Faculdade de Filosofia e Ciências - Campus de Marília Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais COLABORAÇÃO, TRABALHO DIGITAL E O CERCAMENTO SOBRE O CONHECIMENTO TECNOLÓGICO Vinicius Aleixo Gerbasi Marilia, SP 2021 Vinicius Aleixo Gerbasi COLABORAÇÃO, TRABALHO DIGITAL E O CERCAMENTO SOBRE O CONHECIMENTO TECNOLÓGICO Tese apresentada ao programa de Pós- graduação em Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista (UNESP). Linha de Pesquisa Desenvolvimento e Relações Internacionais Orientador Prof. Dr. Agnaldo dos Santos Marilia, SP 2021 VINICIUS ALEIXO GERBASI COLABORAÇÃO, TRABALHO DIGITAL E O CERCAMENTO SOBRE O CONHECIMENTO TECNOLÓGICO Tese apresentada ao programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista (UNESP). Banca examinadora Prof(a). Dr(a). AGNALDO DOS SANTOS Departamento de Ciências Políticas e Econômicas / Unesp, Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Prof(a). Dr(a). LUIS ANTONIO PAULINO Departamento de Ciências Políticas e Econômicas / Unesp, Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Prof(a). Dr(a). MARCOS CORDEIRO PIRES Departamento de Ciências Políticas e Econômicas / Unesp, Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Prof(a). Dr(a). EDEMILSON CRUZ SANTANA JÚNIOR Departamento de Ciências Sociais / Universidade Federal do Ceará Prof(a). Dr(a). LUIZ EDUARDO SIMÕES DE SOUZA Departamento de Economia / Universidade Federal do Maranhã RESUMO Os cercamentos sobre o conhecimento através dos direitos de propriedade intelectual é o que a tese propõe investigar. A combinação entre privado e público sobre o conhecimento tecnológico é por nós entendida como a forma pela qual se dá a acumulação. A tese mostra que a captação das rendas sobre o conhecimento decorre da sinergia entre acesso aberto e conhecimento fechado. O cercamento sobre o conhecimento é realizado por meio de patentes e de direitos autorais. A propriedade intelectual impõe travas de acesso através de preço e de controle sobre ele. O objetivo disso é a extração de lucros a quem detêm sua posse. A hipótese desta tese é a de que a apropriação do conhecimento é uma forma de espoliação das relações sociais através da produção tecnológica. A especificidade da acumulação no capitalismo contemporâneo e o surgimento de novas tecnologias de informação e comunicação, fizeram emergir novas formas de reestruturar a produção e captar lucros. A existência de uma interação e combinação entre acesso aberto e privatização visa à circulação e à apropriação do conhecimento tecnológico pelo mercado: além disso, consiste em estratégia de apropriação do capital sobre o trabalhador vivo. No plano empírico, é analisado o site usado para o desenvolvimento de programas de computador “GitHub”. Defendemos que o conceito de renda marxiano ajuda a esclarecer a forma de se gerar lucro a partir do cercamento sobre o conhecimento. Palavras chave: Direitos de Propriedade intelectual. Código aberto. Acumulação. Renda. Valor. ABSTRACT We aim investigate the enclouseres on knowledge through intellectual property rights is what the thesis proposes to investigate. The combination of private and public on technological knowledge is understood by us as the way in which accumulation occurs. The thesis shows that the capture of income on knowledge occurs from the synergy between open access and closed knowledge. The patents and copyrigths enclouser the knowledge. Besides, the intellectual property imposes barriers of acess through price and control. The purpose of this is to extract profits from those who own them. The hypothesis of this thesis is that the appropriation of knowledge is a form of spoliation of social relations through technological production. The specificity of accumulation in contemporary capitalismo and new information and communication technologies, has given rise to new ways of restructuring production and capturing profits. The existence of an interaction and combination between open access and privatization aims at the circulation and appropriation of technological knowledge by the market: in addition, it consists of a strategy for the appropriation of capital on the living worker. Empirically, we analyse the website used for the development of computer programs “GitHub”. We argue that the concept of Marxian income helps to understand how to generate profit from the enclosure on knowledge. Keywords: Intellectual Property Rights. Open code. Accumulation. Income. AGRADECIMENTOS Agradeço à orientação firme do professor Agnaldo dos Santos. Agradeço aos integrantes da banca de doutorado, professores Edemilson Cruz Santana Junior, Luis Antonio Paulino, Marcos Cordeiro e Luiz Eduardo Simões de Souza, que com sugestões e debates contribuiu muito para esse trabalho. Aos colegas e professores do Grupo de Pesquisa “Economia Política da Globalização” pelas discussões. À Universidade Pública, em especial à Universidade Estadual Paulista (UNESP) lugar em que realizei toda minha trajetória acadêmica. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção e, portanto, as relações de produção, isto é, todo o conjunto das relações sociais. esta mudança contínua da produção, esta transformação ininterrupta de todo o sistema social, esta agitação, esta perpétua insegurança distinguem a época burguesa das precedentes. todas as relações sociais tradicionais e estabelecidas, com seu cortejo de noções e ideias antigas e veneráveis, dissolvem- se; e todas as que as substituem envelhecem antes mesmo de poder ossificar-se. Friedrich Engels, Karl Marx Em contraste com as concepções correntes, o saber aí não aparece como um saber objetivado, composto de conhecimentos e informações, mas sim como atividade social que constrói relações comunicativas não submetidas a um comando. André Gorz LISTA DE IMAGENS Imagem 1 - Valor das ações das principais empresas de tecnologia em bilhões de dólares.......................................................................................... 99 Imagem 2 - Aquisições pelas seis maiores plataformas digitais de 2010 a 2018............................................................................................................... 112 Imagem 3 - Pedidos de patentes em 2018 referentes ao tratado de cooperação de patentes................................................................................. 113 Imagem 4 - Tendência dos principais campos de tecnologia de 1978 a 2018............................................................................................................... 116 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 12 1.1 JUSTIFICATIVA ............................................................................................... 13 1.2 HIPÓTESE........................................................................................................ 14 1.3 METODOLOGIA............................................................................................... 15 1.4 OBJETIVO........................................................................................................ 17 1.5 DIVISÃO DOS CAPÍTULOS............................................................................. 17 2 CONHECIMENTO, TECNOLOGIA E COMPUTAÇÃO ...................................... 19 2.1 ANTECEDENTES DO PLANEJAMENTO INDUSTRIAL DA COMPUTAÇÃO...................................................................................................... 21 2.1.1 COMERCIALIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO............................................ 19 2.2 INOVAÇÃO, TECNOLOGIA E DESTRUIÇÃO CRIADORA............................. 36 2.3 INOVAÇÃO, TECNOLOGIA E PRÁXIS......................................................... 39 2.4 MODELO PROPRIETÁRIO E MODELO ABERTO NA PRODUÇÃO DE SOFTWARES......................................................................................................... 49 2.5 SOFTWARE LIVRE E CÓDIGO ABERTO: DUAS LÓGICAS EM DISPUTA... 57 2.6 COLABORAÇÃO, EMPREENDEDORISMO E HACKERATIVISMO................ 63 2.7 CONHECIMENTO ABERTO E INTERNET...................................................... 66 2.8 PEER PRODUCTION....................................................................................... 77 3 REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E O CAPITAL-INFORMAÇÃO.................. 80 3.1 REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA................................................................. 80 3.2 TECNOLOGIA, COOPERAÇÃO E RIVALIDADE............................................ 83 3.3 RENTISMO, FINANCEIRIZAÇÃO E DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL........................................................................................................ 88 3.4 “NOVA ECONOMIA” E ACUMULAÇÃO .......................................................... 93 3.5 DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL.............................................. 104 3.6 ACORDOS E AJUSTES INTERNACIONAIS.................................................... 122 3.7 MODALIDADES PRIVADAS E PÚBLICAS DE ACESSO................................ 125 3.8 INFORMAÇÃO E MERCADORIA..................................................................... 129 3.8.1 INFORMAÇÃO, MERCADORIA E CODIFICAÇÃO....................................... 139 3.8.2 INFORMAÇÃO COMO BEM-PÚBLICO......................................................... 141 3.9 A TEORIA DO COMUM.................................................................................... 148 3.10 TRABALHO, BIOPOLÍTICA E SUBSUNÇÃO INTELECTUAL....................... 151 3.11 CERCAMENTOS DOS COMMONS............................................................... 155 3.12 VALOR E RENDA INFORMACIONAL.......................................................... 164 4 DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL E ABERTURA DO CONHECIMENTO: UMA RELAÇÃO CONFLITUOSA OU COMPLEMENTAR? 173 4.1 DESENVOLVIMENTO NO GITHUB................................................................. 173 4.2 DÁDIVA, COLABORAÇÃO E APROPRIAÇÃO................................................ 179 4.3 APROPRIAÇÃO E RENDA............................................................................... 180 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: CERCAMENTOS E HIPEREXPLORAÇÃO DO COMMONS............................................................................................................. 187 REFERÊNCIAS...................................................................................................... 