Ana Paula dos Santos Ferreira Educação para a autonomia: Uma análise sociológica da EMEF Desembargador Amorim Lima Marília 2025 Câmpus de Marília Ana Paula dos Santos Ferreira Educação para a autonomia: Uma análise sociológica da EMEF Desembargador Amorim Lima Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília. Área de Concentração: Sociologia Orientador: Prof. Dr. José Geraldo Alberto Bertoncini Poker Marília 2025 F383e Ferreira, Ana Paula Dos Santos Educação para autonomia : Uma análise sociológica da EMEF Desembargador Amorim Lima / Ana Paula Dos Santos Ferreira. -- Marília, 2025 182 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: José Geraldo Alberto Bertoncini Poker 1. Autonomia moral. 2. EMEF Desembargador Amorim Lima. 3. Jean Piaget. 4. Escola convencional. 5. Escola de resistência. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). Ana Paula dos Santos Ferreira Educação para a autonomia: Uma analise sociológica da EMEF Desembargador Amorim Lima Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Área de concentração: Sociologia Linha de pesquisa: Pensamento Social, Educação e Políticas Públicas Banca Examinadora ________________________________________ Prof. Dr. José Geraldo Alberto Bertoncini Poker UNESP – Câmpus de Marília Orientador ________________________________________ Prof. Dr. Aluisio Almeida Schumacher UNESP – Câmpus de Marilia ________________________________________ Prof. Dr. Gabriel Cunha Salum FADAP – Tupã Marília, 25 de novembro de 2024. À criança que fui e a todas as crianças que cruzaram meu caminho ao longo da minha trajetória profissional. AGRADECIMENTOS À minha família, por me apoiarem em decisões profissionais e acadêmicas incertas, muitas vezes incompreensíveis para eles. Não teria dado vários dos passos que me levaram onde estou hoje se não soubesse que teria a quem recorrer caso tudo desse errado. Aos meus amigos de longa data Everton, Giovana e Sammy, por compartilharem suas vidas comigo. É um privilégio acompanhar e dividir evoluções, transformações, momentos bons e momentos não tão bons. Espero que o futuro nos reserve mais tempo de companheirismo. À minha terapeuta, Maria, por acompanhar o processo gradual de autoconfiança que a realização dessa etapa exigiu, entre muitas outras questões. Aos colegas de Pós-Graduação Cecílio e Daniel, por me fazerem sentir menos sozinha e menos perdida nessa experiência onde tudo foi novo e agridoce. Ao meu orientador pela paciência de me guiar por um caminho novo. Levarei para meus próximos anos acadêmicos a experiência adquirida nessa relação. À FFC, por me possibilitar experimentar uma nova área de pesquisa e por contribuir para meu objetivo de construir conhecimento de forma holística. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Me, and you God only knows it's not what we would choose to do (Pink Floyd, 1973). RESUMO Esta pesquisa avalia como uma escola pode promover a formação de alunos moralmente autônomos, utilizando como objeto de estudo a EMEF Desembargador Amorim Lima (SP) e a teoria do desenvolvimento moral de Jean Piaget como referencial. O estudo também caracteriza a escola convencional com base nos autores críticos Louis Althusser, Pierre Bourdieu e Jean- Claude Passeron, Paulo Freire, Henry Giroux e Mariano Fernandez Enguita. Além disso, apresenta 10 modelos educacionais alternativos ao redor do mundo, que se opõem ao ensino convencional. Esses exemplos abrangem propostas educacionais em movimentos sociais, inovações pedagógicas em escolas públicas e privadas e teorias de desescolarização. A metodologia adota uma análise documental focada no projeto político-pedagógico, no regimento interno e na Carta de Princípios da EMEF Desembargadorm Amorim Lima. A pesquisa identifica, nesses documentos, elementos que promovem a autonomia moral dos alunos, evidenciando práticas pedagógicas voltadas para a construção de sujeitos autônomos, capazes de tomar decisões éticas e conscientes de seu papel social. Palavras–chave: Autonomia moral; EMEF Desembargador Amorim Lima; Jean Piaget; Escola convencional; Escola de resistência. ABSTRACT This research evaluates how a school can promote the development of morally autonomous students, using EMEF Desembargador Amorim Lima (SP) as a case study and Jean Piaget’s theory of moral development as its theoretical framework. The study also characterizes the conventional school based on critical authors such as Louis Althusser, Pierre Bourdieu, Jean- Claude Passeron, Paulo Freire, Henry Giroux, and Mariano Fernandez Enguita. Additionally, it presents 10 alternative educational models from around the world that oppose conventional schooling. These examples include educational proposals from social movements, pedagogical innovations in public and private schools, and theories of deschooling. The methodology adopts a documentary analysis focused on the political-pedagogical project, internal regulations, and the charter of principles of EMEF Desembargador Amorim Lima. The research identifies, in these documents, elements that promote students' moral autonomy, highlighting pedagogical practices aimed at the development of autonomous individuals capable of making ethical decisions and aware of their social roles. Keywords: Moral autonomy; EMEF Desembargador Amorim Lima; Jean Piaget; Conventional school; Resistance school. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIE Aparelho Ideológico de Estado AMAN Agulhas Negras do Exército ANPEd Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação AP Ação Pedagógica APM Associação de Pais e Mestres AuE Autoridade Escolar AuP Autoridade Pedagógica BNCC Base Nacional Comum Curricular CELMRAZ Centro de Español y Lenguas Mayas Rebelde Autónomo Zapatista CEUs Centros Educacionais Unificados CIACs Centros Integrados de Apoio à Criança CIEPs Centros Integrados de Educação Pública CNE Conselho Nacional de Educação CNEEI Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena DCNs Diretrizes Curriculares Nacionais ECA Estatuto da Criança e do Adolescente EE Escola Estadual EMEI Escola Municipal de Educação Infantil EMEF Escola Municipal de Ensino Fundamental ENEM Exame Nacional do Ensino Médio ENERA Encontro Nacional de Educadores e Educadores da Reforma Agrária EPRAZ Escuelas Primarias Rebeldes Autónomas Zapatistas ESRAZ Escuelas Secundarias Rebeldes Autónomas Zapatistas ETEC Escola Técnica Estadual EUA Estados Unidos da América EZLN Ejército Zapatista de Liberación Nacional IDEB Índice de Desenvolvimento da Educação Básica INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira FEWB Federação das escolas Waldorf no Brasil FUNAI Fundação Nacional dos Povos Indígenas FUNDEP Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa da Região Celeiro LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MAREZ Municípios Autónomos Rebeldes Zapatistas MEC Ministério da Educação MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra NAFTA Tratado de Livre Comércio da América do Norte PEC Proposta de Emenda à Constituição