Alfa, São Paulo 29:142-144, 1985 Benedito A N T U N E S * MARCHI , Cesare — Impariamo I'italiano. Milano, Rizzoli Editore, 1984. 200 p . O livro mais vendido no último inverno italiano na categoria " e n s a i o " foi nada mais nada menos que um manua l de gramática. Lançado em setembro de 1984, Impariamo l'italiano, de Cesare Marchi , passou logo para a lista dos mais vendidos . O seu Autor , fo rmado em Letras pela Univers idade de Pádua, já foi professor na escola média italiana e publicou t raba lhos sobre Boccaccio, Are t ino , Dante , dedicando-se a tualmente , entre ou t ras coisas, ao jo rna l i smo. N u m a época em que a língua encontra- se em crescente descrédito, sobre tudo entre os jovens, aos quais os jargões da tecnolo­ gia têm inspirado a expressão do vazio cultural a que foram relegados, é no mínimo cu­ rioso que u m a obra com tais propósitos caia no gosto popula r . É bem verdade que não consideramos a espécie de público que estaria consumindo esse t ipo de publ icação . E é até provável que tenha um dest ino didático. En t re t an to , o seu caráter jornalístico, e por isso às vezes superficial e pouco sistemático ou abrangente , o desqualificaria pa ra um uso dessa o rdem. Por o u t r o lado, há o aspecto cômico do livro, que poder ia estar funcionando c o m o a t ra t ivo . C o m efeito, ele é apresen tado com o seguinte slogan: "Boas regras e maus exemplos para enfrentar com um sorriso nos lábios a primeira língua es t range i ra" . E já na in t rodução o A. explicita a sua intenção de t ra tar de forma descontraída de um assunto por na tureza árido: " P a r a adocicar a acerba matéria, o au­ tor usou um estilo simples, p l ano , nar ra t ivo . A o substituir o ant igo b icho-papão esco­ lar por uma gramática com rosto h u m a n o , sem pesadelos e sem sofismas, ele espera chamar a a tenção de quem, regras e exceções, nunca as es tudou, ou as e squeceu" (p . 5). Dessa forma, cada noção gramatical é s i tuada num contexto pi toresco, ou mesmo hilariante, a que o A. invariavelmente acrescenta um dito chis toso. O livro subdivide-se em três par tes : as boas regras, o bom estilo e os maus exem­ plos. A par te mais extensa é dedicada às regras gramat icais , em que d e p a r a m o s com questões ligadas ao uso do dicionário, à p o n t u a ç ã o , às classes gramaticais e ao empre­ go apropr iado das pa lavras . O esquema é mais ou menos o mesmo. Cada capítulo inicia-se com um fato corr iquei ro , extraído da imprensa, da TV, das canções popula­ res, de uma si tuação escolar ou da própria l i teratura , do qual se destaca um uso equivo­ cado da língua. Este é ut i l izado para algum efeito cômico, em que se insiste no c o m o não se deve falar nem escrever. E finalmente passa-se à explanação do uso corre to da língua, não só naquele caso específico c o m o em casos similares, o que implica quase sempre um elenco no rma t ivo . No capítulo dedicado aos adjetivos, por exemplo , ele censura os cantores Al Bano e Romina Power , que venceram o festival de Sanremo de 1984 com a canção Ci sara, d izendo: " N ã o se entende por que razão , pa ra melhora r o mundo se deva a t ropelar a gramática". Eles haviam can tado : "haverá um azul mais in- * Departamento de Letras Modernas — Instituto de Letras, História e Psicologia — UNESP — 19800 — Assis — SP. 142 MARCHI, C. — Impariamo 1'italiano. Milano, Rizzoli Ed., 1984. 200p. RESENHAS. Alfa, São Paulo, 29:142-146, 1985. tenso e um céu mais i m e n s o " (p . 49). Segundo o A. , não se pode acrescentar ao compa­ rativo piu (mais) adjetivos que , pela sua na tureza , não supor t am conf ron tos , c o m o imenso, infinito, eno rme , on ipo ten te , onisciente etc. " N ã o é concebível que A seja mais imenso, mais infinito, mais e n o r m e d o que B; são valores que t ranscendem todas as possibilidades de mensuração e, logo, de c o m p a r a ç ã o " (ibid.) . E aprovei ta a opor tu ­ nidade para dar mais u m a alf inetada no nível do festival de Sanremo l embrando que em 1980 u m a canção apresen tada pelo con jun to Omelet , falava de uma garota que bate à por ta : " Q u e m será? ' A m o r mio , sono m e ' [Sou eu, meu amor — que segundo as boas regras deveria ser " A m o r mio , sono i o " ] , responde a moça impaciente e 'desgra- mat icada ' . A esta a l tura um pr imeiro a luno da classe teria respondido: 'Sei per me t roppo ignorante / non ti voglio per a m a n t e ' . Os Omelet ao contrário abr i ram a por t a , fazendo com a língua ital iana um belo omelete . É fácil imaginar a con t inuação d o diá­ logo: 'Dolce a m o r , non di rmi addio / resta sempre qui con io ' [Doce amor , não me di­ ga adeus , fique sempre aqui comigo — em que se usa o p r o n o m e do caso re to (io) em lugar d o oblíquo me.]" (p . 50). C o m o já v imos, o A. coloca-se da perspectiva de quem está fornecendo material pa­ ra o es tudo da pr imeira língua estrangeira , dada a condição part icular da Itália, onde , ainda hoje, o dialeto funciona realmente c o m o língua materna . Assim, no pr imeiro capítulo, no qual defende, com um toque de ironia, a importância da " l e i t u r a " do di­ cionário (cita Ana to le France , que teria di to que no dicionário se encont ram todos os livros do m u n d o , passados e futuros; bas ta extraí-los de lá — p . 