Pontifícia Universidade Católica De São Paulo PUC-SP Vitor Loureiro Sion A política externa do governo Médici para a América do Sul: mudanças de regime e difusão autoritária entre 1969 e 1974 Doutorado em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP) São Paulo 2023 Vitor Loureiro Sion A política externa do governo Médici para a América do Sul: mudanças de regime e difusão autoritária entre 1969 e 1974 Doutorado em Relações Internacionais Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Relações Internacionais, na área de concentração “Instituições, Processos e Atores”, na linha de pesquisa “Governança, Política Internacional e Política Externa”, sob a orientação do Prof., Dr. Reginaldo Mattar Nasser. São Paulo 2023 Vitor Loureiro Sion A política externa do governo Médici para a América do Sul: mudanças de regime e difusão autoritária entre 1969 e 1974 Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Relações Internacionais, na área de concentração “Instituições, Processos e Atores”, na linha de pesquisa “Governança, Política Internacional e Política Externa”, sob a orientação do Prof., Dr. Reginaldo Mattar Nasser. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Reginaldo Mattar Nasser (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Prof. Dr. Shiguenoli Miyamoto (Universidade Estadual de Campinas) Profa. Dra. Cristina Soreanu Pecequilo (Universidade Federal de São Paulo) Prof. Dr. Rogério de Souza Farias (Universidade de Brasília) Prof. Dr. Matias Spektor (Fundação Getulio Vargas) São Paulo, 14 de março de 2023. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, em 22 dos 58 meses de desenvolvimento desta tese. Este trabalho também contou, durante a totalidade de sua duração, com financiamento da Fundação São Paulo (FUNDASP). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações aqui expressas são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FUNDASP e da CAPES. AGRADECIMENTOS Ainda que o trabalho de escrita de uma tese muitas vezes seja solitário, não seria possível concluir este projeto sem o apoio de inúmeras pessoas. Em primeiro lugar, agradeço à minha família pelo amor sempre presente: Ricardo e Cristina, meus pais, por motivos que nenhuma dedicatória estaria à altura; Julia, minha irmã que também se tornou roomate, acompanhando com paciência e compreensão os últimos passos desta tese; e Murilo, meu irmão, companhia inseparável nas incontáveis descidas de Serra rumo à Vila Belmiro. Agradeço ao professor Reginaldo Nasser pela orientação e pelo apoio na alteração do objeto de pesquisa na primeira metade do doutorado. Agradeço ao professor e amigo Matias Spektor pela confiança depositada neste trabalho, o que possibilitou o estudo de milhares de fontes primárias no Brasil e nos Estados Unidos durante os saudosos anos em que estive na FGV RI. Os amigos de longa data Felipe Amorim e Rodolfo Machado foram inspiração e parceria constante nesta missão de desbravar e interpretar os documentos do regime militar. O amigo Guilherme Fasolin também contribuiu com insights fundamentais nos almoços dos tempos de FGV RI. Já a amiga Érica Saboya foi um porto seguro em meio aos inúmeros desafios que surgiram no período desta tese e além. Agradeço ao Rockefeller Archive Center, à Ford Library e à LBJ Library pelo financiamento de viagens a esses três arquivos nos Estados Unidos durante o ano de 2022. Agradeço também aos professores, aos colegas e às funcionárias do Programa San Tiago Dantas, Giovanna, Graziela e Isabella, por todo o auxílio prestado no período desta tese. RESUMO O objetivo do trabalho é analisar a política externa do governo de Emílio Garrastazu Médici para a América do Sul e o seu papel nas mudanças de regime que aconteceram no continente de outubro de 1969 a março de 1974. Neste período, ocorreram transições para o autoritarismo em Argentina, Bolívia, Chile, Equador e Uruguai. Ao analisar a participação de atores internacionais nestes processos, a literatura existente aborda principalmente as ações do governo norte-americano de Richard Nixon, negligenciando a participação do regime militar brasileiro. A única exceção é o golpe de Estado no Chile, em setembro de 1973, que já conta com bibliografia sobre o papel brasileiro. O objetivo deste projeto é, por meio de fontes primárias desclassificadas nos últimos anos, fornecer uma nova interpretação sobre a política externa de Médici na América do Sul e a sua agência nas mudanças de regime no continente. Ao buscar preencher essa lacuna, o projeto estará alinhado com uma nova leva de autores que tem buscado dar maior espaço para o papel de atores latino-americanos durante a Guerra Fria. O trabalho também buscará contribuir com um braço teórico da literatura de Ciência Política e Relações Internacionais que discute os conceitos de difusão e promoção autoritárias. Ao apresentarmos a documentação analisada, também discutiremos o papel do Itamaraty e das Forças Armadas no processo decisório e na implementação da política externa brasileira sob Médici. Palavras-chave: política externa; Brasil; América do Sul; Estados Unidos; mudança de regime, autoritarismo. ABSTRACT The objective of this work is to analyze the foreign policy of the Emílio Garrastazu Médici government towards South America and its role in the regime changes that took place in the continent from October 1969 to March 1974. During this period, transitions to authoritarianism happened in Argentina, Bolivia, Chile, Ecuador, and Uruguay. When analyzing the participation of international actors in these processes, the existing literature mainly addresses the actions of the US government of Richard Nixon, neglecting the participation of the Brazilian military regime. The only exception is the coup d'état in Chile, in September 1973, which already has a bibliography on the Brazilian role. The aim of this project is, through primary sources recently declassified, to provide a new interpretation of Medici's foreign policy in South America and his agency in regime changes on the continent. In seeking to fill this gap, the project will be aligned with a new wave of authors who have sought to give greater space to the role of Latin American actors during the Cold War. The work will also seek to contribute with a theoretical arm of the Political Science and International Relations literature that discusses the concepts of authoritarian diffusion and promotion. By presenting the analyzed documentation, we will also discuss Itamaraty's and the Armed Forces’ roles in the decision-making process and in the implementation of Brazilian foreign policy under Médici. Keywords: foreign policy; Brazil; South America; United States; regime change, authoritarianism. RESUMEN El reto de este trabajo es analizar la política exterior del gobierno de Emílio Garrastazu Médici hacia América del Sur y su papel en los cambios de régimen que se produjeron en el continente desde octubre de 1969 hasta marzo de 1974. Durante este período ocurrieron transiciones al autoritarismo en Argentina, Bolivia, Chile, Ecuador y Uruguay. Al analizar la participación de actores internacionales en estos procesos, la literatura existente aborda principalmente las acciones del gobierno estadounidense de Richard Nixon, dejando de lado la participación del régimen militar brasileño. La única excepción es el golpe de Estado en Chile, en septiembre de 1973, que ya tiene bibliografía sobre el papel brasileño. El objetivo de este proyecto es, a través de fuentes primarias desclasificadas en los últimos años, ofrecer una nueva interpretación de la política exterior de Medici en América del Sur y su agencia en los cambios de régimen en el continente. En la búsqueda de llenar este vacío, el proyecto se alineará con una nueva ola de autores que han buscado darle mayor espacio al papel de los actores latinoamericanos durante la Guerra Fría. El trabajo también buscará contribuir con un brazo teórico de la literatura de Ciencias Políticas y Relaciones Internacionales que discuta los conceptos de difusión y promoción autoritaria. Al presentar la documentación analizada, también discutiremos el papel de Itamaraty e de las Fuerzas Armadas en el proceso de toma de decisiones y en la implementación de la política exterior brasileña bajo Médici. Palabras clave: politica externa; Brasil; América del Sur; Estados Unidos; cambio de régimen, autoritarismo. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AERP Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República AGC Authoritarian Gravity Centre AI-5 Ato Institucional n.5 CECLA Comissão Especial de Coordenação Latino-Americana CIA Central Intelligence Agency CIEX Centro de Informações do Exterior CNV Comissão Nacional da Verdade CSN Conselho de Segurança Nacional DSI Divisão de Segurança e Informações ESG Escola Superior de Guerra EUA Estados Unidos da América FAB Força Aérea Brasileira Gulf Bolivian Oil Gulf Company IPC International Petroleum Company NARA National Archives NSSM National Security Study Memorandum NSC National Security Council OEA Organização dos Estados Americanos ONU Organização das Nações Unidas RAC Rockefeller Archive Center SIAN Sistema de Informações do Arquivo Nacional SNI Serviço Nacional de Informações URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................... 13 1.1 A Conjuntura internacional da Guerra Fria e o governo Nixon….….. 14 1.2 Características gerais do governo Médici................................................ 21 1.3 A política externa do governo Médici....................................................... 25 1.3.1 A onda antidemocrática na América do Sul de 1969 a 1974....................... 28 1.4 Referencial teórico..................................................................................... 32 1.5 Tipologia das fontes................................................................................... 37 2 DA POSSE DE NIXON À DIFUSÃO DO MODELO BRASILEIRO NA ARGENTINA……………….....…...........................……...……....... 43 2.1 Os primeiros meses da relação de Nixon com a América Latina e a visita de Rockefeller ao Brasil de Costa e Silva……...…..….…..…..….. 44 2.2 O relatório da missão Rockefeller e as discussões no governo Nixon para uma nova política para a América Latina………...…..…......….... 50 2.3 A posse de Médici e a conjuntura brasileira............................................ 57 2.4 O modelo do regime brasileiro como exemplo para a Argentina.......... 59 3 NOVOS GOVERNOS ESQUERDISTAS AUMENTAM AMEAÇA PARA WASHINGTON E BRASÍLIA NA AMÉRICA DO SUL NO SEGUNDO SEMESTRE DE 1970...……………….…………..…….…. 69 3.1 Juan J. Torres chega ao poder na Bolívia após golpe de Estado em outubro de 1970.......................................................................................... 69 3.2 Vitória eleitoral de Allende no Chile abre nova etapa na Guerra Fria sul-americana............................................................................................. 77 3.3 A ameaça cubana e o combate às guerrilhas transnacionais na América do Sul............................................................................................................ 81 4 A REAÇÃO ANTICOMUNISTA NA AMÉRICA DO SUL EM 1971.... 87 4.1 Ajuste na política externa de Nixon e Médici após vitória eleitoral de Allende............................................................................................................. 87 4.2 Os dez meses de governo Torres até o golpe de Estado que levou Banzer ao poder na Bolívia......................................................................................... 90 4.2.1 Tentativas fracassadas de depor Torres no primeiro semestre de 1971, com acusações a atores brasileiros e norte-americanos........................................... 91 4.2.2 Hugo Banzer lidera golpe de Estado na Bolívia em agosto de 1971................ 95 4.3 O envolvimento brasileiro na política interna uruguaia até 1971............... 