como diria uma criança (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 38, grifo nosso). O uso de um adjetivo e um advérbio muda a imagem (e o sentido) da referida casa na comparação entre TP e TC. No adjetivo broken-down, temos uma ideia de que a casa ruiu, reforçada pela preposição down, que indica um movimento de cima para baixo. Outra palavra para a descrição da casa no TC é only, atribuindo ao vocábulo house certo descaso ou certa diminuição de sua suposta importância; enfatizando que tal casa é ‘apenas, somente, meramente, simplesmente’ uma casa em ruínas e, nada mais além disso; uma implicação semântica que não ocorre no TP. No trecho seguinte, A large house with a deep foundation (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 37). Uma grande casa enraizada (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 37). A expressão utilizada no TC é deep foundation. Tal expressão pode apagar algumas interpretações que ‘casa enraizada’ poderia suscitar, como, por exemplo, a antiguidade da casa ou suas ramificações. Por sua vez, foundation traz o significado de ‘alicerce’, ‘base’, ‘estrutura sobre a qual algo é construído’ e, o adjetivo deep reforça a noção de profundidade, de algo que não está na superfície (‘interno, íntimo’). Assim, de certa forma, o sintagma deep foundation compartilha a ideia de enraizamento, principalmente, quando se refere à fixação de uma estrutura fundamental. Em uma leitura conotativa, poderíamos relacionar as raízes da casa com o aprofundamento do estado inconsciente das personagens. Ambos no final do conto não conversam mais, estão absortos em experiências insondáveis. No próximo trecho, The house must have been painted once (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 38). A casa devia ter tido uma cor (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 38). Tendências à explicitação em A Legião Estrangeira... 117 Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 34, n. 1, p. 113-120, Jan.-June, 2012 O tempo e o aspecto verbais em português e em inglês apresentam uma distinção tênue entre TP e TC, respectivamente. No TC, há mudança de foco, a ação de pintar a casa é realçada e poderíamos ler o trecho de duas maneiras distintas: primeiro que a casa fora pintada em alguma ocasião no passado e entendemos que ainda seja possível haver sinais da cor utilizada, ou que a casa já não apresenta nenhum sinal da cor utilizada. Já no TP, a casa parece não ter mais cor: talvez porque o relacionamento entre as personagens tenha se desgastado a ponto de não ter sobrado quaisquer resquícios de amor, afeto, carinho etc. Assim, a partir da opção sintático-verbal escolhida pelo tradutor, a impressão causada é a de uma esperança, mesmo que seja ínfima, de encontrar remanescências, diferentemente do TP. O vocábulo ‘casa’ reaparece no conto Viagem a Petrópolis (LISPECTOR, 1991). No trecho extraído do TC, o termo house é recuperado, enquanto é omitido no TP. Acreditamos que tal estratégia do tradutor possa tornar o TC mais compreensível e menos ambíguo. […] I think it's better if we don't stop in front of the house, to avoid any scenes. The old girl will get out, we'll show her where the house is, and she will go there alone and explain that she's come for good (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 62). [...] Acho melhor não pararmos defronte, para evitar histórias. Ela salta do carro, a gente ensina aonde é, ela vai sozinha e dá o recado de que é para ficar (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 62). No próximo exemplo, observa-se o uso da mesma estratégia: Arnaldo was not at home (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 62). Arnaldo não estava (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 66). Com base nesses excertos, notamos a possível tendência por parte do tradutor a explicitar passagens (palavras, expressões, significados), nas quais o texto poderia ser considerado de difícil assimilação por um falante nativo de língua inglesa. Percebe-se, ainda, a preocupação de Pontiero em preencher as ‘lacunas’, revelar as ‘elipses’ e buscar o que foi omitido ou apagado no TP. Tais tendências podem levar a uma recuperação maior de sentido, ou, dependendo dos procedimentos de construção utilizados pela autora, estar quebrando a ambiguidade por ela pretendida, ou ainda, não destacando as idiossincrasias da escrita clariciana. Traços característicos Alguns traços característicos considerados recorrentes em TTs tiveram lugar na tradução de Pontiero. O primeiro deles foi o aumento visível do TC em relação ao TP. Os números referentes à relação type/token (forma/item) gerada pelo WordSmith Tools são os seguintes: A Legião Estrangeira (tokens: 29.485; types: 5.351) e The