Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 73 O valor mágico do sangue no capítulo 35 do livro I do Opus Agriculturae, de Paládio Luis Augusto Schmidt Totti1 Submetido em Setembro/2012 Aceito em Janeiro/2013 RESUMO: O sangue é um dos mais importantes e poderosos elementos no campo da simbologia mágico-religiosa. Sendo uma substância essencial para a sobrevivência animal, é natural que através dos tempos lhe tenham sido atribuídos valores simbólicos - positivos e negativos - relevantes. Ele pode dar vida, proteção e prosperidade na mesma medida em que pode causar calamidades, destruição e mesmo a morte. No tratado agronômico Opus agriculturae, de autoria de Paládio (séc. V d.C.), mais especificamente no capítulo 35 do Livro I, em que o autor apresenta receitas para a proteção da propriedade rural contra pragas e fenômenos climáticos, são mencionados alguns procedimentos nos quais o sangue é elemento fundamental para o êxito das práticas. Neste artigo procuraremos identificar a existência ou não do poder mágico do sangue em cada uma dessas práticas, seus valores simbólicos específicos, especialmente quando relacionados à menstruação e a outros elementos femininos com algum valor mágico-religioso e a amplitude dessas simbologias no contexto de outras práticas e situações relacionados não apenas à magia agrária, como também à religião e a práticas rituais de outras comunidades, seja na antiguidade ou não. Palavras-chave: agricultura - Roma antiga – magia – sangue - Paládio ABSTRACT: Blood is one of the most important and powerful elements in magical and religious symbology. As it is an essential substance for animal survival, it does not sound strange that through the ages blood has been given many significant symbolic values (both positive and negative). It can provide life, protection and prosperity in the same proportion that it can cause calamities, destruction and even death. In Opus agriculturae, a farming treatise written by Palladius (V AD), more specifically in Book I, Chapter 35, the author presents prescriptions to protect farms against scourges and climatic phenomena. He mentions some procedures in which blood is a fundamental 1 Mestrado e doutorado em Letras Clássicas (Latim) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Professor Assistente Doutor nos Cursos de Licenciatura em Letras e Bacharelado em Letras com Habilitação de Tradutor do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista (IBILCE-UNESP), campus de São José do Rio Preto. E-mail: schmidt@ibilce.unesp.br. Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 74 component in the success of the prescriptions. The aim of the present article is to identify any magic power associated with these practices, their specific symbolic value, especially when related to menstrual blood and to other feminine elements with some magical or religious value. An evaluation is also made of the extent of these symbologies in the context of other practices and situations linked not only to agricultural magic, but to religion and to the ritual practices of other communities, whether in ancient times or not. Keywords: agriculture - ancient Rome – magic – blood - Palladius I)TRODUÇÃO Dentre as diversas substâncias com potencial eficácia mágica mencionadas por Paládio ao longo do capítulo 35 do livro I de seu tratado agronômico Opus agriculturae (séc. V d.C.) como ingredientes de suas receitas para a proteção do jardim e do campo, o sangue deve ser destacado como uma das que apresentam valor simbólico dos mais complexos. Líquido orgânico vital não apenas para o homem, como também para muitas outras espécies animais, o sangue é responsável pela fixação e transporte do oxigênio e de nutrientes através do sistema vascular até os tecidos do corpo. É meio de remoção dos dejetos provenientes da excreção celular, além de funcionar como regulador térmico, uma vez que é condutor do excedente de calor produzido nos órgãos mais profundos e ativos até a superfície do corpo, para aí ser liberado. Também viabiliza as reações imunológicas, necessárias à defesa do organismo contra agentes patogênicos. Por fim, abriga todas as espécies de biomoléculas, entre elas os hormônios, controladores do ritmo das atividades dos órgãos e dos tecidos. Sendo, pois, o suporte de inúmeros processos bioquímicos e fisiológicos, constitui um componente biológico de elevadíssima complexidade. Para a maioria dos animais, incluindo o homem, o sangue é de uma importância tão primária quanto o comer, o beber e o respirar. De sua qualidade depende diretamente a saúde humana ou animal. A má condição desse líquido orgânico resulta em prejuízo ao funcionamento do organismo e, consequentemente, torna frágil, vulnerável e problemática a saúde do indivíduo ou do Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 75 animal. A qualidade de vida é prejudicada e, em casos de maior gravidade, a própria existência é posta em risco. Se um sangue puro é garantia de saúde e um sangue impuro indica ou acarreta doenças, sua perda não interrompida ou sua escassez no organismo é morte certa e inevitável. É por toda essa multiplicidade de funções, por sua influência abrangente e determinante no funcionamento do organismo humano e animal que não há nenhuma sorte de exagero em afirmar que sangue é sinônimo de vida. Essa constatação torna-se facilmente evidente, por exemplo, se procedermos a um levantamento do significado dos vocábulos de várias línguas empregados para designá- lo referencialmente. Em latim, o vocábulo sanguis, que denomina mais especificamente o sangue que circula no organismo, apresenta os significados figurados de “força, vigor, força vital, vida”. Em grego, o vocábulo haîmas pode designar conotativamente “força, coragem, alma”. Também em algumas línguas indo-europeias modernas “vida” constitui um dos sentidos figurativos para as palavras que designam concretamente o sangue, como é o caso do português (sangue), do italiano (sangue), do francês (sang), do inglês (blood) e do alemão (bluot). Não é fora de propósito deduzir que essa consciência, essa compreensão do poder vital do sangue o ser humano formou desde tempos distantes da existência da humanidade e, estabelecida na mente do homem, ela nunca se apagou, onde e quando quer que o homo sapiens tenha vivido. Seguramente continuará arraigada na mente do homem das sociedades e civilizações vindouras. Obviamente, o homem do passado, quer o da pré-história, quer o que viveu há poucos séculos atrás, dispunha, para explicar a constituição do sangue e suas propriedades, de um conjunto de informações, de conhecimento e de tecnologia nitidamente bem mais limitados quando comparados ao que se coloca à disposição do homem da atualidade, beneficiado pelo avanço tecnológico espantosamente rápido e progressivamente mais veloz propiciado pela ciência moderna. E se assim como o homem do passado, o homem que ainda hoje vive em comunidades isoladas do dito mundo civilizado desconhece as descobertas e inovações trazidas pela ciência, onde a ausência do conhecimento e da explicação científica deixariam um vácuo criam-se espontaneamente outros meios de busca de uma compreensão ou de compreensões, simbólicas e imaginárias que sejam, para alcançar explicação a respeito das propriedades do sangue, do seu mecanismo de atuação no organismo animal e Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 76 principalmente humano e de sua poderosa influência na saúde e na vida do homem assim como da comunidade em que ele vive. Daí decorre que o sangue, mesmo quando desconsiderado o conhecimento trazido pela experiência e descoberta científicas, se configura como uma das substâncias que possui significado dos mais especiais no cotidiano do homem, tanto no pensamento mágico, como no religioso. Sempre envolto numa aura de mistérios decorrentes das manifestações aparentemente inexplicáveis a que está associado, os poderes místicos que lhe foram atribuídos intrigaram o homem desde tempos primitivos e propiciaram o aparecimento e a propagação de inúmeras crenças através dos tempos, em todas as partes por onde o homem passou ou onde ele se fixou. Jean-Paul Roux, na obra Le sang: mythes, symboles et réalités, mostra que, de modo semelhante ao que acontece em relação a toda substância que emana do corpo humano em especial e do corpo dos animais de um modo geral, o sangue, especificamente o derramado, atormenta e assusta (ROUX, 1988, p. 57). Primeiramente pelo fato de representar a perda de algo pertencente ao ser. Em segundo lugar, não apenas por não oferecer uma explicação imediata, mas também por indicar ou resultar em perturbações físicas ou mesmo psíquicas (ROUX, 1988, p. 57). As lágrimas, por exemplo, trazem consigo tristeza ou emoção; o esperma é acompanhado de prazer; o pûs, de dores ou infecções; o suor indica o efeito de um esforço físico, ou mesmo moral (conforme ocorre com uma pessoa que sua de medo) (ROUX, 1988, p. 57). O derramamento de sangue, todavia, é muito mais inquietante e perturbador que o de qualquer outro líquido produzido pelo organismo de uma pessoa. Quer se trate de um ferido que não pode ser medicado, ou de alguém com hemorragia intensa, ou de um tísico que expele coágulos, a perda de sangue, quando não é interrompida, leva inevitavelmente à morte. Roux sugere que as demais substâncias líquidas liberadas pelo corpo possam ser consideradas formas transformadas de sangue, como seria, por exemplo, o caso das lágrimas, que chegaram a ser denominadas “sangue da alma” por Santo Agostinho (ROUX, 1988, p. 57-8); também seriam metaforfoses do esperma ou ainda mais comumente do leite, vistos como uma espécie de sangue embranquecido. Nos dois exemplos, segundo Roux (1988, p.58), a associação é clara: o esperma sai do órgão sexual masculino assim como o sangue sai do órgão feminino, ao passo que o leite é a representação do sangue Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 77 menstrual que deixou de escorrer durante a gravidez e se acumulou nos seios da mulher grávida. Isso explicaria, aliás, conforme Roux, o duplo paralelismo estabelecido entre seio e útero por um lado e leite e sangue por outro lado, paralelismo esse possível de ser encontrado em vários textos da antiguidade e da Idade Média. O SA)GUE E SEU VALOR MÁGICO )O OPUS AGRICULTURAE Conforme veremos neste estudo, as três referências ao sangue feitas por Paládio no capítulo 35 dizem respeito precisamente ao sangue derramado, ao sangue fora do corpo, ao sangue empregado como substância mágica, como um dos diversos ingredientes que na arte da magia estão incluídos na composição de uma infinidade de receitas e prescrições e são motivadas por uma diversidade de crenças, embora em cada um desses procedimentos o sangue aparece associado a aspectos distintos da magia. A primeira recomendação para a utilização do sangue é apresentada logo no início do capítulo, em I,35,1, numa receita para combater o granizo, assim descrita por Paládio: “Contra o granizo prescrevem-se muitos procedimentos: cobre- se o moinho com um pano bem vermelho, em seguida erguem-se contra o céu, de maneira ameaçadora, machadinhas ensanguentadas; depois, rodeia-se toda a extensão da horta com uma briônia, ou prega-se uma coruja estirada com as asas abertas, ou untam-se com sebo de urso as ferramentas com as quais se deve trabalhar” (PALÁDIO, Opus Agriculturae, I,35,1: Contra grandinem multa dicuntur: panno ruseo mola cooperitur; item cruentae secures contra caelum minaciter leuantur; item omne horti spatium alba uite praecingitur, uel noctua pennis patentibus extensa suffigitur, uel ferramenta quibus operandum est seuo unguntur ursino). É importante observar que na receita descrita acima o sangue não é indicado em função dos poderes mágicos de purificação, mas devido a sua influência destruidora e aniquiladora. Para explicarmos a natureza dessa prescrição e da função