197 GLOSSÁRIO 212 APÊNDICE 214 ANEXOS 220 12 1 INTRODUÇÃO Os direitos de propriedade intelectual se encontram no surgimento da sociedade capitalista. Desde a revolução industrial, passando pelo contemporâneo, no qual a exploração e o uso privado do conhecimento se intensificaram. A privatização – de patenteamento de máquinas, do sequenciamento genético e de ideias artísticas – deriva da premissa histórica e necessária do capitalismo, que é a criação de lucros aos capitalistas, usando o monopólio sobre o conhecimento como uma das formas para atingir esse objetivo. O surgimento de tecnologias e de estruturas de mercados complexos (como ocorre no capitalismo contemporâneo) desponta diferentes formas de geração de lucros, feitas pela posição favorável de monopólios sobre conhecimento e/ou sobre acesso de informações na internet, as quais garantem privilégios de monopólios e prejuízos da coletividade. A circulação do conhecimento e a difusão e apropriação de tecnologias surgem, desse modo, como “geração” e “apropriação” do conhecimento, promovendo tipos de extração de lucros e de captura do trabalho alheio. Sobre essa perspectiva, podemos afirmar que as evoluções tecnológicas alcançaram níveis diferentes de complexidades de criação de lucros, de criação de mais-valia e de exploração do trabalho, afetando o modo como ela interage e modifica os mercados. No contexto da atual configuração do capitalismo, pautado pela financeirização dos mercados e pela chamada quarta revolução industrial os programas de computadores (softwares) desempenham um papel importante na economia. A mercantilização dos programas de computadores faz parte de um contexto econômico no qual o desenvolvimento tecnológico, especialmente dos últimos anos, vem possibilitando uma intensa acumulação do capital. Diante desse contexto, os interesses do capital vêm sendo impostos desde a década de 1970, com mudanças e pressões para a criação e o reconhecimento de patentes e de direitos autorais em âmbito internacional, buscando afirmar a orientação mercantil do conhecimento, seus usos e inovações a eles associados. A análise do desenvolvimento de softwares visa mostrar como o conhecimento foi sendo captado pelo mercado. O posicionamento dos atores econômicos na esfera política fez do conhecimento matéria de mercantilização e espoliação ilimitadas. Como a tese discute, as estratégias de construção do “capital-informação” (DANTAS, 2012) da “espoliação do conhecimento” (HARVEY, 2013) se realizam conforme o desenvolvimento tecnológico e inserção do mesmo no tecido social e econômico, 13 induzindo novas formas de captar valor e gerar lucros, explorar e gerir o trabalho intelectual. Mais especificamente, focamos na inter-relação entre conhecimento aberto e conhecimento fechado para mostrar, a partir desta interação, a privatização da inteligência e da criatividade tornadas valores de troca por meio da construção dos direitos de propriedade intelectual. Deve-se dizer que o capitalismo não é apenas produção de mercadorias, ele se define como uma relação social. É a partir dessa chave-teórica e dentro de um contexto de amplas transformações no regime de acumulação contemporâneo que analisamos o Software Livre. Nesta pesquisa, busca-se superar a ideia segundo a qual existe uma oposição entre conhecimento aberto e conhecimento privado-fechado. A perspectiva teórica segundo a qual este trabalho está norteado é a de que a espoliação do conhecimento se tornou intrínseca nos processos de acumulação do capital. A acumulação perpassa dimensões especulativas e fictícias de valor, que se deslocam e colonizam as dimensões imateriais, como informação e conhecimento, mas também dimensões como afetividade e formação de subjetividade. A competitividade e a defesa da propriedade privada como categorias norteadoras e imutáveis nas relações sociais. No capitalismo a acumulação é a lei fundamental da estrutura socioeconômica. Por isso, a privatização e a apropriação das dimensões imateriais, como informação, conhecimento e cultura e de recursos naturais, como água e terras, são fundamentais na valorização do capital. Em vista da execução desta lei imanente ao capital o não mercantil vai sendo eliminado e se tornando mercantilizado. A apropriação dos bens intangíveis pelo capital expõe uma estratégia de recomposição de lucros e da extensão da lógica do valor às relações sociais. Nesse sentido, o conhecimento tecnológico para uso público e coletivo é negado à classe trabalhadora assim como a coletivização e a utilização soberana de seus resultados e de seus benefícios ao desenvolvimento econômico e social. 1.1 JUSTIFICATIVA As transformações relativas à produção do valor, da mercantilização e da espoliação do conhecimento despertou no pesquisador desta tese uma perspectiva teórico-científica para os processos de formação socioeconômicos e políticos que lhe definem. 14 A intensificação de formas de capturar o trabalho e, em consequência disso, de ampliação dos direitos de propriedade intelectual despertou o interesse do autor para o tema de pesquisa aqui proposto no qual debruçamos nossas investigações. Ao contrário do que se supõe na literatura apologética sobre um possível benefício em privatizar em benefício de seu autor/criador ou da necessidade em promover maiores estímulos à inovação, esse trabalho viu a necessidade de elaborar uma oposição a esses argumentos. 1.2 HIPÓTESE A questão que essa pesquisa coloca é a seguinte: como definir o conhecimento e seu acesso aberto na perspectiva da acumulação do capital? Sendo assim, nossa hipótese é a de que ocorre um processo de cercamento do capital em direção ao conhecimento e ao comum, através de mecanismos regulatórios que, apesar de permitirem o acesso ao conhecimento, efetivam o cercamento e a espoliação sobre o mesmo. Como definir os cercamentos? Trata-se de separação dos meios de produção e dos trabalhadores alienados dos resultados de seu trabalho. Aqui uma observação importante: a expansão do capital implica na destruição de práticas alternativas e revolucionárias do uso comum da tecnologia e da inovação e reduz ambas a lógica mercantil e proprietária (em que o direito legitima a aparência natural e imutável da propriedade). A violência e intensificação da exploração e alienação decorrem do caráter extensivo e espoliativo sobre as informações digitais; as quais, é verdade, não são inéditas, porque remete à indústria farmacêutica com sua imposição e defesa de patentes. Se na reprodução ampliada, o capital se vê prisioneiro de contradições e limites a sua própria expansão e sobrevivência, a solução encontrada pelo mesmo é intensificar a privatização e a mercantilização, para travar o conhecimento, fazendo-o funcionar como uma mercadoria qualquer. Com isso dimensões cada vez mais expressivas que formam o imaterial – formas de expressão, sejam elas artísticas e intelectuais, baseadas na inteligência e na criatividade – contornando essas mesmas contradições e limites que o constrange. Por isso, defendemos que o conhecimento aberto é apropriado através da propriedade intelectual no capitalismo contemporâneo e que existe uma complementariedade entre conhecimento aberto e cercamentos: uma dialética que 15 visa o enriquecimento privado. Dessa forma, observamos que o cercamento rígido do conhecimento por meio de patentes e direito autoral vem sendo evitado, a fim de que o conhecimento tecnológico possa circular, que culminem em inovações e reconfigurações tecnológicas ainda não experimentadas. Aqui se trata de uma questão essencial de nossa hipótese de trabalho: o acesso ao conhecimento tem se caracterizado como aberto e público ao mesmo tempo, ao passo que as inovações geradas pelas experimentações têm sido apropriadas por grandes empresas da área tecnológica. A visão adotada por nós em relação à propriedade intelectual é a mesma da adotada por pesquisadores que a criticam: a de que os direitos de propriedade intelectual levam ao direito à privatização e a espoliação de conhecimento, criando a escassez mediante sua propriedade. As críticas são feitas por autores de diferentes matizes teóricas, como Andersen (2003), Stiglitz (2007), Dantas (2012), Herscovici (2011) Benkler (2002), Lessig (2004; 2001), Boldrin e Levine (2008), Boyle (2003), Harvey (2013) e Drahos e Braithwaite (2002). Em termos de produtividade e de inovação, há uma colaboração constante entre trabalhadores digitais na revisão e no melhoramento de códigos digitais que estruturaram os softwares. Isso porque, na dinâmica tecnológica, a limitação de acesso às informações não seria capaz de fornecer eficácia, dada a existência de uma necessidade de recombinação e de reconfiguração constantes no contexto das relações de produção contemporâneas. 1.3 METODOLOGIA A metodologia desta pesquisa foi dividida em duas partes. Em um primeiro momento, busca-se discutir o arcabouço teórico-conceitual que fundamenta a pesquisa. Por meio dele se origina o problema de pesquisa e a elaboração das hipóteses de trabalho: a aparente contradição ou distinção entre direitos de propriedade intelectual e acesso comum ou aberto ao conhecimento. Foi a essa pergunta que queremos ou pretendemos responder. Ao escolher a acumulação como núcleo de análise não queremos impor uma determinação da realidade. Ao contrário, se fizemos a opção de integração das relações sociais na acumulação, trata-se de um vértice de análise, o qual se julga crucial para a compreensão de nosso objeto de investigação. O próprio avanço científico não pode renunciar de análises parciais e delimitadas. Mas isso não quer 16 dizer que não se devam fazer análises totalizantes, escolher categorias conceituais e modelos teóricos-científicos que lhe confiram explicações teóricas. Para tentar dar conta do estudo teórico, usamos o arcabouço teórico marxiano, especialmente o conceito do valor- trabalho. Posto isso, em um segundo momento, é feita a análise empírica sobre um site de desenvolvimento de programas de computadores e de compartilhamento de códigos computacionais chamado GitHub. Utiliza-se o recurso de entrevistas estruturadas, a partir de questionários com respostas dissertativas. Segundo Marconi e Lakatos (1999, p. 1000) o questionário é instrumento de coleta de dados constituído por uma série de perguntas, que devem ser respondidas por escrito. Dessa forma, devem-se mencionar as limitações de tais instrumentos, como baixa adesão de participantes e perguntas não respondidas. O questionário foi enviado aos participantes através de lista de e-mails, sendo estas instituições incubadoras de empresas da Unicamp, USP, UNESP e Porto Digital em Recife (PE). Além disso, foi enviado também para uma lista de discussão eletrônica da Google, composta por programadores que trabalham e colaboram com programas de código aberto. Consideramos também como fonte de dados secundários, fóruns eletrônicos de programadores a respeito da colaboração no desenvolvimento de programas de computador. Foram analisadas e coletadas informações disponíveis em sites especializados na temática (Open Source Foundation, Source Forge e Free Software Foudantion). Não fazemos na tese análises teóricas sobre as características das licenças abertas, nos limitando a demonstrar a sinergia entre conhecimento proprietário e aberto. Dessa maneira, a tese busca demonstrar o processo dialético no que diz respeito ao público x privado, coletivo x individual existentes na dinâmica das relações capitalistas de produção. Consideramos como recorte temporal as duas últimas décadas, nas quais passou a se conformar, no âmbito das relações de produção capitalista, o capitalismo informacional, no qual a criação de grandes empresas que controlam, geram e captam dados, tem um peso e um papel relevante na estrutura social e na organização do trabalho, do consumo e do investimento e do lucro. É através das transformações tecnológicas e informacionais desta seara que se deram avanços significativos como 17 a Indústria 4.0 e o surgimento da computação em nuvem, da chamada Economia de Compartilhamento e dos serviços ofertados pelas plataformas digitais. 1.4 OBJETIVO O objetivo principal é entender a estratégia de acumulação no capitalismo contemporâneo. Para isso, abordamos os cercamentos como se produz valor na economia da internet, quer através de direitos de propriedade intelectual, quer através da colaboração dos trabalhadores digitais. Ambas surgem como diferentes estratégias de captação de valor e de lucro ao capital, seja a partir de uma dimensão produtiva do trabalho, em que há criação de valor através do trabalho produtivo, ou a partir de formação de lucros que podem ser descritos como ganhos de renda sobre o conhecimento. 