UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Artes Visuais - São Paulo ANDRE CATUNDA SERRA BARION REFLEXÕES SOBRE OBJETOS, ESCULTURAS E INSTALAÇÕES: ensaio sobre quatro obras SÃO PAULO 2021 ANDRE CATUNDA SERRA BARION REFLEXÕES SOBRE OBJETOS, ESCULTURAS E INSTALAÇÕES: ensaio sobre quatro obras Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Artes Visuais da Universidade Estadual Paulista (Unesp) "Júlio de Mesquita Filho"- Campus de São Paulo, para obtenção do grau de Bacharel em Artes Visuais. Área de concentração: Artes visuais. Orientador: Prof. Dr. José Paini Spaniol Co-orientadora: Prof.ª Dr.ª Leda Catunda SÃO PAULO 2021 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. B253r Barion, Andre Catunda Serra, 1996- Reflexões sobre objetos, esculturas e instalações : ensaio sobre quatro obras / Andre Catunda Serra Barion. - São Paulo, 2022. 37 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. José Paiani Spaniol Coorientadora: Prof.ª Dra. Leda Catunda Serra Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Arte. 2. Narrativas pessoais. 3. Arte moderna. 4. Instalações (Arte). 5. Escultura. I. Spaniol, José Paiani. II. Serra, Leda Catunda. III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título. CDD 730 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 ANDRE CATUNDA SERRA BARION REFLEXÕES SOBRE OBJETOS, ESCULTURAS E INSTALAÇÕES: ensaio sobre quatro obras Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Artes Visuais da Universidade Estadual Paulista (Unesp) "Júlio de Mesquita Filho"- Campus de São Paulo, para obtenção do grau de Bacharel em Artes Visuais. Dissertação aprovada em: 24/03/2022 Banca examinadora ________________________________________________ Prof. Dr. José Panini Spaniol Artes - ECA/USP- Orientador ________________________________________________ Prof.a Dr.a Laura Vinci Artes - ECA/USP AGRADECIMENTOS A Leda Catunda pelos valorosos conselhos e ensinamentos; pela orientação e pela generosidade. A José Spaniol pela orientação e conversas. A Beatriz Castanho pelas importantes opiniões, idéias e discussões; pela leitura e pelo apoio. A Pedro Koberle pela revisão atenciosa e lúcida e pela tradução. A Bruno, Marina, Mari, Mariano, Maria, Gustavo, Lucca e André, pela amizade e parceria na produção do trabalho artístico. RESUMO Nesta dissertação me propus discorrer sobre quatro trabalhos que realizei entre 2017 e 2022, trazendo reflexões acerca de objetos, esculturas, instalações e o papel do espectador na valoração simbólica e material de um objeto artístico. Apresento aproximações entre o fetichismo, o desejo, a sedução com a materialidade e a significação destes trabalhos em um contexto de análise de arte contemporânea. Palavras-chave: Arte Contemporânea, Instalação, Escultura, Objeto, Fetiche. ABSTRACT In this dissertation I propose a discussion of four works I made between 2017 and 2022, bringing reflections about objects, sculptures and installations, and the role of the spectator in the symbolic and material valuation of an artistic object. I present approximations between fetishism, desire, seduction with the materiality and significance of these works in a context of contemporary art analysis. Keywords: Contemporary Art, Installation, Sculpture, Object, Fetish. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ………………………………………………………………………5 2. O SHORTS DO MUNDO …………………………………………………………... 7 Objeto de parede com tendência à instalação 3. ÁRVORE CANSADA……………………………………………………………… 13 A relação dos materiais e seus significados 4. O LAGO DOS CISNES……………………………………………………………. 20 Uma instalação e a relação com o observador 5. O TAPETE………………………………………………………………………….. 26 Objeto de fetiche 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………………… 35 7. REFERENCIAS….………………………………………………………………… 36 https://docs.google.com/document/d/1ls3mJoJjKNT7iISKlJs8DTvn7BO-X8TS/edit#heading=h.xmpj5s9y451 5 1. Introdução Reflexões sobre objetos, esculturas e instalações Essa dissertação faz parte de uma tentativa de aprofundar minha pesquisa teórica sobre os trabalhos que produzi nos últimos anos. Me esforcei de início para situar minha produção historicamente, mas para isso, no entanto, seria preciso determinar que este seria o ponto atual de determinado assunto ou conceito, que de certo não é. Decidi então determinar um conjunto de fatores relevantes do trabalho, e fazer uma seleção de 4 trabalhos que me possibilitariam discorrer sobre esses assuntos. No decorrer da escrita me deparei com temáticas que atravessam diversos trabalhos que me interessavam, o que me fez alterar a seleção dos trabalhos a fim de aprofundar alguns desses assuntos. O corpo do texto acabou sendo transpassado por diversas obras de Jean Baudrillard, cuja pesquisa acerca do significado dos objetos e da construção antropológica e sociológica da sedução me interessou muito. A partir destes textos, me pareceu inevitável passar pelo fetichismo, que se colocou como elemento significativo para a análise da relação do meu trabalho com o espectador, visto que estava tratando da influência da valoração simbólica e material dos objetos sobre a construção de seus signos e vice-versa. A pesquisa sobre o fetichismo e o desejo pode facilmente tomar diferentes rumos, visto que a discussão sobre esses assuntos permeia diversas áreas do conhecimento, desde a análise psicológica de Sigmund Freud do fetichismo enquanto consequência do processo de castração, até o fetichismo da mercadoria de Karl Marx, que trata