9), refere-se a u m a pes­ quisa segundo a qual os i tal ianos dispõem em média de um conhecimento de 400 pala­ vras per capi ta , o que é mui to pouco para exercitar a l iberdade da palavra. Sustenta também que para quem escreve e fala o conhec imento etimológico é indispensável. Aproveita a ocas ião para poli t izar o seu discurso e quest ionar expressões como repúbli­ ca democrática popu la r : " A n t e s mesmo de ser um engano político, é u m a tautologia le­ xical, u m a vez que t an to o vocábulo grego demos, do qual deriva democrático, q u a n t o o latino populus, do qual deriva popu la r , significam povo . Se alguém escreve reino mo­ nárquico, água hidráulica, gelo gelado, fogo ígneo, passaria por louco. Quem diz repú­ blica democrática popu la r , n ã o " (p . 10). Depois de alertar pa ra o perigo de se cair nu­ ma falsa et imologia ao confiar no ouvido para deduzir a origem de uma palavra , cha­ ma a a tenção para as palavras que , a exemplo dos h o m e n s , renegam o seu passado , a sua religião e passam para o lado d o inimigo. " A n t e s de 89, os jacobinos eram os pios fradezinhos do convento parisiense de Saint -Jacques (Jacobus em lat im), mas depois das reuniões que ali fizeram os mais acesos revolucionários, jacobino passou a signifi­ car um ultra an t ic ler ica l" (p . 11). Nesse tom fala a seguir das famílias etimológicas: " D e corte (...) p rovêm cor te jo , cortejar , cor tesã. É improvável que hoje um corte jo de cortesãs seja recebido na cor te , mesmo po rque há carência de monarqu ias ; mas se isso acontecesse, seria u m a reunião de família" (p. 12). E, nesta espécie de br incadeira eti­ mológica, faz também a defesa do mestre , que e t imologicamente deveria ganhar mais do que um minis t ro , pois , através da palavra latina magister, mestre deriva de magis, que quer dizer mais , demais , ao passo que ministro vem de minister, pa lavra que é filha de minus, menos , " e a conf i rmação desta minoração nos é dada por certos discursos de min is t ros" (p . 12). De qualquer manei ra , o livro consti tui algo que ul t rapassa o simples divertissement, uma vez que acaba ap resen tando a o leitor, além das n o r m a s básicas da língua, uma constante visão crítica dos fatos que nos cercam. Esta visão crítica decorre em boa par­ te do próprio estilo, que c o m p o r t a comentários que vão da ironia a críticas contunden- 143 MARCHI, C. — Impariamo /'italiano. Milano, Rizzoli Ed., 1984. 200p. RESENHAS. Alfa, São Paulo, 29:142-146, 1985. tes, restabelecendo assim a vital inter-relação entre a língua e a realidade imediata , fe­ nômeno pouco c o m u m entre os gramáticos. É o que se observa n u m dos capítulos fi­ nais, dedicado ao dolce dir niente, q u a n d o o A. a taca o engodo da linguagem dos políticos e da imprensa em geral . C h a m a a a tenção para a voga das " e x p r e s s õ e s " hoje imperantes, que t o r n a m difícil o fácil através do inútil" (p. 179). Segundo o A. , se Ga­ lileu voltasse a viver, na a tual s i tuação, atual izaria assim o seu sóbrio Eppur si muove: " N ã o obs tante as pressões dos centros de poder aristotélicos que privilegiam o sistema ptolomaico, a minha estratégia da a tenção , e m p e n h a d a em verificar um novo mode lo de desenvolvimento do contexto cósmico, não pode não afirmar que o nosso p laneta , não obstante as carentes infra-estruturas , gira sobre si mesmo no democrático respeito, naturalmente , dos ou t ros corpos celestes, visando a um construt ivo conf ronto e evitan­ do qualquer choque f r o n t a l " (p . 180). Conclui o capítulo reproduzindo um q u a d r o com várias expressões que , combinadas l ivremente, podem resultar em sete milhões de frases abso lu tamente pr ivadas de significado. Além de diver t ido, percorrer a lgumas dessas combinações provoca no leitor a nítida sensação de encontrar-se d iante de deter­ minadas declarações de pessoas que o p rocuram encobrir a lguma verdade ou simples­ mente se comprazem na verborragia de quem pouco tem a dizer. Finalmente , deve-se destacar que mesmo sendo informal , vazado em u m a lingua­ gem jornalística, o livro de Marchi assume às vezes uma posição es t ranhamente conser­ vadora em relação a de te rminados usos p lenamente just if icados pela lingüística e de resto consagrados pelo discurso coloquial . Dedica, por exemplo, um capítulo para con­ denar expressões do tipo gelato alia crema (sorvete ao creme), prefer indo gelato di crema (sorvete de creme), por considerar o primeiro caso um francesismo. Nesta mes­ ma linha, vê com pouca s impatia certas abreviações que ocorrem na língua ital iana, a exemplo da supressão da preposição rf/em expressões c o m o : stazione dei viaggiatori = stazione viaggiatori; nota delle spese = nota spese; Palazzo dello sport = Palasport; mercato delia frutta e delia verdura = ortofrutta(p. 112). Por discutível que possa ser do p o n t o de vista metodológico, Impariamo l'italiano representa um a t raente material para o es tudo da língua italiana, até mesmo para es­ trangeiros. E m b o r a não possa dar conta p lenamente de de te rminadas questões que aborda , o livro funciona como estímulo para um estudo mais a p r o f u n d a d o , sem contar as inúmeras passagens em que desperta no leitor o espírito crítico em relação a usos ideológicos da língua. 144