Pecim Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares PIB Produto Interno Bruto PISA Programa Internacional de Avaliação do Estudante PNE Plano Nacional de Educação PNGATI Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial em Terras Indígenas PPP Projeto Político Pedagógico PRONERA Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária SAEB Sistema de Avaliação da Educação Básica SARESP Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo SE Sistema de Ensino SCMB Sistema Colégio Militar do Brasil SEP Secretaría de Educacíon Pública SERAZLN Sistema Educativo Autónomo Rebelde de Liberacíon Nacional SIL Summer Institute of Linguistics SPI Serviço de Proteção ao Índio TE Trabalho Escolar TP Trabalho Pedagógico TPE Todos Pela Educação UFES Universidade Federal do Espírito Santos UNEMAT Universidade Estadual do Mato Grosso UNI União das Nações Indígenas Unitierra Universidad de la Tierra USP Universidade de São Paulo SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 15 2. DO QUE É FEITA UMA ESCOLA CONVENCIONAL? ............................................ 32 2.1 Teoria Geral dos campos ............................................................................................ 37 2.1.1 Reprodução cultural ............................................................................................. 40 2.1.2 A Escola como um campo ................................................................................... 43 2.3 Reprodução social ...................................................................................................... 46 2.4 Construção da subjetividade do trabalhador assalariado .............................................. 49 2.5 Educação bancária ...................................................................................................... 55 2.6 Currículo hegemônico ................................................................................................ 57 2.7 Ausência de pensamento crítico .................................................................................. 60 2.8 Pedagogia do oprimido e pedagogia radical ................................................................ 64 2.9 Pontos de convergência e de divergência .................................................................... 68 3. DO QUE SÃO FEITAS AS ESCOLAS DE RESISTÊNCIA? ...................................... 69 3.1 Educação escolar indígena brasileira .......................................................................... 69 3.2 Educação no Movimento Zapatista ............................................................................. 76 3.3 Educação no Movimento Sem Terra (MST)................................................................ 81 3.4 Educação desinstitucionalizada................................................................................... 86 3.5 Homeschooling .......................................................................................................... 87 3.6 Escola Summerhill ...................................................................................................... 89 3.7 A educação infantil em Reggio Emilia ........................................................................ 91 3.8 A pedagogia Waldorf .................................................................................................. 93 3.9 Escola da Ponte e EMEF Desembargador Amorim Lima ............................................ 94 3.9.1 Tão distantes e tão próximas ................................................................................ 94 3.9.2 Nem sempre foi assim ......................................................................................... 96 3.9.3 Fazendo a ponte ................................................................................................... 97 3.10 Seremos resistência ................................................................................................ 100 4. A ESCOLA COMO ESPAÇO DE AUTONOMIA ..................................................... 104 4.1 Estágios do desenvolvimento cognitivo: sensório-motor, pré-operacional, operatório concreto e operatório formal ........................................................................................... 106 4.2 Estágios do desenvolvimento moral: anomia, heteronomia e autonomia ................... 112 4.3 Egocentrismo infantil ............................................................................................... 115 4.4 Julgamento moral ..................................................................................................... 117 4.5 Jogos e interações sociais ......................................................................................... 120 4.6 Análise documental .................................................................................................. 121 4.6.1 Participação e coletividade................................................................................. 122 4.6.2 Estruturas de cooperação e autonomia ............................................................... 123 4.6.3 Autonomia no processo de aprendizagem .......................................................... 125 4.6.4 Regulação dos conflitos ..................................................................................... 126 4.6.5 Valorização da experiência e reflexão moral ...................................................... 127 4.6.7 Autonomia no processo avaliativo ..................................................................... 131 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 133 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 139 ANEXO A ..................................................................................................................... 147 ANEXO B ..................................................................................................................... 152 ANEXO C ..................................................................................................................... 169 ANEXO D ..................................................................................................................... 