da percepção das relações sociais envolvidas na produção. No entanto, decidi manter meus 4 trabalhos como linha condutora do texto, abordando tangencialmente este e outros assuntos, além de trazer associações com trabalhos de outros artistas. A partir dos trabalhos que selecionei inicialmente surgiu uma série de discussões possíveis. Dentre essas selecionei um grupo que poderia formar um corpo mais coeso. Desde esse “corpo” realizei uma segunda seleção, agora com as obras finais que conduziram à dissertação. O Shorts do Mundo, a Árvore Cansada, o Lago dos Cisnes e o Tapete são os 6 trabalhos que me proponho discutir, abarcando temas quanto a relação entre o objeto e o espectador, e uma consequente teatralidade nas instalações, bem como quais fatores e atributos de um objeto influenciariam esta relação, e que forma tal influência tomaria. 7 2. O Shorts do mundo Objeto de parede com tendência à instalação O trabalho Shorts do mundo é composto por um galho de 160 cm que sustenta um invólucro de tule preto, dentro do qual estão duas formas macias de tecido metalizado dourado. Shorts do mundo, 2017, madeira, tule e tecido metalizado, 300 x 180 cm Este é um trabalho que interessa à discussão por alguns motivos. O primeiro deles é sua escala, que trouxe uma nova dimensão para o pensamento construtivo das obras. A partir dele, os trabalhos foram se expandindo até se aproximarem cada vez mais de uma instalação. O Shorts do mundo, pelo seu tamanho, despertou em mim uma vontade de ocupar os espaços 8 ao redor da obra. Este processo se deu, no entanto, a partir de uma expansão dos trabalhos por meio de uma organização de elementos menores, não por um crescimento na escala dos objetos em si. Outro motivo é que este é um trabalho em que se enxergam questões relativas à dualidade representação versus figuração. Até então, a maior parte dos trabalhos lidava com a forma de maneira majoritariamente abstrata, trazendo principalmente questões de superfície. Como descreve Carlos Fajardo, superfície seria o “plano pictórico menos a profundidade: é sua materialidade” . Me interessa ver o Shorts do mundo neste lugar ambíguo1 e nebuloso, onde há uma tentativa de representação coexistindo com um desejo de não representar nada. Exige que se faça ver enquanto objeto no mundo, abarcando questões de superfície, enquanto simultaneamente traz enunciações próprias da representação, porém por um viés que não represente nada em si, mas que faça sugestões e referências a um imaginário com objetivo de se aproximar deste, com vistas a um significado e associação imagética. 1FAJARDO, Carlos Alberto. Poéticas Visuais: A Profundidade e a Superfície. 1998. Tese (Doutorado em Artes Plásticas) - Escola de Comunicação e Artes - Universidade de São Paulo, SP, 1998. 9 Shorts do mundo, 2017, madeira, tule e tecido metalizado, 300 x 180 cm Neste sentido, para a construção desta associação imagética, considero importante levar em conta tanto o título do trabalho quanto a relação entre os materiais utilizados, o uso do dourado e de outros materiais com baixo valor agregado. O título sugere a possibilidade fantasiosa da existência de um shorts para o mundo. De tão absurda, essa proposição pouco representa, de modo que a visualidade da obra é necessária para dar alguma significação para o título, invertendo o movimento de buscar algum direcionamento no título da obra. De maneira geral, o trabalho insinua uma forma simplificada de um shorts, com duas pernas, cintura e cavalo; bem como o peso do shorts, se há algo nos bolsos, ou dentro dele. No entanto, não se aproxima suficientemente da imagem de um shorts ao ponto que se faça essa leitura, apenas fazendo alusões ao universo do corte e costura. Quanto aos materiais, são utilizados apenas tecidos de baixo custo e frágeis e um galho seco. As formas douradas, preenchidas por malha siliconada, são macias e leves, o que traz um contraste com a utilização tradicional do cobre e do ouro na história da escultura, que são duros, pesados e valiosos. 10 Desta associação origina-se um contraste entre precariedade e uma visualidade enigmática. Jean Baudrillard em O Sistema dos Objetos, discorrendo sobre o objeto-marginal, apresenta uma observação acerca do objeto antigo - mas que pode se aplicar também a outros objetos não-sistemáticos (dentre estes o objeto artístico) - que pode aplicar-se aqui. Para Baudrillard: [Tal objeto] por mais belo que seja, permanece "excêntrico''. Por autêntico que seja, tem sempre de certo modo um ar falso. E ele o é na medida em que se faz passar por autêntico em um sistema onde a questão não é mais absolutamente a autenticidade, mas a relação calculada e a abstração do signo .2 De maneira geral, a autenticidade em si é um valor inerente ao objeto artístico. Muitas vezes tomada enquanto medidor da “qualidade artística” de uma obra, sua relevância e importância crítica, no entanto, passaram a ser questionadas por diversos artistas a partir do século 20. Tal exigência de autenticidade se traduz como uma espécie de obsessão pela certeza, seja quanto à origem, sua data, autor ou assinatura. Esta obsessão se origina na fascinação pelo objeto artesanal, vem do fato deste ter passado pela mão de alguém cujo trabalho ainda encontra-se inscrito, registrado, na peça. É vista enquanto uma atração, desperta uma sedução por aquilo que foi criado manualmente e por isso seria único, dado que o momento de criação é irreversível. É neste aspecto que os trabalhos que questionam a autenticidade enquanto valor artístico, ou cujo discurso se pauta justamente na não-autenticidade do objeto, são subvertidos e reapropriados pelo sistema da arte por terem sido originais justamente na sua busca pela negação da originalidade. Como exemplo temos toda a coleção de ready-mades criados por Duchamp, que a princípio eram objetos Dada, anti-arte, mas que posteriormente ingressaram nos museus. No Shorts do mundo a farsa permeia o discurso de maneira sutil, mas em outros trabalhos toma maior importância. 