99 4.3.1 Os primeiros anos da relação entre a ditadura militar e Montevidéu................ 99 4.3.2 As eleições no Uruguai em novembro de 1971................................................ 101 5 A VISITA À CASA BRANCA E A CONSOLIDAÇÃO DOS GOVERNOS ANTICOMUNISTAS NA AMÉRICA DO SUL NA METADE FINAL DO GOVERNO MÉDICI............................................ 109 5.1 Viagem de Médici a Washington em dezembro de 1971........................... 109 5.2 Bolívia: o apoio de Brasília para a estabilidade do governo Banzer........ 114 5.3 A ascensão política dos militares uruguaios do início de 1972 até o fechamento do Parlamento em junho de 1973........................................... 120 5.4 A volta do peronismo na Argentina e o golpe no Chile............................ 125 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 128 REFERÊNCIAS.......................................................................................... 140 APÊNDICE – CRONOLOGIA................................................................... 167 ANEXO A – APROVAÇÃO DE MÉDICI PARA INTERVENÇÃO BRASILEIRA NA ELEIÇÃO URUGUAIA (BRASIL. 1971j)…............... 170 ANEXO B – SUMÁRIO DO RELATÓRIO DA MISSÃO ROCKEFELLER (ROCKEFELLER, 1969e)............................................. 175 ANEXO C – EXEMPLO DE DOCUMENTO EMITIDO DE LA PAZ A PEDIDO DO ADIDO MILITAR (LOPES, 1970g)................................... 180 13 1 INTRODUÇÃO O objeto de pesquisa desta tese de doutorado é a política externa do governo Emílio Garrastazu Médici para a América do Sul. De forma mais específica, este trabalho irá avaliar se o governo Médici tinha uma estratégia de interferir na política interna de outros países do continente para influenciar na chegada ou na manutenção de determinado líder no poder e se a ditadura militar brasileira buscou promover traços autoritários de seu regime para outros Estados sul-americanos1. Tal hipótese tem sido cogitada por parte da literatura existente, pois, durante os quase 4 anos e meio em que Médici esteve no poder no Brasil, de 30 de outubro de 1969 a 15 de março de 1974, ocorreu uma série de mudanças de regime no continente, na Bolívia, na Argentina, no Chile, no Uruguai e no Equador. De forma mais ampla, entre o golpe militar ocorrido no Brasil em 1964 e o fim do governo Médici, uma onda autoritária transformou a América do Sul, fazendo com que, dos 10 países do continente na época, apenas Colômbia e Venezuela continuassem tendo democracias como regime político, sendo que, no início deste período, só o Paraguai de Alfredo Stroessner era governado por líderes não eleitos democraticamente2. Até o momento, o principal ator externo a tais mudanças de regime estudado pela bibliografia foi o governo norte-americano de Richard Nixon (1969-1974). Neste trabalho, a ação da Casa Branca e a sua política para a região também serão abordados, uma vez que, em meio ao contexto da Guerra Fria, tal componente é fundamental para compreender os processos políticos. Para que a discussão sobre o nosso objeto de pesquisa fique mais clara, porém, vale fazermos uma revisão da bibliografia existente sobre o governo Médici e a conjuntura internacional em que ele estava inserido. Dessa maneira, esta introdução será dividida em mais cinco partes. Na primeira delas, abordamos a conjuntura internacional da Guerra Fria, detalhando a política externa norte-americana para a América Latina desde os anos Kennedy até o governo Nixon e reforçando a importância de estudarmos os agentes locais sul-americanos. Em seguida, fazemos uma apresentação geral das características 1 Este trabalho utilizará os termos regime militar e ditadura militar como sinônimos para mencionar o tipo de governo que prevaleceu no Brasil entre 1964 e 1985. 2 Hoje a América do Sul é formada por 12 países, além da Guiana Francesa. No entanto, o Suriname se tornou independente apenas em 1975 e a Guiana em 1970, ou seja, após o início do que chamamos de onda antidemocrática ou autoritária, em 1964. 14 principais do governo Médici, de acordo com as obras já publicadas. Na terceira seção, entramos na revisão da literatura sobre o objeto de pesquisa desta tese: a política externa de Médici. Este trecho do capítulo tem ainda um subtópico sobre as mudanças de regime ocorridas na América do Sul entre 1969 e 1974. Na quarta parte desta introdução, apresentamos o referencial teórico que embasará este trabalho, como os conceitos de mudança de regime e promoção autoritária, bem como as principais contribuições pretendidas. Por fim, detalhamos as origens de todas as fontes primárias analisadas nesta tese e apontamos a estrutura dos capítulos seguintes, com os tópicos principais do que será discutido. 1.1 A Conjuntura Internacional da Guerra Fria e o governo Nixon (1969-1974) Os anos em que Médici governou o Brasil estão inseridos no período que a historiografia denominou de Guerra Fria. Com a derrota de Alemanha e Japão ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o enfraquecimento de outros países como Reino Unido, França e China, os Estados Unidos e a União Soviética (URSS) despontaram em 1945 como as duas nações mais poderosas do mundo (GARTHOFF, 2008). Com sistemas políticos, ideologias e modelos econômicos antagônicos, cada uma das duas superpotências passou a ver na outra uma ameaça à sua hegemonia. Mais do que isso, norte-americanos e soviéticos atribuíam ao outro lado a execução de um plano para dominação mundial (SCHLESINGER JR, 2008). A partir dessa visão recíproca e do desenvolvimento das armas nucleares, que colocavam todo o planeta em risco em caso de novo conflito, surgiu o conceito de Guerra Fria, opondo capitalismo e socialismo. Nas primeiras décadas após a Segunda Guerra Mundial, todos os acontecimentos internacionais eram interpretados pelas duas superpotências como parte da Guerra Fria, minimizando os elementos locais e regionais (SCHLESINGER JR, 2008). Ainda que Estados Unidos e União Soviética tentassem influenciar todo o mundo, porém, o impacto da Guerra Fria variava de acordo com o país e a região. Com isso, uma preocupação central para Washington e Moscou dizia respeito à influência rival em áreas que historicamente estavam sob a sua hegemonia. Isso porque, como todos os países se viam constrangidos a se engajar em algum dos lados do conflito para garantir a segurança de seus territórios, era fundamental para as duas superpotências demonstrar controle sobre os seus “quintais” (DALLEK, 2007). 15 No caso específico de Washington, a literatura aponta que, para preservar o controle sobre a sua área de influência durante a Guerra Fria, valia até mesmo promover a chegada e a manutenção no poder de líderes autoritários, o que seria uma contradição frente ao discurso em defesa de um “mundo livre”. O argumento usado pelos sucessivos governos norte-americanos era o de que ditadores eram necessários para estabelecer as bases para as sociedades livres, que Washington aceitava tal fato como consequência colateral da Guerra Fria ou que, naquele momento, mais importante do que a democracia era lutar contra o comunismo (RABE, 2020; SCHMITZ, 2014; TYVELA, 2019). O trabalho de Lindsey O’Rourke, que fez uso de fontes primárias recentemente desclassificadas para analisar a participação norte-americana em mudanças de regime durante a Guerra Fria, contribuiu significativamente para esse debate. Em cerca de 70% dos casos, os tomadores de decisão em Washington acreditavam que um regime autoritário era a melhor alternativa plausível para os interesses do país (O’ROURKE, 2019, p.28). Em relação às tentativas de mudança de regime efetivamente promovidas por Washington durante a Guerra Fria, apenas 12,5% tinham o objetivo de democratizar um estado com governo autoritário, enquanto 28% buscavam derrubar líderes eleitos democraticamente (O’ROURKE, 2019). Ou seja, os dados apresentados pela autora sugerem que a retórica norte-americana pró democracia ficava em segundo plano no momento da tomada de decisão, priorizando principalmente o apoio a líderes ou alternativas que fossem anticomunistas. Para os fins desse trabalho, vale destacar o impacto da Guerra Fria na América Latina e, mais especificamente, na América do Sul, territórios sob a esfera de influência de Washington. Já no final da década de 1950, os Estados Unidos tiveram de enfrentar os primeiros problemas para a sua hegemonia na América Latina. Em 1958, o então vice-presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, foi hostilizado nas ruas de Argentina, Peru e Venezuela em meio a um tour oficial que evidenciou o sentimento antiamericano na região. Um ano depois, em 1959, a Revolução Cubana marcou um divisor de águas para a relação de Washington com a América Latina. Nos anos seguintes, durante o governo John Kennedy (1961-1963), a questão cubana se tornou ainda mais delicada. Em abril de 1961, uma ação da CIA (Central Intelligence Agency) para tentar derrubar o governo de Fidel Castro acabou fracassada no que ficou conhecido como “A Invasão da Baía dos Porcos”. Pouco mais de um ano depois, em outubro de 1962, a ilha caribenha ficou no centro do que ficou conhecido 16 como o ápice da Guerra Fria, no episódio da Crise dos Mísseis, quando Washington descobriu que Moscou havia instalado armamentos nucleares em Cuba (ALLISON; ZELIKOW, 1999; WESTAD, 2005). Apesar de as duas superpotências terem conseguido chegar a um acordo que envolveu a retirada de mísseis norte-americanos da Turquia, a questão cubana alterou a maneira como Washington se relacionava com a América Latina. Em 1965, na gestão de Lyndon Johnson (1963-1969), o país iniciou uma intervenção na República Dominicana, que depois se converteu em ação multilateral da OEA (Organização dos Estados Americanos). Em meio a sucessivas mudanças de poder na República Dominicana, a operação teve o objetivo de evitar “novas Cubas”, ou seja, que outros líderes esquerdistas ou percebidos como comunistas assumissem novos países na região. A preocupação de Washington com Havana cresceu com a percepção norte- americana de que o governo cubano colocava em prática uma política externa que tinha o objetivo de exportar o seu modelo para outros países da região. Tal política se dava, por exemplo, por meio do apoio tanto a movimentos guerrilheiros, como os Tupamaros no Uruguai, como a partidos legalmente estabelecidos, como a Unidade Popular, de Salvador Allende, no Chile (HARMER, 2013b; BRANDS, 2012). Ao longo do tempo, o sentimento antiamericano na região aparecia também nas universidades, nas igrejas, nas áreas rurais, nos sindicatos e em movimentos transnacionais de opositores asilados que se uniam em localidades governadas pela esquerda depois da tomada de poder por militares anticomunistas em seus países de origem (MARCHESI, 2017). Além disso, a peregrinação de Che Guevara pelo continente incomodava Washington, o que acabou com a morte dele por forças bolivianas em outubro de 1967. Além da intervenção militar em alguns casos, como a República Dominicana, os Estados Unidos também buscavam influenciar os países da região por meio de programas econômicos. Anunciada pelo presidente John F. Kennedy em março de 1961, a Aliança para o Progresso era uma maneira de os Estados Unidos atenderem os pleitos dos países latino-americanos por maior ajuda financeira. Com estimativa inicial de envolver US$ 20 bilhões em dez anos, a Aliança para o Progresso tinha o objetivo de fazer a América Latina crescer com equidade para, assim, tentar manter a região longe do comunismo (LOUREIRO, 2012). Uma mudança importante representada pela Aliança para o Progresso em relação às políticas anteriores de Washington para o continente era a de que houve um 17 redirecionamento dos empréstimos norte-americanos: antes mais voltados para as Forças Armadas, eles passaram a ter como objetivo a melhoria das condições de vida das populações locais, uma vez que a pobreza começava a ser vista como “fomentadora de Revoluções” (FICO, 2008, p.26). Os principais objetivos da iniciativa eram acelerar o desenvolvimento