1.5 DIVISÃO DOS CAPÍTULOS Os capítulos estão divididos em três partes. No primeiro capítulo, busca-se discutir e apresentar que já havia no setor de produção de softwares uma falsa dicotomia no que tange à implicação do cercamento pelas patentes. Apesar da crescente concessão de patentes ao longo dos anos, muitas tecnologias que se referem à internet não conseguiriam se desenvolver na mesma velocidade se houvesse uma maior imposição de patentes e direitos autorais ao conhecimento. Também nesse capítulo, esboça-se uma reflexão sociológica da ciência, tecnologia e conhecimento bem como a compreende nos marcos da reprodução. No segundo capítulo abordamos a construção do capital-informação como processo intrínseco à acumulação. Assim, os fenômenos da globalização e da financeirização são abordados, pois constituem importantes mudanças sentidas nas últimas décadas e consistem em mecanismos para aumentar a composição dos lucros no capitalismo contemporâneo e para superação de suas quedas e crises engendradas pelo próprio sistema capitalista. Neste capítulo, aborda-se o fenômeno da espoliação e exploração a partir de um ponto de vista mais amplo, nos processos produtivos e a partir da exploração do trabalho intelectual ou trabalho informacional, ou seja, a exploração da inovação da ciência e tecnologia de modo amplo. A discussão e introdução de fenômenos econômicos e sociais como a globalização, a financeirização e transformações produtivas tentam compreender o cercamento sobre 18 o conhecimento e a colaboração no influxo de transformações mais gerais da qual ela faz parte e está indissociavelmente integrada. No terceiro capítulo, apresenta-se a parte empírica. As informações são captadas e analisadas segundo o corpo conceitual e teórico discutido nos capítulos anteriores. A avaliação de informações disponibilizadas é usada como ferramenta metodológica. Em termos de produção e de produtividade do setor da computação analisado, verifica-se que a combinação de compartilhamento e de difusão de conhecimentos se tornam categorias essenciais, de forma que todas as grandes empresas do setor IBM, Microsoft, Alphabeth (Google) e Amazon têm percebido tais especificidades. 19 2 CONHECIMENTO, TECNOLOGIA E COMPUTAÇÃO 2.1 ANTECEDENTES DO PLANEJAMENTO INDUSTRIAL DA COMPUTAÇÃO Até os anos setenta os softwares eram distribuídos junto aos hardwares. A informática ainda era pouco desenvolvida. Os softwares eram programados para rodar em máquinas específicas. Os computadores programáveis, capazes de receber informações, provocaram uma distinção fundamental entre a máquina em si e o roteiro de tarefas a ser desempenhado. Isso trazia sérias implicações, pois cada vez que o computador mudava, o que era frequente, o software tinha de ser reescrito completamente (SILVEIRA, 2005 p. 15). Cortês (2003) mostra que o campo da informática comercial, com os primeiros computadores pessoais, começou a despertar o interesse dos investidores em vista das possibilidades de lucros. Uma empresa gigante do ramo, a IBM, atuante no mercado de informática, resolveu terceirizar a produção de softwares, que passariam a ser fabricados a partir da lógica proprietária, surgindo disso o consórcio entre Microsoft e IBM: um dos acontecimentos mais proeminentes da tecnologia da informação. Antes da IBM, no início da década de setenta, a Apple já atuava no segmento de computadores pessoais, conquistando sua supremacia na metade da década de oitenta. A partir da invenção do cartão perfurado por Herman Hollerith na sua empresa Tabulating Machine Company, precursora da IBM, no século XIX, foi possível incluir dados que seriam lidos por máquina. As funções eram definidas a partir de instruções e comandos, programadas em cartões perfuráveis. Esse método de gravar informações nos cartões perfurados foi o precursor da memória usada em computadores. Tratava-se de um invento para desenhar em tecidos de forma automática, processo que quando feito manualmente, levava muito tempo. A técnica foi utilizada pela primeira vez na indústria manufatureira e pode ser considerada o primeiro conceito de máquina programável. Num breve esboço da história das tecnologias da computação, a decodificação de mensagens criptográficas fez avançar o campo da computação eletrônica. A máquina de Turing, como ficou conhecida, tinha como objetivo descriptografar mensagens enviadas via rádio pelas tropas nazistas. A partir de um número finito de operações, a máquina podia resolver problemas de diversas ordens. Essa técnica foi colocada em prática em uma máquina chamada Colossus. Mais tarde, 20 em 1946, o Electronic Numerical Integrator and Computer (ENIAC) foi produzido pelo exército norte-americano para cálculos balísticos. Esta tecnologia foi pioneira na concepção do computador moderno, pois ela introduziu as características de decodificar as instruções armazenadas na memória do computador; em segundo lugar estabeleceu instrução armazenada na memória, assim como qualquer outra informação necessária para sua execução; e por fim, o processamento cuja finalidade era a de buscar instruções que se encontravam acessadas na memória. Não era mais preciso introduzir um novo cartão perfurado a cada mudança de função, processo padrão até então utilizado àquela altura. O surgimento do computador chamado MARK I, criado em 1945 em Harvard e controlado pela Marinha, introduziu uma importante mudança de paradigma: a programação. A arquitetura do “programa armazenado” significaria que as tarefas das máquinas poderiam ser mudadas instantaneamente, sem que precisassem configurar os cabos e chaves manualmente. Portanto, os computadores representam uma nova concepção de realizar e efetuar cálculos e medições balísticas e matemáticas. A computação moderna é resultado da inter-relação de quatro características: “digital”, “binário”, “eletrônico” e “propósito geral”. Difere-se, portanto, do computador analógico, que ao invés disso, “utiliza uma quantidade variável como análogo para quantidades correspondentes do problema a ser resolvido, como por exemplo, a pressão hidráulica ou a mediação de uma distância” (ISAACSON, 2014, p. 83). Ao conceber uma máquina cuja função é expressão de uma tarefa lógica com qualquer conjunto de símbolos, ou seja, com o qual ela poderia interagir e compreender. Isaacson (2004, p. 29) afirma que o conceito recém-criado se referia a reunir dados e instruções de programação na mesma memória armazenada, o que diferia dos computadores anteriores – e ainda mais importante: a memória poderia ser apagável. Conforme Isaacson (2014): “Isso significava que as instruções de programa armazenadas podiam ser modificadas não só no final da tarefa como em qualquer momento em que o programa estava rodando”. Tal mudança era mais significativa na lógica interna da máquina, suas rotinas e sub-rotinas, do que na velocidade de se processar informações, embora estes dois procedimentos devam caminhar juntos para realizar as operações e para que tarefas possam ser realizadas satisfatoriamente. A preocupação não se concentrava apenas em torno de escrever um programa claramente definido e facilmente simbolizado, mas também surgia aqui o conceito de “compilador”, que podia: “[...] facilitar a escrita de um mesmo programa 21 para várias máquinas por meio da criação de um processo de tradução do código- fonte para a linguagem de máquina usada por diferentes processadores de computadores” (ISAACSON, 2014, p. 32). Uma grande quantidade de pesquisadores e cientistas de universidades e centros de pesquisa foi responsável pelas inovações que fazem parte da informática. As constantes colaborações e intercâmbios de ideias entre os cientistas e pesquisadores como Eickert, Neumann, Astanoff, Mauchly, Shannon e Turing1, os quais trabalharam juntos em projetos específicos, foram diretamente responsáveis pelo desenvolvimento do computador moderno. É importante observar, ademais, segundo argumenta o autor, a distinção de orientações político-filosóficas em relação ao patenteamento das ideias que deram origem ao ENIAC. Por meio da exposição de seus conceitos em um relatório, Von Neumann o deixou, em termos legais, em domínio público. Por questões publicitárias, a IBM (uma das principais empresas de computadores) atribuía nessa época peso às equipes colaborativas e instituições, ressaltando a importância das organizações, obviamente, como jogada de marketing. Ao abordar as inovações sob o prisma das instituições privadas, o foco da IBM não era a defesa da difusão do conhecimento, mas sim o modelo fechado do conhecimento como aspecto fundamental da exploração comercial: as ideias devem ser privatizadas em função da transformação delas em produtos comercializáveis. Tal defesa vai se confirmar na sua posição de monopólio e nas guerras jurídicas travadas para manter o conhecimento fechado e sob seu único domínio, tal como fizeram e fazem outras empresas como a Microsoft Corporation na década de oitenta. 2.1.1 COMERCIALIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO O computador se caracteriza pela reunião de tecnologias de informática – chips, wireless, telecomunicações e diferentes programas de gerenciamento de recursos do sistema (gerenciar memória, processar programas de modo coordenado 1Por exemplo, é significativo notar que Astanoff, que já havia criado uma máquina mecânica que se assemelhava ao computador eletrônico, forneceu ao matemático Mauchly (e o visitou para saber mais a respeito de seu computador), que inventou o primeiro computador junto a Eckert, ambos professores da universidade da Pensilvânia. Apesar da máquina de Astanoff não ser totalmente eletrônica e não programável para outras funções, forneceu insigths importantes para estes últimos pesquisadores. Ver a respeito: “A história dos computadores e da computação”. Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/tecnologia-da-informacao/1697-a-historia-dos-computadores-e-da- computacao.htm. Acesso em: 11 nov. 2018. 22 e eficiente). Seria impossível refazer uma história da computação considerando todas as ideias e inventos de maneira a atribuir a cada uma delas seus respectivos inventores; o fato é que todas elas, em maior ou menor grau, foram essenciais para o surgimento do computador moderno. A difusão de descobertas e invenções e a circulação delas foram e continuam tendo um papel crucial no desenvolvimento dessa tecnologia. O desenvolvimento dos computadores não teria ocorrido sem o avanço expressivo de preços e desempenhos dos componentes e de criação de centrais de processamento, que demandavam altos custos fixos, manutenção e operacionalização. Além disso, a construção de periféricos (teclados, câmeras, impressoras, CDs) aumentavam o armazenamento de dados, o que abriu novas aplicações e processamentos de dados em diferentes níveis e diversas tarefas das máquinas, exigindo o desenvolvimento e a redução de custos relativos aos programas de computador. Com a posterior miniaturização dos computadores e a criação do microprocessador, propiciou-se importante matéria-prima para uso comercial e industrial. Neste último caso, para controle em tempo real, a produção em muitas indústrias, como de eletrodomésticos, automobilística e química, além de bancos e serviços, propiciou finalmente maior descentralização dos processos industriais e fabricação em massa. Ressalta-se que atualmente os semicondutores e a computação se encontram nas “máquinas de produção”, que incorporam esses avanços e embarcam softwares, transformando o processo produtivo no chamado Toyotismo (BAHIA, 2002, p. 15). Segundo Marx (1975), “máquinas complexas” são definidas pela reunião de técnicas. Nessa perspectiva, Marx diz que o trabalho imediato e intelectual passa a ser cada vez mais importante e preponderante no capitalismo, e cada vez mais irá liberar do trabalho físico. Essa ideia está fundamentada no processo social dialético, segundo o qual, ciência e conhecimento constituem um processo metabólico que corresponde ao desenvolvimento dos sistemas sociais e, portanto, do ser humano em geral. O conceito de intelecto geral de Marx, que passou a ter interpretações diferentes entre os estudiosos, remete à ideia de uma inteligência coletiva, na forma de um complexo estruturado de conhecimento (PRADO, 2012) o qual está disponível 23 para o emprego na produção, que já faz parte essencial do modo de organização produtiva (industrial e maquinário, pesquisa aplicada) e social (arte e cultura). Nos seus escritos, Marx anteviu a tendência de aumento da composição orgânica do capital e, portanto, de gastos com capital constante, que levava à criação de máquinas e tecnologias aplicadas à produção (as quais se dão pela supervisão científica e dos próprios trabalhadores). A base industrial desse processo era o grande peso da ciência básica e do conhecimento. Com isso, fez-se