desempenhada em seu conjunto pelo sangue, podemos pensar numa das leis da magia, mais Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 78 especificamente o princípio da similaridade 2, se levarmos em conta que as machadinhas ensanguentadas prefiguram ferimento e risco de morte (e, portanto, simbolicamente, extinção). Reproduz-se, portanto, aqui uma situação que se deseja ver realizada. Embora não esteja tão evidente a atuação da magia por contágio, poderíamos sugerir que o sangue, ao ser derramado, adquire a propriedade de eliminador da vida e pode transmiti-la ritualmente a um ser: nesse sentido teríamos, além da aplicação da lei da similaridade, a lei da contiguidade 3. Outro processo chama a atenção nessa prática e diz respeito ao que Martin (1976, p. 156) denomina ‘animismo’, ideia bastante comum no pensamento mágico e que, consiste na atribuição de qualidades de seres animados a seres inanimados. Com o gesto ameaçador de erguer a machadinha ensanguentada ao céu o executante do ato acredita provocar no granizo a sensação de medo. Evidentemente, o temor é suscitado não apenas pelo gesto hostil em si, mas também pelas ideias às quais estão vinculados o instrumento (machadinha) e a substância (sangue) empregados ritualmente nesse procedimento. A machadinha é um instrumento cortante, pode ferir, cortar, mutilar; embora seja uma ferramenta agrícola e tenha se consagrado com esse fim, pode ser usada como uma arma e fazer estragos semelhantes aos da espada de um soldado, por exemplo: machucar, ferir, matar. O sangue é o líquido que inevitavelmente escorre do corpo quando alguém é ferido, se corta, ou é mutilado. Associado quase sempre a uma situação de dor e sofrimento físicos por parte da vítima, envolve o risco de complicações da condição de saúde da pessoa, que potencialmente levam à debilitação e até mesmo ao óbito. A machadinha ensanguentada remete especialmente a essa circunstância: a hostilidade do gesto associada à ideia do embate, da agressão física levada a termo por meio da machadinha e o contato lesivo, talvez fatal, do objeto cortante com uma vítima indicado pelo sangue banhando a ferramenta. O granizo, assim se crê, dotado de sentimentos, é tomado por 2 De acordo com Mauss (2000, p. 81-2), o princípio da similaridade se baseia nas ideias de que o igual evoca o igual (similia similibus evocantur), o igual atua sobre o igual e especialmente o igual cura o igual (similia similibus curantur). No primeiro caso, a semelhança age como a contiguidade, pois a imagem está para a coisa, da mesma forma que a parte para o todo. Uma simples figura, mesmo sem contato ou comunicação direta, é representativa daquilo que ela evoca. 3 De acordo com Mauss (2000, p. 76-7) a lei da contiguidade parte do princípio de que existe identidade da parte para com o todo, ou seja, a parte vale pela coisa inteira, um todo pode ser reconstruído com o auxílio de uma de suas partes, nem mesmo a separação ou a distância entre o todo e suas partes interrompendo a continuidade do todo. A essência de algo encontra-se tanto em suas partes como na sua totalidade. Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 79 uma sensação de medo, pelo fato de se ver ameaçado de ser vitimado da mesma maneira pela hostilidade do executor do gesto e se afasta das proximidades da propriedade. Acrescente-se que o utensílio empregado para cobrir o moinho, ou seja o pano vermelho, remete justamente à cor do sangue e, somado a este, acaba intensificando a sensação de horror que acompanha todo derramamento de sangue e a sensação de medo despertada por acontecimentos desse tipo: o medo da fragilização, da morte, da destruição, da extinção e do aniquilamento. A segunda referência ao sangue no texto de Paládio aparece num trecho um pouco posterior (I,35,3), numa receita descrita pelo agrônomo com a finalidade de proteger as hortaliças dos ataques das lagartas: “Contra as lagartas das hortaliças, molham-se com seiva de alcachofra dos telhados ou com sangue de lagarta as sementes que tiverem de ser espalhadas” (PALÁDIO, Opus Agriculturae, I,35,3: Contra erucas, semina quae spargenda sunt semperuiui suco madefiant uel erucarum sanguine). Antes de procedermos à análise do aspecto propriamente mágico dessa prescrição, é conveniente fazer uma observação de natureza etimológica. O vocábulo empregado por Paládio neste caso particular para se referir ao sangue é sanguine (forma do ablativo singular de sanguis). Isso nos impõe um problema. Em latim há dois termos para a designação do sangue, cada um aplicado ao sangue numa circunstância específica. De acordo com Ernout e Meillet (1951, p. 272-3 e 1046) enquanto cruor apresenta o significado de “sangue derramado, sangue coagulado”, ou seja, nomeia o sangue já fora do corpo, sanguis significa particularmente o “sangue que circula no corpo”. Embora Ernout e Meillet não façam uma menção sequer a nenhuma espécie de evolução semântica que tenha levado a uma prevalência do emprego do termo sanguis para designar o sangue de uma forma geral em detrimento de cruor, é essa a única conclusão que nos possibilita o texto de Paládio. Também é a essa dedução que somos levados ao lembrar que nas línguas neolatinas a existência apenas dos vocábulos “sangue” em português, “sangre” em espanhol, “sangue” em italiano e “sang” em francês (vide supra) como designativos de sangue num sentido amplo sejam provas da queda de cruor em desuso num determinado momento da história da língua latina. É verdade que em I,35,1, ao se referir às machadinhas ensanguentadas o agrônomo emprega o adjetivo cruentae, que tem como raiz exatamente a palavra cruor, o que Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 80 pode dar a entender que a oposição “sangue na circulação”/”sangue derramado” é marcada lexicalmente ainda na época tardia. Trata-se no entanto, apenas de um derivado de cruor, sendo perfeitamente possível que mesmo com essa oposição desfeita, os derivados de