173 15 1. INTRODUÇÃO A presente pesquisa se justifica pela relevância em aprofundar o estudo que correlaciona práticas educacionais atuais ao desenvolvimento da autonomia moral de crianças e adolescentes que perdure para além do período escolar. É indispensável para educadores, famílias e a sociedade na totalidade refletir sobre quais valores querem ver desenvolvidos naqueles que serão ativamente participantes da vida social futura, visando garantir uma convivência baseada na cooperação e em práticas que sustentem uma sociedade democrática. A escola, como a conhecemos hoje, mantém elementos estruturais que remontam à sua criação, embora tenha passado por transformações ao longo do tempo. História e função social da escola acompanham a construção histórica da família nuclear burguesa e a representação moderna da criança e da infância, ocorridas no século XVIII, como indica Philippe Ariès em História Social da Criança e da Família (1981). Vista sob um novo ponto de vista, a criança deixa de socializar entre adultos e passa a socializar com seus iguais. Essa socialização fica a cargo da escola, cujo objetivo é repassar conhecimentos científicos e morais. Nesse sentido, o projeto político de minimizar as diversidades existentes entre as classes sociais também fica sob responsabilidade da escola. Para isso, a instituição busca por metodologias que incluam as famílias, inclusive as proletárias, nessa nova ordem familiar e, portanto, social. Essas mudanças socioculturais que a burguesia incorpora à sociedade são secundárias à mudança que esta fez ao sistema econômico, estabelecendo o capitalismo industrial. Mariano Fernandez Enguita, em seu livro A Face Oculta da Escola (1989), vincula a história da escola burguesa, conhecida popularmente como tradicional, à história da industrialização do trabalho. Esta tem a função de educar os integrantes dessa nova sociedade para que seus impulsos naturais sejam suprimidos e aceitem as novas relações sociais de produção. A burguesia viu na escola a chance de garantir seu poder, minimizando o da igreja e conseguindo a aceitação da nova ordem econômica e social, utilizando para isso seu discurso de educação para todos. Entretanto, não queria e nem podia oferecer educação emancipatória para aqueles que continuariam ocupando os níveis mais baixos da hierarquia econômica e social, pois isso alimentaria ambições indesejáveis aos seus próprios interesses. A escola nos moldes convencionais, de acordo com Enguita, serve para garantir que a mão de obra necessária para o mercado de trabalho industrializado esteja tão submersa em sua em lógica e execução que a faça perfeitamente e sem questionar se sua força de trabalho poderia ou deveria ser utilizada de outra forma. 16 Dermeval Saviani, em Escola e Democracia (1983), analisa que, no momento em que a burguesia se consolida como classe economicamente dominante e se distancia da classe proletária, também se afasta de sua concepção revolucionária de que todos os homens são essencialmente livres e iguais. A escola perde como função a eliminação das desigualdades e passa a apresentar um comportamento reacionário, o que a impede de evoluir junto ao caminhar histórico. É nesse contexto que a escola passa a abrigar em seu interior classes sociais com aspirações distintas e seu projeto homogeneizador apresenta falhas. Deixando de ser uma unidade homogênea e comportando uma miscelânea de interesses e objetivos, se faz necessário pensar o que é hoje a escola, depois de tantas transições. Temos de um lado autores que defendem que a escola tem como única função a reprodução da sociedade capitalista, como Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (1992), Louis Althusser (1980) e Mariano Fernandez Enguita (1989) e temos de outro lado autores que acreditam no poder emancipatório e revolucionário da educação, mesmo dentro da escola, como Paulo Freire (1987, 1996) e Henry Giroux (1986). Não optaremos nessa pesquisa pela visão estruturalista que não dá a devida atenção à ação e pensamentos dos indivíduos que oferecem resistência ao serem oprimidos e também não ignoraremos os limites de atuação que uma escola tem se estabelecida em um sistema oficial de ensino de uma economia capitalista. Partimos do princípio de que, embora a escola tenha sido projetada como um excelente instrumento de reprodução social e econômica, ela não é formada por indivíduos passivos, que podem ser manejados conforme o projeto intelectual desejado sem imprimir suas subjetividades nas estruturas educacionais. Entendemos que as relações sociais estabelecidas dentro do ambiente escolar são complexas e apresentam diversas nuances e, exatamente por isso, podem ser um ambiente propício para a transformação social. Decidimos então observar o sujeito a partir de uma perspectiva biopsicossocial, que levará em consideração como o ambiente escolar pode estimular o desenvolvimento não apenas intelectual, mas também o social e como o sujeito é ativo em todo seu processo de amadurecimento, adotando Jean Piaget como referencial teórico. Dentro da ampla teoria do desenvolvimento cognitivo produzida por Piaget, encontramos a teoria do desenvolvimento moral, que vai nos nortear em nossa análise de dados. Ela propõe que as crianças passem por estágios diferentes e evolutivos de compreensão moral, nos quais suas concepções sobre regras, justiça, sanções e comportamento sofrem modificações. Tais estágios são denominados de anomia moral, quando a criança ignora a existência de regras, heteronomia moral, quando ela apresenta submissão sem reflexão a regras e figuras de 17 autoridade, e autonomia moral, quando reflete sobre as regras e consegue negociá-las visando relações cooperativas. O principal contexto favorecedor do desenvolvimento moral, conforme Piaget, são as interações sociais proporcionadas pelos jogos infantis. Participando de experiências colaborativas, as crianças são incentivadas a negociarem, reformulando e internalizando suas concepções acerca do que consideram justo. O processo de desenvolvimento moral é marcado por conflitos cognitivos que faz com que a criança reorganize suas estruturas mentais avançando seus entendimentos acerca da moralidade. A idade em que se verifica a tendência à autonomia moral está ligada à fase operatória concreta e operatória formal, ou seja, a partir dos 7 anos, englobando também o período da adolescência. No que nos interessa, também é a fase de relações sociais marcadas pelo ambiente escolar, o que nos leva a indagar sobre o potencial que uma escola possui de incentivar o desenvolvimento da moral autônoma de seus estudantes. Entendendo que a escola também tem potencial para engendrar relações democráticas e de cooperação, precisávamos escolher uma que pudesse servir de exemplo e consequentemente objeto de estudo para essa pesquisa. Dentre as propostas de escola que se propõe a funcionar por outra lógica que não somente a de reprodução das condições econômicas e sociais, as quais nos referiremos nessa pesquisa como escolas de resistência, procuramos por modelos nacionais e públicos, para contribuirmos com o debate acerca da construção de uma educação básica de qualidade. A escola escolhida foi a EMEF Desembargador Amorim Lima, localizada na capital do estado de São Paulo, no bairro Butantã, Zona Oeste. Essa região acomoda muitas instituições educacionais, como a Universidade de São Paulo (USP), o Instituto Butantã e outras escolas públicas e particulares, fator que favorece o surgimento de projetos educacionais experimentais. Também é marcada por uma diversidade socioeconômica, que se reflete no perfil dos estudantes da escola, tendo entre eles os oriundos da classe média alta e também de regiões periféricas, como a favela do Rio Pequeno e a da São Remo. Escolhidos o tema, o objeto de estudo e o referencial teórico, chegamos ao momento de formulação da nossa pergunta. Inicialmente a formulamos como “Pode uma escola atuar para promover a autonomia moral de seus estudantes, contribuindo para uma sociedade democrática e cooperativa? Porém, pensando no construtivismo que propõe Piaget, não nos pareceu sensato colocar a escola como sujeito em nossa pergunta, o que nos levou a formular uma nova pergunta que nos guiou em nossa pesquisa: "Como os estudantes da EMEF Desembargador Amorim 18 Lima podem construir sua autonomia moral a partir das interações e experiências propostas pela escola?" Nossa hipótese é a de que uma escola que estimula situações de interações sociais entre crianças nas quais haja espaço para diferentes opiniões, negociações e acordos mútuos definidos em uma relação horizontal, contribui para o desenvolvimento de uma moral autônoma. Alguns exemplos dessas situações de interação social são os momentos de jogos, os de assembleias e de discussões de regras e acordos e também os de projetos em grupo, por promoverem uma socialização constante e desafiadora para os estudantes, que são provocados a renunciar a seu egocentrismo e sua moral heterônoma. Temos então como objetivo principal responder a nossa pergunta, optando pelo método de análise documental, utilizando o Projeto Político Pedagógico, a Carta de Princípios e o regimento interno da instituição, de modo a observar quais elementos, quando comparados com a teoria piagetiana, estimulam o desenvolvimento da moral autônoma. Como objetivos específicos, buscamos caracterizar as escolas convencionais e as escolas de resistência, destacando as principais diferenças entre elas e oferecendo diferentes perspectivas sobre como pode ocorrer o processo de ensino-aprendizagem em diferentes contextos. Não podemos, porém, analisar a função social de uma escola, sem entender o contexto mais amplo em que ela se insere. A educação é resultado de uma série de fatores e dinâmicas que moldam a sociedade. César Nunes (2021) indica que a educação é delineada por marcas políticas, expressões culturais e formações econômicas estruturais. Nos é necessário então, antes de apresentar nossa pesquisa, realizar um breve panorama do sistema educacional brasileiro e a dinâmica de dependência que ele apresenta com o sistema econômico capitalista. Se retornarmos ao momento em que o nosso país é colonizado, para dar início ao nosso resgate historio, temos que considerar que iniciamos nossa economia de forma periférica no contexto do mercantilismo vigente na Europa. Nesse momento já temos uma primeira configuração de educação, a jesuíta, com a meta de evangelizar principalmente os ameríndios, os tornando mais dóceis, fáceis de lidar. É uma educação baseada na logística de exploração mercantilista e na doutrinação salvacionista, tendo início em 1549. Nunes (2021) destaca que enquanto na Europa do século XVI o Humanismo ditava o pensamento, com seus ideais de beleza e exaltação do homem, o que ocorria no Brasil colônia era justamente a negação desses ideais, com Portugal atuando como um Estado onipotente e onipresente. Portugal era, nesse momento histórico, um dos Estados europeus mais atrasados no sentido de produção artesanal, não apresentando nenhuma evolução significativa entre os 19 séculos XIII e XVI. É transplantada para a colônia essa mentalidade retrógrada, que estabelece um modelo arcaico de exploração econômica. O projeto colonizador brasileiro foi violento, predatório, marcado pela barbárie e pela degradação, efetuado sobre a destruição da natureza, pela dominação e repressão das populações ameríndias, acrescido da perversa escravização dos africanos (1534), regido pelo modelo econômico conhecido como plantation (Nunes, 2021, p.7). Temos então, durante o Brasil colônia (1530-1822), a experiência de um Estado autoritário atrelado a uma economia predatória. Culturalmente, temos a criação de uma política educacional que separava uma educação para os indígenas, que não passava de catequização, e outra educação para as elites filhos dos colonos, o que de acordo com Nunes (2021) é a marca estruturante da educação no Brasil: a ideia de educação como privilégio. A educação jesuíta seguia a lógica de uma educação civilizatória e eurocêntrica, encontrada ainda hoje em narrativas pedagógicas e curriculares no país. Já no Brasil Império (1822-1889), há o rompimento com a metrópole, mas não com o sistema escravocrata, permanecendo a mesma ideia cultural do regime político anterior, educação só para os filhos das classes dominantes, as famílias latifundiárias. A estrutura educacional destinada a atender a população pobre era precária, sem investimentos e com o único objetivo ensinar um pouco de leitura e escrita, enquanto a elite iria adquirir seus diplomas, mais por posição social do que por motivação profissional, nas universidades europeias. No Brasil República (República Velha, 1889-1930) são observadas certas rupturas, como, por exemplo, a separação entre Igreja e Estado, a definição do voto (censitário) e o fim das escalas de nobreza. Teve como característica a forte presença das Forças Armadas na política, influenciando também o âmbito educacional, pois toda a sociedade demonstrava uma identificação com a organização militar. A educação deixa de adotar os ideais religiosos para adotar os militares, preparando não só os quadros dos exércitos, mas também os de médicos e engenheiros, mantendo a característica colonial de educação como privilégio. No início do século XX temos o surgimento de um novo sujeito social: a classe trabalhadora urbana. Ela passa a protagonizar movimentações políticas, econômicas, culturais e educacionais que ocorrem a partir de 1930. Com Getúlio Vargas o país começa sua industrialização e urbanização, superando as forças oligárquicas e coronelistas da primeira república. Essa realidade exigia uma nova política educacional. De acordo com Nunes (2021, p.20) há a ruptura da concepção de educação como privilégio para a concepção de educação 20 como direito de todos e dever do Estado, porém meramente jurídica e não efetivada na realidade material. A educação durante o Estado getulista procurava prover as necessidades do mercado de trabalho emergente, ou seja, a produção de mão-de-obra para o capitalismo incipiente do período. Nesse contexto temos a formulação do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova (1932) que defendia uma educação pública, laica, gratuita, universal, estatal e obrigatória, podendo ser considerado como o primeiro esforço de produção de uma consciência nacional da educação como direito. Mesmo com a mudança de ideia de educação como direito e não privilégio, percebemos que perpetuou-se a ideia de dois tipos de educação: uma de preparação para o mercado de trabalho, destinada às classes trabalhadoras, e outra para a formação das classes dominantes, as preparando para suas funções liberais. Temos, em 1961, a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), que reconhece juridicamente a educação como direito e dever do Estado. “Era a primeira manifestação de uma legislação moderna e burguesa sobre a