2 BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973, p.82. 11 Detalhe do Shorts do mundo A excentricidade a que Baudrillard se refere diz daquilo que não se encaixa, daquilo que se encontra, conforme a etimologia da palavra, fora do centro. Um outro ponto de vista sobre a excentricidade é o da poetisa inglesa Edith Sitwell, onde esta poderia ser vista enquanto “um orgulho inocente” . Estas considerações reverberam no Shorts do mundo já que3 há uma ingenuidade no tratamento dos objetos dourados, que estão em uma espécie de berço, aninhados pelo tecido, cercados por uma estrutura que gira toda em seu entorno. No entanto, eles são ordinários, como se não merecessem tal tratamento. Da mesma maneira que uma criança encontra um cascalho na rua e o trata como uma joia, as almofadas douradas recebem um tratamento que lhes pareceria “exagerado”. Há um desejo inocente de que o objeto fosse valioso, até o ponto em que a questão já não é a autenticidade em si, dado que seu caráter singelo não engana ninguém. Esse movimento se torna parte do sistema de ressignificação e abstração do signo, se juntando aos outros elementos da obra. A partir de uma abstração primeiramente formalista, na qual as formas se dão no espaço de maneira materialmente dependente umas das outras, se apresenta uma relação 3 SITWELL, Edith. Taken Care Of. Nova Iorque: Atheneum, 1965. 12 triádica de conjunto, também bastante recorrente em outros trabalhos que realizei posteriormente. Nesta relação, um objeto cumpre um papel estrutural, no caso do Shorts do mundo o galho que fica na parte superior. Outro, depois, é uma espécie de objeto primário, ao redor do qual o resto da estrutura orbita, aqui as almofadas douradas. Finalmente, um terceiro, o tule preto, que cumpre um papel de conector entre o primeiro e o segundo e está fortemente atrelado à materialidade destes elementos, trazendo mais explicitamente as forças presentes nesta relação: gravidade, elasticidade, tensão, leveza e robustez. 13 3. Árvore cansada A relação dos materiais e seus significados O trabalho Árvore Cansada (2018) consiste em um tronco de eucalipto de aproximadamente 3 metros suspenso por fios de strass dourado. Sobre o tronco se encontram morangos de acrílico e correntes douradas. Os fios que seguram o tronco são divididos em dois pontos de apoio: uma peça de cerâmica dourada cintilante irregular, de formato orgânico, e um tubo retangular de ferro enferrujado. A Árvore Cansada, 2018, eucalipto, strass, cerâmica e ferro, 110 x 300 cm Na Árvore Cansada me interessam as diferentes relações de sedução que são criadas. Sedução na ordem do artifício, daquilo que define um espaço de simulação, naquilo que, através do realismo de sua execução, na sua falta de realidade, traduz uma familiaridade surreal . Sejam estas relações decorrentes das interações entre diferentes objetos e materiais,4 4 BAUDRILLARD, Jean. Da Sedução. São Paulo: Papirus, 1992. 14 da ilusão da estrutura do objeto, das narrativas ali instauradas ou da relação de desejo e sedução inerente aos próprios objetos. Detalhe da Árvore Cansada Dentre tais relações, destaca-se a interação que os fios de strass estabelecem com o tronco, sendo o primeiro um objeto extremamente frágil, empregado majoritariamente de maneira ornamental, que aqui sustenta outro objeto muito mais pesado que ele - por sua vez utilizado normalmente na construção de escoras ou palanques, cumprindo uma função essencialmente estrutural. Outra relação decorre da interação entre objetos, cujos valores agregados diferem significativamente. Deste contato derivam questões relativas à associação entre o valor adicional que adquirem tais bens ao serem transformados pelo processo produtivo - durante o qual materiais são transformados visando o crescimento de seu poder 15 sedutor - e a função desses objetos - tanto sua função prática, como sua função abstrata . No5 6 geral, tratam-se de questões que permeiam a nossa percepção dos objetos, e de como essa percepção seria transformada e direcionada por eles. A escultura de cerâmica metalizada aparece no trabalho enquanto forma carregada de uma mediação gestual. Sendo o único elemento que traz a presença da mão, é desvelada não apenas a dimensão simbólica do órgão que realiza o esforço manual, como também do subproduto gerado por esse esforço, e consequentemente o signo abstrato da maneabilidade. Este signo, por sua vez, é fruto da presença do objeto cuja forma se submete à anatomia humana, se moldando a ela - referidos na arquitetura e no design como objetos ergonômicos. 6 “Todo objeto tem desta forma duas funções: uma que é a de ser utilizado, a outra a de ser possuído. A primeira depende do campo de totalização prática do mundo pelo indivíduo, a outra um empreendimento de totalização abstrata realizada pelo indivíduo sem a participação do mundo.” BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973, p.94. 