econômico e estabilizar os regimes aliados na América Latina, o que, segundo os formuladores da política externa de Washington, contribuiria para afastar a possibilidade da instalação de governos comunistas na região. Ou seja, a partir da concepção de Kennedy e de seus assessores mais próximos, o combate ao comunismo deveria ser realizado não apenas ideologicamente, mas também por meio da colaboração para minimizar problemas econômicos e sociais dos países da periferia (RIBEIRO, 2006). Ao assumirem o poder na Casa Branca em janeiro de 1969, Nixon e o Partido Republicano buscaram indicar que o novo governo seria um ponto de inflexão na relação de Washington com a América Latina (KIRKENDALL, 2022). O principal protagonista e formulador da política externa de Nixon foi Henry Kissinger, que ocupou os cargos de assessor de Segurança Nacional (1969-1975) e secretário de Estado (1973-1977). No que se refere à Guerra Fria, a literatura aponta o período Nixon como o início da distensão, com a assinatura de acordo para limitar o risco nuclear, o começo da retirada de tropas norte-americanas do Vietnã no início dos 1970, cuja participação seria finalizada formalmente em 1973, e a visita do presidente norte-americano à China comunista em 1972 (SPEKTOR, 2009). Uma das primeiras ações do republicano para a América Latina foi a criação da Missão Rockefeller, na qual o então governador de Nova York, Nelson Rockefeller, realizou quatro viagens pela região com o objetivo de produzir um relatório com as demandas dos líderes locais, visando a melhoria da relação. Dessa forma, pode-se dizer que os três personagens centrais da formulação da política externa norte-americana para a região foram Nixon, Rockefeller e Kissinger. Rockefeller e Kissinger já haviam trabalhado juntos anteriormente, quando Kissinger foi assessor do político republicano, com Rockefeller sendo considerado uma espécie de mentor de Kissinger por parte da literatura (RABE, 2020, p.46; CATERINA, 2012, p.43). Dada a importância da Missão Rockefeller para a América Latina, a literatura sobre o assunto ainda é incipiente. Em seu mais recente livro publicado em 2020, Rabe dedicou parte de um capítulo à Missão Rockefeller e seu impacto no governo Nixon, fazendo uso de fontes primárias recentemente desclassificadas não só pelo Estado norte- 18 americano, mas também no arquivo pessoal do ex-governador de Nova York. O autor argumenta que o relatório final reforçou a percepção da Casa Branca de que os militares eram a principal esperança para a estabilização da região, pois já estavam alinhados ao anticomunismo vigente da Guerra Fria (RABE, 2020). Outros trabalhos acadêmicos também abordaram a missão por meio de fontes primárias disponíveis ao público nos últimos anos. Em trabalho de doutorado defendido em 2019 na Universidade do Texas, Martin analisou os primeiros anos de Nixon e a formulação de sua política externa para a região, por meio da Missão Rockefeller e de outras instâncias internas do governo (MARTIN, 2019). Em dissertação de Mestrado na qual combina a análise de documentos históricos com a leitura da imprensa brasileira da época, Gianfranco Caterina também chega a abordar o relatório Rockefeller, mas se concentra nos relatos dados por reportagens jornalísticas, o que acaba prejudicando o trabalho devido à censura vigente na época (CATERINA, 2012). Ananda Fernandes, por sua vez, aponta que um dos aspectos do relatório seria diferenciar dois tipos de militares na região: os “garantidores”, do qual os brasileiros seriam um exemplo, e os nacionalistas, que deveriam ser combatidos, como o peruano Velasco Alvarado e o boliviano Juan José Torres (FERNANDES, 2010, p.165). Ao identificar os militares latino-americanos como sua principal alternativa de liderança na região, Washington investiu no treinamento de tais forças como parte de sua política externa. A Escola das Américas, na época localizada no Panamá, serviu como um dos principais centros para esse treinamento militar e policial, que consistia, por exemplo, na transferência de conhecimento sobre operações de contrainsurgência (JOFFILY, 2018). Em 1973, 170 ex-alunos da escola ocupavam cargos relevantes como presidentes, ministros, chefes das Forças Armadas ou líderes de organismos de inteligência em países latino-americanos (SKAAR; MALCA, 2014, p.7). A literatura considera ainda que a política externa de Nixon e Kissinger para a América Latina não deu importância para a questão da violação dos direitos humanos. Na busca por implementar uma agenda anticomunista, evitar a chegada ou a manutenção de líderes esquerdistas no poder era mais importante do que garantir a concretização dos ideais democráticos. Conforme veremos adiante, as denúncias dos brasileiros asilados sobre violações de direitos humanos do regime são consideradas um dos primeiros casos que ganharam repercussão internacional na América Latina (KELLY, 2014). No Congresso norte-americano, a legislação sobre direitos humanos começou apenas pedindo relatórios ao Departamento de Estado, mas a postura da Casa Branca de Nixon 19 fez o Legislativo mudar de estratégia e impor restrições mais concretas a países da região, como sanções econômicas (SIKKINK, 2007). Toda a evolução sobre a área de direitos humanos em Washington a partir do que ocorria no Brasil foi detalhada na obra de Green (GREEN, 2009). O tema passou a receber ainda mais importância em 1973, com o golpe no Chile, considerado o ponto de virada no tema dos direitos humanos nos EUA (JOFFILY, 2018, p.69). Um outro conceito a ser analisado sobre a relação entre América do Sul e Estados Unidos durante o governo Nixon é o de delegação (delegation). Ainda antes de chegar ao poder junto com o presidente republicano, Kissinger já escrevia sobre o conceito de delegação, segundo o qual os Estados Unidos deveriam eleger países-chave em cada região para que trabalhassem por objetivos comuns, sendo o Brasil o parceiro ideal na América Latina (KISSINGER, 1961). Ao analisar a política externa de Nixon, Spektor identificou a presença de tal conceito, com Washington oferecendo maior autonomia para países emergentes ou potências regionais, como era o caso do Brasil na América do Sul, do Irã e da Indonésia na Ásia e da África do Sul na África. Em troca de maior liberdade na política interna de suas regiões, tais países também deveriam assumir maiores custos e responsabilidades (SPEKTOR, 2009). No caso específico do Brasil, um elemento considerado crucial para a Casa Branca era destacar a importância do país por meio de discursos e simbolismos que, a partir da visão de Brasília, reforçariam a interpretação de que a nação sul-americana ganhava espaço no panorama global. Apesar de o governo Nixon ter buscado se apresentar como um momento de mudanças em relação aos seus antecessores democratas para a América Latina, parte da literatura também aponta traços em comum entre eles. Ainda que com estratégias diferentes, os governos do democrata Lyndon Johnson e do republicano Richard Nixon teriam trabalhado ativamente para promover regimes autoritários no entorno regional do Brasil, com o objetivo de afastar ameaças supostamente comunistas em meio à Guerra Fria e garantir um ambiente favorável às empresas norte-americanas na região (SCHOULTZ, 1998; GRANDIN, 2006). Ao examinar as mudanças de regime e o impacto das duas superpotências no continente neste período, Tanya Harmer desenvolveu o conceito de Guerra Fria Interamericana (InterAmerican Cold War). De acordo com Harmer, a maneira como a Guerra Fria impactava a região era bastante distinta do que ocorria nos principais centros, em que capitalismo e comunismo, Estados Unidos e União Soviética, rivalizavam em 20 dois polos estáticos de poder (HARMER, 2012, p.5-6). Com isso, a autora aborda um elemento que tem sido cada vez mais defendido pela literatura: o estudo da agência dos atores locais. Um dos trabalhos mais simbólicos desse movimento foi o livro organizado por Gilbert Joseph e Daniela Spenser, que viu a chegada de líderes anticomunistas ao poder na América Latina durante a Guerra Fria como uma resposta das elites locais, em sintonia com Washington, para enfrentar uma suposta ameaça de avanço do comunismo pela região. Tal ameaça estaria materializada pela Revolução Cubana e por movimentos locais, que poderiam ser pacíficos e ter o apoio da Igreja Católica e de universidades, ou armados, como os Tupamaros do Uruguai (JOSEPH; SPENSER, 2008). Outros autores também adotaram essa nova perspectiva em suas obras (BRANDS, 2012; WESTAD, 2005). Em relação ao principal objeto de pesquisa desta tese, vale mencionar Harmer e Simon destacando a necessidade de se reavaliar especificamente a agência dos países sul-americanos nos processos de mudança de regime na região (HARMER, 2012; SIMON, 2021). Mariana Joffily e Juliana Ramos Luiz argumentaram que as elites sul-americanas tinham interesses e agendas semelhantes à norte-americana, sendo predominantemente católicas, anticomunistas e defendendo o status quo (JOFFILY, 2018; RAMOS LUIZ, 2012). O já citado trabalho de O’Rourke também defende essa necessidade em um de seus argumentos. Segundo a autora, todos os casos de tentativas de mudança de regime em segredo implementadas por governos norte-americanos durante a Guerra Fria envolveram a participação de atores domésticos do Estado-alvo ou de outros países. Independente da finalidade dessa participação, que será discutida mais adiante neste capítulo, fica evidente que o estudo dos agentes latino-americanos nos processos ocorridos neste período ainda é uma lacuna da literatura. Para avaliar essa agência, conforme aponta Harmer, é fundamental a análise dos documentos históricos locais, já que a literatura existente tem exaurido o estudo das fontes desclassificadas por Washington. Essa será a principal contribuição da tese para este tópico da literatura: com documentos brasileiros recentemente desclassificados, avaliar a agência de atores sul-americanos, no caso o Brasil. 21 1.2 Características gerais do governo Médici Alçado ao posto de presidente da República por meio de uma eleição indireta ocorrida em consequência do derrame cerebral sofrido por Arthur da Costa e Silva, Médici representou a continuidade da linha dura no poder3. Não à toa, o terceiro presidente do regime militar manteve o AI-5 (Ato Institucional n.5) em vigor e seguiu com 7 ministros de seu antecessor4 (SKIDMORE, 1988). Nascido em Bagé, no Rio Grande do Sul, em 4 de dezembro de 1905, Médici estudou em colégios militares durante toda a sua juventude. No momento do golpe de 1964, Médici era comandante da Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) e foi um dos primeiros apoiadores da derrubada de João Goulart. Instalado o regime militar, Médici atuou como adido militar em Washington durante governo Castello Branco (1964- 1967). Em 1967, passou a ser chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações). Médici é considerado um dos presidentes mais populares da história do Brasil, mas sua aprovação foi conquistada por meio de um trabalho intenso de propaganda e relações públicas, facilitado pela censura, pelo milagre econômico e pelo título da Copa do Mundo de 1970 (FICO, 2008; SKIDMORE, 1988). O principal órgão do governo responsável pelas campanhas em favor do regime era a Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República (AERP). Criada por Costa e Silva em janeiro de 1968, a AERP teve seu momento áureo durante o governo Médici, com a veiculação de peças publicitárias que alcançaram grande alcance nacional por meio da televisão. A área, porém, sempre foi vista com desconfiança por uma ala das Forças Armadas, tendo sido depois encerrada e, posteriormente, recriada no mesmo mandato de Ernesto Geisel (FICO, 1997). No decorrer deste trabalho, veremos como a ação da AERP era considerada 3 Na divisão comumente realizada pela literatura entre a linha dura e os castellistas, Médici e Arthur da Costa e Silva seriam os presidentes do regime que representaram a primeira categoria, enquanto Humberto de Alencar Castello Branco e Ernesto Geisel seriam líderes da segunda (STEPAN, 1971; SCHNEIDER, 1971). 