Educação” (Nunes, 2021, p. 22). Essa lei foi anulada pela lei 5.692/71, que promove uma reforma tecnicista na educação básica no Brasil para atender aos anseios da ditadura militar. Tal reforma pretendia promover uma clivagem social, separando as escolas públicas das privadas, deixando as primeiras a cargo da formação dos trabalhadores e as segundas da formação para os melhores cargos no mercado de trabalho e para as universidades públicas. A partir de 1980 temos uma ampla mobilização por direitos perdidos durante a ditadura militar e também por novos, que incluam os grupos sociais historicamente marginalizados pela sociedade e pelo Estado. Em 1988, com a homologação da atual Constituição, a educação ganha destaque e passa a ser definida como “direito de todos e dever do Estado e da família” (Brasil, 1988, p.123). O período pós-ditadura é marcado pela reestruturação econômica e reorganização política. Nunes (2021, p.27) destaca dois projetos político-econômicos e seus consequentes modelos de políticas públicas educacionais. Temos de um lado o ajuste econômico neoliberal do governo de Fernando Henrique Cardoso, com uma política educacional de ajuste da educação nacional aos interesses mercadológicos, produtivistas e neoliberais mundiais1 e do 1Durante o governo FHC (1995-2003) ocorreu o enquadramento das políticas públicas educacionais no Consenso de Washington (1989) e nas diretrizes do Banco Mundial, além dessas serem influenciadas pelas reformas educacionais da socialdemocracia espanhola sob o governo do Felipe González (1982-1996). Assim, houve a criação do Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF, 1997), a produção dos Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Infantil (RCNEI, 1999) e dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs, 1998), a adoção de programas como Amigos da Escola e TV Futura, uma colaboração público-privada, o desmonte do ensino técnico público e privatização desse setor, a massificação do 21 outro um modelo político-econômico centrado na distribuição de renda dos governos Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, tendo como meta a democratização da educação a todas as faixas etárias da educação básica2. Temos, após o processo de impeachment3 da presidente Dilma Rousseff em 2016, sob a gestão de Michel Temer, um governo que intervém primeiramente na área social, na qual estão as políticas públicas educacionais. Com a aprovação da Emenda Constitucional PEC 95, os gastos públicos com os setores sociais foram congelados por 20 anos, o que impactou a meta número 20 no Plano Nacional de Educação: “ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto (PIB) do País no 5º (quinto) ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio” (Brasil, 2014). Mesmo tendo impacto direto sobre a meta 20, todas as outras metas do plano ficaram comprometidas pela redução dos recursos financeiros. O governo Temer também interferiu no Conselho Nacional de Educação (CNE) nomeando conselheiros com perfis conservadores e neoliberais, sem abrir espaço para consulta pública, como era de costume. Propõe a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que de acordo com Nunes (2021) é parcial e espúria, além de estar separada da reforma do Ensino Médio, realizada a partir da Lei 13.415/2017. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) também sofreu muitas influências durante o governo Temer. Teve mudanças frequentes em sua ensino superior privado com a flexibilização de sua legislação e uso de tecnologias de Educação a Distância (EaD), a ênfase nas narrativas sobre “competências e habilidades” com descritores meritocráticos, a adoção de parâmetros curriculares voltados para resultados e metas, a imposição de uma cultura de avaliação constante com comparações internacionais como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) e políticas de bonificação e uso de índices quantitativos como indicadores de sucesso escolar e rendimento individual. 2 A partir da Emenda Constitucional 59/2009 a obrigatoriedade escolar foi estendida dos 7 aos 14 anos para dos 4 aos 17 anos, pela Lei 11.738/2008 foi criado o Piso Nacional Salarial para os professores de educação básica, a Emenda Constitucional 53 e a Lei 11.494/2007 ampliaram o FUNDEF para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), pela Lei 11.738/2008 parágrafo 4º foi criada a hora-atividade para os professores, compreendendo 1/3 da jornada de trabalho fora da sala de aula, em 2013 foram criadas as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), houve a ampliação do ensino superior público, a Lei 12.513/2011 criou o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), a Lei 11.892/2008 criou a Rede Nacional de Institutos Federais de Educação e Tecnologia (IFTs), com a lei 13.005/2014 estipulou-se a aplicação de 10% do PIB para a educação, a Lei 12.315/2010 indicou destinar 75% dos recursos da exploração do Pré-sal para a educação e 25% para a saúde, com a Lei 10.639/2003 a história e cultura africana e afro-brasileiras são introduzidas no currículo escolar, a Medida Provisória 746/16 incluiu educação física, arte, sociologia e filosofia como disciplinas obrigatórias na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a Portaria Interministerial 17/2007 e o Decreto 7.083/2010 criam o Programa Mais Educação, a Lei 13.005/2014 criou o Plano Nacional de Educação (PNE), entre outras medidas. 3 Há também a leitura de que houve um golpe político, jurídico e midiático que tirou Dilma Rousseff do poder, mas não pretendemos nessa introdução realizar um debate teórico acerca da questão. Indicaremos, entretanto, algumas leituras sobre o tema, como o livro A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato (Jessé de Souza, 2017), O colapso da democracia no Brasil: Da constituição ao golpe de 2016 (Luis Felipe Miguel, 2019) e Resistência ao golpe de 2016 (Carol Proner, Gisele Cittadino, Marcio Tenenbaum, e Wilson Ramos Filho (Orgs), 2016). 22 liderança com nomes indicados diretamente pelo governo, teve que alterar a forma de conduzir e analisar os dados obtidos a partir do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), priorizando os indicadores quantitativos, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) passou a apresentar um caráter técnico e pragmático, mais alinhado à lógica da Reforma do Ensino Médio, que inseriu os itinerários formativos, e também houve a redução de recursos financeiros, o que fez com que o instituto diminuísse ou postergasse pesquisas e estudos de caráter estratégico. As escolas, que devem funcionar de acordo com esse contexto, acabam muitas vezes servindo como aparato de controle social, estando vinculadas a dinâmicas econômicas mais amplas que acabam por desvalorizar pedagogias que se pretendem emancipatórias e críticas. Ainda temos propostas educacionais que se apresentam como alternativas para uma educação “de qualidade” que não são inovadoras, pelo contrário, apresentam caráter conservador, reproduzindo dinâmicas autoritárias que limitam