5 De acordo com Freud, o fetichismo derivaria inicialmente de um complexo de castração. Sendo este uma resposta à vulnerabilidade a uma possível castração, diretamente atrelada à relação narcisista da criança com a própria genitália. O complexo de castração empregaria significativas e peculiares relações com o poder de sedução de um objeto, bem como com o fetiche em si. Ao ponto que tal influência se estende consequentemente aos mecanismos de valoração e construção de desejo no mercado capitalista. FREUD, Sigmund. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, volume 21. Inglaterra: Hogarth Press, 1966, passim. 16 Detalhe da peça de cerâmica na Árvore Cansada Esta ergonomia dos objetos é pontuada por Baudrillard enquanto característica marcante dentre os objetos modernos, ou objetos técnicos - nos quais “tudo que fora sublimado (simbolicamente investido, pois) no gestual de trabalho acha-se hoje recalcado” .7 No entanto, a adequação do objeto à anatomia humana é pontuada aqui pela presença do gestual, enquanto para Baudrillard é colocada enquanto fim do gestual - característica importante para a construção de uma nova era objetual pós-industrialização, marcada pelo fim da dimensão simbólica. Tal objeto moderno carrega diversos atributos que o moldam, fazendo-o se adequar ao desejo social. A relação entre o desejo e um objeto é forte e estruturalmente marcada por uma relação de fetichismo, de "obsessiva devoção”, não necessariamente pautada pelo valor de um objeto, mas pelo seu poder de sedução. Esta sedução se concretiza por meio de diversos artifícios, um dos mais decisivos sendo a falta de imperfeições , a integridade do objeto, seu8 8 BERSHAD, Deborah. Signs of Difference, publicado em Damaged Goods: Desire and the Economy of the Object. Nova Iorque: [s. n.]. Catálogo da exposição Damaged Goods: Desire and the Economy of the Object, New Museum of Contemporary Art, 1986. 7 BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973, p.61 17 brilho, sua suavidade, sua pureza - o objeto deve ter sido intocado por outros. Tal atributo, no entanto, entra em contraste com a presença da mediação gestual, com o signo expressivo, que se apresenta, em outros casos, também enquanto elemento “fetichizador” por assim dizer. Me parece curioso que dentre os atributos que garantem maior ou menor desejo por um objeto estejam a presença do gesto e sua ausência. Ambos evidentes em diferentes elementos da Árvore Cansada, seja através do acabamento industrial dos strases que sustentam o tronco, das correntes e morangos de acrílico; pela expressividade e materialidade do elemento dourado; ou no tronco em si que, apesar de carregar traços de transformação das máquinas, há uma falta da mediação técnica sobre o objeto, como um objeto “inacabado”. Na obra se manifestam diferentes níveis da presença do gestual de controle: o primeiro é representado pela escultura dourada, na qual se revela abertamente o processo real de trabalho. No segundo este processo ainda é presente, porém intermediado por máquinas. Neste caso o gestual estaria em um nível intermediário, rumo à omissão total da gestualidade, e é representado aqui pela barra de ferro e o tronco, onde ainda estão presentes as marcas do método. E no terceiro se encontrariam as correntes, strasses e morangos de acrílico, objetos que requerem de nós apenas uma participação formal, que passam a ideia de um mundo sem esforços, não se faz presente neles qualquer presença da mão e do gesto. A presença desses objetos na obra - ainda mais no contexto em que se encontram, isto é numa relação hierárquica de causa e dependência uns dos outros, onde alguns tomam papéis ornamentais outros estruturais - tornam ainda mais evidente questionamentos acerca das consequências dessas relações para o valor em si que o objeto carrega enquanto elemento do mundo. A figuração e representatividade se fazem presentes no trabalho pela atribuição de qualidades humanas à coisa inanimada, o tronco que estaria cansado ou em estado de repouso. Nesse ponto diversas narrativas poderiam se desenrolar ao redor da árvore, se cansou por quê? Se cansou de quê? O descanso final da árvore seria então floreado por bijuterias e strass dourados? Toda artificialidade da obra decorre não apenas do quão improvável seja qualquer narrativa sugerida por essa cena, mas também pelo comportamento e natureza dos materiais que cercam o tronco. Ao ser apresentado enquanto árvore, o tronco sugere seu passado, e, portanto, recapitula os processos transformadores que resultaram no seu estado presente. Processos 18 estes marcados pela industrialização, um universo muito distante da ideia de natureza. A natureza é aqui apresentada então pelo avesso, se manifesta pela artificialidade da materialidade, como também pela apresentação horizontal da árvore e comportamento do strass que deveria ser incapaz de sustentar um tronco desse tamanho. Duas pinturas de Bea Ruco, 2017, 43 x 120 cm, pinturas da artista Beatriz Ruco, tecido metalizado e tule Em Duas pinturas de Bea Rucco (2017) e A protegida (2016), aplicam-se algumas das considerações que fiz a respeito da Árvore Cansada. No primeiro, utilizei duas pinturas destruídas da artista Beatriz Ruco, e envelopei elas em dois invólucros, um exterior de tule preto, e um dourado onde as pinturas estão embutidas. No segundo, A protegida, um pedaço de chão de taco está colocado verticalmente, de costas para nós, assim mostrando o concreto sobre o qual os tacos ficavam. Esse pedaço de chão foi colocado dentro de uma grade de plástico preta tubular. 