4 Os ministros que seguiram no cargo foram: Antonio Delfim Netto (Fazenda), António Dias Leite (Minas e Energia), Mário Andreazza, (Transportes), José Costa Cavalcanti (Interior), Márcio de Souza e Mello (Aeronáutica), Jarbas Passarinho (transferido do Trabalho para a Educação) e Orlando Geisel (que passou do Estado-Maior das Forças Armadas para o Ministério do Exército). Outros ministros de Médici foram promovidos, como João Paulo dos Reis Velloso, que passou de secretário-geral para ministro do Planejamento (SKIDMORE, 1988). 22 bem-sucedida por outros governos da região, que buscaram reproduzir alguns elementos desse órgão em seus países. Médici governou valorizando dois setores pelos quais ele passara durante a sua trajetória: as Forças Armadas e os órgãos de informação. Mesmo em comparação com os outros governos do regime militar, o período Médici é considerado pela literatura como aquele em que os militares tiveram maior preponderância sobre os civis (MIYAMOTO, 2013; FERREIRA, 2001; RAMOS LUIZ, 2012; SCHNEIDER, 1971). Chefe do SNI durante o governo Costa e Silva, Médici também deu protagonismo aos órgãos de informação (FICO, 2008). Dentro do organograma do Itamaraty, por exemplo, a DSI (Divisão de Segurança e Informações) do ministério passou a ocupar um espaço mais próximo do chanceler, aumentando a sua influência em relação aos demais setores (RAMOS LUIZ, 2012, p.62). O SNI, que já era ligado à Presidência da República, ganhou ainda mais espaço na tomada de decisão, sendo que, em 1971, o regime criou a Escola Nacional de Informações para melhorar a formação dos funcionários do órgão. Os anos Médici são caracterizados pela historiografia por dois pontos principais: o elevado crescimento do PIB, com média anual superior a 11%, justificando a expressão do “milagre econômico”, e o momento de auge da repressão, com a máquina policial ainda mais organizada pouco mais de um semestre depois da implementação do AI-5 (NAPOLITANO, 2015; SIMON, 2021; FICO, 2008; PATTI, 2021). Não à toa, esses dois elementos formam o binômio segurança-desenvolvimento, componentes centrais da Doutrina de Segurança Nacional, elaborada pela ESG (Escola Superior de Guerra) (RAGO FILHO, 1998; VIZENTINI, 1998). Criada em 1949, a ESG tinha o objetivo de qualificar os militares brasileiros no contexto da Guerra Fria, sendo que “seu alvo era a formação de massa crítica que a credenciasse a formular um planejamento global para proporcionar o take-off da economia brasileira em direção à posição de potência mundial” (MIYAMOTO; GONÇALVES, 1991, p.10). A Doutrina de Segurança Nacional elaborada pela ESG previa a criação de um consenso nacional que eliminasse qualquer forma de dissenso de orientação comunista (MIYAMOTO; GONÇALVES, 1991, p.14). Durante o governo Médici, os principais 23 focos de oposição formal autorizada pela ditadura eram a Igreja Católica e o que restou da oposição no Congresso após as cassações de mandato (SKIDMORE, 1988). Assim como a Guerra Fria tinha as suas particularidades locais, a Doutrina de Segurança Nacional também apresentava as suas especificidades em cada país da região onde era desenvolvida e implementada, ainda que ela fosse, segundo Brands, o principal aspecto a ser reproduzido por outros países sul-americanos que viam o regime militar brasileiro como exemplo a ser seguido (BRANDS, 2012). No regime militar brasileiro, o objetivo era transformar o país em uma potência, projeto que ficou conhecido como “Brasil Potência”. Na economia, há dois motivos considerados principais para o milagre econômico: o conjunto de medidas de Delfim Netto e uma conjuntura internacional mais favorável. A continuidade de Delfim Netto à frente das questões econômicas desde o início do governo Costa e Silva representou também a renovação da aliança entre a linha dura e os tecnocratas (SKIDMORE, 1988). De acordo com Vizentini, o modelo econômico de Médici era baseado no tripé formado por empresas estatais, capital transnacional e privado nacional. Nos anos Médici, esse tripé foi incentivado pelo governo para a realização de uma série de projetos de infraestrutura, como a ponte Rio–Niterói, a rodovia Transamazônica, barragens para usinas hidrelétricas, estádios de futebol, além de investimentos na área de mineração e plantas industriais (VIZENTINI, 1998; CATERINA; 2012). Em 1972, foi assinado acordo com os EUA para a construção de Angra I (GARCIA, 2005). O crescimento econômico, porém, não significou uma redução da desigualdade social no país. Ao contrário disso, tanto o modelo planejado pelos militares como a implementação de suas medidas desenvolveram um país socialmente mais injusto, com maior concentração de renda (OLIVEIRA, 1976). Único governo no qual o AI-5 esteve em vigor durante toda a sua extensão, o período Médici também teve a violação de direitos humanos como característica central. A historiografia argumenta que as ações de segurança interna do governo Médici estavam embasadas em um tripé formado por vigilância, censura e repressão. Os três eixos desse tripé foram aperfeiçoados pelo regime por meio de leis ou atos institucionais que davam às forças militares novas responsabilidades em ações que seriam policiais, deixando de lado o conceito tradicional de guerra para justificar o combate às guerrilhas. No 24 Ministério da Justiça, esse processo era conduzido por Alfredo Buzaid (MACHADO, 2015). A vigilância se dava por meio da comunidade de informações, conjunto de agências liderado pelo SNI e que visava identificar o chamado “inimigo interno”. A censura, por sua vez, complementava o trabalho da área de vigilância, controlando a circulação de informações e opiniões negativas e limitando o alcance da criação cultural artística (NAPOLITANO, 2015). Os principais temas sob censura, prática que foi intensificada em setembro de 1972, eram a repressão e a disputa pela sucessão de Médici (SKIDMORE, 1988). Já a repressão, materializada pelas ações de tortura e desaparecimentos por agentes do Estado, teve as guerrilhas como foco durante o governo Médici (NAPOLITANO, 2015). Internamente, o governo Médici é considerado pela literatura como bem-sucedido na caça ao que o delegado Sérgio Fleury chamava de os “três grandes” líderes rebeldes: Carlos Marighella, assassinado pelas forças policiais em novembro de 1969, Joaquim Câmara Ferreira, torturado e morto em outubro de 1970, e Carlos Lamarca, morto em setembro de 1971. Além disso, no início de 1972 a guerrilha urbana estava controlada, com todos os líderes presos, mortos ou exilados5. Tal atividade, no entanto, passou a impactar diretamente a política externa do regime em meio aos anos Médici. Pouco antes da posse do terceiro presidente da ditadura militar, o então embaixador norte-americano, Charles Elbrick, foi sequestrado em 4 de setembro de 1969 pelos grupos guerrilheiros MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro) e ALN (Ação Libertadora Nacional). Em troca da soltura do embaixador, os sequestradores exigiam a libertação de 15 presos políticos. O sequestro de Elbrick foi o primeiro de uma série contra diplomatas estrangeiros e tinha como objetivos não apenas a libertação de prisioneiros políticos, mas também chamar a atenção da comunidade internacional para as violações de direitos humanos ocorridas no Brasil. Além do norte-americano, também foram raptados o cônsul japonês Nobuo Okushi (março), o embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben (junho) e o embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher (dezembro), todos eles em 1970. Napolitano argumenta que o sequestro do embaixador norte-americano foi um momento que marcou o recrudescimento da repressão no Brasil, ainda mais agressiva do 5 A guerrilha do Araguaia, implementada na região amazônica, acabou derrotada pelas forças do governo em 1975. 25 que no imediato AI-5. Isso porque, pouco mais de um semestre depois do AI-5, a máquina já atuava de modo mais organizado e articulado (NAPOLITANO, 2015, p.125). Além das ações dos opositores que se mantinham no país, o governo Médici também precisou se preocupar com os brasileiros asilados. Os brasileiros asilados denunciavam violações de direitos humanos, como tortura e desaparecimentos, o que era repercutido no Congresso norte-americano e afetava a imagem do regime brasileiro no exterior (JOFFILY, 2018). Com isso, ganhava em importância no governo a estrutura do CIEX, órgão do Itamaraty que era clandestino durante a ditadura e monitorava a rotina dos brasileiros que haviam deixado o país após o golpe de 1964, a ser detalhado no decorrer desta tese. Em suma, o governo Médici começou em meio a uma crise que afetou tanto um dos pilares internos do regime militar, a repressão, como a política externa, devido à importância da relação com os EUA durante a Guerra Fria. No próximo tópico, detalharemos a política externa de Médici para nos aprofundarmos no objeto de pesquisa desta tese. 1.3 A política externa do governo Médici A política externa do governo Médici ainda carece de estudos mais aprofundados pela literatura especializada. Se comparado com o período de seu sucessor, Ernesto Geisel, fica evidente a escassez de obras sobre a política internacional do Brasil entre 1969 e 1974. O principal trabalho que se concentra exclusivamente na política externa de Médici é o de Cíntia Souto, uma das autoras que faz uso da expressão “Diplomacia do Interesse Nacional” para caracterizar o período do terceiro governo do regime militar brasileiro (SOUTO, 2003). Durante todo o período Médici, o Itamaraty foi chefiado por Mario Gibson Barboza. Antes de ser chanceler de Médici, Gibson Barboza já havia sido chefe de gabinete do ministro Afonso Arinos de Melo Franco, durante o mandato de Jânio Quadros (1961), e embaixador em Assunção, durante o governo Castello Branco, e em Washington, entre fevereiro e outubro de 1969. Gibson Barboza já tinha relação com os militares desde a década anterior, ao fazer o curso da ESG em 1951. Em relação aos paradigmas da política externa brasileira durante o regime militar, o governo Médici é considerado pela maioria dos autores como um período de transição 26 entre o alinhamento com Washington de Castello Branco e o “pragmatismo responsável” de Ernesto Geisel (PINHEIRO, 2004; VIZENTINI, 1998)6. Na definição de Letícia Pinheiro, os anos Médici, juntamente com o período de Costa e Silva, poderiam ser classificados como de “americanismo pragmático”, ficando, assim, entre o “americanismo ideológico” de Castello Branco e o “globalismo hobbesiano” que predominaria do governo Geisel até os anos 1990 (PINHEIRO, 2000). A autora diferencia a política externa de Costa e Silva da de Médici argumentando que, enquanto o primeiro começou a questionar as desigualdades entre o Norte o e Sul globais, diminuindo a importância do conflito Leste e Oeste imposto pela Guerra Fria, o segundo, objeto desta tese, não tinha a pretensão de alterar o sistema internacional, mas apenas a posição do Brasil dentro deste quadro (PINHEIRO, 2004). Essa busca da diplomacia brasileira por maior influência e poder no sistema internacional durante o governo Médici era baseada no argumento de que o país, em meio ao Milagre Econômico, deveria ser considerado como uma “potência intermediária” (CERVO, 2011). Nos dois governos, porém, haveria uma tentativa de garantir certos espaços de autonomia, mesmo que com larga dependência dos Estados Unidos (PINHEIRO, 2000). De qualquer maneira, se historicamente a relação com os Estados Unidos sempre foi considerada um elemento central na análise da política externa brasileira, tal elemento tinha ainda mais importância no contexto da Guerra Fria. Do lado norte-americano, independentemente do presidente da vez na Casa Branca, fosse ele republicano ou democrata, o regime militar brasileiro sempre era apontado como um país central na relação com a América Latina. Um dos principais formuladores da política externa do democrata Johnson, Thomas Mann argumentava que “o Brasil é a pedra angular de nossos interesses na América do Sul” (TAFFET, 2007, tradução nossa)7. Posteriormente, uma frase famosa do presidente Nixon, do Partido Republicano, na ocasião da visita de Médici a Washington, em dezembro de 1971, causou desconforto em outros países da região: “nós sabemos que, para onde for o Brasil, irá o continente latino-americano” (SIMON, 2021). 