Foreign Legion (tokens: 33.937; types: 4.549). Quando utilizamos ferramentas computacionais para levantamento da quantidade de palavras em um texto, a contagem é feita levando-se em consideração que qualquer sequência de letras interrompidas por um espaço ortográfico é considerada uma palavra ou um token. Por exemplo: em um texto com 83 ocorrências da palavra macaco, dizemos que há 83 tokens e 1 type em determinado corpus. Dessa forma, sabendo-se que a razão type/token mede a extensão e a variedade de vocabulário usado por um escritor em um determinado corpus, os dados apontam para maior variação de vocabulário por parte de Clarice, e um maior emprego de repetições por parte do tradutor. A explicitação foi outra característica encontrada no TC. Toury (1991) e Baker (1993) vêem na explicitação uma característica que tange todo e qualquer tipo de evento mediado, incluindo-se a interação em língua estrangeira. Mas, mesmo ciente dessa característica, ele se pergunta se há diferenças no nível e na natureza das explicitações, como, por exemplo: interpretação, tradução escrita, tradutores profissionais e tradutores iniciantes, diferenças que podem ser elucidadas com pesquisas de corpora. Em nossa pesquisa, verificamos uma tendência à explicitação, que podemos observar, no seguinte trecho, a partir do uso de pronomes em posições que o original omitira. She did not know if he was intelligent (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 69). Se era inteligente, não sabia (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 75). É evidente que não estamos tomando por base única e exclusiva a colocação de pronomes para explorar nossas colocações, uma vez que não podemos simplesmente considerar a quantidade maior de pronomes She (391) em relação a ‘Ela’ (159) como prova de explicitação, pois a língua inglesa tende a repetir com maior frequência pronomes por características sintáticas da própria língua, enquanto que o português, pelas desinências das terminações verbais, permite omitir o pronome pessoal na função de sujeito. Mesmo assim, ao observarmos o exemplo citado em seu contexto, verificamos que havia uma causa para a omissão dos dois pronomes em questão (He/She). Se atentarmos para o contexto do conto, 118 Rocha e Camargo Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 34, n. 1, p. 113-120, Jan.-June, 2012 ou, até mesmo, para os títulos Evolução de uma miopia (LISPECTOR, 1991) e The evolution of Myopia (LISPECTOR, 1992), notaremos que se trata de uma miopia específica, a de um garoto que não possui as chaves para sua inteligência e que está à mercê dos julgamentos alheios para saber se é ou não inteligente. Note-se, também, a ausência do artigo indefinido em inglês, o que pode fazer com que o leitor do TC não atente para o fato de a miopia ser a de um menino. Em outras palavras, o uso do artigo indefinido não acaba por generalizar a ideia, mas sim, especificando-a e, assim, por meio do emprego e da omissão de tal artigo, cria-se um jogo semântico entre geral/específico; definido/indefinido. Nos trechos seguintes, vemos que o menino está buscando aprovação e quer ser julgado inteligente: During the week that preceded ‘the whole day’ he began by trying to decide if he would behave naturally or otherwise with his cousin. He tried to decide if he should say something intelligent upon arrival - which would result in his being judged intelligent for the whole day (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 71, grifo nosso). Na semana que precedeu ‘o dia inteiro’, começou por tentar decidir se seria ou não natural com a prima. Procurava decidir se logo de entrada diria alguma coisa inteligente - o que resultaria que durante o dia inteiro ele seria julgado como inteligente (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 75, grifo nosso). During that week, as ideas came to him somewhat spasmodically, they gradually changed in substance. He abandoned the problem of deciding what elements he would give to his cousin so that she in turn might give him temporarily some certainty of ‘who he was’ (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 72). À medida que, durante a semana, as inspirações ligeiramente convulsivas se sucediam, elas foram gradualmente mudando de nível. Abandonou o problema de decidir que elementos daria à prima para que ela por sua vez lhe desse temporariamente a certeza de ‘quem ele era’ (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 78-79, grifo nosso). Percebemos, pelos fragmentos acima, que o garoto não tem certeza de ‘quem ele era’, visto que está sempre esperando pela resposta dos outros, além de que lhe digam se é inteligente ou não. A única personagem feminina do conto para a qual o pronome poderia