o desenvolvimento de uma moral autônoma. Uma dessas propostas educacionais é a militar, que como dito anteriormente, tem início na República Velha, com o primeiro Colégio Militar sendo criado no Rio de Janeiro em 1889. Além de fornecer ensino específico para a formação dos quadros militares, a educação militar também oferece o ensino fundamental e médio através do Sistema Colégio Militar do Brasil (SCMB), que hoje conta com 15 colégios espalhados por vários estados do território nacional. As práticas didático-pedagógicas dos colégios militares estão subordinadas às normas e prescrições do Sistema de Ensino do Exército, obedecendo à LDBEN e às DCNs. De acordo com Jefferson Gomes Nogueira (2014) a principal característica e diferencial metodológico dos Colégios é ter como pilar de sustentação a hierarquia e a disciplina, o que estaria relacionado aos resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) que o SCMB apresenta, com média maior que a nacional. Os Colégios também funcionam como escolas preparatórias para aqueles que pretendem ingressar nas academias militares, como a das Agulhas Negras do Exército (AMAN). Como indica Nogueira (2014), as escolas militares visam formar profissionais adequados a uma hierarquia social do trabalho, inculcando no estudante as relações de dependência, hierarquização e subordinação. Elas acabam por desenvolver um ethos militar4 a partir de suas práticas pedagógicas de tal forma que os sujeitos não percebam o quanto são 4 O autor aplica o conceito ethos, especificamente o ethos militar, para designar os aspectos psicológicos como coação física, com controle extremo da expressão corporal, dos gestos, fala, vestimenta e corte de cabelo impostos aos alunos dos Colégios Militares e também corporal, indicando uma forma de se mover pelo espaço social, a disciplina do corpo apreendida pelos aspectos psicológicos. 23 determinantes em seus comportamentos, discursos e visões de mundo. Como resultado, temos pessoas que defendem os valores do Exército Brasileiro como se fossem seus próprios. Tais valores se perpetuam tanto nos que vão permanecer na carreira militar como nos que irão para a esfera profissional civil. O sistema de Colégios Militares no Brasil é composto por Colégios Militares reprodutores da hierarquia militar, na doutrina, nos valores, da cultura e do ethos militar. Inconsciente ou não, o capital simbólico presente na estrutura pedagógica militar faz parte da rotina diária dos alunos e é assimilado e visto de forma natural, sendo que o controle dos corpos é o principal instrumento de incorporação dos valores por esses alunos, seja através da coação ou da própria assimilação por imitação. Esse processo é facilitado uma vez que os valores são trabalhados dentro dos períodos de socializações primária e secundária, quando o aluno está sendo formado psicológica e socialmente (Nogueira, 2014, p.140). Nogueira (2014) aponta alguns efeitos colaterais da aplicação dos preceitos militares na formação dos sujeitos, como “adultos menos participativos politicamente”, pois, o confronto de ideias não é admitido na hierarquia militar, não há um diálogo que deixe espaço para debate, fator essencial numa sociedade democrática. O autor também defende a perspectiva que não há falta de diálogo apenas dentro das instituições militares, mas também há falta de diálogo das instituições militares com a sociedade civil, indicando assim uma dissonância cognitiva, ou seja, o comportamento de evitar perspectivas que vão de encontro com as suas. Outra proposta educacional que se apresenta como alternativa é o movimento Escola Sem Partido, criado em 2004 e cuja premissa é defender que a educação seja “politicamente neutra” e que o que ocorre hoje nas escolas é uma “doutrinação ideológica”. Temos, desde 2014, a criação de projetos de leis5 que tentam incorporar os anseios do movimento à educação básica. De acordo com Fernando Nicollazi (2016) tal proposta traz impactos sociais negativos, como, por exemplo, restringir ou eliminar nas escolas temas como moralidade, sexualidade, religiosidade e política, que promovem debates muito importantes para a convivência democrática. Apresentar tais assuntos como “neutros” também seria ocultar todo o debate científico que fez com que esses temas caminhassem historicamente. Outro ponto importante é que os projetos de lei vinculados ao movimento Escola Sem Partido apoiam suas restrições com base em questões familiares. Um exemplo seria a exclusão 5 PL 124/2016, de autoria do vereador Valter Nagelstein (PMDB/RS), o PL 193/2016, de autoria do senador Magno Malta (PR/ES), PL 867/2015 protocolado pelo Deputado Federal Izalci (PSDB/DF), PL 190/2015, do suplente de deputado estadual Marcel van Hattem (PP/RS), PL 7.180/2014, de autoria do deputado Erivelto Santana (PEN/BA), PL 1.859/2015, também do Deputado Izalci (PSDB/DF), PL 1.411/2015, do Deputado Rogério Marinho (PSDB/RN). 24 do ensino do evolucionismo para crianças de famílias que defendem o criacionismo. De acordo com Nicolazzi (2016) o ambiente familiar, ou seja, privado, está sendo perigosamente projetado na dimensão social pública, minando as discussões sobre bem comum e justiça social. O pacote Escola sem Partido, portanto, subestima a inteligência das pessoas, cria um alarmismo falso e provoca um clima de medo e de criminalização das práticas educacionais. Mais do que isso, ao se valer do enganoso termo “sem partido”, ludibria as pessoas menos atentas, escondendo seu verdadeiro objetivo que é, no verbo utilizado por um dos seus defensores, “extirpar” a pluralidade de pensamento (Nicolazzi, 2016, p.84). Não é possível que haja diálogo e cooperação em uma dinâmica de exclusão de toda perspectiva diferente da sua. Propor que a ciência seja apresentada sob um único ponto de vista, aquele que coincide com sua própria concepção de mundo, apresenta uma tendência autoritária e até narcísica. Uma sociedade democrática é imprescindivelmente plural, e conciliar diferentes perspectivas requer um exercício constante de diálogo, concessões e acordos. Além disso, temos a atual reforma do Ensino Médio, implementada em 2017, que é a mais recente, embora não seja a primeira mudança nessa etapa educacional. Fernanda Helena Petrini (2012) indica que a história do Ensino Médio no país é marcada pela tensão entre desenvolver um ensino de caráter geral e acadêmico e um ensino profissionalizante, o que foi o pretendido pelas reformas6 que ocorreram anteriormente nessa etapa de ensino. A reforma do Ensino Médio, conduzida durante o governo de Michel Temer, foi marcada pela exclusão da sociedade no processo de formulação e apresentou características preocupantes, como a inclusão de professores com “notório saber”, permitindo a entrada de profissionais não licenciados no magistério, a redução da carga horária de disciplinas como filosofia e sociologia, fundamentais para a formação do pensamento crítico, a educação à distância sem a verificação das condições que os alunos possuem para aderir à modalidade, a possibilidade de parceria entre setor público e privado que aproxima a educação da ideia de mercadoria e também diminui a responsabilidade do Estado no setor, indo de encontro com o previsto na Constituição, e o ensino integral que impacta negativamente a rotina de alunos trabalhadores. Outro ponto que deve ser levado em consideração é a hierarquização das disciplinas e a idade precoce que os alunos devem escolher seus itinerários formativos. Em uma idade de formação e de escolhas para o futuro, o aluno deveria estar em contato com a maior diversidade 6Reforma João Luiz Alves, em 1925; a Reforma Francisca Campos, em 1932; a Reforma Gustavo Capanema, em 1942, com a LDB 4024/61; a LDB de 1971, O Parecer 45/72; o Parecer 76/75; a lei 7044/82 e, por fim, a LDB 9394/1996. 