19 A protegida, 2016, 23 x 120 cm, madeira, concreto e grade de plásitco Em ambos os trabalhos podemos observar questões quanto à relevância do desejo e do fetiche para a transformação na nossa percepção do objeto; tendências à representação e à criação de uma ficcionalização a partir de elementos abstratos; bem como a presença - ou ausência - do gestual enquanto elemento ressignificador. Estas, dentre outras considerações, estão presentes não apenas na Árvore Cansada, mas em diversos outros trabalhos que seguiram. 20 4. O lago dos cisnes Uma instalação e a relação com o observador O Lago dos Cisnes (2017) foi um dos primeiros trabalhos em que há uma representação mais direta, no qual é construído um ambiente narrativo literal, com um lago e cisnes. Composto por margens de sisal, pedras macias e douradas e cisnes de gesso e ferro, o lago se forma de maneira quase teatral, trazendo uma delimitação no espaço e sujeitos “em cena”, ao mesmo tempo que coloca o observador em uma perspectiva análoga à do público teatral. Não se observa o objeto em sua totalidade (o lago com cisnes), mas um sujeito dentro de uma área delimitada: esse sujeito cisne é o objeto da atenção primeira, como um ator em cena. Lago dos Cisnes, 2019, dimensões variáveis, ferro, gesso, corda de sisal e tecido metalizado Problematizando o papel do espectador, o lago se coloca formal e simbolicamente em um lugar ambíguo, a partir do qual o espectador passa a transitar entre um participante ativo e um observador passivo. Para explicitar as ambiguidades que criam este movimento, vamos 21 considerar o aspecto teatral da instalação a partir da discussão a respeito da presença da teatralidade na obra de três artistas. Allan McCollum, Plaster Surrogates, 1982-84, esmalte em hidrostona fundido sólido, dimensões variáveis. Instalação no Metro Pictures Gallery, Nova Iorque, 1984. O artista norte americano Allan McCollum, a respeito da série Surrogates, aponta para a teatralidade no seu trabalho enquanto consequência de uma tentativa de objetificar as convenções da produção artística . Buscando acelerar a teatralidade nas suas instalações,9 McCollum optou por utilizar materiais que carregassem grande conotação de artificialidade, aproximando as pinturas de adereços de cena. A potência dos Surrogates enquanto objeto cenográfico acabou por transformar a galeria em um espaço quase teatral, que parecia “representar” uma galeria; e, consequentemente, acabou por colocar o artista na posição de caricatura de um artista e o público naquela de performer. 9 ROBBINS, D.A.. An Interview with Allan McCollum. Nova Iorque: arts Magazine, 1985 22 Judith Barry, Study for M/G, Granada 2003 - 2007, Redux 2007 - 2016, instalação com dois canais de vídeo, projeção sonora e espelhos, dimensões variáveis Judith Barry, por outro lado, apresenta em seu texto Casual Imagination aproximações entre a experiência de compra e a experiência cinematográfica . Se propõe10 estender as trocas psicológicas e sugestões manipulativas presentes nessas experiências ao ambiente expositivo. Busca uma suposta transparência no espaço expositivo ao chamar atenção para os “efeitos” criados pelos trabalhos, efeitos estes responsáveis pela estruturação da “transição entre o objeto (de arte) e o sujeito (observador)” . A teatralidade estaria11 presente, então, por meio de uma reconstrução do ambiente a partir das obras de maneira oposta ao processo recorrente dos Surrogates, no qual os objetos reconfiguram o espaço expositivo aproximando-o de um ambiente encenado, mesmo encenando a si mesmo; enquanto Judith Barry procura acabar com qualquer artifício que distancie o espectador da obra, colocando em discussão o papel deste público e sua relação com os trabalhos. 11WALLIS, Brian. A Product You Could Kill For, publicado em Damaged Goods: Desire and the Economy of the Object. Nova Iorque: [s. n.]. Catálogo da exposição Damaged Goods: Desire and the Economy of the Object, New Museum of Contemporary Art, 1986. 10 BARRY, Judith. Casual Imagination: Discourse no. 4. Berkeley: [n. e.]. 1981-1982. 23 Justen Ladda, art, fashion and religion, 1986, tinta látex vinil nas paredes, chão e objetos, vestidos Yves Saint Laurent Rive Gauche e luz preta e branca, dimensões variáveis. Foto: Todd Watts. Outros trabalhos que tratam da relação com o espectador de uma maneira diferente destas duas são The Thing e art, fashion and religion de Justen Ladda. Em ambos trabalhos se destaca a exigência rígida quanto ao posicionamento do espectador, tornando a imagem inteiramente visível a partir de um único ponto no espaço frente à obra. No entanto, os trabalhos de Ladda não devem ser tomados apenas enquanto um truque de ilusionismo, mas como organização psicológica e perceptiva do observador. Ladda em diversos trabalhos dramatiza a sedução e a teatralidade de anúncios, se utilizando de um senso de humor irônico e de "parafernálias" decorativas, tornando claros os artifícios utilizados pela propaganda para direcionar o espectador. Estes três exemplos lidam com a teatralidade de maneiras distintas, porém todas passam pela interação entre o público, a obra e o espaço. No Lago dos Cisnes, uma relação entre o espaço e as pessoas é estabelecida por conta de sua escala e sua fácil transponibilidade, se transformando ora em um obstáculo, ora em morada, é o lar dos gansos. 