6 Vale destacar que, em dissertação de mestrado, o autor desta tese questionou o argumento do alinhamento automático entre Castello Branco e Washington, apontando o AI-2 como um momento de inflexão do primeiro governo do regime militar tanto interna, como externamente, em busca de maior autonomia (SION, 2016). 7 No original: “Brazil is the keystone of our interests on the continent of South America” (TAFFET, 2007). 27 No entanto, a percepção do lado brasileiro nem sempre condizia com esse discurso, uma vez que os militares quase sempre se decepcionavam com o que obtinham da Casa Branca. No caso específico do governo Médici, isso também ocorreu, conforme indicou Carlos Fico, ao apontar as diferenças entre o discurso do governo norte- americano, em especial de Kissinger, e as suas ações práticas. Um dos pontos que gerava maior decepção entre os militares brasileiros era sobre o fornecimento de armas (FICO, 2008). Apesar dessa frustração e das tensões decorrentes do sequestro do embaixador norte-americano, a literatura aponta que os governos Médici e Nixon tinham boa relação, com o norte-americano considerando o regime militar como um exemplo a ser seguido na região (SOUTO, 2003). Fico acrescenta que “a maioria das disputas que aconteceram durante o governo Médici foram de natureza comercial ou diziam respeito a questões que não punham em risco a decisão estratégica de manter o Brasil como aliado contra problemas no continente” (FICO, 2008, p.241). Entre essas discordâncias estiveram as 200 milhas marítimas, a exportação de café e a não assinatura do TNP (Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares). O episódio mais abordado pela literatura para reforçar a boa relação bilateral é o encontro entre Nixon e Médici em Washington em dezembro de 1971, quando os presidentes criaram um canal especial para facilitar a comunicação entre eles para além do trabalho diplomático tradicional (SOUTO, 2003). Já em relação à América do Sul, a literatura identifica o período de Médici e Gibson Barboza como um momento em que o país buscou intensificar a sua relação com os países do continente (PINHEIRO, 2004). Em dissertação de mestrado, Gabriela Crema argumentou que o intercâmbio comercial do Brasil com os demais sul-americanos cresceu entre 1969 e 1974, o que, segundo ela, seria um sinal do pragmatismo do regime em se relacionar com qualquer governante, independente das questões políticas e ideológicas (CREMA, 2019). A hipótese de nossa tese de doutoramento, porém, discorda do argumento de Crema. Isso porque, para além das questões comerciais, o eventual apoio brasileiro a mudanças de regime em outros países sul-americanos evidenciaria o oposto, que a proximidade ideológica era um ponto central para o regime militar brasileiro em busca de garantir a sua segurança na primeira metade dos anos 1970. Em termos de infraestrutura continental, o maior feito do governo Médici na região foi a assinatura com o Paraguai do Tratado de Itaipu, em abril de 1973. O acordo permitia o aproveitamento dos recursos hídricos do Rio Paraná por meio da construção da Usina de Itaipu, que seria inaugurada em 1984 (SOUTO MAIOR, 1996, p. 346). 28 A negociação com o governo de Alfredo Stroessner, porém, desagradou à Argentina, que passou a dificultar os esforços brasileiros para integração regional durante o governo Médici. Com isso, uma ação constante da diplomacia de Gibson Barboza foi a de tentar destruir estereótipos presentes no continente que identificavam o Brasil como aspirante a novo ator hegemônico ou como executor de uma missão subimperial a serviço dos Estados Unidos (CERVO, 2011, p.449). Por fim, vale destacar uma tentativa de parte da literatura de desvincular o Itamaraty da responsabilidade sobre as violações de direitos humanos e da eventual participação do governo brasileiro nas mudanças de regime ocorridas na América do Sul. “A diplomacia ocupar-se-á com o terrorismo nos órgãos continentais até 1971, enquanto segmentos das Forças Armadas, por ação paralela, apoiavam golpes de Estado contra movimentos de esquerda em países vizinhos” (CERVO, 2011, p.446). Se a tentativa de isentar o Itamaraty das violações de direitos humanos dentro do Brasil está baseada no fato de que a função da instituição é a política externa, não se pode dizer a mesma coisa das mudanças de regime. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) e parte da literatura já detalharam, por exemplo, tratativas para a exportação de práticas repressivas com a participação de diplomatas a serviço do Itamaraty (BRASIL, 2014; CREMA, 2019). Além disso, nos próximos capítulos, por meio da análise de fontes primárias, pretende-se desconstruir ainda mais esse argumento de Cervo. Em suma, a principal contribuição desta tese neste tópico será preencher a lacuna existente na literatura sobre a política externa de Médici. Como o foco do trabalho será na América do Sul e na relação com Washington, abordaremos principalmente a influência brasileira na onda antidemocrática que ocorreu no continente neste período, tema do próximo item. 1.3.1 A onda antidemocrática na América do Sul de 1969 a 1974 O trabalho que mais se aproxima do objeto de pesquisa desta tese é o de Tanya Harmer. Apesar de se concentrar no caso do Chile (2011, 2013a) e da influência cubana (2013b, 2019) na América Latina, a autora também se preocupa com a participação do regime militar brasileiro. Em um de seus artigos, publicado em 2012, Harmer analisa especificamente o papel do governo Médici. O argumento principal é o de que, entre 1969 e 1974, o regime brasileiro participou dos golpes no Chile e na Bolívia e interferiu nas eleições uruguaias de 1971. A autora indica que os anos Médici foram um momento de 29 exceção na política externa brasileira, que tradicionalmente defende o princípio da não intervenção. Tal característica seria fruto de características pessoais do presidente Médici e seu grupo mais próximo, formado pela chamada linha dura das Forças Armadas brasileiras (HARMER, 2012). O sucesso brasileiro em ajudar outros líderes militares anticomunistas a chegarem ao poder na América do Sul durante o governo Médici criou outro ambiente geopolítico regional, diminuindo a percepção de ameaça ao regime, inclusive porque os asilados nacionais tinham menos opções para permanecer no continente. Com isso, as prioridades da política externa de seu sucessor, Ernesto Geisel, puderam ser alteradas, segundo a autora (HARMER, 2012). Harmer argumenta ainda que, desde abril de 1964, a ditadura brasileira passou a ser uma força de articulação fundamental na onda contrarrevolucionária transnacional, tanto como exemplo para os demais países, como sendo um apoiador direto para as mudanças de regime (HARMER, 2012). Anthony Pereira, por sua vez, reforça essa avaliação sobre a importância regional do regime brasileiro, caracterizando-o como um protótipo de novo tipo de autoritarismo na América Latina (PEREIRA, 2005). O caso do Chile de 1973 é o que mais chamou a atenção da literatura especializada até hoje, sendo que o trabalho de Harmer pode ser considerado um divisor de águas sobre a participação brasileira no processo (HARMER, 2012). Com base em fontes primárias chilenas e norte-americanas, a autora indica o estudo da documentação do Brasil e de outros países sul-americanos como lacuna a ser futuramente preenchida. Outro trabalho que indicou a ação brasileira foi o do então embaixador norte- americano em Santiago, Nathaniel Davis. Ao ser escrito por um ator que participou do processo, o livro de Davis buscou responsabilizar o Brasil para minimizar a ação dos EUA, mas sem apresentar evidências concretas de como Médici e seus aliados teriam feito isso (DAVIS, 1985). Depois de Harmer, outros autores também se debruçaram sobre o tema. Alessandra Castilho, por exemplo, argumenta que o regime militar brasileiro participou da articulação do golpe chileno com amplo arco de forças que ia da igreja ao setor militar (CASTILHO, 2015). Mila Burns também tem posição semelhante, dando alguns exemplos dos mecanismos usados pelo governo Médici, tais como o envio de armas, 30 medicamentos e pessoal para transferência de conhecimento para os militares chilenos antes do golpe contra Allende (BURNS, 2016). A autora também destacou o envolvimento do então embaixador brasileiro em Santiago, Antonio Câmara Canto, para organizar a oposição a Allende e criar um sistema de perseguição de exilados que serviria de inspiração posterior para a Operação Condor (BURNS, 2016). Mais recentemente, Roberto Simon publicou um livro resumindo mais de dez anos de investigações sobre o papel brasileiro no golpe do Chile. O autor argumenta que o regime militar esteve “envolvido ativamente para derrubar Allende e facilitar a ascensão de um governo à semelhança da ditadura brasileira” (SIMON, 2021, p.15). Simon afirma ainda que as ações brasileiras teriam ocorrido de forma autônoma, sem sinais de uma articulação com Washington (SIMON, 2021, p.22). As outras duas mudanças de regime mais citadas na literatura ocorreram em Uruguai e Bolívia. Elio Gaspari, por exemplo, mencionou a chegada ao poder de Hugo Banzer, na Bolívia, e Juan Maria Bordaberry no Uruguai. No caso de La Paz, o autor relatou uma tentativa de golpe em janeiro de 1971, quando o SNI teria colaborado para o envio de armas a opositores em Santa Cruz de la Sierra e, com o fracasso da iniciativa, 7 conspiradores se asilaram na embaixada brasileira e foram posteriormente enviados a São Paulo. Na ocasião, o governo boliviano chegou a denunciar a participação do general da reserva do Brasil Hugo Bethlem. Sobre o movimento que levou Banzer ao poder em agosto de 1971, Gaspari não dá nenhuma evidência sobre a participação brasileira, registrando apenas que Banzer se tornaria “o xodó da diplomacia militar brasileira” e que o governo Médici chegou a enviar um coronel em missão secreta à Bolívia para ajudar a melhorar a imagem do mandatário boliviano (GASPARI, 2003, p.347). Em relação ao Uruguai, Gaspari indicou que Ernesto Geisel, então presidente da Petrobras, chegou a preparar uma leva de combustível para enviar a Montevidéu, caso fosse necessário, quando os militares fecharam o Parlamento em junho de 1973. O autor também destacou a presença de veículos militares brasileiros nas ruas uruguaias neste mesmo momento histórico, que teriam sido parte de uma leva de 300 blindados enviados pela ditadura ao país vizinho (GASPARI, 2003, p.351). Outro autor brasileiro que estudou esses processos foi Luiz Alberto Moniz Bandeira. Sobre o golpe de agosto de 1971 na Bolívia, Bandeira listou as seguintes ações 31 como realizadas pelo regime militar então liderado por Médici: fornecimento de armas, apoio logístico para aviões militares, disponibilização de áreas no Mato Grosso para treinamento de opositores e até mesmo uma estratégia para a entrada de efetivos brasileiros na Bolívia para caso de conflito prolongado (BANDEIRA, 2010). Já em relação à eleição no Uruguai em novembro de 1971, Bandeira indica que “as tropas do III Exército, sediadas no Rio Grande do Sul, prepararam-se para o invadir, executando a Operação Trinta Horas [...], o que só não se concretizou porque o general Liber Seregni, candidato da Frente Ampla [...], perdeu as eleições para os conservadores” (BANDEIRA, 2010, p.413). Em obra escrita pouco tempo depois dos acontecimentos históricos, o jornalista Paulo Schilling, que teve de se asilar na Argentina e no Uruguai durante o