diminuir a importância do tempo de trabalho abstrato necessário à produção de mercadorias, o qual é e continua sendo a essência da extração de valor. Como Prado (2012, p. 152) demonstra, os indivíduos por meio da atuação com o capital fixo criam condições históricas objetivas para controlarem, como sujeitos conscientes, o processo social de produção, desembocado em um nível de desenvolvimento tecnológico e científico altamente amadurecido, que Marx chamava de grande indústria. Os processos de produção têm se transformado ao longo do século XX, sobretudo a partir da década de setenta, com o colapso do fordismo. Do ponto de vista da teoria marxista, não há mudança alguma de substância, mas apenas de forma (PRADO, 2012). A configuração da produção capitalista se dá em uma relação de subordinação, a partir da qual passa a atuar o capital fixo de uma maneira muito mais imperiosa; na subordinação da classe trabalhadora como supervisora, reguladora e fabricadora de softwares até as máquinas, na medida em que se tornou essencial ao processo de produção, o trabalho dos algoritmos para as indústrias e para a chamada economia de plataforma e economia digital. Como trataremos no capítulo subsequente, ao abordar os cercamentos no conhecimento como mecanismo de acumulação sem precedentes, o capitalismo contemporâneo se caracteriza pela violência dos processos de subsunção do trabalho intelectual ao capital, ao esgotar o modelo de extração de valor do paradigma anterior de organização industrial e do trabalho. Há, de acordo com Marx, um processo de transferência de conhecimento da classe trabalhadora para sua materialização no capital fixo, e que no decurso da exploração a apropriação do conhecimento se torna um procedimento cada vez mais racional e sistemático. Segundo Gorz (2005) e Kjosen, Steinhoff e Dyer-Whiterford (2020) essa é a chave teórica para a produção tecnológica e do conhecimento no capitalismo contemporâneo. O computador, ou programa de computador, seria um 24 capital fixo, embora com características únicas. Ele não se configura como um bem de capital comum, porque não é um bem físico, mas um bem imaterial. Portanto, foge do controle total dos capitalistas e assume uma forma “socializante” através da internet; da gratuidade do Software Livre (GORZ, 2005, p. 71). A tecnologia passa a figurar no capitalismo contemporâneo, a partir das transformações das tecnologias de informação e comunicação como bem de capital e bem de consumo dos mais simples (eletroeletrônicos) aos mais tecnologicamente robustos (computadores pessoais, celulares). Para Kjosen, Steinhoff e Dyer-Whiterford (2020), tecnologias como a inteligência artificial e a aprendizagem de máquina2 constituem hoje infraestruturas intrínsecas ao capital, tal como foram outrora as linhas de trens, o motor a vapor e a comunicação de massa do século XX. Ao analisar a indústria e fazer uma história da tecnologia de sua época, Marx desenvolve o conceito de “máquina complexa”, e a descreve como a combinação de uma série de invenções e técnicas inseridas em um mesmo artefato tecnológico, que é como ele explica conceitualmente o conceito de “máquina-ferramenta”. Ele chama atenção ainda ao fato de que a partir de uma mesma força ou princípio, seja um motor, energia térmica ou uma externa natural criando energia (água, vento), pode impulsionar muitas máquinas-ferramentas, aumentando sua capacidade técnica em grandes proporções; fazendo assim uma leitura sistêmica de um padrão tecnológico-produtivo. Nessa época, diz ele, o “sistema de máquinas”, refere-se à reunião de diferentes ferramentas específicas e de trabalhadores parciais transformados em máquinas especializadas: [...] objeto de trabalho percorre diversos processos parciais conexos, levados a cabo por um conjunto de máquinas-ferramentas de diferentes espécies, mas que se completam reciprocamente (MARX, 1975, p. 432). Dessa forma há cooperação do trabalho, embora seja de máquinas e não de trabalhadores. 2Cabe uma explicação destes dois conceitos muito utilizados na linguagem técnica da computação. A aprendizagem de máquina constitui um recurso da inteligência artificial. Nela, dados são usados para aperfeiçoar decisões a serem tomadas e para reconhecer padrões e significados através de algoritmos. O ponto crítico são as interações humanas referentes à produção de dados e de aprendizagem ampla segundo os algoritmos nelas introduzidos. A aprendizagem de máquina é utilizada em muitos recursos e sistemas como banco de dados, tradução de textos e recomendação de conteúdo aos usuários na internet. 25 Na divisão social do trabalho, os primeiros sistemas de maquinaria ocorrem nas indústrias manufatureiras, as quais são o paradigma industrial do contexto histórico de Marx. O aspecto essencial aqui revelado por Marx é o desaparecimento do princípio subjetivo do trabalhador. A questão da união de cada um dos processos parciais das fases componentes é solucionada a partir da mecânica. Assim, ocorre um sistema combinado e coordenado, em que a continuidade será tanto mais perfeita se não for interrompida e sujeita ao menor número de falhas possíveis, no qual o mecanismo elimine a interferência humana. A programação não pôde ser totalmente explorada até que métodos de ampliação e processamento de informações fossem descobertos. Inventados pelos germânicos John Bardeen e Walter Houser Brattain em 1947, nos laboratórios da companhia telefônica Bell Telephone, o transistor foi capaz de transferir circuitos eletrônicos pré-estabelecidos e ampliar a corrente elétrica. Substitui-se o uso de válvulas termiônicas com pouca capacidade de carregar sinais eletrônicos. Os transistores ampliavam o carregamento de sinais elétricos, que eram utilizados nos computadores, o que possibilita que muitos ENIACs fossem adicionados nos foguetes espaciais, nos computadores menores e em quaisquer aparelhos portáteis, como music players e calculadoras que cabiam no bolso, capazes de trocar informações de um ponto a outro, em qualquer lugar do planeta, interligados por redes. O circuito integrado, os microchips, que se caracterizavam pelo adicionamento de centenas ou milhares de transistores menores, é de onde surge a inovação decisiva para o desenvolvimento da indústria de computadores com a utilização do circuito eletrônico miniaturizado (composto de dispositivos semicondutores), sobre um substrato fino de material semicondutor. Eles superaram, cabe observar, as válvulas mecânicas por volta dos anos cinquenta e os transistores a partir da década de sessenta, o que possibilitou novos usos de sinais elétricos. As limitações dos circuitos eletrônicos deixam de ser impedimento a maiores amplificações de sinais elétricos sobre os circuitos eletrônicos, ocasionando um processo de amplificação dos sinais. Os circuitos integrados (chips), inventados em 1959 pela Fairchild e pela Texas, tiveram toda a produção adquirida pelo governo, para emprego em projetos militares, até pelo menos 1962. Em 1966, o governo ainda respondia por 53% do faturamento das empresas fabricantes. Somente um ano antes, ou seis anos depois de inventados, a IBM lança o seu primeiro computador baseado em circuitos 26 integrados: a vitoriosa série 360. Mais ou menos neste mesmo momento, começava também a aparecer no mercado, uma variada gama de outros produtos eletroeletrônicos (aparelhos de TV, de reprodução de som, etc.) dotados com essas maravilhosas pecinhas (DANTAS 2012). Além do desempenho, o custo é baixo, pois os microchips com todos seus componentes são fabricados em série através de moldes. Na esteira da “revolução microeletrônica”, a qual abriu um mercado promissor em função da comercialização sobre essa nova base técnica, ia aparecendo o capital de investimento e a mão de obra qualificada composta por cientistas com boas ideias, saídos das universidades. Em torno deste capital conhecido por venture capital (capital de risco), algo em torno de 16 bilhões de dólares ajudou a consolidar as empresas do vale do silício na década de oitenta: Apple, Intel, Microsoft e Hewellet- Packet (DANTAS, 2012). Ao contrário da primeira Revolução Industrial que se originou da convergência, ao acaso, de muitas forças e situações históricas, a “revolução microeletrônica” foi, desde cedo, como que “pautada” por estudos e pesquisas acadêmicos, além de discursos futuristas claramente ideológicos, mas socialmente mobilizadores. Houve vontade política de acelerar o processo e lhe impingir um determinado rumo. Como afirma Dantas (2012, p. 201), o “desenvolvimento da microeletrônica está longe de ter sido um processo espontaneamente conduzido pelas forças sociais e econômicas”. Desde as origens, a indústria da informática esteve umbilicalmente ligada a programas militares do governo dos Estados Unidos e, mais tarde, instalar-se-á em outros países, dentre estes a França e o Japão, também no contexto de projetos governamentais estratégicos. Os interesses militares constituem outra esfera de criação tecnológica, razão pela qual a relação entre o departamento de defesa e institutos de pesquisa sempre foram muito fortes. A ARPA-net, rede sigilosa que comunicava os centros de inteligência militar e as universidades, surgiu para fins de contrabalançar o poderio bélico e espacial soviético no auge da Guerra Fria. A tecnologia, além do seu potencial bélico, foi também percebida nas possibilidades que abria para reduzir custos e incrementar produtividade, assegurando ainda aos países que a dominavam, liderança tecnológica e econômica internacional. Segundo Dantas (2012), os Estados Unidos, vencedores da Segunda Guerra, sairiam na frente. Lá, a informática e a microeletrônica se desenvolveram, ao longo dos anos 50 a 70, graças a formidáveis financiamentos subsidiados e compras 27 antecipadas do Governo que, assim, viabilizou-as economicamente. Mas não existia mercado efetivo para a informática e para componentes no geral. No máximo promessas e expectativas. Os primeiros fabricantes, quase as vendiam uma a uma, a preços caríssimos. Introduzi-las em uma empresa implicava em reorganizar boa parte dos processos de trabalho, treinar pessoal, enfrentar novos e desconhecidos problemas, inclusive a baixa confiabilidade dos primeiros computadores, a ausência de linguagens e programas adequados, tudo isso amplificando riscos e custos. Do ponto de vista da engenharia, fabricar receptores de rádio adotando transistores em substituição às válvulas, significava projetar todo um novo aparelho receptor e novos processos de fabricação. A indústria deveria convencer os seus potenciais clientes a desenvolver projetos com base em novas tecnologias. Dantas (2012, p. 111) explica que o governo dos Estados Unidos exerceu um papel fundamental. Suas compras, além dos seus financiamentos, permitiam aos fabricantes adquirir escala e conhecimento. As compras baixavam os custos, enquanto este último aprimorava progressivamente os produtos. Assim, “as demais unidades econômicas – empresas industriais, comerciais, financeiras – podiam ser, aos poucos, conquistadas para as novas soluções tecnológicas”. A indústria de softwares foi artificialmente induzida, tal como o foi o mercado do consumo de massas no começo do século XX. A partir do último terço do século XIX uma gama enorme de tecnologias modernas começou a surgir; aviação, automóveis, rádio e cinema. Os primeiros contornos das modernas teorias científicas começaram a ser esboçados, como a teoria da relatividade, o quantum e a genética (HOBSBAWN, 1995, p. 507). As descobertas e progressos científicos mostravam um potencial tecnológico que seria amplamente utilizado e explorado, como lasers, telefonia sem fio, transistores e microchips, que no período anterior às duas grandes guerras mundiais não se podia dizer que faziam parte da vida cotidiana (HOBSBAWN, 1995). O conhecimento científico acumulado do século XIX e as experimentações subsequentes, principalmente no contexto da segunda Guerra Mundial e depois dela, traduziram a ciência básica em tecnologias