25 de áreas e não o contrário. Apresenta, portanto, um caráter fragmentário em contraposição à ideia de uma educação integral. Sérgio Feldmann de Quadros (2020), em sua dissertação, associa a reforma do Ensino Médio aos interesses do empresariado brasileiro. Analisando a influência desse grupo a partir de seus discursos nas audiências públicas acerca da Medida Provisória 747/20167 , percebe uma grande preocupação com os resultados que os estudantes dessa etapa apresentam no IDEB, no SAEB, e no PISA, exames que enfatizam conhecimentos em português e matemática. O empresariado vai partir de estudos da área de economia para justificar que seus interesses educacionais se atrelam ao crescimento econômico, como, por exemplo, estudos que relacionam a pontuação média no PISA com o crescimento do PIB em pontos percentuais. Ora, o tipo de formação que o empresariado defende para as escolas se condiciona não a qualquer educação, mas a uma formação específica, mensurável, que traga resultados em termos de produtividade, em que os “gastos” governamentais destinados à educação se transformem em investimentos lucrativos (Quadros, 2020, p.105). Essa noção de educação fundamentada em teorias econômicas é elaborada a partir da teoria de capital humano8, que entende que o crescimento do capitalismo não é explicado apenas pelo capital imobilizado e que o investimento em educação cumpre papel determinante na economia de um país. O estreitamento entre teorias econômicas e políticas impõe ao sistema educacional o papel prático de formação para o mercado de trabalho, e é nesse contexto que ganha destaque a pedagogia das competências. Definindo um currículo composto pelos itinerários formativos e pela BNCC, já inteiramente organizada na noção das competências, o novo Ensino Médio defende a formação humana marcada pela adequação à lógica do mercado. As competências desejadas pelo empresariado estão atreladas ao ler, escrever e resolver problemas matemáticos, mas também vemos a preocupação com os aspectos “socioemocionais” que seriam o “autocontrole, a estabilidade emocional, a abertura a novas experiências e a manutenção de relações sociais positivas” (TPE, 2018, p.38). 7 Institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e a Lei nº 11.494 de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, e dá outras providências. 8 Teoria desenvolvida por Theodore Schultz com o surgimento da disciplina Economia e Educação nos Estados Unidos em 1950. Ela entende que o trabalho humano, se qualificado pela educação, é um meio importante de ampliar a produtividade econômica e, portanto, as taxas de lucro do capital. 26 Para Quadros (2020) a formação baseada em competências do novo Ensino Médio está profundamente conectada com os novos discursos sobre empregabilidade e capital humano. Ela vai além da mera transmissão de conhecimentos práticos para a vida profissional e social, buscando moldar as subjetividades dos estudantes e futuros trabalhadores. A ênfase é em habilidades que respondem às demandas do mercado, produzindo um perfil de trabalhador adaptável e eficiente. Dessa forma, não se trata apenas de ensinar conteúdos, mas de formar sujeitos que atendam às exigências do capitalismo contemporâneo. Também achamos necessário apresentar a proliferação de escolas cívicos-militares que ocorreram no país a partir de 2019. Com o Decreto 10.004 foi instituído o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), que previa a implantação do modelo em 216 escolas públicas até o ano de 2023. O modelo era financiado pelo Governo Federal e pelas Forças Armadas e a escola que desejasse aderir ao programa deveria abrir consulta pública na comunidade escolar. A parte pedagógica das escolas que aderissem ao modelo continuaria sendo exercida pelo quadro do magistério, sem interferência dos militares, mas fora das salas de aula eles exerceriam a função de monitores, disciplinando o comportamento dos alunos. Pelo Decreto 11.611/23 o programa deixou de receber verba federal por não haver adesão ao modelo, implantado em apenas 0,14%9 das escolas brasileiras. As escolas que já aderiram ao modelo e que optarem por mantê-lo deverão fazer uso de recursos locais. Esse modelo educacional nos faz refletir sobre os efeitos das práticas disciplinadoras aplicadas nessas escolas: é possível desenvolver autonomia moral em um ambiente assim? Bianca de Morais Canestraro Grizotes e Loriane Trombini Frick (2021), analisando documentos reguladores desse modelo de ensino chegam à conclusão contrária. Observam que as relações de respeito são autoritárias e unilaterais, não há consciência sobre o respeito, ele é apenas imposto. Não há construção conjunta de regras, essas são pré- estabelecidas para todas as escolas a partir de um manual10 de 324 páginas. Defende valores como civismo, dedicação, excelência, honestidade e respeito, não dando destaque para valores como empatia, justiça, igualdade, solidariedade, e responsabilidade social. As sanções também são pré-estabelecidas e apresentam caráter expiatório, não proporcionando reflexão acerca do 9 Colégios militares, cívico-militares e da polícia: veja quantos são no país e entenda as diferenças entre eles. Matéria de Emily Santos, publicada no G1 em 22/07/2023. 10Manual das Escolas Cívico-Militares. S/d. Disponível em: <>. Acesso em: 19/09/2024. https://www.educacao.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2019/11/ECIM_Final.pdf https://www.educacao.