regime militar, também apresentou detalhes do que seria a “Operação Trinta Horas”. Segundo ele, nenhuma alternativa parecia positiva ao Brasil nas eleições uruguaias de 1971: nem a vitória dos partidos tradicionais, o que representaria a continuação das atividades guerrilheiras no país, muito menos a vitória da Frente Ampla (SCHILLING, 1981, p.62). Em seu trabalho, Schilling sugeriu que, por esse motivo, a Operação Trinta Horas poderia ser implementada independente do resultado eleitoral, o que hoje sabemos que não ocorreu. Já sobre a Bolívia, Schilling indica que o golpe que levou Banzer ao poder “foi planejado e financiado pelo regime militar brasileiro” (SCHILLING, 1981, p.65) e cita diversas vezes a participação de Hugo Bethlem. O autor também fala em ações de propaganda, tráfico de armas e coloca a região de Santa Cruz de la Sierra como base territorial do golpe e da conspiração (SCHILLING, 1981, p.67). Em suma, ao longo dos próximos capítulos, analisaremos as fontes primárias recentemente disponibilizadas para pesquisa no Brasil com o objetivo de avaliar a participação do governo Médici nessas mudanças de regime ocorridas no continente. Dessa forma, conseguiremos dialogar com a literatura apresentada para concordar ou promover novas interpretações sobre o tema. Devido à quantidade de obras existentes sobre o golpe no Chile, este trabalho priorizará os processos políticos ocorridos na Bolívia, no Uruguai e na Argentina. No entanto, dada a importância da vitória de Allende para a política externa de Brasil e Estados Unidos para a América do Sul, esta tese também 32 abordará os acontecimentos em Santiago quando isso for necessário para o desenvolvimento de nossos argumentos. Com o objetivo de fortalecer a análise a ser realizada, vale nos debruçarmos no já citado trabalho de O’Rourke sobre as mudanças de regime patrocinadas por Washington durante a Guerra Fria. Com isso, podemos usar alguns conceitos desenvolvidos pela autora, adaptando-os para a realidade brasileira. 1.4 Referencial teórico Para discutirmos a influência do governo Médici nas mudanças de regime ocorridas na América do Sul entre 1969 e 1974, é fundamental apresentarmos alguns conceitos que embasarão o referencial teórico desta tese. Ao fazermos uso de tais conceitos, nosso objetivo é dar um sentido mais claro ao material empírico que será exposto, inserindo as interpretações desta tese em debates teóricos em voga nas áreas de ciência política e relações internacionais e fortalecendo os argumentos a serem desenvolvidos. O primeiro conceito a ser definido é o de regime. Usaremos neste trabalho a mesma definição presente nas obras de Lindsey O’Rourke: “'Regime' é definido como a liderança política de um estado ou seus processos políticos e arranjos institucionais” (O’ROURKE, 2018, tradução nossa)8. O conceito de mudança de regime estabelecido pela autora, desta maneira, seria: “uma operação para substituir a liderança política efetiva de outro estado, alterando significativamente a composição da elite governante desse estado, seu aparelho administrativo ou sua estrutura institucional” (O’ROURKE, 2019, tradução nossa)9. Ou seja, segundo o conceito de O’Rourke, a simples troca de um governante, com a consequente alteração de ao menos parte da elite governante ou da estrutura institucional, já seria suficiente para se considerar uma mudança de regime. Tal marco teórico difere de parte da literatura, que considera mudança de regime apenas quando há uma alteração no tipo de sistema político de determinado país (BADER; 8 No original: “’Regime’ is defined as a state’s political leadership or its political processes and institutional arrangements” (O’ ROURKE, 2018). 9 No original: “an operation to replace another state’s effective political leadership by significantly altering the composition of that state’s ruling elite, its administrative apparatus, or its institutional structure” (O’ ROURKE, 2019). 33 GRÄVINGHOLT; KÄSTNER, 2010; LEHOUCQ; PÉREZ-LIÑÁN, 2014; MILLER; JOSEPH; OHL, 2016). No nosso entendimento, o conceito de regime estabelecido por O’ Rourke é o que melhor se adequa a esta tese porque, desta maneira, podemos estudar todas as trocas de lideranças que ocorreram nos países da América do Sul. Neste caso, evitaríamos de entrar na discussão sobre o tipo de regime implementado depois da mudança de governante, o que poderá ser feito por futuros trabalhos sobre o tema10. O que será feito no último capítulo desta tese, porém, é avaliar a ação do governo Médici no período posterior à mudança de regime em cada país para determinar o papel da ditadura brasileira também na consolidação dos novos líderes no poder. Para além dos conceitos acima, o trabalho de O’Rourke também analisa uma série de aspectos das tentativas de mudanças de regime, tais como os mecanismos e as motivações dos países que interferem na política de outro. Antes de entrarmos nestas características, vale destacar que a autora separou o conceito em duas categorias: overt, quando um Estado tenta interferir em outro abertamente, e covert, em que a operação é realizada em segredo. Além da publicidade dada à operação, essas duas categorias apresentam outras diferenciações, como o custo e o risco envolvidos em cada uma delas, já que iniciativas para alterar o chefe de Estado de outro país representam uma transgressão ao princípio de não-intervenção, consagrado pelo direito internacional desde 1945 (POZNANSKY, 2019). As tentativas de mudança de regime em segredo costumam ser menos custosas, em termos financeiros e de reputação, mas também representam uma possibilidade menor de sucesso, ou seja, de conseguir trocar o líder de um outro estado (O’ ROURKE, 2019). Neste trabalho, nos concentraremos nas ações em segredo, uma vez que não há registro de o regime brasileiro ter interferido abertamente em outro país do continente entre 1969 e 1974. As motivações principais citadas pela autora são segurança nacional e aumento do poder relativo do país. Como o trabalho é focado nas ações de Washington, a própria autora admite que essa característica enviesa as motivações. Ou seja, em nosso estudo sobre a política externa de Médici, a análise das fontes primárias poderá contribuir para o apontamento de outras possíveis motivações para tentativas de mudança de regime. 10 Entre os trabalhos que analisam os tipos de regime e dialogam com a teoria deste trabalho está Von Soest e Grauvogel (2017). 34 Os mecanismos mais importantes de desestabilização de regime, por sua vez, são: a) Assistência financeira, logística e militar a dissidentes; b)Tentativa de incitar uma revolução popular; c) Assassinato de líderes internacionais; d) Patrocínio ao processo propriamente dito de queda do regime; e) fraude eleitoral11 (O’ROURKE, 2018). No decorrer desta tese, buscaremos apresentar quais desses mecanismos teriam sido usados pelo governo Médici para interferir na política interna de outros países sul-americanos, identificando-os em fontes primárias recentemente desclassificadas. Uma premissa central para que um governo influencie na política interna de outro, visando a derrubada do regime instituído, diz respeito à identificação de uma alternativa plausível de liderança no Estado-alvo que compartilhe das preferências do Estado- interventor (O’ROURKE, 2018, p.26-27). Ou seja, caso o governo Médici tivesse a intenção de trocar o regime de determinado país, o primeiro passo seria a busca por um líder que ele considerasse mais adequado aos seus objetivos. Para os objetivos desta tese, será fundamental a descoberta de documentos que apresentem tal movimento do regime brasileiro. A partir da identificação de uma liderança alternativa que atenda mais aos interesses do país interventor, o segundo passo seria a realização de uma estratégia conjunta entre esses dois atores. Conforme já foi dito acima, no caso dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, todas as tentativas de mudança de regime em segredo envolveram a participação de atores domésticos do Estado-alvo ou de outros países. Isso ocorre devido à necessidade dos líderes dos países interventores em ter um álibi caso a operação chegue a público, o que conceitualmente é chamado na literatura de ciência política de plausible deniability. Com isso, esses atores domésticos poderiam assumir a total responsabilidade pelas operações, diminuindo os eventuais custos públicos do país interventor (O’ROURKE, 2018). No caso do regime brasileiro, é natural supor que tal aliança com atores domésticos fosse implementada de maneira semelhante, devido à necessidade de plausible deniability, o que também será buscado nas fontes primárias estudadas por esta tese. Vale destacar que o conceito de plausible deniability não envolve somente a 11 Há autores que utilizam nomenclatura mais teóricas, reunindo várias ações possíveis em grupos de conceitos. De acordo com Weyland (2017), os quatro principais mecanismos de expansão autoritária seriam learning, competition, coercion e emulation. Kneuer e Demmenlhuber (2015), por sua vez, dividem os mecanismos que podem ser usados em promoção autoritária em control, active leverage e socialization. Já Downes e Lilley (2010) apresentam mais semelhanças com o referencial de O’Rourke, acrescentando as táticas de propaganda e desestabilização econômica, que a autora deixa de lado por considerar que são ações mais comuns entre Estados independente do objetivo de implementar uma mudança de regime. 35 participação no planejamento de uma operação em segredo, mas também em cada uma de suas etapas, como o fornecimento de armas e dinheiro (POZNANSKY, 2020). Pelo número de mudanças de regime ocorridas em curto período de tempo, o Brasil poderia ser considerado um centro de promoção autoritária (Authoritarian Gravity Centre, ou AGC, na sigla em inglês), caso fique provada a sua participação nestes processos políticos (KNEUER et al, 2018). De acordo com Kneuer, um país poderá ser considerado um AGC quando é um regime autocrático que tem a disposição e a capacidade para disseminar ideias, normas, valores e técnicas autocráticas e/ou que constituem um modelo para outros países na sua proximidade geopolítica. Tais AGCs estariam interessados em estabelecer um esquema de cooperação regional em sua estratégia de política externa, a fim de criar, primeiro, um ambiente de autocracias afins que garantam a estabilidade de seu próprio regime, e, em segundo lugar, uma identidade de regime regional para legitimar seu próprio regime, satisfazendo reivindicações de legitimidade doméstica, bem como aquelas em sua região (KNEUER et al, 2018, p.2). Ou seja, caso esta tese consiga provar a influência do governo Médici nas mudanças de regime na América do Sul, também precisaríamos apontar a motivação dessa estratégia, que poderia ser a criação de uma identidade comum entre líderes não democráticos. O conceito de AGC tem como ponto de partida a discussão sobre promoção autoritária, que tem sido aprofundada pela literatura de ciência política desde 2010. Inspirados na bibliografia sobre democratização, uma série de autores passou a analisar os aspectos relacionados a uma suposta expansão de regimes autoritários nos últimos anos, que poderia ser liderada por Rússia e China (AMBROSIO; TOLSTRUP, 2019). Um dos pontos centrais dessa literatura é a busca por ressaltar a importância dos fatores internacionais para analisarmos as mudanças de regime, uma vez que as trocas de governo por vias não democráticas costumam ser mais atribuídas a elementos de política interna (BRINKS; COPPEDGE, 2006; GLEDITSCH; WARD, 2006; BADER; GRÄVINGHOLT; KÄSTNER, 2010). O principal desafio desta literatura é buscar diferenciar os casos de promoção autoritária, quando há intencionalidade de um governo em reproduzir as suas características em outro país, dos demais, chamados pela literatura de difusão espúria ou difusão autoritária. Segundo Tansey, porém, para que uma ação seja considerada de 36 promoção autoritária, além da intencionalidade, ela