práticas – assim como o transistor foi produto de pesquisas físicas do estado sólido e das propriedades eletromagnéticas (HOBSBASWN, 1995). Toda propriedade é determinada segundo o tipo de sistema econômico sobre o qual vigora, se capitalista ou socialista. No capitalismo, tem como fundamento a propriedade privada e no socialismo a propriedade coletiva ou do Estado. Os alicerces 28 jurídicos e produtivos foram sendo ajustados para que as tecnologias de informação fossem absorvidas pelas relações econômicas. Além disso, como perceberam notórios programadores (como Eric Raymond, Richard Stallman, Linus Torvalds, Ted Nelson e Tim Berners-Lee), essa relação de produção, apesar de estar longe de subverter o processo de produção do capital, obrigava a reavaliar elementos centrais do processo de produção capitalista voltado à produção de mercadorias; a produtividade, a divisão social do trabalho e a informação como segredo industrial (a qual caracterizava a indústria tecnológica/científica, como forma de manter monopólio comercial). As patentes do microprocessador não foram sujeitas ao patenteamento nas primeiras descobertas, sendo, ao contrário, freadas pelo governo norte-americano, pois este temia que a privatização do conhecimento nessa área inviabilizasse inovações e pesquisas referentes a ela, o que implicaria em uma evolução mais lenta (SILVEIRA, 2005). De acordo com Lemos (1999), o desencadeamento do atual paradigma “econômico-tecnológico” está baseado em três aspectos no que se refere às novas tecnologias de informação. O primeiro é a microeletrônica – que teve como consequência de maior impacto à economia e à sociedade, o desenvolvimento e a difusão da informática, de microcomputadores e de softwares e, a partir daí, a substituição de tarefas antes realizadas pelo trabalho humano. O segundo refere-se ao desenvolvimento das telecomunicações. A introdução de difusão de novas tecnologias, a comunicação via satélite e a utilização de fibra ótica, “revolucionaram os sistemas de comunicação” (LEMOS, 1999, p. 127). A convergência entre essas duas bases tecnológicas permitiu o desenvolvimento dos sistemas e redes de comunicação globais (LEMOS, 1999; TIGRE, 2005). Portanto, a partir daí se delineou, desde o pós-guerra, um paradigma de produção fortemente arraigado na informação e na tentativa sistemática de transformá-la em conhecimento. Além disso, grande parcela da força de trabalho passou a estar envolvida na produção e distribuição de informação e conhecimento e não apenas em produções materiais, gerando um crescimento no setor de serviços em oposição ao industrial (LEMOS, 1999). Cabe destacar que a partir deste processo de inovação tecnológica da informação e comunicação propiciam a geração de novas formas de tratamento, distribuição e produção de informações. Através destas tecnologias de comunicação e informação reduz-se tempo e custo para: 29 [...] formas tradicionais de pesquisa, desenvolvimento, produção, e consumo de economia, facilitando e intensificando a muita rápida ou instantânea comunicação, processamento, armazenamento e transmissão de informações em nível mundial a custos decrescentes (LEMOS, p. 128, 1999). Assim, foi preciso uma multiplicação de linguagens de programação que correspondessem à evolução das tecnologias de informação. Essas linguagens se distanciam da linguagem de máquina, que se caracteriza como “baixo nível”, – feita para “comunicar” o programa escrito (software) com o computador propriamente dito (hardware). As linguagens mais próximas às linguagens naturais são chamadas de “alto nível”. Por exemplo, a linguagem Assembly possui um nível de abstração mais reduzido, dessa forma, ela é considerada de baixo nível. Já as linguagens COBOL, BASIC, JAVA e C são de alto nível. As linguagens de alto nível permitiram disseminar a programação e aumentar o número de programadores, ao mesmo tempo em que facilitou o desenvolvimento de softwares e sua democratização (SILVEIRA, 2008). Algumas linguagens são mais fáceis do que outras, porém todas elas são muito mais fáceis de trabalhar do que a linguagem binária da máquina, após sua compilação. Além da subdivisão citada entre as duas linguagens, a da máquina (binária) e a do programador (linguagem textual), há outra ferramenta essencial chamada de compilador. O nome compilador é usado principalmente para os programas que traduzem o código fonte de uma linguagem de programação de alto nível para uma linguagem de programação de baixo nível (chamado código de máquina). O código fonte é a primeira versão escrita de caracteres numéricos por um indivíduo em forma textual. Ele se refere a qualquer código usado em qualquer dispositivo eletrônico que contém microprocessador, e que são encontrados em uma variedade enorme de produtos e não apenas em microcomputadores: como sistemas de aviação eletrônica, indústria robótica e sistemas de sinalização (trens, transportes etc.). Existem programas utilizados para escrever códigos fontes de acordo com a linguagem de programação com a qual se queria redigi-los, e abrange desde programas para funções bem específicas (como editores de texto – como Microsoft Word), até ambientes de desenvolvimento (baseados na construção de plataformas de desenvolvimento de ferramentas de software). Após a elaboração do código fonte, o mesmo é salvo em arquivos de pastas. O código fonte pode ser transposto de uma plataforma a outra, com algumas exceções, de um sistema operacional (Linux, Microsoft, Android, iOS). https://pt.wikipedia.org/wiki/Tradutor#Computa%C3%A7%C3%A3o https://pt.wikipedia.org/wiki/Linguagem_de_programa%C3%A7%C3%A3o_de_alto_n%C3%ADvel https://pt.wikipedia.org/wiki/Linguagem_de_programa%C3%A7%C3%A3o_de_baixo_n%C3%ADvel https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%B3digo_de_m%C3%A1quina 30 Uma plataforma cruzada ou multiplataforma tornou- se uma prática de desenvolvimento de tecnologias comum. Estruturas de linguagens comuns e especificações comuns no desenvolvimento de programas e compartilhadas em sistemas diferentes se estendem a um número maior de usuários, garantindo uma interoperabilidade a um ecossistema tecnológico variado e complexo. Razão pela qual as empresas se interessam em investir e promover desenvolvimento colaborativo, compatibilizando aplicações, tecnologias e especificações técnicas entre plataformas cruzadas, às vezes até mesmo concorrentes. Para se ter uma ideia, a “Eclipse Foudation”3, instituição não-governamental fundada pela IBM em 2011, é um grande consórcio de 275 membros com mais de 350 projetos colaborativos, ferramentas e estruturas tecnológicas compartilhados entre empresas de software de setores de segmentos variados como automotivo, internet das coisas e pesquisa geoespacial. A estratégia é uma só: obter controle comercial do desenvolvimento tecnológico ao mesmo tempo em que permite a capilaridade da tecnologia em todas as dimensões e aplicações industriais de software, permitindo uma dinâmica colaborativa ao processo de criação do design tecnológico. O computador é constituído por milhões de interruptores (microscópicos) conectados entre si, que ligam e desligam conforme a ordem de um programa. Temos um bit sempre que fazemos uma escolha de duas alternativas possíveis. As sequências possíveis são feitas a partir de uma linguagem binária codificada a partir de 0 e 1. Nos computadores, os circuitos estão desenhados para operar instruções através de programas apropriados, nesse nível é preciso fazê-lo entender tais instruções em nível de máquina. Por ser difícil e demorada, a projeção de circuitos é feita por um grupo de trabalhadores, enquanto outro se encarrega na elaboração de código fonte binário do qual os circuitos se encarregaram de traduzir em linguagem binária (DANTAS, 1989, p. 30). Esse código elementar é chamado de Assembly. Ainda que não venha a se dissecar a importância geral desses processos informáticos e industriais, cabe salientar a importância que adquirem atualmente os programas computacionais. São encontrados em muitas tecnologias de nosso dia a dia, e é cada vez mais crescente sua importância com a internet das coisas, dispositivos móveis, computação em nuvem, hiperconexão e digitalização da 3Informações retiradas do site do consórcio. Disponível em: https://www.eclipse.org/org/. Acesso em: 9 mar. 2020. https://www.eclipse.org/org/ 31 produção e do consumo e o desenvolvimento de aplicativos para uma série de finalidades. Tanto os produtores como os usuários prescindem de aquisição de linguagens que possam traduzir e se comunicar com tais linguagens no universo da produção, mas também no dia a dia. Esse aspecto será desenvolvido no Capítulo 2. O avanço em tecnologias, sistemas de inteligência artificial e big data4 já está suficientemente desenvolvido para aprender, interpretar e traduzir os desejos tanto dos usuários quanto dos produtores, como é possível perceber nos motores de busca que nos apresentam os resultados em toda a internet e a disponibilização de algoritmos espalhados pelas redes sociais e aplicativos de streaming. Afirma Lyotard (2011, p. 4), que partes significativas destes conhecimentos e inovações “condicionam-se à tradução dos resultados eventuais em linguagem de máquina” que busca discutir e avaliar os impactos da crescente informatização das sociedades desenvolvidas5, na qual o conhecimento tecnológico passou a ser um de seus eixos econômicos e sociais. Nesse contexto de produção e reprodução tecnológica, a racionalização das relações sociais se traduz no desenvolvimento contínuo de modelos matemáticos e estatísticos e dos sistemas de informática, cada vez mais previsíveis. A linguagem da informática se define como espécies de “enunciados aceitos de saber”, conquanto a informática com sua produção e conhecimentos se torna rentável (LYOTARD, 2011). As startups e os investimentos em alta tecnologia, como a inteligência artificial, estão presentes na economia atual e são recebidas e debatidas nos círculos midiáticos e entre os investidores como esforços tecnológico e financeiro promissores. Não temos aqui a pretensão de definir conceitualmente um termo tão complexo e sujeito a tantas explicações como é o de inteligência artificial, mas é interessante notar que a maior parte da literatura especializada reconhece que ela já está presente nos processos algorítmicos em nosso cotidiano: veículos semiautomáticos, nos robôs industriais, bancos de dados, redes sociais. Como escreveu o próprio Marx: 4Big data trata-se de dados/informações não estruturados, gerados na internet e manipulados por algoritmos a fim de extrair vantagens comerciais para as empresas. 5Esse estudo foi encomendado a Lyotard pelo governo Francês em 1970 e publicado na forma de livro posteriormente com o título “Sociedade pós-moderna”. Ele fornecia um panorama filosófico, epistemológico, econômico e político das transformações que estavam ocorrendo na década de setenta, dado a intensa profusão de sistemas tecnológicos e informáticos e as implicações destas transformações com a soberania dos governos nacionais, de dependência tecnológica e as configurações geopolíticas e de poder em torno das telecomunicações e da tecnologia. 