ambos os vocábulos tenham subsistido na língua4. Talvez ainda pudéssemos imaginar um sangue, embora já derramado, ainda fresco, recém extraído, ou então extraído no momento da execução ritual e por isso designado pelo vocábulo sanguis. Ainda assim, estaríamos incorrendo em uma conjectura sem nenhum respaldo a não ser a própria imaginação. Não devemos nos esquecer de que, tratando-se de um procedimento de natureza mágica, certamente haveria uma indicação para que assim fosse feito, uma vez que a prática da magia, que tem na tradição um de seus aspectos mais relevantes, não admite esse tipo de omissão, que acarretaria na supressão de atos e gestos indispensáveis à eficácia mágica do ritual, por mais simples que ele aparente ser. A terceira referência ao emprego mágico do sangue aparece na mesma prescrição (I,35,3), como uma das alternativas de combate às lagartas das hortaliças, assim como a outras pragas. Nela se recorre ao poder do sangue menstrual e a mesma constitui uma das receitas mais curiosas de todas as listadas e descritas por Paládio e uma das que nos fornecem maior riqueza de elementos para análise: “Alguns fazem com que uma mulher menstruada, sem nenhum cinto, com os cabelos soltos, com os pés descalços, dê uma volta ao redor da horta, contra as lagartas e as outras pragas” (PALÁDIO, Opus Agriculturae, I,35,3: Aliqui mulierem menstruantem, nusquam cinctam, solutis capillis, nudis pedibus, contra erucas et cetera hortum faciunt circumire). 4 No português, por exemplo, enquanto a dupla denominação não existe (temos apenas o vocábulo sangue para designar esse líquido orgânico seja na circulação, seja fora do corpo), seus derivados sanguíneo, sanguinário, sangria, sangrento,sanguinolento convivem com derivados de cruor, tais como cruel, cru, cruento, crueza. O mesmo acontece em outras línguas neolatinas como o francês, o italiano e o espanhol. Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 81 Essa prescrição é inspirada nas Geopônicas 5 (XII,8,5), em cujo texto se encontra esta recomendação: Mas alguns, quando houver muitas lagartas, levam à horta uma mulher menstruada, descalça, com os cabelos soltos, trajando uma única vestimenta e nenhuma outra, sem cinto ou qualquer outra coisa; pois se ela der três voltas dessa forma ao redor da horta e sair pelo meio, as lagartas desaparecerão imediatamente.6 É possível encontrar semelhante referência também em outro tratado agronômico romano, o De re rustica, de autoria de Columela (séc. I d.C.), que por duas vezes descreve o poder do sangue menstrual na magia. Em XI,3,69, ele cita como fonte de sua prescrição o Demócrito das Geopônicas, segundo o qual “até esses bichos [as lagartas das plantas] podem ser mortos, se uma mulher, que estiver na menstruação, circular por trs vezes ao redor de toda a área, com os cabelos soltos e os pés descalços” (COLUMELLA, De Re Rustica, XI, 3, 69: has ipsas bestiolas enecari, si mulier, quae in menstruis est, solutis crinibus et nudo pede unamquamque aream ter circumeat) e acrescenta que “logo depois disso todos esses pequenos bichos tombam e assim morrem” (post hoc enim decidere omnes vermiculos et ita emori). Antes ainda, em X,358-62, ele menciona os poderes mágicos do sangue menstrual numa prescrição semelhante à do livro XI, porém com mais detalhes, ao recomendar que “uma mulher com os pés descalços que, sujeita pela primeira vez às leis regulares de uma jovem, deixa correr com pudor o sangue impuro, seja conduzida por três vezes ao redor dos canteiros do jardim, mas com os seios descobertos, e triste, com os cabelos soltos” (COLUMELLA, De Re Rustica, X,358-62: nudataque plantas femina, quae iustis tum demum operata iuvencae legibus obsceno manat pudibunda cruore, sed resoluta sinus, resoluto maesta capillo, ter circum areolas et saepem ducitur horti). 5 Trata-se de uma coletânea feita no século X d.C., na qual constam fragmentos de obras de quatro autores bizantinos do período da antiguidade tardia. Acredita-se que dois desses autores – Vindanios Anatolios (séc. IV d.C.) e Didymos de Alexandria (séc. IV ou V) – tenham influenciado Paládio. 6 “But some, when there are many caterpillars, introduce a female at certain periods into the garden, without her shoes, with disheveled hair, dressed in one garment only, and having no other, nor her girdle nor any thing else; for she going three times round the garden in this figure, and coming out through the middle, will immediately make the caterpillars vanish.” Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 82 Essa prescrição nos permite elaborar uma análise não apenas do poder mágico/religioso do sangue menstrual, como da própria condição da mulher na magia e de certa forma na religião (embora esta última não esteja nos objetivos de nosso trabalho). Podemos partir do princípio de que se o derramamento de sangue é o mais assustador de todos os efluxos líquidos emanados do corpo, a menstruação é, por sua vez, dentre todas as espécies de hemorragia, a de maior impacto sobre a mente humana. Ao mesmo tempo, um fenômeno sem explicação aparente e um evento que se manifesta em intervalos tão regulares que o faz se assemelhar a uma lei natural. Pela periodicidade com que se repete (aproximadamente 28 dias), não foi difícil relacioná-la, desde tempos primitivos da humanidade, ao ciclo das fases da lua. Essa correspondência entre o ciclo menstrual e o lunar e o fato de seus intervalos equivalerem à duração do mês explica que em diversas línguas, incluindo as indo- europeias, os termos referentes à menstruação, à lua e ao mês procedam de uma única raiz. Em latim, por exemplo, a palavra mensis (mês) remetia originariamente ao conceito de “mês lunar” e em seu significado, de acordo com Ernout e Meillet, “o nome do mês se confundia com o da lua”. Tendo tido a sua origem numa palavra indo- europeia que significara ao mesmo tempo “lua” e “mês”, ela sofreu um processo de especialização semântica, passando a