24 A corda que delimita as margens do lago não se dispõe como um obstáculo físico no espaço, permitindo uma fácil transposição para dentro e fora da obra. O limite da instalação enquanto obra de arte se instala, portanto, mais impositivamente do que a própria materialidade da barreira. Ao público é dada a possibilidade de se colocar entre os gansos e de se perceber no meio do lago, despertando a percepção de si naqueles que ocupam este lugar - que não deixa de ser o mesmo ambiente que antes, agora cercado por uma corda naval de sisal. Detalhe do Lago dos Cisnes Aqui fica mais evidente uma relação comum a diversos trabalhos meus, na qual objetos oscilam entre uma presença escultórica e instalativa, assumindo diferentes papéis dependendo da circunstância, sem, em todo caso, muita pretensão de acabamento material. Ora um objeto é um objeto em si, ora, deslocado, encontra-se enquanto peça de um conjunto maior. Neste processo o objeto não é transformado materialmente, apenas deslocado e decorrentemente transformado simbolicamente. Através da reconstituição de uma imagem tão presente no imaginário das pessoas, o lago dos cisnes, busco aproximá-las de si, aproximar o público das lembranças que tem de 25 um lago dos cisnes. Imediatamente ao olhar para a obra o espectador identifica: lago dos cisnes. No entanto, os cisnes são gansos. Pouco importa o conhecimento da anatomia dos pássaros. O trabalho, porém, é um lago com gansos. Poucos em contato com o trabalho imediatamente imaginam “um lago de gansos”, talvez tão poucos quanto aqueles que questionam a identidade dessa ave de gesso, ou a própria existência de uma pedra dourada a margear tal lago. Qual seria, então, a diferença entre esses objetos, a ponto da projeção do público sobre eles se diferenciar tanto? Ao olhar o ganso dizem “um cisne”, e ao olhar a corda dizem “uma corda”. Tal contraste entre o imaginário que se projeta sobre esses objetos que compõem a instalação ecoa, transborda e permeia o próprio papel que o público cumpre na obra. Ao mesmo tempo que ele acredita possuir o cisne em ideia, não existe cisne algum. Onde, portanto, existe esse cisne? Ele ocupa o mesmo lugar que o próprio público, os dois têm a mesma existência, refletida na expectativa de um terceiro, que lhe justifica e lhe atribui memórias. O ganso que é cisne, que é o branco do sol e o branco dos olhos, o chão da obra,12 que é o chão de fora, aquele que entra e toma pra si o cisne, são todos exemplos da relação complexa que dois corpos ocupam e do lugar onde ambos existem e acreditam existir. 12 Referência a hamsa, animal lendário do Hinduísmo que, de acordo com os textos sânscritos antigos, é o vahana (veículo) de Brahma, Gayatri, Saraswati e Vishvakarma. Há discussões sobre se Hamsa seria um ganso ou um cisne, envolvendo ornitólogos, linguistas e historiadores. Afinal, o consenso é que, independente de qual, hamsa é uma ave migratória. Na literatura filosófica indiana, o hamsa representa o espírito individual tipificado pelo branco puro do sol, o mesmo branco dos olhos. A nossa singularidade mais comum. JONES, Lindsay. Encyclopedia of religion, Volume 13. Nova Iorque: Macmillan Reference, 2005. 26 5. O Tapete Objeto de fetiche Os três trabalhos, Tapete (2021), Vaso com flores (2021) e Revoada dos pássaros (2021), são feitos a partir do uso da costura sobre retalhos de diversos tecidos tingidos. Todos os retalhos são restos de trabalhos de arte, sobre os quais não apliquei nenhum tipo de processo transformador além do corte e da costura. Tapete, 2021, 240 x 160 cm, tecidos variados A partir dos retalhos construí imagens que se assemelham às de tapetes orientais - principalmente iranianos, turcos, caucasianos e turcomenos – procurando a aproximação com um imaginário imagético fortemente atrelado ao desejo. Seja por vias materiais de consumo, onde tapete oriental figura enquanto um símbolo de opulência e suntuosidade; ou por uma valorização mais próxima do fetichismo, na qual o trabalho manual e as excessivas horas para 27 produzir uma peça fazem-na adquirir outro tipo de valor.13 Vaso com flores, 2021, 70 x 83 cm, tecidos variados Nos trabalhos Vaso com flores e Tapete há uma construção imagética que considera um simbolismo recorrente em diferentes regiões e culturas. Em termos de tapeçaria oriental, principalmente no Irã, uma alegoria muito presente é a árvore da vida. A significação dos tapetes com árvore pode ser vista não apenas como uma alusão à ascensão espiritual da terra para o céu, mas como o percurso que se daria entre o inferno, a terra e a ascensão. A religiosidade se faz presente nessas duas obras não pela apropriação de simbolismos sacros, mas pela presença de um dos desejos mais primordiais em diversas religiões: a passagem para uma próxima existência. 13 APTER, Emily. Feminizing the Fetish. Nova Iorque: Cornell University Press, 1991. 