32 “finalmente [...] uma força não humana controla tudo e todos” (MARX apud WHITHERFORD, KJOSEN, STEINHOFF, 2019, p. 2 – tradução nossa). Marx não pensava isso com respeito às máquinas e muito menos à inteligência artificial, mas sim a respeito da alienação da classe trabalhadora sob o capital. Como exploraremos mais adiante, a atribuição de funções específicas aos programas e às máquinas não constitui uma lógica tecnológica, mas uma “lógica social” a partir da qual orienta ciência e tecnologia. A lógica que se pressupõe aqui é, portanto, a da produção da mais-valia – e a implicação que disso deriva: a computação e a tecnologia transformadas em mercadorias. Dessa maneira Whitherford, Kjosen, Steinhoff (2019, p. 3) ressaltam que tratar a privatização do conhecimento tecnológico, como fazem os grandes oligopólios tecnológicos, significa dispor dos recursos humanos, financeiros, técnicos e jurídicos-legais – como a propriedade intelectual – para a criação da inovação tecnológica. Contemplando estes três aspectos e suas implicações sociais, políticas e econômicas foi que surgiram termos como “Sociedade em Rede”. Segundo Castells (1999), é preciso destacar pelo menos três características principais ligadas a esse ambiente produtivo: a dependência de gerar, processar e aplicar de forma eficiente a informação baseada em conhecimento. A concorrência, a produtividade e a produção são organizadas com a utilização da informação e do conhecimento. A comunicação em redes e os padrões de organização produtiva passaram a ditar os rumos da cooperação tecnológica desde o pós-guerra. Os centros de pesquisa e universidades foram os primeiros a adotarem o trabalho científico de conhecimento em rede, em razão da velocidade das descobertas e da variedade de projetos os quais eram alimentados por diversas outras descobertas científicas, caracterizando-se por um ambiente tecnológico-científico altamente enérgico e dinâmico. Nas palavras de Castells (1999, p. 120): A emergência de um novo paradigma tecnológico organizado em torno das novas tecnologias da informação, mais flexíveis e poderosas, possibilita que a própria informação se torne o produto do processo produtivo. Sendo mais preciso: os produtos das novas indústrias de tecnologia da informação são dispositivos de processamento de informações ou o próprio processamento das informações. Ao transformarem os processos de processamento da informação, as novas tecnologias da informação agem sobre os domínios da atividade humana e possibilitam o estabelecimento de conexões infinitas entre diferentes domínios, assim como entre os elementos e agentes de tais atividades. Surge uma economia em rede profundamente interdependente que se torna cada vez mais capaz de aplicar seu 33 progresso em tecnologia, conhecimentos e administração na própria tecnologia, conhecimentos e administração. A particularidade deste paradigma econômico é a transformação das informações em insumos, e daí a necessidade de ferramentas de comunicação, que por sua vez, produzem mais tecnologias para dar conta de disseminá-las e processá- las. Nesse cenário, a criação de redes permite a flexibilização de mercados e dos investimentos tornando globais todos os componentes produtivos – inovação, pesquisa, propriedade intelectual, transferência tecnológica, recursos informacionais, como servidores de armazenamento de informação em nuvem e suporte técnico. Sobre isso é importante destacar que a economia na base da informação e conhecimento é uma economia global, o que não quer dizer que todas as atividades produtivas estão “globalizadas”, mas que as atividades econômicas dominantes estão globalmente articuladas (CASTELLS, 2003). Assim, os serviços e produtos da Google funcionam globalmente. Articulam-se, ao lado deste, dois outros sistemas globalizados, os mercados financeiros e a produção de bens e serviços das grandes empresas. Conforme visto, até os anos setenta o software era vendido junto ao hardware, e eram desenhados para finalidades específicas. Nessa época, a informática estava muito concentrada na máquina. Os computadores programáveis capazes de receber informações externas para executar suas funções foram cada vez mais diferenciando seus componentes lógicos de rotinas e tarefas específicas e entre o equipamento (a máquina em si). A diferenciação entre hardware e software foi primordial para a concepção de que o software fosse utilizado em vários tipos de computadores e para o modelo proprietário de software, o qual se tornou hegemônico a partir dos anos oitenta. Os softwares eram escritos especificamente para cada tipo de computador. Por serem caros naquela época, tanto o software como o hardware, e específicos para cada computador, alguns fabricantes ofereciam “blocos padrão” de programas (por exemplo, de bibliotecas de funções) (SILVEIRA, 2008). Essas especificidades técnicas da arquitetura fechada do hardware, fez com que houvesse poucas empresas que vendessem softwares de uso geral e alguns programas gratuitos. O avanço dos microprocessadores levou à popularização do computador pessoal, invertendo a lógica da arquitetura: fechada para os softwares e aberta para os hardwares, consolidando o modelo proprietário de software. 34 Quando uma arquitetura ou um software são abertos, todos têm acesso ao seu conteúdo. A cópia de uma tecnologia soft ou hard alavanca o processo de inovação incremental e disruptiva, à medida que induz a novas descobertas e ideias. O padrão de copiar é seguido por todas as empresas de ramos tecnológicos, pois se trata de uma operação que se refere a processos e métodos de produção ou conhecimentos prévios que são incorporados na criação de uma mercadoria. Não há como separar todas as ideias e conhecimentos acumulados segundo sua origem e quem a criou. A função dos direitos de propriedade intelectual seria então a de compreender os recursos imateriais e comuns segundo a visão do direito burguês e da propriedade privada. A indústria de software pôde se descolar da máquina e alcançou um novo patamar. A Microsoft tinha como objetivo se desenvolver apenas como fabricante de software. Portanto, passou a licenciar seus softwares a preços baixos, apostando na venda em grande escala. O contrato com a IBM possibilitou a efetivação deste objetivo, ao adentrar no mercado e ao mesmo tempo produzir e vender seu software em larga escala (GATES, 1995, p. 63-64). Tanto a compra de microprocessadores que vinham da Intel, quanto o sistema operacional eram terceirizados pela IBM. Os segmentos produtivos em softwares, serviços e hardware têm crescido mundialmente. Em 2017 os gastos totais somaram 2,07 trilhões de dólares em todo o mundo, subindo para 2,23 trilhões em 2018. De acordo com o relatório6 sobre o mercado de softwares brasileiro, elaborado pela Associação Brasileira de Empresas de Software (ABES), o mercado brasileiro de tecnologia da informação, o qual inclui, além destes citados, a exportação, movimentou 3,9 bilhões de dólares em 2017, representando 1,9% do PIB brasileiro e 1,8% do total de investimentos em tecnologia da informação no mundo; em relação à 2016 software e serviços tiveram, juntos, um crescimento de 3,7%. Em 2018, os gastos em tecnologia da informação e da comunicação somaram 47 bilhões e 2,23 trilhões no mercado mundial. Levando em conta apenas a área de serviços e software, produção e desenvolvimento, o mercado cresceu 9,8% em comparação ao ano anterior, contra 3,7% do ano anterior. 6Disponível em: http://central.abessoftware.com.br/Content/UploadedFiles/Arquivos/Dados%202011/af_abes_publicac ao-mercado_2018_small.pdf. Acesso em: 3 fev. 2018 35 Em 2017 a utilização de programas de computador desenvolvidos no país (incluindo os softwares sob encomenda) representou 32% do investimento total, que vem sendo apontado desde 2004. Ainda segundo dados da associação, existem 17.000 empresas voltadas ao desenvolvimento, produção, prestação de serviços e distribuição de software no mercado nacional, sendo que 61,7% delas possuem como atividade principal o desenvolvimento e produção ou prestação de serviços. Considerando-se as duas primeiras, que totalizam 5.138 empresas, por volta de 95% podem ser classificadas como pequenas e médias empresas. De acordo com o estudo, praticamente 55% do mercado de usuários é composto por empresas nos setores de Serviços, Telecom e Finanças, seguidos pela Indústria e Comércio. Em termos de crescimento, o setor de Finanças apresentou o maior investimento; enquanto a demanda do governo continuou em retração, seguindo o padrão dos anos anteriores. Os softwares se encontram espalhados por toda a rede, servindo para rodar linguagens, formatos e protocolos de comunicação distribuídos pela internet. Ele se constitui como um dispositivo não físico, responsável por fazer funcionar a rede. Por essa razão, os serviços de software correspondem em maior investimento e se caracterizam por ferramentas analíticas de big data, gerenciamento e diversos tipos de soluções em sistemas, como hospedagem de aplicações em seus próprios servidores para que as empresas não tenham que comprar hardware, software e mão de obra necessários para desempenhar esses serviços; além do armazenamento de informação digital em nuvem. Àquela altura, na indústria da informática, a IBM foi capaz de criar um padrão novo e abrangente, pois se aliava a empresas de outro setor que criavam seus sistemas operacionais, canalizando profissionais hábeis de empresas especializadas em softwares. Por outro lado, a Apple não utilizava o mesmo padrão. A empresa decidiu atuar nas duas esferas. O Sistema operacional desenvolvido pela Microsoft nasceu de outro sistema desenvolvido em uma empresa de Seattle, o qual depois de uma série de transformações ficou conhecido como MS-DOS e cujo primeiro licenciamento foi feito pela IBM (GATES, 1995, p. 69). O MS-DOS proveio de um sistema chamado quick dirty operating system (QDOS), pertencente a uma empresa de Seattle, do qual originou o sistema CP/M que a IBM queria inicialmente comprar para seus computadores pessoais e cujo direito autoral pertencia a Tim Peterson, que 36 foi contratado por Bill Gates para desenvolver o MS-DOS junto à Microsoft e de quem comprou o direito autoral por cinquenta dólares em 1980 (PERELMAN, 1991, p. 198). A opção feita pela gigante da tecnologia em terceirizar o software e a preocupação entre as empresas menores que compunham estes segmentos em se tornarem monopólios, correspondia às especificidades da nascente economia da informação, levando o software para o modelo proprietário, o que vai ocorrer no início da década de oitenta. Assim, o software passou a ser encomendado de uma empresa a outra, sendo a Microsoft pioneira neste segmento, formalizando contratos comerciais com empresas de computadores, IBM e a Apple. Ao se referir a “revolução tecnológica”, Castells (1999, p. 50-51) argumenta sobre a centralidade da informação e do conhecimento, que está na sua aplicabilidade para a geração de novas informações e conhecimentos e de “dispositivos de comunicação e processamento da informação”, através dos quais é possível uma realimentação constante entre inovação e uso. Nota-se que neste paradigma produtivo: “a introdução de uma nova tecnologia, seus usos e seus desenvolvimentos em novos domínios, torna-se muito mais rápido no novo paradigma tecnológico”. A difusão amplifica seu poder de regeneração de forma explosiva, à medida que os indivíduos se apropriam dela e as desenvolvem e redefinem de forma cada vez mais rápida em consequência da comunicação eletrônica. Tais tecnologias se caracterizam não apenas como “ferramentas de aplicação”, mas como “processos a serem desenvolvidos”7 de modo constante. 2.2 INOVAÇÃO, TECNOLOGIA E DESTRUIÇÃO CRIADORA A chamada escola schumpeteriana defende que há nas mudanças tecnológicas múltiplos fatores envolvidos, como rede de instituições nacionais de incentivo e investimento público e uma cultura propícia à inovação e ao empreendedorismo. De acordo com essa hipótese, seria equivocado admitir o processo de inovação como resultado da evolução da ciência para o mercado ou vice e versa, aceitando por outro lado a ocorrência de diferentes processos de inovação os quais se tornam um “processo complexo”, “interativo” e não “linear”. (LEMOS, 1999, p. 125). Tanto os avanços da pesquisa científica quanto as demandas do mercado 7Neste ponto as teorias modernas da gestão segundo as quais o capital humano é essencial no paradigma tecnológica e comunicacional no qual se baseia capitalismo contemporâneo. 