designar especificamente “mês”. Nesse caso, o termo latino para designar o astro é luna, cuja raiz é leuk* (luz). Por outro lado, menses, forma do plural de mensis, significa igualmente “menstruação”, da mesma forma que alguns de seus derivados, como os adjetivos menstruus e menstrualis. Dentre as línguas indo-europeias modernas, destacamos o caso da língua inglesa, que apresenta termos cognatos para designar a lua e o mês: moon e month, respectivamente7. É consenso, pois, que a relação estabelecida entre o ciclo menstrual e o lunar, oriunda exatamente da constatação de que ambos os ciclos se completam em intervalos de tempo semelhantes, motivou o surgimento de uma série de crenças nas quais se associa a menstruação ao ciclo lunar. Se levarmos em consideração que a lua tem uma 7 No que diz respeito às línguas indo-europeias, Ernout e Meillet (1951, p. 707-8) e Simpson & Weiner (2000, vol. IX, p. 1042) indicam como provável raiz dessas palavras a forma me-*, por sinal a mesma do verbo latino metior (medir), que, segundo Benveniste (1995, vol II, p. 129), significa “medida”, ou mais especificamente “medida de mensuração”, em oposição à raiz med-*, que indica “medida de moderação”. A lua seria conceituada, sob esse ponto de vista, como o astro cuja função era servir de medida de tempo; o mês, por sua vez, seria a unidade de tempo com a duração de um ciclo lunar completo. Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 83 importância considerável na determinação de muitas prescrições mágicas, independente de época e lugar, teremos um caminho aberto para compreendermos, ao menos em parte, a intensa aura de misticismo e temor que envolve não apenas o fenômeno da menstruação, como a própria figura da mulher na magia8. De acordo com Roux (1988, p. 59), o terror causado no ser humano pelo sangue menstrual, seja por suas propriedades, seja pelos efeitos comumente relacionados a ele, não é circunstancial, não é exclusivo de determinados núcleos de comunidades nem está limitado quanto a local e tempo. Segundo o autor (ROUX, 1988, p. 59), é universal a noção de que “não há esfera da vida humana em que se observa maior uniformidade que no tratamento da mulher menstruada”9. Trata-se, portanto, de um comportamento arquetípico, geral, denunciado em toda parte, em todas as épocas, não faltando exemplos que sirvam de comprovação a esse fato, quer em estudos folclóricos, etnográficos ou históricos. Entre muitos povos a mulher menstruada está sujeita, nos períodos de indisposição, a uma série de proibições, quando não é absolutamente isolada da sociedade. Os poderes do sangue menstrual, impuro, podem ser altamente maléficos às pessoas ou a qualquer ser vivo que esteja, de uma forma ou de outra, ao alcance de suas influências. Montero (1998, p. 86), afirma que o efeito destrutivo do sangue expelido durante o fluxo menstrual é tal que uma mulher em regras pode chegar a eliminar tudo aquilo que vê ou toca em virtude do poder prodigioso atribuído ao fluxo. Mesmo o fogo e a água, considerados dois dos elementos mais puros na mentalidade mágico/religiosa em muitas sociedades, estão sujeitos à contaminação pela impureza do sangue proveniente da menstruação (MONTERO, 1998, p. 63). Em alguns lugares, acredita-se que também o contato indireto com esse sangue ou a mera visão dele teriam o poder de infectar. Daí a existência, identificada nos costumes de vários povos, de uma enorme quantidade de recomendações com o objetivo de evitá-lo, de 8 Mauss (2000, p. 29), ao mencionar a figura da mulher como algo propenso a possuir virtudes mágicas, explica que são principalmente os processos hormonais relacionados aos diversos períodos críticos pelos quais ela passa ao longo de sua existência o que leva a essa experiência emotiva reconhecida socialmente como algo especial. Segundo o antropólogo, o enlace matrimonial, o ciclo menstrual, o período da gestação e dos partos, a fase da vida posterior à menopausa são momentos em que os poderes mágicos das mulheres são mais intensos. 9 Roux (1988, p. 59) acrescenta que semelhante tratamento é dedicado à mulher parturiente, com o mesmo grau de uniformidade do conferido à mulher menstruada. Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 84 afastar a possibilidade de qualquer proximidade ou contato. Entre os bambara, situados na África ocidental, os maridos de mulheres menstruadas devem se abster de participar das cerimônias; se algum deles é sacerdote, deve abster-se de executar os ritos (ROUX, 1988, p. 63-4). O conjunto de prescrições negativas ou tabus que cercavam a mulher menstruada (e também a parturiente) envolve potencialmente as mais diversas atividades do cotidiano de uma mulher. A refeição, por ter o valor de um ato coletivo, poder vir, em algumas sociedades, a requerer precauções especiais já no seu preparo. Entre os dogon, também da África ocidental, a mulher em regras não deve preparar a refeição de sua família e em particular de seu marido. Por isso providenciam-se utensílios culinários reservados apenas para o uso das mulheres nessas condições, após o qual eles são destruídos. Orientações semelhantes aplicam-se à colheita de plantas. A mulher menstruada não pode colher as plantas que servirão para o consumo de outras pessoas. Entre os dene, povo indígena do Canadá, evita-se o contato da menstruante com objetos passíveis de serem tocados por um homem, ou mesmo a passagem desta pelo mesmo caminho que possa ser percorrido por uma pessoa do sexo masculino (ROUX, 1988, p. 66). Algumas proibições chegam a ser mais severas e vão além da ideia de evitar o contato físico. Os tsigana do sul da Alemanha acreditam que a simples alusão feita pela mulher à sua condição implica riscos de contaminação do próprio esposo. Neste caso, ou seja, quando se trata de uma menstruante casada, é o marido que deve se dar conta do estado da cônjuge e, assim, providenciar uma outra mulher para cuidar dos afazeres que sua esposa está