28 29 Detalhe do Tapete Tal desejo, materializado em objetos, transforma e projeta esta ânsia pela ascensão não apenas enquanto uma expectativa para si, mas para o próximo, visto que os tapetes eram muitas vezes presenteados como sinal de desejo por um futuro próspero. O tapete em si estaria enquanto objeto de desejo e também como materialização e projeção de um desejo maior. Estas duas formas de desejo que o tapete carrega se associam a ideia que Emily Apter apresenta sobre as aproximações da ideologia com o fetichismo, a partir das discussões entre Karl Marx e W. J. T. Michell . Ambos os termos representam falsas imagens, com a forte14 conotação de "ídolo da mente” ou "ídolo do mercado” - ídolo no sentido daquilo a que se louva, ou se se deseja alcançar. Em algum nível, esses "ídolos" se tornam indistinguíveis, e as commodities que carregam esse valor oculto passam a se espelhar umas às outras, espelhando assim seus "ídolos" de ilusão. Tal commodity se tornaria então um simulacro degradado ou uma falsa representação de tais “icones”. Apesar dos trabalhos que estamos abordando aqui serem objetos contemporâneos, sua forte alusão ao objeto antigo torna imprescindível a discussão sobre este tema. Me pergunto qual seria a influência do imaginário que temos do objeto antigo sobre a significação destes trabalhos. E qual a relação deste movimento com os assuntos até aqui discutidos: o desejo, a sedução e a presença do espectador enquanto elementos chave para a valoração simbólica e material de um trabalho de arte. O tapete oriental antigo, para além do significado cultural e histórico que carrega, é um bom exemplo de objeto antigo, apresentando diversos elementos característicos da categoria, mas principalmente a obsessão pela autenticidade e uma nostalgia das origens. Ambas as características formam um forte elo com os três trabalhos em questão. As considerações de Baudrillard quanto às consequências da presença do objeto antigo no ambiente moderno me parecem pertinentes para a discussão destes trabalhos. Ele 14 APTER, Emily. Feminizing the Fetish. Nova Iorque: Cornell University Press, 1991. 30 diz: Estes objetos fetichizados pois não são nem acessórios nem simplesmente signos culturais entre outros: simbolizam uma transcendência interior, o fantasma de um núcleo de realidade que vive toda a consciência mitológica e individual - fantasma da projeção de um detalhe que vem a ser o equivalente do eu e através do qual se organiza o resto do mundo.15 O objeto antigo, como uma relíquia, teria uma inscrição simbólica sob um círculo fechado em um tempo “perfeito”, como afirma Baudrillard, visto que o passado se fecha em si. Exime-se de qualquer tipo de exigência de leitura, nada no tempo presente é capaz de mudar sua especificidade vivida. O objeto antigo é visto no presente como se tivesse existido em outros tempos, e por esse motivo se encontra fundado sobre si, configuração que garantiria sua autenticidade. Dois elementos fortemente atrelados à sua existência em um fechamento temporal são justamente a obsessão pela autenticidade e uma nostalgia das origens. Tendemos a dar um valor singular ao objeto antigo visto que estas características despertam em nós uma espécie de regressão narcisista e um suposto domínio do nascimento e da morte. Ao ponto em que deste objeto emana o “fantasma de um núcleo de realidade” que carrega consigo uma consciência total, e nos deslumbramos com a possibilidade de estar frente a um fenômeno do tipo. 15 BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973. p.87. 31 Detalhe do Vaso com flores No caso das obras Tapete e Vaso com flores, no entanto, esse valor simbólico se dá como simulacro. Enquanto tentativa de representar a representação de um desejo anterior, desejo este que se realiza pela iminência de um detalhe, através do qual nos aproximamos desta noção de algo maior que nós, de uma percepção dilatada do tempo. Nos trabalhos não há, no entanto, essa autenticidade, eles se apropriam dela, tomando para si uma parcela do desejo que ela gera . Esta autenticidade é, portanto, um dos elementos que agregam valor ao signo e a imagem do tapete oriental enquanto objeto de desejo, independentemente dele ser verdadeiramente um objeto antigo, carrega consigo esses signos culturais, ainda que de maneira "impostora". 32 Revoada de pássaros, 2021, 270 x 220 cm, tecidos variados O Revoada de pássaros, por outro lado, parte do deslocamento de um elemento muito recorrente nas bordas de guarda dos tapetes orientais, formando uma composição de aproximadamente 100 casais de pássaros. Um elemento ornamental das bordas do tapete se torna aqui o assunto, ele não é uno, no entanto, sua repetição o faz presente. Aparentemente todas as peças são iguais, mas pela sua repetição excessiva tornam-se visíveis as diferenças entre cada uma. A repetição é vista por McCollum enquanto a linguagem do poder por excelência ,16 sendo utilizada por diversos grupos, desde religiosos a militares, para construir um “espetáculo hipnótico”. Ele relaciona este vasto espetáculo hipnótico, quando proporcionado por determinado poder industrial, a uma suposta sensação de segurança por conta de uma autoridade previsível. O fetichismo de mercadoria está fortemente atrelado à ideia que temos de poder, de quem detém o poder, ou à possibilidade de termos alguma espécie de poder ao possuirmos tal objeto. No meio da arte, nosso senso de liberdade imaginativa passa pelo desejo de identificação com tais forças de poder e de dinheiro, que associamos como 16 ROBBINS, D.A.. An Interview with Allan McCollum. Nova Iorque: arts Magazine, 1985. p. 7 33 apoiadoras de tal senso. Uma espécie de patronagem permeia esta liberdade imaginativa, passando o conforto e a segurança de fazer parte de um grupo seleto que tem alguma relação com aquele objeto artístico. O fetiche aparece, então, enquanto substituto deste poder real, ou, como McCollum coloca, enquanto “uma espécie de signo representando poder imaginário" .17 Detalhe da Revoada de pássaros Em contraponto à visão de fetiche discutida sobre o Tapete ou Vaso com flores, fortemente atrelada a uma suposta autenticidade, aqui o fetiche se faz presente pelo poder que há no ato de reprodução. Um não é cópia de outro, todos são “iguais”, com variações tonais, mas seguindo um mesmo desenho. São feitos a mão com retalhos de diversos tamanhos, alguns chegando a poucos centímetros, apenas o suficiente para ter uma espessura levemente maior do que a da linha de costura. A revoada se faz de maneira organizada, remetendo à geometria da disposição dos pássaros no céu, mas estática, fruto de um trabalho repetitivo. 