37 levam a inovações de todas as formas, na base tecnológica e organizacional, de produtos e processos. Ainda sob esta perspectiva, é importante salientar que uma empresa não é capaz de inovar sozinha, pois depende de fontes diversas de informações, conhecimentos e demais inovações, sendo tal processo caracterizado pela complexidade da estrutura interativa em vários níveis: dentro da mesma empresa, entre empresas ou com organizações de ensino e pesquisa. As tecnologias de informação e comunicação acentuaram as diferentes fontes de inovação assim como ajudaram esse padrão produtivo caracterizado pelas várias fontes de inovação e do caráter interativo entre empresas, instituições e trabalhadores (LASTRES; FERRAZ, 1999; LEMOS, 1999). Schumpeter (1988, p. 47) descreve o caráter “revolucionário” da inovação que desencadeia um novo ciclo de desenvolvimento econômico. Segundo ele, a iniciativa privada, na figura do empresário empreendedor, redefine constantemente as configurações da atividade econômica. A mudança não ocorre nunca pelo lado do consumidor e dos trabalhadores, mas pelo lado dos produtores, os quais criarão novas necessidades ao consumidor, formando um mercado que era até então inexistente. Tal hipótese defende que o desenvolvimento econômico não é um processo estático, mas dinâmico e de formação de novos mercados consumidores e de novos processos produtivos. Em decorrência disto, as mudanças no âmbito dos processos produtivos podem ou não gerar uma nova estrutura em um ramo industrial, alterando radicalmente as bases nas quais estavam assentadas, alterando o: “estado de equilíbrio previamente existente”. Diz ele: 1) Introdução de um novo bem – ou seja –, um bem com que os consumidores ainda não estiverem familiarizados – ou de uma nova qualidade de um bem. 2) Introdução de um novo método de produção, ou seja, um método que ainda não tenha sido testado pela experiência no ramo próprio da indústria de transformação que de modo algum precisa ser baseada numa descoberta cientificamente nova, e pode consistir também em uma nova maneira de manejar comercialmente uma mercadoria. 3) Abertura de um novo mercado, ou seja, de um mercado em que o ramo particular da indústria de transformação do país em questão não tenha ainda entrado, quer esse mercado tenha antes existido ou não. 4) Conquista de uma nova fonte de oferta de matérias primas ou de bens semimanufaturados, mais uma vez independentemente do fato de que essa fonte já existia ou teve que ser criada. 5) Estabelecimento de uma nova organização de qualquer indústria, como a criação de uma posição de monopólio (por exemplo, pela trustificação) ou a fragmentação de uma posição de monopólio (SCHUMPETER,1988, p. 48-49). 38 Nessa perspectiva, portanto, os empreendedores capitalistas ditam a dinâmica da economia capitalista através de inovações que revolucionam constantemente a economia. A incessante luta entre os capitalistas em revolucionar os mercados leva a transição do monopólio à concorrência e vice-versa. De acordo com Schumpeter (1988) é a inovação o motor do crescimento econômico, dela decorrem os saltos de produtividade e de produção da riqueza, colocando em segundo plano, dentro do quadro explicativo do crescimento econômico, variáveis como o investimento e a poupança no sistema econômico para a formação de capital (SCHUMPETER, 1988). Nessa perspectiva, o progresso técnico trata de produzir, dada certa quantidade de recurso, um maior volume de produto ou um produto qualitativamente superior. A esse último, Schumpeter atribui a verdadeira vocação do empreendedor, porque é por meio de invenções que haverá transformações industriais. O importante é como o sistema cria e destrói estruturas existentes e não como as mantêm. Não há estabilidade nas economias capitalistas, o seu paradigma de reprodução está baseado em constantes rupturas com as estruturas passadas de organização do trabalho e tecnológicas e relativas à demanda, oferta e preços. Segundo ele, o processo de destruição criativa se caracteriza da seguinte maneira: [...] o impulso fundamental que inicia e mantém o movimento da máquina capitalista decorre de novos bens de consumo, de novos métodos de produção ou transporte, de novos mercados, de novas formas de organização industrial que a empresa capitalista cria (SCHUMPETER, 1984, p. 112). No que diz respeito à revolução destes meios é o seu paradigma: [...] o processo de mutação industrial se me permite o uso do termo biológico – que incessantemente revoluciona a estrutura econômica a partir de dentro, incessantemente destruindo a velha, incessantemente criando uma nova. Esse processo de Destruição criativa é o fato essencial acerca do capitalismo (SCHUMPETER, 1984, p. 113). A revolução criativa é necessária à reprodução do capital, visto que o capital deve revolucionar constantemente os meios de produção com o objetivo de aumentar a produção e os lucros. A revolução química, que criou métodos de tintura diferenciados, e a mecânica na tecelagem fizeram surgir cadeias produtivas dentro do processo de produção da manufatura. A indústria e a agricultura forçaram não apenas uma transformação nos meios de produção para aumentar a produtividade, mas 39 também acabaram desenvolvendo meios de transportes e de comunicações para comercializar mercadorias e interligar mercados (MARX, 1975). Nesse sentido, é importante atentar às influências “intersetoriais” ao progresso técnico para o crescimento da produtividade e formação de novas indústrias. O crescimento da produtividade agrícola dos Estados Unidos foi dependente de melhoramentos técnicos em outros setores, como nos transportes (ROSENBERG, 2006, p. 52). O surgimento das inovações e o aumento de produtividade não são imediatamente relacionados. A incorporação dos melhoramentos técnicos responde a aquisição de novos bens de capital pela empresa, à medida que estes bens de capital vão sendo absorvidos e, por fim, sobre a comparação de novas tecnologias em relação aos custos relativos às alternativas já existentes, haja vista a diluição dos custos incorporados ao capital aos poucos e, ulteriormente, à medida que as barreiras são alcançadas, as tecnologias se tornam suscetíveis a melhoramentos posteriores (ROSENBERG, 2006, p. 53-54). Na análise teórica da inovação como elemento central ao crescimento econômico, os economistas passaram a compreender que não é apenas a competição que constrói as bases de novas combinações produtivas, mas também o papel das políticas de inovação através das instituições e a interação e absorção do conhecimento pelas empresas, formando um forte sistema público-privado de inovação (MAZZUCATTO, 2014). Nos Estados Unidos as agências DARPA, o programa de Pesquisa e Inovação em Pequenas Empresas (SBIR) e o desenvolvimento da nanotecnologia ilustram a atuação de agências governamentais no fomento de tecnologias. Destaca-se ainda a influência tácita da inovação, não apenas institucional e ambientada por sistemas de inovação, como acontece em relação à difusão de conhecimentos entre as empresas. Mazzucato (2014, p. 153) mostra a importância da pesquisa básica no âmbito de departamentos de Estado norte-americanos e de laboratórios financiados com recursos públicos federais na criação do primeiro celular móvel fabricado pela Apple: produtos inovadores como GPS, Internet, tela de cristal líquido e HTTP/HTML, microprocessador, memória RAM e bateria de lítio. 2.3 INOVAÇÃO, TECNOLOGIA E PRÁXIS Na abordagem de Marx (1975) invenções tecnológicas resultam da transformação dos sistemas sociais e na acumulação por estes de conhecimentos técnicos e científicos que se desenvolvem ao longo do tempo. Na perspectiva de Marx, 40 ciência e tecnologia são materializadas na produção da vida material através de máquinas usadas na produção e como evolução de sistemas de pensamento e representação, que propiciam o controle do mundo físico e material e, portanto, da produção econômica e social de forma racionalizante e no desenvolvimento espiritual relacionado às artes, cultura à ciência. Segundo Mackenzie (1984), a tecnologia não é uma contingência da produção social e econômica das sociedades. A tecnologia está imersa em relações sociais que levam a um determinado fazer tecnológico, do qual é a sua expressão. Nesse sentido, o autor pergunta se elas poderiam ser organizadas/construídas de outra forma. De um ponto de vista dialético, na sociedade capitalista a produção tecnológica implica em torná-la uma necessidade do processo de produção, como valorização do capital, sendo a valorização o fundamento geral das relações sociais. De acordo com o autor, a valorização não é uma mera questão de maximizar lucros, ao passo que a realização deste objetivo propiciará um sentido, uma direção à produção tecnológica na preservação e alcance daquele objetivo, que, por sua vez, implica em “seletividade tecnológica” (HARVEY, 2013), de modo que se faz importante perguntar sobre relações sociais imbuídas na tecnologia (MACKENZIE, 1984). Assim, essa abordagem demonstra até que ponto a introdução de tecnologia amplia a capacidade de extração do conhecimento e do controle pelo capital nos processos de produção e de valorização do capital, ao adotar formas de organização e produção. Como, por exemplo, a mudança de uso das máquinas de funcionamento manual, controladas por operários, para o modo autômato, que passa o controle do operário às próprias máquinas e consequentemente pelos capitalistas. Dessa forma, quando abordamos as escolhas e paradigmas produtivos em relação à produção de tecnologias dentro de um quadro tecnológico altamente evoluído, veem-se implicados os fatores de descentralização produtiva e uma maior abertura nos conhecimentos – e que ao fim servem para valorizar o capital. Uma vez que, nos segmentos de tecnologia de informação, a difusão de conhecimentos e a cooperação entre trabalhadores intelectuais definem a rapidez, o desenvolvimento, a adaptabilidade de tecnologias e sua utilização espalhadas por setores produtivos industriais, digitais e de serviços. Quando Marx discute a respeito de uma forma de trabalho não imediato, trabalho intelectual, ele se refere a indivíduos em atividades produtivas que não correspondem ao trabalho fabril e manual nas indústrias. Esses trabalhos são 41 representados desde os trabalhos de pesquisa e desenvolvimento nos laboratórios e universidades, passando pelos trabalhos dos engenheiros e gerentes nas indústrias. Na reprodução do capitalismo industrial, trabalhos intelectuais passam a tomar um espaço importante. A ciência e a tecnologia se tornam imediatamente forças produtivas no processo de produção. O entendimento sobre o pensamento de Marx quanto à tecnologia é superficial (se não equivocado) entre os próprios marxistas, pois se infere a partir de suas ideias de que a tecnologia é neutra, portanto, poderia ser usada para a transição para o Socialismo, tal como defendia Lênin quanto ao taylorismo (HARVEY, 2013). A partir de uma leitura crítica de Lênin, Harvey defende que o revolucionário adentrou em um terreno perigoso ao adotar a tecnologia orientada ao processo de produção e reprodução do capital, porque no próprio Marx, tecnologias e relações sociais estão “mutuamente ligadas” – ideia que está contida, sobretudo, na nota 89 de O Capital. Segundo Harvey: De acordo com essa leitura, há um problema que diz respeito às próprias máquinas, porque elas foram concebidas e introduzidas para interiorizar certas relações sociais, concepções mentais e modos de produzir e viver (HARVEY, 2013, p. 213). Nessas relações o homem se torna apêndice da máquina (HARVEY, 2013, p. 213), vigia dela; a dialética entre homem e tecnologia, natureza e homem não se constituiu, no capitalismo, de forma a definir sua autonomia corporal e cognitiva com relação à máquina, mas antes, verteu-se numa relação de subordinação e limitação espiritual e material. As tecnologias discutidas foram construídas para a reprodução do modelo capitalista de produção adequado a este fim, por essa razão é prudente pensar sobre tecnologias para o modelo de produção socialista – tal como Proudhon se apropriou das noções de justiça burguesa (HARVEY, 2013, p. 214). A partir da leitura apressada ou equivocada de Marx, pode-se incorrer na mesma armadilha com relação às tecnologias no