impedida temporariamente de realizar, incluindo as tarefas culinárias (ROUX, 1988, p. 66-7). Sendo a visão do sangue vaginal igualmente um perigo temível, em algumas sociedades procura-se evitar também o contato visual. Entre os dogon, por exemplo, acredita-se que morrerá o homem que assistir a um parto, ou que dirigir o olhar às pernas abertas da mulher que acaba de dar à luz (ROUX, 1988, p. 65). Eles também acreditam que, no caso de ocorrer a exposição de todos os homens ao contato com o sangue menstrual, o mais vulnerável a seus efeitos prejudiciais será o esposo da mulher que tiver liberado esse sangue oriundo do fluxo menstrual (ROUX, 1988, p. 67). Não é difícil imaginar que, se as formas menos diretas de contato podem desencadear a contaminação de outras pessoas e determina, por isso, uma série de Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 85 procedimentos de isolamento da menstruante, a abstinência sexual de uma mulher em regras torna-se não apenas uma necessidade, mas um imperativo dos mais rígidos. Considerado ato dos mais impuros, sujeita os transgressores a punições ou mesmo a condenações legais. No livro do Levítico, por exemplo, em mais de uma passagem faz- se referência a essa proibição. Aqueles que desrespeitam essa imposição são duramente condenados: “não terás acesso à mulher que padece o seu mênstruo e não descobrirás nela as suas imundícias [...]. Todo homem que cometer alguma dessas abominações será banido do meio do seu povo” (Lev. 18: 19, 29). No mesmo livro, num trecho um pouco adiante, praticamente a mesma indicação se repete: “Se alguém tiver cópula com mulher a tempo que ela anda com seu mênstruo e ele descobrir a fealdade dela e ela se deixar ver nesse estado, serão ambos exterminados do meio de seu povo” (Lev. 20: 18). Em outro momento do Levítico a ordem é manter a mulher menstruada isolada por um determinado período em função de seu estado de impureza contagiosa: “a mulher que padece o seu fluxo de sangue menstrual estará separada sete dias. Todo o que a tocar estará imundo até a tarde: e todas as coisas sobre as quais ela tiver dormido, ou sobre as quais tiver se assentado durante os dias de sua separação serão polutas. [...] Se qualquer homem tiver cópula com ela durante seu mênstruo, será imundo sete dias [...]” (Lev. 14: 19-21, 24). Segundo o Levítico (12: 2-5), os mesmos cuidados devem ser dispensados à parturiente: Se uma mulher, tendo usado do matrimônio, parir macho, será imunda sete dias e estará separada da mesma sorte que nas suas purgações menstruais [...]. E ela ficara ainda trinta e três dias a purificar-se das consequências de seu parto. Não tocará coisa alguma santa, nem entrará no santuário, até se acabarem os dias da sua purificação. Se ela parir fêmea, será imunda duas semanas, como nas suas purgações menstruais; e ficará sessenta e seis dias a purificar-se das consequências do seu parto”. 10 Tão grande número de restrições naturalmente torna difícil encontrar uma outra maneira mais simples, prudente e segura de evitar a contaminação que não seja o isolamento completo e absoluto da mulher em seu período menstrual, assim como o da 10 Roux (1988, p. 77) observa que se o período de purificação de uma mulher que dá à luz uma menina é o dobro em relação ao da mulher que gera um menino; isso se explica pelo fato de a menina que acaba de nascer trazer consigo a virtualidade da impureza própria do sexo feminino. Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 86 parturiente. Um procedimento frequente em várias comunidades por todo o mundo é o enclausuramento dessas mulheres em locais destinados exclusivamente às “mulheres impuras”, ou seja, aquelas no ciclo menstrual ou em trabalho de parto. Esses lugares são identificados usualmente como “casas das menstruantes” e “casas de parto” (ROUX, 1988, p. 67 e 77). Roux cita ocorrências desse tipo entre os esquimós da ilha Rossel, na Nova Caledônia, entre os dogon, entre os judeus da Etiópia, no Japão e no Irã. Nesses lugares há o costume de isolar as menstruantes em espécies de cabanas destinadas especificamente a mulheres nessas condições. Roux também cita o hábito do confinamento de mulheres menstruadas no Camboja e entre os baruya, da Papua Nova Guiné. Embora Paládio não faça nenhuma espécie de comentário sobre as propriedades aterrorizantes do sangue menstrual, sabe-se que os romanos acreditavam em seu grande poder de contaminação e temiam muito os efeitos do contato com o mesmo. O naturalista Plínio (séc. I d.C.) dedica algumas linhas de sua obra História 1atural (VII, 64) a comentar sobre os efeitos devastadores do contato com o sangue menstrual: “[...] acescunt superventu musta, sterilescunt tactae fruges, moriuntur insita, fructus arborum, quibus insidere, decidunt, exuruntur hortorum germina, speculorum fulgor aspectu ipso hebetatur, acies ferri praestingitur, eboris nitor, alui apium moriuntur, aes etiam ac ferrum robigo protinus corripit odorque dirus aes et in rabiem aguntur gustato eo canes atque insanabili ueneno.” [...] o vinho novo azeda com o seu contato, os grãos atingidos tornam-se estéreis, os enxertos morrem, caem os frutos das árvores sob as quais ela [a menstruante] se abriga, os rebentos dos jardins queimam completamente, o brilho dos espelhos enfraquece com um simples olhar, a espada de ferro é destruída, o polimento do marfim, os cortiços de abelhas se extinguem, instantaneamente a ferrugem ataca também o bronze e o ferro, assim como seu odor contamina terrivelmente o bronze, e os cães, tendo provado dele [do sangue menstrual], ficam enraivecidos e sua mordida se impregna de um veneno mortífero. (PLÍNIO, História Natural, VII, 64) De acordo com Plínio, os efeitos do sangue menstrual alteram até mesmo as propriedades do betume. Essa substância, aderente a tudo com que entra em contato, não se fixa ao fio que tiver sido banhado com o sangue menstrual, classificado como veneno pelo naturalista: “além disso, também