deve ser parte de uma política externa coerente que tem como objetivo a exportação de um determinado tipo de regime autoritário (TANSEY, 2016). Ou seja, Tansey tem um conceito de promoção autoritária distinto dos demais autores. Ao final deste trabalho, discutiremos se as ações do governo Médici na América do Sul podem se enquadrar em ambas as definições. Já um caso de difusão espúria ocorre em uma situação em que as semelhanças observadas entre os atores “não estão conectadas de forma alguma, mas ocorreram independentemente umas das outras, seja por coincidência ou porque ambos os conjuntos de atores (adotantes anteriores e posteriores) buscaram soluções semelhantes para problemas semelhantes” (AMBROSIO; TOLSTRUP, 2019, tradução nossa)12. Ou seja, para que esse conceito se aplicasse ao tema desta tese, as mudanças de regime em cada país da América do Sul entre 1969 e 1974 teriam ocorrido de forma independente, sem relação direta ou qualquer influência entre os atores envolvidos. A difusão autoritária, por sua vez, seria “o processo pelo qual as instituições, as organizações, as políticas, as estratégias, os quadros retóricos, as normas, etc., que estabelecem, protegem ou fortalecem o regime autoritário, são reproduzidos de um sistema autoritário para outro” (AMBROSIO; TOLSTRUP, 2019, tradução nossa)13. Tal reprodução, porém, ocorre por meio de uma “interdependência descoordenada” (ELKINS; SIMMONS 2005), sendo que a ocorrência de um evento político em determinado local aumenta a possibilidade que ele também ocorra em outro país (MILLER; JOSEPH; OHL, 2016), independentemente da intenção do regime que é visto como “exemplo”. Ou seja, podemos resumir difusão autoritária como o processo em que atores de um país reproduzem determinada política, estratégia, discurso, organização ou instituição autoritária após esta ter sido observada em outra localidade. Dentro deste conceito, a agência de toda a implementação do processo está relacionada aos atores internos, sem participação de países terceiros. No decorrer deste trabalho, utilizaremos as recomendações metodológicas de Ambrosio e Tolstrup, publicadas em 2019, para garantir que cada caso tenha a 12 No original: “a situation in which the observed similarities between actors are not connected at all, but rather have occurred independently of each other, either through coincidence or because both sets of actors (earlier and later adopters) sought similar solutions to similar problems” (AMBROSIO; TOLSTRUP, 2019). 13 No original: “the process by which the institutions, organizations, policies, strategies, rhetorical frames, norms, etc., which establish, protect, or strengthen authoritarian rule, are reproduced from one authoritarian system to another” (AMBROSIO; TOLSTRUP, 2019). 37 categorização adequada entre as opções apresentadas. Além disso, seguindo a metodologia de Kneuer e Demmelhuber (2015), não nos restringiremos ao momento da mudança de regime. Ou seja, todos os casos analisados serão apresentados em três momentos: antes, durante e depois do processo de mudança de regime. Dessa maneira, poderemos ver também a colaboração da ditadura brasileira com a consolidação de novos governos, um ponto fundamental para este trabalho. Em suma, para que este trabalho discuta se o governo Médici poderia ser considerado um AGC, analisaremos as fontes primárias recentemente desclassificadas para avaliar se as mudanças de regime ocorridas na América do Sul entre 1969 e 1974 foram, ao menos em parte, consequência de uma política externa em que o Brasil deliberadamente buscou derrubar líderes que não estivessem alinhados a seus interesses para promover um tipo específico de regime ou ao menos parte de suas práticas. Ao longo do texto, repetiremos alguns dos conceitos expostos nesta seção para facilitar a sua aplicação à análise das fontes primárias. A partir da revisão da literatura realizada neste capítulo, esta tese de doutoramento pretenderá fazer as seguintes contribuições: a) nova interpretação da política externa do governo Médici (não só sobre América do Sul, mas também da relação com EUA); b) novo estudo de caso para agregar à literatura sobre a Guerra Fria que busca dar destaque para a agência dos atores sul-americanos; c) tentar ajudar no desenvolvimento da literatura sobre promoção autoritária; d) apresentar um novo caso para a teoria de mudanças de regime que não seja Washington, o que poderá ampliar a lista de motivações e mecanismos. Antes de entrarmos no próximo capítulo, porém, apresentaremos quais foram os arquivos visitados e as fontes primárias utilizadas para o desenvolvimento deste trabalho. 1.5 Tipologia das Fontes Nos quase cinco anos desde o início do processo desta tese do doutorado, realizamos extensa coleta de fontes primárias em arquivos do Brasil e dos Estados Unidos sobre o tema de pesquisa, tanto em visitas presenciais, como por meio dos sites de instituições que serão detalhados abaixo. Nesta seção, apresentaremos a documentação usada neste projeto, o que é fundamental em trabalhos qualitativos até para a possibilidade de futuros pesquisadores revisarem os mesmos documentos e avançarem na interpretação aqui desenvolvida. 38 Foram realizadas quatro viagens ao Arquivo Histórico do Itamaraty, em Brasília, entre julho de 2019 e janeiro de 2020. A coleção mais utilizada neste trabalho foi “Informações para o Senhor Presidente da República”, desclassificada em 2011, mas digitalizada pelo Itamaraty apenas em 2018. Criada durante o governo Costa e Silva para facilitar o contato entre o presidente e seu chanceler, a coleção reúne informações sobre os temas mais relevantes de política externa no governo Médici, tendo inclusive anotações à mão com observações do momento do despacho. Entre tais observações estão, por exemplo, a decisão do presidente sobre determinado assunto, a informação que Médici ficou com o original e pedidos de interação com outros órgãos do governo. Além disso, tais fontes muitas vezes representam um resumo de telegramas e memorandos, que costumavam ser anexados aos documentos desta coleção. Todos os documentos desta coleção produzidos durante o mandato de Médici foram analisados neste trabalho, com 69 deles citados nas referências14. Ainda que a maioria das fontes primárias desta série tenha sido produzida por Gibson Barboza, muitas vezes não há assinatura do chanceler e, em alguns casos, outros membros do Itamaraty também enviaram material ao presidente por meio deste canal. Por esse motivo e para agregar todos os documentos juntos na seção “Referências”, optamos por citar o material das “Informações para o Senhor Presidente da República” como BRASIL, ao lado do ano e de uma letra que significa a posição da respectiva fonte primária na lista de obras referenciadas ao final deste trabalho. Vale destacar que todos os documentos citados como BRASIL fazem parte desta coleção, com exceção do relatório da Comissão Nacional da Verdade, que é de fácil identificação por ser do ano de 2014. Do Arquivo Histórico do Itamaraty, também foram citadas nesta tese as seguintes coleções: a) CIEX (Centro de Informações do Exterior), coleção produzida durante quase todo o regime militar e que, no governo Médici, tinha como objetivo principal o envio de informações sobre asilados políticos em outros países da América do Sul e também sobre aliados dessas pessoas, mesmo se fossem de outra nacionalidade15; b) memorandos secretos, ultrassecretos, ostensivos e confidenciais, documentação que é separada cronologicamente por anos pelo Itamaraty; c) maços temáticos secretos, material organizado por tópicos; d) ofícios entre órgãos internos do governo militar brasileiro, que ajudam no estudo do processo de tomada de decisão em política externa. 14 No anexo A, é possível ver a íntegra de um dos documentos desta coleção citados neste trabalho. 15 A coleção do CIEX ficou disponível ao público em 2012. Antes disso, porém, o pesquisador Pio Penna Filho já havia publicado artigo com base nestas fontes primárias (PENNA FILHO, 2009). 39 Outra instituição brasileira importante para este trabalho foi o Arquivo Nacional, por meio principalmente da plataforma online do Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN). Os documentos mais relevantes consultados por esse sistema foram os produzidos pelo SNI e pelo Conselho de Segurança Nacional (CSN). No caso do CSN, as fontes primárias muitas vezes tinham anexos produzidos por outros órgãos, como o Estado-Maior das Forças Armadas e adidos militares locados nos países estudados nesta tese. Conforme exposto pela CNV, grande parte dos documentos de origem militar produzidos entre 1964 e 1985 ainda está fora do alcance de pesquisadores. Por esse motivo, os anexos do CSN têm relevância ainda maior e mostram avenidas de pesquisa que serão abordadas neste trabalho. Em uma viagem ao Rio de Janeiro em setembro de 2019, foram analisados documentos do CPDOC-FGV e do acervo pessoal de Médici, no IHGB (Instituto Histórico Geográfico Brasileiro). No CPDOC-FGV, a principal coleção analisada foi a de Antonio Azeredo da Silveira. Chanceler do governo Geisel, entre 1974 e 1979, Azeredo da Silveira foi embaixador na Argentina durante o período esmiuçado nesta tese. Seus relatos da conjuntura política argentina e da percepção dos tomadores de decisão em Buenos Aires sobre processos ocorridos em outros países sul-americanos também acrescentaram informações importantes para os argumentos construídos neste trabalho. No caso do acervo Médici, o IHGB não permite que o pesquisador tire fotos no local. Devido à pandemia de Covid-19, o serviço de envio das cópias sofreu interrupções e a consulta presencial ainda não foi retomada até janeiro de 2023. Ainda assim, com as anotações feitas durante a única visita ao arquivo, é possível concluir que se trata de um conteúdo muito rico. Um exemplo disso é a série de dossiês do SNI sobre política externa, abordando a relação com a Argentina, o movimento de opositores ao regime pela América Latina, a relação com os EUA de Nixon e temas ligados a direitos humanos. A coleção também é valiosa por conter notas de ministros e assessores especiais ao presidente, bem como manuscritos do próprio Médici, como ele fez após uma conversa com Banzer. No que se refere a fontes primárias brasileiras, também estudamos em profundidade o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Considerado o primeiro grande esforço do Estado brasileiro para compreender as violações de direitos humanos durante o período militar, o trabalho da CNV teve o mérito de compilar e jogar luz a uma série de documentos históricos, abrindo inúmeras avenidas de pesquisa. No entanto, por se concentrar nas violações de direitos humanos e, concomitantemente, buscar abranger uma grande quantidade de temas, o relatório final não detalhou 40 devidamente a política externa do regime. Uma lacuna do trabalho da CNV, já citada nesta introdução, foi a dificuldade em encontrar fontes primárias militares, principalmente as que estão sob custódia das Forças Armadas, tal como o material produzido pelos adidos militares brasileiros da época. Outro braço importante da pesquisa diz respeito às fontes norte-americanas. Desde março de 2018, reunimos documentos online das seguintes instituições: Central Intelligence Agency (CIA), The Digital National Security Archive (DNSA), The Foreign Relations of the United States (FRUS), National Archives (NARA) e National Security Archive (NSA). Por serem fontes primárias disponíveis online e no idioma inglês, esse material já tem sido citado pela literatura. Ainda assim, são documentos que foram fundamentais em nosso trabalho, uma vez que, analisados junto com as fontes brasileiras, permitiram avanços nas interpretações existentes sobre o período. Em relação ao NARA, há duas bases de fontes primárias: uma online e outra compartilhada pelo pesquisador Felipe Amorim, que viajou a Washington a serviço da Escola de Relações Internacionais da FGV (FGV RI) em janeiro de 