sistema capitalista de produção. Tomando a leitura de uma nota de rodapé escrita por Marx em O Capital, Harvey (2013, p. 214) propõe uma chave de interpretação pautada na relação entre relações de produção, sociabilidade e produção tecnológica, de tal maneira a amarrar e a entender os processos sociais e históricos enquanto categorias mutuamente relacionadas. Esse ponto de partida metodológico permite a ele sustentar o campo tecnológico como um resultante dialético do nexo das relações sociais e de seu 42 desenvolvimento e a partir de contextos historicamente definidos. Fazendo distinções sobre a tecnologia em supostos modos de produção distintos ele observa no que se refere às tecnologias e aos artefatos técnicos, admitindo a existência de um objeto de reflexão espinhoso e caro às Ciências Humanas que: [...] um projeto socialista revolucionário de longo prazo não pode evitar a questão da definição de uma base tecnológica alternativa, ou de relações alternativas com a natureza, relações sociais alternativas, sistemas de produção alternativos, reprodução alternativa da vida cotidiana e concepções de mundo alternativas (HARVEY, 2013, p. 214) Além disso, há um esforço metodológico-dialético de Marx em entender as influências entre as dimensões tecnológicas e às relações sociais, sobre a qual aquela é portadora de um direcionamento. Dessa forma, Harvey defende uma posição que descarta o uso de tecnologias engendradas no capitalismo para projetos políticos de visem superar as relações capitalistas de produção, pois elas talvez não façam sentido ou não sirvam para uma sociedade a qual não se baseia na exploração do trabalho e no uso da tecnologia para a produção supérflua, para a produtividade e para a subsunção do trabalhador às máquinas. Na teoria econômica, a ideia de fluxo circular não é capaz de descrever os fenômenos econômicos (CHECHIN, 2010) e perceber sua imersão em outras dimensões presentes da produção (POLANYI, 2000). Segundo uma abordagem reducionista econômica, entende-se o fenômeno econômico como um sistema fechado e circular, em contraponto à visão de Schumpeter que defende um sistema cuja descontinuidade rompe e revoluciona um paradigma econômico anterior. Segundo Cechin (2010), essa ideia que está presente nos manuais de economia dá a este campo científico um conjunto de afirmações compartilhadas e reproduzidas entre os economistas a partir do processo econômico como um sistema fechado e circular por onde circulam bens, mercadorias e dinheiro. O fluxo circular tem como objetivo a didática na reprodução de ideias e conceitos consolidados e aceitos entre os economistas; daí serem elaborados para serem simples. Segundo Marx, a acumulação do capital define a sociedade capitalista. Ele define a reprodução em dois tipos. A primeira forma é a reprodução simples, na qual o dinheiro é utilizado para o consumo e é, portanto, o dinheiro gasto pelos trabalhadores. O segundo tipo é a reprodução ampliada, na qual há mais-valia, que se dá pelo trabalho não pago e pela qual é investida nos ciclos de reprodução gerando 43 mais capital. A lei da reprodução é que a parte reinvestida do capital na produção é ampliada para escalonar a produção e gerar mais capital. As bases da acumulação na reprodução capitalista somente podem ser realizadas de modo ampliado. Nessa perspectiva, Marx afirma que o desenvolvimento tecnológico possui uma determinação social, recusando teorias que o concebem como neutro . Os saberes coletivos, que formam a ciência e a tecnologia em sua evolução histórica, aparecem consolidados no capital constante, nas máquinas postas a operar. Ao mesmo tempo refletem como o trabalho excedente pode ser apropriado pelo capitalista. Desse ponto de vista, podemos vislumbrar que a apropriação é determinada por múltipla determinação no que se refere ao ser humano e as suas inter-relações. A apropriação do “excedente do imaterial” se inicia anteriormente à expressão formal-material da economia capitalista de produção, ou, dito de outro modo, do processo de produção e de criação de valor. É essa a questão debatida por Harvey (2013). Para ele, se a tecnologia pode ser transmutada para outro modo de produção, então ela deverá liberar o trabalho das relações de produção capitalista e, portanto, praticar uma dialética entre tecnologia e sociedade, na qual lhe apresente princípios de uma outra racionalidade, não utilitarista e não produtivista. A premissa do materialismo histórico, que defende ser a superestrutura resultado ou reflexo da infraestrutura, é por questionada muitos autores8. Ao relegar a comunicação e a cultura ao segundo plano, as reduzem como resultados puros e acabados e não como dimensões contraditórias, conflitivas e de significações. Ao contrário disso, defendemos uma concepção dialética da cultura, da tecnologia e da inovação. Sobre essa perspectiva, Walter Benjamin (1994) toma a premissa segundo a qual as mudanças ocorridas na superestrutura levam mais tempo para serem refletidas do que na base econômica. As transformações sociais podem ser desencadeadas pelas mudanças geradas pelas superestruturas nas atuais condições produtivas e dentro do sistema de reprodução de mercadorias; intensificando contradições e rivalizando com o pressuposto da alienação e da exploração. O prognóstico de Marx, de que os meios de trabalho e a produção de valor e o de 8 Para ver uma discussão aprofundada do método dialético e seus desdobramentos teóricos, consultar Althusser (1985) e Fuchs (2008). Para análise crítica das correntes marxistas sobre essa questão e de uma análise aprofundada sobre a dialética no âmbito do próprio Marx ver Harvey (2013c). 44 Benjamin, de que a cultura e a arte rumavam já na sua época para a mercantilização dentro das relações sociais veio a se confirmar9. Marx afirma que, diante das consolidadas relações das relações econômicas capitalistas e, em última instância, no que ele chama de “grande indústria”, o conhecimento, ou conhecimento do ser social, passa a ser representado nas forças produtivas, pelo capital fixo. A “força produtiva da sociedade” existe de forma objetiva no capital fixo, a “força produtiva do capital” se desenvolve com o progresso geral difundido por tais relações historicamente e socialmente determinadas, das quais “o capital se apropria gratuitamente” (MARX, 2011, p. 582). O capital, portanto, põe em intercâmbio social e da combinação social para realizar a criação da riqueza: “independentemente do tempo nela empregado” (MARX, 2011, p. 589). Nesse sentido, segue ele dizendo, o capital fixo é um fator que indica o “saber social geral”, o conhecimento, adveio da força produtiva imediata, e como as condições produtivas e do “processo vital da sociedade” se encontram sob o controle do “intelecto geral” e a partir dele foram reorganizadas (MARX, p. 589, 2011). Em suas palavras: Portanto, o desenvolvimento pleno do capital só acontece [...] quando o meio de trabalho é determinado como capital fixo não só formalmente, mas quando tiver sido abolido em sua forma imediata, e o capital fixo se defrontado com o trabalho como máquina no interior do processo de produção; quando o processo de produção em seu conjunto, entretanto, não aparece como processo subsumido à habilidade imediata do trabalhador, mas como aplicação tecnológica da ciência (MARX, 2011, p. 583). E completa abaixo: Como na transformação do valor em capital, o exame mais preciso do desenvolvimento do capital mostra que, por um lado, ele pressupõe 9 A concepção dialética é chave de leitura para entender como se estruturam sociabilidades e a reprodução do capital desde o ponto de vista da inter-relação e imersão com os objetos técnicos, dos quais, a partir da evolução tecnológica, emergem modernas formas de comunicação e de produção. Em suma, não se trata de um descolamento de sociabilidades, das subjetividades e da cultura. Trata- se de um conjunto de transformações que transbordam para o campo da arte, da cultura e da tecnologia, mas que consistem num todo integrado e dialético. Assim, muitas das correntes e escolas de pensamento marxistas e sua utilização do recurso metodológico dialético-marxista para o estudo dos fenômenos do século XX, ao papel da comunicação massificada e da mercantilização da cultura, como fizeram Adorno; Horkheimer (2006) e Walter Benjamin (1994). A variedade e a articulação entre softwares e computadores que formam as redes comunicacionais globais culminam, simbioticamente, em formas altamente mediadas (tecnologicamente), espalhadas e acessadas pelos indivíduos para a produção do valor e para intercâmbios culturais e simbólicos. A fórmula do valor D-M´D´ é ampliada através das redes de comunicação, realizadoras de intercâmbios de conhecimento e intercâmbios culturais; redes como meios de produção. A partir desse prisma analítico, a mercadoria (M) ao se desdobrar pelo meio comunicacional se torna D´. A mercadoria (M) não é processada e realizada a partir de compras anteriores, como no processo produtivo, mas consiste exclusivamente em se tornar mais-valia ou lucro (D´). Trata-se de uma “extrapolação” da formação de mais-valia que se reproduz por meio da transformação do capital produtivo. A regra é a mesma: acumular. 45 um determinado desenvolvimento histórico das forças produtivas – dentre estas forças produtivas, também a ciência – por outro lado as impulsiona. Assim, ele se refere ao processo de totalidade das relações produtivas capitalistas como qualidade do capital fixo diante do trabalho vivo, que tem como pressuposto o controle da natureza e a redução do trabalho individual frente ao trabalho abstrato. Com isso, ele argumenta que o capital visa se apropriar do trabalho abstrato e não mais do tempo de trabalho, o qual é cada vez mais reduzido e qualitativamente realizado (MARX, 2011, p. 588). Mais um comentário a esse respeito é importante, Marx fala em capital fixo com o objetivo de demonstrar como as realizações do trabalho humano estão refletidas sobre as máquinas, e por máquinas nos referimos a uma imensa variedade de dispositivos e outras tecnologias utilizadas como meios de produção, como capital fixo. A tecnologia como “modo de proceder” do homem, como processo imediato de produção da sua vida e, desse modo, das condições sociais sobre as quais ela se reproduz. Ciência, tecnologia e conhecimento mostram para Marx até que ponto o conhecimento social, posto em movimento pelo capital e objetivado no capital fixo e no desenvolvimento geral do ser humano: [...] na medida em que a maquinaria se desenvolve com a acumulação da ciência social, da força produtiva como um todo, o trabalho social geral não é representado no trabalhador, mas no capital. A força produtiva da sociedade é medida pelo capital fixo, existe nele em forma objetiva e, inversamente, a força produtiva do capital se desenvolve com esse progresso geral de que o capital se apropria gratuitamente (MARX, 2011, p. 582). O capital fixo, que são todos meios de produzir (máquinas computacionais e seus programas nelas imbuídos ou máquinas industriais), defronta-se, materialmente ou imaterialmente com o trabalhador como capital: [...] indica até que ponto o saber social geral, conhecimento, deveio força produtiva imediata e, em consequência, até que ponto as próprias condições do processo vital da sociedade ficaram sob o controle do intelecto geral e foram reorganizadas em conformidade com ele (MARX, 2011, p. 589 – grifo nosso). As forças produtivas, portanto, constituem não apenas o saber, mas a práxis social do processo real da vida. Nesse sentido, o tempo disponível liberado com a ciência e a tecnologia, ou seja, pelo trabalho excedente que eles liberaram, passa contraditoriamente a transformar todo esse tempo livre, e seu resultado, em valor; isto 46 é, a transformação de todo tempo livre para seu próprio desenvolvimento. O valor passa a se reproduzir não apenas sobre o trabalho imediato, mas na pesquisa científico-tecnológica, no setor de serviços e no trabalhador intelectual. Dá-se a partir