o betume, viscoso e de propriedade Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 87 pegajosa, que em determinada época do ano flutua num lago da Judeia chamado Asphaltites e não pode ser dissolvido, que adere a todo contato menos ao fio que esse veneno tiver banhado” (PLÍNIO, História Natural, VII, 65: quin et bituminum sequax alioqui ac lenta natura in lacu Iudaeae, qui uocatur Asphaltites, certo tempore anni supernatans non quit sibi auelli, ad ad omnem contactum adhaerens praeterquam filo, quod tale uirus infecerit). Até o aborto está incluído como uma das possíveis consequências do poder destruidor do sangue menstrual, bastando para isso que a mulher grávida fosse tocada pela menstruante ou mesmo que esta passasse por debaixo daquela. Também as éguas prenhes poderiam ser levadas ao aborto se fossem tocadas por uma mulher menstruada. O reconhecimento dessas inúmeras propriedades devastadoras que fazem do sangue menstrual uma substância das mais perigosas leva Plínio a afirmar: “mas não se reconhece com facilidade nada mais prodigioso que o fluxo menstrual das mulheres” (PLÍNIO, História Natural, VII, 64: sed nihil facile reperiatur mulierum profluuio magis monstrificum). Montero (1998, p. 84-5) chama a atenção para o fato de que Plínio, ao definir o fluxo menstrual (profluuium) como um prodígio (monstrificum), está equiparando a menstruação aos monstra, aos andróginos e aos abortos, todos estes fontes de impureza geradas pela mulher e, certamente por isso, considerados em Roma sinais de presságios funestos e muito temidos pelos que nisso acreditavam. Para se ter uma ideia mais nítida do poderoso valor mágico/religioso atribuído por Plínio à menstruação à luz dessa comparação, descreveremos sucintamente o que são esses três eventos. A categoria mais ampla e grave de prodígio, denominada monstrum ou miraculum, designava em geral uma severa deformação de nascença apresentada por um ser vivo. Fontes textuais latinas (apud MONTERO, 1998, p. 78), mencionam uma série de ocorrências de crianças nascidas com esse tipo de anormalidade: criança com cabeça de elefante; criança sem nariz nem olhos; criança com apenas uma das mãos; criança sem membros; criança com duas cabeças, ou com quatro mãos e quatro pés, ou sem mãos; criança com três pés e apenas uma mão; criança com três mãos e três pés; criança com duas cabeças, quatro pés e apenas uma mão; criança com três mãos e três pés; criança com duas cabeças, quatro pés, quatro mãos e dois genitais; menino sem o aparelho urinário. Entre Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 88 os romanos essas graves anomalias físicas despertavam horror e eram vistas como o mais grave dos prodígios (monstra). No âmbito da religião romana, significava a mais séria das advertências das forças divinas, pela qual elas manifestavam sua ira ou indisposição para com os homens (MONTERO, 1998, p. 76). Os andróginos, por sua vez, eram os prodígios relacionadas ao nascimento de crianças sem sexo definido. Embora se identificassem com os monstra, podendo até mesmo ser considerados como tais, pois também são considerados anomalias físicas, eram piores que eles. É certo que na Grécia, ao menos no período arcaico, a bissexualidade era vista de modo positivo, pois o ser duplo, unindo os poderes dos dois sexos em um único corpo, seria a expressão da maior aspiração de toda a espécie viva que anseia a perpetuação. Em Roma, no entanto, trata-se não apenas de um sinal da cólera divina, por meio da qual se castigava a comunidade com a infertilidade da terra e dos seres, como também era visto como o pior dos presságios possíveis (MONTERO, 1998, p. 80). O grande temor decorrente do perigo que essas más-formações prenunciavam para a comunidade justificava a necessidade de uma ação rápida e eficaz para sua pronta expiação (procuratio), que se dava por meio da autorização ou exigência de que as crianças portadoras dessas deformidades monstruosas fossem mortas (MONTERO, 1998, p.77- 8), principalmente quando seu nascimento coincidisse com períodos de crise política ou militar (MONTERO, 1998, p. 82). O aborto, por sua vez, quer fosse ele uma ocorrência isolada, quer fizesse parte de uma epidemia, era tratado pela religião romana como um castigo ou uma grave advertência divina motivada por alguma sorte de falha ritual ou religiosa (MONTERO, 1998, p. 83-4) e, portanto, interpretada como uma ruptura da pax deorum. Plinío nos dá um bom exemplo do temor causado entre os romanos pelo aborto, ao se referir, num trecho do livro VII da Historia 1atural, ao caso de Cornélia, mãe dos Gracos, que dos doze partos que teve, em apenas três gerou filhos saudáveis e que vieram a sobreviver. Nos outros nove as crianças foram abortadas ou morreram ao nascer: “Cornélia, mãe dos Gracos, serve de prova de que algumas meninas nascem com os genitais endurecidos como sinal de um presságio funesto” (PLÍNIO, História Natural: VII, 69: Quasdam concreto genitali gigni infausto omine Cornelia Gracchorum mater indicio est). Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 89 Se a menstruação é classificada por Plínio como um prodígio passível de despertar um sentimento de temor ou mesmo de horror semelhante ao provocado pelos monstra, pelos andróginos e pelos abortos e sua opinião é uma ressonância de crenças convencionadas pela mentalidade romana, é inegável que a importância significativa da mulher como geradora e transmissora de todos esses acontecimentos estabelece para eles um paradigma comum. No caso desses três fenômenos prodigiosos acima comentados, a mulher, geradora de vida, trazendo ao mundo crianças com anomalias, deformidades físicas ou com lesões incompatíveis com a vida, mostra-se biologicamente incapaz, momentânea ou permanentemente, de produzir frutos saudáveis, de gerar filhos sem deficiências ou deformações físicas. Tal como uma árvore pouco fecunda, doentia ou infrutífera, não dá frutos, ou os dá em quantidade inferior