2020. Ainda que não tenhamos conseguido consultar a totalidade da documentação de 1969 a 1974 sobre os países estudados, tais fontes também foram valiosas para este trabalho. Além disso, realizei três viagens de trabalho a arquivos norte-americanos: em outubro de 2019, de abril a junho de 2022 e em novembro de 2022. As viagens de 2022 estavam agendadas para os meses de março a maio de 2020, mas tiveram que ser adiadas devido à pandemia do Covid-19. O arquivo norte-americano com mais fontes citadas foi a biblioteca presidencial de Richard Nixon, na Califórnia, visitada pelo autor desta tese em outubro de 2019 e junho de 2022. Os documentos deste arquivo nos permitem analisar melhor tanto a relação entre Brasília e Washington, com destaque para o encontro entre os presidentes em dezembro de 1971, quanto a ação brasileira nos outros países sul-americanos. Isso porque, nas fontes norte-americanas, é possível acompanhar o diálogo interno em meio ao processo decisório, com atores importantes da burocracia citando a percepção brasileira de cada caso. O projeto desta tese de doutoramento também obteve três bolsas para pesquisa em arquivos norte-americanos: no Rockefeller Archive Center, na Lyndon Johnson Foundation e na Gerald Ford Presidential Foundation. Os dois arquivos presidenciais foram visitados em maio de 2022, enquanto a viagem ao Rockefeller Archive Center foi realizada em novembro de 2022. No caso do arquivo Johnson, a documentação é 41 fundamental para indicarmos não só a conjuntura internacional no início dos governos Nixon e Médici, mas também a percepção da Casa Branca sobre os países sul-americanos naquele momento. O arquivo do presidente Ford, por ser mais recente, tem mais fontes primárias ainda classificadas em parte ou em sua totalidade. No entanto, os documentos desta biblioteca presidencial nos ajudaram com análises sobre a política externa de Nixon e com processos que continuaram em andamento depois do mandato de Médici, mas que jogam luz sobre a política externa brasileira, como o apoio às sanções contra Cuba. Já as fontes primárias do arquivo da família Rockefeller são fundamentais tanto sobre a elaboração do relatório Rockefeller, quanto no período posterior, quando assessores do líder republicano continuavam mantendo contatos com a cúpula do regime brasileiro. Todos os documentos citados também foram organizados em planilhas, produzidas por arquivo. Dessa forma, ficou mais fácil identificar documentos que apareceram em mais de uma caixa ou arquivo pesquisado. No decorrer desta tese, apontaremos em notas de rodapé quando uma fonte primária tiver sido encontrada em outro local além do citado nas referências, com o objetivo de facilitar o acesso ao material. As planilhas também poderão ser compartilhadas com outros pesquisadores para democratizar o acesso às fontes primárias e facilitar qualquer tipo de releitura com base nas fontes estudadas. Por fim, vale ressaltar que os documentos foram citados de modo a seguir as regras da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). No entanto, cada fonte primária tem as suas particularidades, sendo que nem todas apresentam a totalidade das informações requeridas pela entidade. Dessa forma, o que fizemos neste trabalho foi garantir que qualquer leitor tenha a possibilidade de encontrar todos os documentos por meio da citação das caixas e das pastas consultadas em cada arquivo. A estrutura desta tese de doutoramento é composta por quatro capítulos, apresentados em ordem cronológica, além desta introdução e das considerações finais. No próximo capítulo, detalharemos as primeiras iniciativas do governo Nixon para a América Latina em 1969, quando o Brasil ainda era presidido por Costa e Silva. A principal delas foi a Missão Rockefeller, quando o governador republicano fez quatro viagens pelos países do continente. Tal passagem é relevante não apenas por buscar preencher uma lacuna da literatura, mas também pela importância da influência de Washington na América do Sul, que era ainda maior no contexto da Guerra Fria, 42 conforme indicado nesta introdução. Após abordar a posse de Médici, o capítulo é encerrado com uma análise das mudanças de regime ocorridas na Argentina, em junho de 1970 e março de 1971, bem como das medidas implementadas pelos militares argentinos. Em seguida, apresentamos os processos políticos que levaram ao poder Juan Torres, na Bolívia, e Salvador Allende, no Chile. A presença desses líderes, tidos como esquerdistas pelo regime brasileiro e pela Casa Branca, na Presidência de dois países sul- americanos aumentou a percepção de ameaça para os governos Nixon e Médici. No caso brasileiro, tal risco era agravado devido aos relatos de colaboração entre representantes de Torres e Allende com brasileiros asilados. No penúltimo capítulo desta tese, detalharemos os casos de mudanças de regime na Bolívia e no Uruguai. Em La Paz, Torres foi alvo de tentativas fracassadas de golpe de Estado no primeiro semestre de 1971, tendo inclusive acusado atores brasileiros e norte-americanos de participarem da conspiração. Em agosto do mesmo ano, Hugo Banzer liderou com sucesso um movimento de deposição do presidente boliviano. Já em Montevidéu, o presidente Pacheco Areco conseguiu eleger o seu sucessor, Juan María Bordaberry, em uma controversa eleição em novembro de 1971. Conforme indicamos na revisão bibliográfica desta introdução, há suspeita de envolvimento brasileiro nos dois casos, que serão analisados aqui com base nas fontes primárias. Por fim, no último capítulo, discutiremos quatro tópicos principais: a viagem de Médici a Washington em dezembro de 1971, a consolidação do governo Banzer na Bolívia, a ascensão dos militares na política uruguaia até o fechamento do Congresso em junho de 1973 e a volta do peronismo na Argentina. A importância deste capítulo se deve à análise do comportamento do governo brasileiro em momentos posteriores à mudança de regime para avaliarmos a ação do regime em cada país. Isso porque a promoção ou a difusão de práticas autoritárias não se restringem ao processo de golpe de Estado. 43 2 DA POSSE DE NIXON À DIFUSÃO DO MODELO BRASILEIRO NA ARGENTINA Richard Nixon assumiu a Casa Branca em janeiro de 1969 em meio a um clima tenso nas relações bilaterais com o Brasil. Pouco mais de um mês antes da posse do novo presidente norte-americano, o regime brasileiro, então comandado por Arthur da Costa e Silva, implementou o AI-5, que Washington considerou uma medida mais dura do que a média latino-americana (RUSK, 1968). A resposta do governo Johnson durante os seus últimos dias no poder foi protocolar: o democrata decidiu suspender as negociações para a venda de aviões militares ao Brasil, dando continuidade apenas aos acordos que já estavam assinados, segundo informava por telegrama a embaixada brasileira em Washington (ALMEIDA, 1969a)16. A maneira como o governo Nixon lidaria com o crescente autoritarismo no Brasil era relevante por dois motivos. Em primeiro lugar, pela importância da relação bilateral entre uma das duas potências da Guerra Fria e o maior país da América do Sul. Além disso, a resposta de Nixon poderia moldar a sua política para os anos que viriam pela frente, uma vez que estava lidando com temas sensíveis, como a violação de direitos humanos e o enfraquecimento de um país democrático até cerca de cinco anos antes (UNITED STATES, 1969c). Os demais países da região estavam atentos quanto ao caminho que o governo republicano seguiria e qualquer ação teria consequências para além do Brasil. Este capítulo é composto por outras quatro partes. A primeira delas retrata a chegada de Nixon à Casa Branca, a preparação da Missão Rockefeller e a visita de Nelson Rockefeller ao Brasil. Na sequência, apresenta-se uma análise detalhada do Relatório Rockefeller e das discussões internas do governo Nixon até o lançamento da nova política para a América Latina, no final de outubro de 1969. A terceira seção retrata a posse de Emílio Garrastazu Médici após a doença de Costa e Silva. Na última parte deste capítulo, argumentamos que o regime militar que governou a Argentina de 1966 a 1973 adaptou alguns elementos da ditadura brasileira, que teria funcionado como um modelo para os argentinos, representando, dessa maneira, um exemplo do que a teoria classifica como um processo de difusão autoritária. 16 A mesma informação também consta em NETTO, 1969. 44 2.1 Os primeiros meses da relação de Nixon com a América Latina e a visita de Rockefeller ao Brasil de Costa e Silva No período entre a vitória de Nixon e sua posse, iniciou-se uma corrida para influenciar o novo governo em benefício do regime militar. Ainda em dezembro de 1968, um dos principais defensores dos militares na máquina administrativa norte-americana e aliado de primeira hora no golpe de Estado de 1964, Vernon Walters enviava um memorando a Nixon. A tentativa de Walters era convencer Nixon com um argumento pesado: “If Brazil were to be lost it would not be another Cuba. It would be another China” (WALTERS, 1968). Ainda que Nixon e seus auxiliares mais próximos já tivessem sinalizado simpatia com o governo militar durante a campanha eleitoral, a posição de Walters era importante pois representava um contraponto às reações negativas em Washington após o AI-5. O Departamento de Estado, por exemplo, endureceu sua atuação após o AI-5 (ALMEIDA, 1969b). O regime militar, por sua vez, ainda liderado por Costa e Silva, também se mobilizava em Washington. Em fevereiro de 1969, a ditadura indicou Mario Gibson Barboza como embaixador nos Estados Unidos, posto que estava vago desde junho de 1968. Ao apresentar suas credenciais a Nixon, em 20 de fevereiro, o diplomata entregou uma carta do presidente brasileiro para o colega americano. O documento fora preparado com cuidado, sendo que, em uma das minutas, Costa e Silva admitia que as medidas previstas no AI-5 “interrompem temporariamente o exercício de certos direitos constitucionais”, mas que seria fundamental que as nações amigas compreendessem que, tanto o seu governo, quanto a Revolução de 1964, tinham “propósitos democráticos” e só estavam tentando “evitar o agravamento de tensões internas”. A carta ponderava ainda que o regime militar brasileiro tinha consciência de sua responsabilidade de resolver problemas do hemisfério, mas que, assim como os outros países da região, temia a redução da ajuda externa de Washington. Ao citar um evento da campanha eleitoral de Nixon em Miami, Costa dizia concordar com a preocupação do novo presidente norte- americano com os níveis de endividamento dos países da América Latina e pedia ações que facilitassem a exportação de produtos da região para as nações desenvolvidas (COSTA E SILVA, 1969)17. 17 Uma versão anterior do documento também pode ser encontrada na coleção “Informações para o Senhor Presidente da República” (BRASIL, 1969a). 45 A preocupação de Costa e Silva com uma eventual redução da assistência financeira de Washington à América Latina e com a necessidade de expandir os mercados para os produtos da região tinha motivação histórica: segundo análise produzida pelo Itamaraty, o Partido Republicano defendia a redução das despesas governamentais, entre elas os créditos para o desenvolvimento econômico de outros países, e o estabelecimento de medidas protecionistas que impulsionassem as exportações norte-americanas (BRASIL, 1969m). Costa e Silva não era o único líder da região incomodado com tal fato. O primeiro mensageiro latino-americano foi o então secretário-geral da OEA, Galo Plaza. Já na primeira semana de governo Nixon, Plaza foi até a Casa Branca para se reunir com o presidente e partiu dele a ideia de criar a missão Rockefeller. O anúncio ocorreria cerca de um mês depois, em 17 de fevereiro, quando Nixon fez um discurso sobre o tema, deixando claro que as viagens não seriam cerimoniais, mas sim de trabalho (NIXON, 1969b)18. A decisão de Nixon de enviar Rockefeller à América Latina gerou expectativa na região. Após a primeir