apontar é a prima. Entretanto, não é focalizada em detalhes nem tem grande importância no conto: ela apenas funciona como mais um motivo externo, para provocar mudanças no comportamento do garoto. Desse modo, percebemos que uma tendência à explicitação pode, até mesmo, suprimir certa relação semântica significativa. Temos a corroboração das afirmações de Toury (1991) com relação aos eventos mediados (explicitação como uma característica intrínseca), e acresce-se ainda o fato de, no caso desse trecho em FL, a tendência à explicitação resultar em uma não- observância do efeito de sentido na frase. Em Os desastres de Sofia (LISPECTOR, 1991) destacamos outro exemplo de explicitação, entretanto, sem relativas implicações na coerência do texto: Each day I resumed the farcical struggle which I had initiated in order to save that man (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 14). Cada dia renovava-se a mesquinha luta que eu encetara pela salvação daquele homem (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 12). No TC, o agente do recomeço é Sofia: ela recomeça diariamente sua luta cômica ao acordar, ir para escola e deparar-se com o professor. Quando atentamos para o TP, vemos que as circunstâncias fazem com que a ‘mesquinha luta’ se renove, pois, após os negros sonhos de amor, ela está novamente pronta para tentar salvar seu professor. A expressão in order to também enfatiza a relação do propósito da luta mesquinha; salvação do homem. A frase não sofreria grandes alterações com a supressão do conectivo. Acreditamos que pode haver uma tentativa de tornar mais explícita a relação de causa e consequência (entre a luta e o seu propósito). Ainda, no mesmo conto, The man has taken leave of his senses, I thought to myself, for what has all this got to do with the treasure? (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 22). O homem enlouqueceu, pensei, pois que tinha a ver o tesouro com aquilo tudo? (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 20). No trecho do TC, notamos um exemplo que comumente seria atribuído ao estilo em inglês: has taken leave of his senses transformou-se em uma expressão menos enfática e direta do que o verbo enlouquecer, atribuindo à passagem certa característica de comiseração por parte de Sofia no TC. Isso não ocorre com enlouquecer, pois é mais diretivo quanto ao estado de espírito de Sofia e, portanto, explicita sua impaciência. No trabalho de Magalhães (2001), no corpus paralelo constituído pelo romance Frankenstein, de Mary Shelley, e sua tradução, verificou-se o mesmo processo. Citamos um exemplo: Tendências à explicitação em A Legião Estrangeira... 119 Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 34, n. 1, p. 113-120, Jan.-June, 2012 […] unable to compose my mind to sleep (SHELLEY, 2009, p. 46). […] sem poder dormir (SHELLEY, 1997, p. 61-2) A pesquisadora acredita que análises com grandes corpora podem elucidar tais estratégias, usualmente consideradas somente no nível da idiossincrasia linguística. Destacamos mais um trecho retirado de Viagem a Petrópolis (LISPECTOR, 1991): The child ate everything and, once his belly was full, he grabbed a tooth-pick and left the table. - Mum, I need some money. - Certainly not. What do you need money for? - To buy sweets. - No. Sunday is your day for pocket-money and that's tomorrow (FL) (LISPECTOR, 1992, p. 63). O menino comeu tudo e, com a barriga grande, agarrou um palito e levantou-se: - Mãe, cem cruzeiros. - Não. Para quê? - Chocolate. - Não. Amanhã é que é domingo (LE) (LISPECTOR, 1991, p. 67). Nessa sequência, pode-se observar o aumento do TC em relação ao TP. No TC, nota-se a substituição do nome da moeda brasileira pelo substantivo money; talvez, por tal moeda ser tão estranha à cultura de chegada, o tradutor tenha optado por substituí-la por ‘dinheiro’. Quanto à negação da mãe em dar o dinheiro para o filho, percebemos que o trecho do TC apresenta uma possível tendência à característica levelling out (BAKER, 1996), isto é, manter uma posição entre dois extremos, convergindo para o centro de um contínuo. Se atentarmos para o TP, veremos que a resposta ‘Não. Para quê?’ aproxima-se mais da linguagem oral do que o trecho correspondente no TC (menos informal, sintaxe mais completa). Já, na última linha, o tradutor infere que o dia em que o menino ganha seu dinheiro semanal é no domingo e explicita isso no TC. Considerações finais Esse artigo reflete acerca das atitudes quanto à tradução, ao papel do tradutor e aos aspectos gerais que tal processo apresenta. A cada período histórico, observa-se que ‘as posturas em relação à tradução e os conceitos de tradução que prevalecem pertencem à época na qual se originam e aos fatores sócio- econômicos