ao normal, ou simplesmente os gera defeituosos. Qualquer que seja o agente sobrenatural ou a advertência divina que de acordo com a crença coletiva esteja por trás desses eventos, é invariavelmente a mulher o eixo central da materialização desses processos e o instrumento por meio do qual eles se manifestam. É a mulher, no caso do ser humano, e a fêmea no caso dos demais animais, que se mostra com a fecundidade comprometida. Não é difícil compreender, sob este ponto de vista, por que a menstruação é classificada com algo monstrificum. Se, conforme explica Roux (1988, p. 74), a interrupção do ciclo menstrual é um sinal inequívoco do início da gestação, se a mulher que deixa de sangrar está grávida e traz uma vida nova em seu ventre, se o sangue que não escorre mais para fora de seu corpo serve para a formação do feto, a menstruação, portanto, é a comprovação do fracasso da fecundação: “Se ele [o sangue] escorre, é porque não cumpriu sua função, não foi capaz de se fixar para formar uma criança”.11 Roux cita alguns exemplos de povos que dispõem desse tipo de explicação para a menstruação e, embora esses exemplos sejam pinçados de estudos com comunidades não europeias, se enquadram, na sua essência, ao pensamento romano. Entre os dogon, por exemplo, a mulher menstruada pode ser considerada de uma grande impureza por ser a prova momentânea de uma fecundação mal sucedida. Para os maori, da Nova 11 “S’il s’écoule, c’est qu’il a manqué son rôle, qu’il n’a pas été capable de se fixer pour former um enfant.” (ROUX, 1988, p. 74). Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 90 Zelândia, o fluxo menstrual é um sinal de que deixou de ser concebido um ser humano que seria efetivamente gerado se esse fluxo não ocorresse. Entre muitos povos africanos a menstruação é interpretada como o derramamento necessário de um sangue vazio e tornado impuro por não ter contribuído para a formação da criança da qual toda mulher possui a semente. Os tonga, da África meridional, acreditam que a gravidez é consequência de uma concentração de sangue menstrual ardente e perigoso na matriz. Os baruya, por sua vez, dispõem de ritos destinados a “fechar” as mulheres, a reter em seu sexo o esperma masculino e o sangue que alimenta o embrião. Se, por um lado, a patente semelhança temporal do ciclo menstrual com o ciclo lunar confere um valor mágico/religioso especial, importante à menstruação, esta, por outro lado, concebida como resultado de uma tentativa infrutífera de fecundação, manifestação física da infertilidade, ainda que transitória, adquire uma conotação, por que não dizer, um tanto sinistra e aterradora. Não apenas é sinônimo de impureza como também constitui um prodígio, da mesma forma que os monstra, os andróginos e os abortos assustam e despertam temor, por traduzirem concretamente uma fertilidade deficiente ou mesmo a infertilidade absoluta e também carregarem a propriedade da impureza e serem manifestações prodigiosas.A mulher, por sua vez, geradora da vida, posta na condição de transmissora de todos esses eventos temíveis, passa a carregar também a qualidade de portadora e geratriz da não vida, da vida com deformidades ou da própria morte. Não por acaso a importância atribuída à mulher como engendradora desses fenômenos julgados prodigiosos e como responsável por muitas desgraças que se abatiam sobre Roma contribuiu, segundo Montero (1988, p. 80) para que elas fossem vistas não apenas como fontes de impurezas, mas elas próprias como seres impuros. Como pode ser constatado da análise exposta acima o poder formidável que se atribui ao sangue menstrual em inúmeras sociedades em várias épocas e lugares contribui muito alcançar uma boa compreensão do lugar ocupado pela mulher na magia. CO)CLUSÃO O sangue possui um valor simbólico dos mais intensos, dada sua importância para a vida dos animais, aí incluído o próprio ser humano. E a idéia de que o contato Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 91 transmite propriedades de uma matéria a outra faz com que o sangue freqüentemente esteja associado a esse princípio. Evita-se o contato, por exemplo, com o sangue menstrual, pois ele traz a carga da ausência da vida e, dessa forma, pode destruir o que quer que esteja ao alcance da influência negativa de seu contato ou da sua perigosa proximidade. Nesse caso, vincula-se ao elemento feminino, muito freqüente nos rituais que visam assegurar fertilidade, fecundidade e produtividade, por ser a fêmea a geradora de uma nova vida e constituir, por assim dizer, a metáfora da própria Terra, no seio da qual tudo nasce e tudo cresce. O sangue menstrual, por representar o insucesso na fecundação, traz a força destruidora que é direcionado magicamente contra as pragas das hortaliças. Percebe-se, assim, que o valor simbólico do elemento feminino na magia pode ser explicado em grande parte pelas mesmas representações abstratas que regem as simbologias do sangue. O sangue e, associado a esse elemento, a figura da mulher (ou o universo feminino num sentido mais amplo) tem representatividade universal em rituais mágicos dos mais rudimentares aos mais elaborados, conforme os exemplos fornecidos ao longo das análises, extraídos das mais variadas fontes, desde estudos sobre o folclore, superstições e simbolismo aos textos de escritores latinos. Pôde-se verificar que, de modo geral, o sangue possui, no âmbito das receitas prescritas por Paládio, os mesmos valores e a mesma simbologia com os quais aparece na religião romana tradicional e na religião de outros povos. Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013 ISSN 2238-8788 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT UFF-ESR 92 BIBLIOGRAFIA BENVENISTE, E. O vocabulário das instituições indo-européias. Campinas: Unicamp, 1995, 2 v. COLUMELLA. De l’agriculture. Traduction par J. C. Dumont. Paris : Les Belles Lettres, 1993. ERNOUT, A.; MEILLET, A. 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