17 “[...] a kind of sign representing imaginary power.” ROBBINS, D.A.. An Interview with Allan McCollum. Nova Iorque: arts Magazine, 1985. p. 4 34 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na tentativa de discorrer sobre a própria produção artística, o processo de seleção de quais obras abordar se torna uma tarefa difícil. De maneira geral me pareceu mais proveitoso selecionar poucos trabalhos e discorrer mais sobre cada um em vez de tratar de vários mais brevemente. Os assuntos que surgem deste tipo de discussão sobre cada trabalho se voltam de maneira mais frutífera para a produção em si, contraposto à possibilidade de fazer um grande catálogo de todos os trabalhos produzidos neste período, que teria grande valor de indexação, mas não desenvolveria tanto um discurso teórico. Ao lidar com cada trabalho isoladamente, o discurso geral da dissertação se deu de maneira mais localizada dentro de cada capítulo, enquanto o conjunto se constituiu a partir de uma base mais difusa de assuntos, com diversos pontos de continuidade e intersecção. Esta possibilidade de discorrer sobre os trabalhos se aproxima mais de uma construção imagética, ao ponto em que não há uma ligação linear e direta entre os assuntos, ou uma cadência sequencial do pensamento através dos capítulos, mas sim um embaraçado de conceitos que se associam formando um conjunto de elos que se complementam. De forma geral esta maneira de estruturar a dissertação se deu de maneira mais natural para mim, e parece se adequar à minha proposta de análise crítica e desenvolvimento teórico das obras. Haveria a possibilidade de associar diversos termos abordados em uma ordem de causa e consequência, ou de dissecação de cada ideia, mas me pareceu mais interessante lidar pontualmente com cada trabalho. Assim, há uma coerência entre a discussão sobre autenticidade que se desenrola para a sedução dos objetos, por exemplo, não sobre a força delimitadora de qualquer relação mais rígida, mas sim no sentido de que esses assuntos se complementam diretamente, e ambos dizem sobre o outro o que se deixar entender. 35 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA ADORNO, Theodor. Letters to Walter Benjamin. Em Aesthetics and Politics. Reino Unido: Verso, 1980, p.110. APTER, Emily. Feminizing the Fetish. Nova Iorque: Cornell University Press, 1991. BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973. _________. Da Sedução. São Paulo: Papirus, 1992. _________. The Conspiracy of Art. Reino Unido: Semiotext(e), 2005. _________. Simulacra and Simulation. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1995. BARRY, J.; PERKS, S.. The Dynamics of Desire. Electronic Superhighway, [s. n.], 2016. BARRY, Judith. Casual Imagination: Discourse no. 4. Berkeley: [n. e.]. 1981-1982. DIACONO, Mario. Glitzkrieg, Nova Iorque: [s. n.]. Catálogo para a exposição art, fashion and religion, no Museum of Modern Art, Nova Iorque, 2007. FAJARDO, Carlos Alberto. Poéticas Visuais: A Profundidade e a Superfície. 1998. Tese (Doutorado em Artes Plásticas) - Escola de Comunicação e Artes - Universidade de São Paulo, SP, 1998. FOSTER, Hal. O que vem depois da farsa?. São Paulo: Ubu Editora, 2021. FREUD, Sigmund. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, volume 21. Inglaterra: Hogarth Press, 1966. GULLAR, Ferreira. Teoria do Não-Objeto. Rio de Janeiro: Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, 1960. HARTEN, Doreet Levitte. HEAVEN essay. Reino Unido: [s. n.]. Catálogo para exposição HEAVEN: AN EXHIBITION THAT WILL BREAK YOUR HEART, Tate Liverpool Exhibition, 1999. JONES, Lindsay. Encyclopedia of religion, Volume 13. Nova Iorque: Macmillan Reference, 2005. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. OLIVEIRA, N.; PERRY, M.; OXLEY, N.. Installation Art at Modern World. Nova Iorque: Thames & Hudson, 2004. 36 OITICICA, Hélio. Esquema geral da Nova Objetividade. Republicado em Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1986. RANCIERE, Jacques. A Partilha do Sensível. São Paulo: Editora 34, 2009. _________. O Espectador Emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2014. ROBBINS, D.A.. An Interview with Allan McCollum. Nova Iorque: arts Magazine, 1985 SALZSTEIN, Sônia. Construção, desconstrução: o legado do neoconcretismo. Novos Estudos - CEBRAP, 2011. SITWELL, Edith. Taken Care Of. Nova Iorque: Atheneum, 1965. MCCOLLUM, Allan; et al. Damaged Goods: Desire and the Economy of the Object. Nova Iorque: [s. n.]. Catálogo da exposição Damaged Goods: Desire and the Economy of the Object, New Museum of Contemporary Art, 1986. MONIER-WILLIAMS, Monier. Monier Williams Sanskrit Dictionary. Londres: W. H. Allen & Co, 1851. BIBLIOGRAFIA GERAL ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ARCHER, Michael. Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte . São Paulo: Perspectiva, 1975. CHIPP, H.B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. GOMBRICH, E. H.. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999. O'DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco. São Paulo: Martins Fontes, 2003.