que moldam e determinam tal época’ (BASSNETT, 1980, p. 75, tradução nossa). A partir das inter-relações entre TO e TT, é possível observar as especificidades de cada texto (literário ou não), além de identificar alguns traços característicos dos textos traduzidos. Neste caso, as escolhas lexicais e estratégias linguísticas de Giovanni Pontiero na tradução dos contos claricianos em The Foreign Legion. A pesquisa foi feita a partir de um corpus pequeno, por isso, seus resultados não devem ser tomados como generalizações em relação a textos literários traduzidos, principalmente, na direção português-inglês. Naturalmente, esses contos apresentam muitos outros aspectos e características a serem estudados, mas que, pelos objetivos desse artigo, não foram explorados. O ato de traduzir um TO em português para o inglês requer certo conhecimento linguístico e cultural de nosso país. Em particular, a obra de Clarice Lispector demanda esforço extra por parte do tradutor, uma vez que, além de se tratar de literatura, ainda há todas as complicações, dificuldades e idiossincrasias da escritora brasileira. Quanto à linguagem clariciana em A Legião Estrangeira (LISPECTOR, 1991) percebe-se - em alguns pontos - um hermetismo e que, se não for compreendida, pelo menos superficialmente, torna mais árduo o processo de tradução. Há termos que se repetem em sequências. Por exemplo, a palavra ovo aparece uma vez em Viagem a Petrópolis (LISPECTOR, 1991) e em A legião estrangeira e depois é exaustivamente utilizada no texto O ovo e a galinha (LISPECTOR, 1991). Detalhe: só, na primeira página, constam 45 ocorrências da palavra ovo e uma, de ovos. A palavra ‘macaco’ repete-se três vezes nos contos A mensagem (LISPECTOR, 1991) e Macacos (LISPECTOR, 1991). A repetição em Clarice Lispector é um elemento constitutivo de sua escrita. Seria alguma mensagem clariciana? E, se não recuperada em outros contextos, representaria uma ruptura significativa? No que tange às características de tradução, observou-se maior número de palavras no TC. Segundo Toury (1991) e Baker (1993), essa é uma tendência que ocorre em eventos mediados como é o caso da tradução, uma vez que o próprio ato de traduzir e a necessidade de se comunicar na linguagem traduzida indicam padrões específicos de TT. Além disso, foram identificadas algumas evidências referentes à explicitação, principalmente, pela recuperação de passagens (palavras, expressões, cenas, significados etc.) dentro da linguagem clariciana. Em alguns pontos no TC, o tradutor recuperou alguns trechos (inclusive, naquelas nas quais a ambiguidade representaria um papel importante na construção do texto), com a preocupação de tornar o 120 Rocha e Camargo Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 34, n. 1, p. 113-120, Jan.-June, 2012 trecho menos ambíguo, e, talvez, até mesmo, uma sequência narrativa mais fluida para o leitor. A tentativa de explicitar o que foi omitido, apagado ou incompleto em The Foreign Legion (LISPECTOR, 1992) pode remeter-nos à ideia geral de domesticação do texto estrangeiro para o público leitor da língua inglesa (VENUTI, 1995). De maneira geral, ao ser traduzido, alguns trechos do texto clariciano foram domesticados por meio da omissão de diferenças linguísticas e culturais do texto estrangeiro valorizando, por conseguinte, um discurso mais transparente e acessível aos anglófonos. Sabe-se, porém, que o uso criativo das palavras sugere ou provoca interpretações ou significados que vão além da simples informação. Esta criatividade corre o risco (ou não) de desaparecer com tal atitude do tradutor. É importante ressaltar que as palavras apresentam uma significação objetiva aparente no texto clariciano. Entretanto, há uma leitura conotativa dos contos, uma vez que a subjetividade da autora na linguagem é o que se sobressai. Referências BAKER, M. Corpus linguistics and translation studies: implications and applications. In: BAKER, M.; FRANCIS, G.; TOGNINI-BONELLI, E. (Ed.). Text and Technology, in honour of John Sinclair. Amsterdam: John Benjamins, 1993. p. 233-250. BAKER, M. Corpora in translation studies: An overview and some suggestions for future research. Target, v. 7, n. 2, p. 223-243, 1995. BAKER, M. Corpus-based translation studies: the challenges that lie ahead. In: SOMERS, H. (Ed.). Terminology, LSP and translation: studies in language engineering, in honour of Juan C. Sager. Amsterdam: John Benjamins, 1996. p. 175-186. BAKER, M. Towards a methodology for investigating the style of a literary translator. Target, v. 12, n. 2, p. 241-266, 2000. BASSNETT, S. History of translation theory. In: BASSNETT, S. (Ed.). Translation studies. Londres: Methuen, 1980. p. 39-75. 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