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2019/11/ECIM_Final.pdf 27 erro. Diante do observado, é possível admitir que as práticas disciplinadoras das escolas cívico- militares contribuem para a permanência no estágio da moral heterônoma. A escola não é influenciada apenas pela realidade objetiva que a engendra. Também é possível observar que incorpora em seu espaço físico o projeto intelectual da instituição, modelando ambientes capazes de exprimir e produzir subjetividades consoantes com esse projeto. Um exemplo disso é a arquitetura escolar, capaz de comunicar seu objetivo educacional sem a necessidade do uso da linguagem verbal. Antonio Viñao Frago e Agustín Escolano (2001) trabalham exatamente a ideia de que há uma relação entre o currículo escolar, o espaço físico das instituições educacionais e a formação da subjetividade dos sujeitos que não pode ser ignorada se o objetivo dos pesquisadores na área de educação é compreender o espaço escolar de forma completa. Os autores indicam a necessidade de estar atento à micropolítica que ocorrem nesses ambientes, levando em consideração tanto os aspectos históricos, políticos e sociais como os culturais, onde estão os arquitetônicos. Para esses autores, o espaço escolar é modelado por embates profissionais, como o médico-higienista, o arquitetônico, o pedagógico e o político administrativo, resultando na expressão de diferentes interesses. Também são espaços simbólicos, que transmitem estímulos, conteúdos e valores que fazem parte da teoria do currículo oculto, ou seja, de coisas ensinadas na escola que não estão explicitados nos currículos oficiais. Os autores também se aproximam de Michel Foucault (1977) ao considerar que a distribuições feitas no espaço como nas escolas, fábricas, instituições militares, hospitais e prisões (instituições disciplinares) promovem a docilidade, ou seja, a submissão tanto dos corpos como das consciências dos sujeitos. Há um controle, exercido por elementos como os sinais sonoros, o uso de relógios e a vigilância constante do comportamento de quem se encontra nesses ambientes. Se dá então uma coação que ocorre sem a força física, transformando os corpos em um espaço de poder. A arquitetura desses ambientes vai ser fundamental para a manutenção dessa dinâmica. Frago e Escolano (2001) também chamam a atenção para o impacto que ciências como a psicometria, o taylorismo e a sociografia tiveram na setorialização que hoje observamos no ambiente escolar. O edifício escolar é então definido pelos autores como uma variante da arquitetura institucional que comporta força semântica através dos signos e símbolos que exibe e que como qualquer outro tipo de construção é resultado do contexto cultural e está sujeita as transformações históricas. 28 Patrícia Melasso Garcia (2016) também nos mostra como a arquitetura escolar funciona como uma pedagogia invisível. Conforme a autora, a trajetória da educação no Brasil revela que as estratégias governamentais foram concebidas pela elite dominante, gerando ambientes educacionais que espelham momentos tanto de autoritarismo como de democracia. A disposição física das escolas pode seguir padrões que influenciam na maneira como os alunos percebem a autoridade e a liberdade no ambiente educacional. A estrutura física das escolas tende a ser duradoura, resistindo às transformações nas abordagens pedagógicas e nas políticas educacionais ao longo do tempo. A constância das construções arquitetônicas pode dificultar a modernização das abordagens educacionais conforme as atuais demandas e diretrizes educacionais. É importante então considerar tanto os elementos estruturais das construções quanto os documentos legais que influenciam as diretrizes governamentais, a fim de compreender de maneira abrangente o funcionamento das escolas. Garcia (2016) também indica que alguns elementos são essenciais para distinguir entre práticas educacionais que visam libertar ou comandar, como a introdução ou exclusão de matérias que estimulam a reflexão crítica. Por exemplo, a existência de disciplinas que promovem o pensamento crítico ou a flexibilidade na aplicação das orientações conforme a realidade local pode sugerir abordagens mais democráticas. O ambiente dessas escolas, refletindo o Projeto Político Pedagógico, vai apresentar adaptações feitas no espaço para exprimir o contexto atual, mesmo que funcione em um prédio construído em um contexto autoritário. Garcia (2016) juntamente com Frago e Escolano (2001), ao falar da subjetividade que a escola é capaz de produzir, trazem o exemplo do como esse ambiente está atrelado a memórias afetivas que permanecem em nós por muito tempo ou por toda a vida, uma vez que o período de escolarização em nossas vidas é muito longo, e quando se é criança ou adolescente, não se tem ainda a noção de que existe uma vida que não passa pelo espaço escolar. A autora defende que as dinâmicas educacionais e as relações sociais que ocorrem dentro dela estão em movimento, acompanhando mudanças históricas, políticas e culturais, mesmo quando o prédio em que elas ocorram seja a representação de um momento histórico específico que já tenha sido superado. A comunidade escolar e todos os envolvidos no projeto teriam então a função construir e de organizar seu ambiente para ser acolhedor e estimulante e para formar valores que preparem os indivíduos para atuarem de maneira crítica e autônoma na sociedade. 29 Seguindo a ideia de que muitos dos prédios em que ocorrem as dinâmicas educacionais hoje foram construídos em outros contextos históricos, Doris Kowaltowski (2011) indica que a ação dos gestores e professores para a adaptação do ambiente é muito importante na incorporação do espaço como elemento pedagógico: O sistema educacional precisa dar suporte aos métodos de ensino, mas a qualidade da educação depende da criação de um ambiente escolar composto por material didático, móveis, equipamentos e a forma do espaço físico. O conforto que este oferece para o desenvolvimento das suas funções deve ser levado em conta (Kowaltowski, 2011, p.36). Ao falar do mobiliário das escolas, levando em consideração que a ele estão relacionadas questões de ergonomia, pedagogia e tecnologia, a autora crítica ambientes em que os alunos devem estar sentados todo o tempo e em carteiras não adaptadas à sua anatomia específica, uma vez que há um padrão de confecção desses materiais com métricas genéricas. Vê esse tipo de composição ambiental como antipedagógica, indicando que o movimento, a “troca rítmica e contínua entre passividade e atividade, tensão e relaxamento” é o que permite o desenvolvimento físico, intelectual e emocional. Kowaltowski (2011) também avalia a transformação histórica da arquitetura escolar na Europa, nos Estados Unidos, nos países em desenvolvimento e no Brasil e como a história das ideias políticas e pedagógicas foram determinantes na construção desses ambientes. Porém, evidencia que mesmo com projetos arquitetônicos que reflitam pedagogias específicas ao redor do mundo, o mais comum, especialmente para as escolas e outros prédios públicos, é a implementação de projetos padrão. Eles são justificados a partir de ideias como a economia gerada por serem produzidos em massa, a redução de custo e tempo na formulação e execução do projeto, a qualidade superior às obras personalizadas por serem construídos com mão de obra especializada, o que também levaria a menos falhas na execução, e a possibilidade de realizar correções após o projeto ser testado na prática, além da montagem rápida no caso de módulos pré-fabricados. Para Kowaltowski (2011), mesmo que na teoria os projetos educacionais padrão sejam mais fáceis e baratos de executar, na prática, são encontrados prédios que priorizam funcionar como assinatura visual da gestão governamental que o concebeu, secundarizando a funcionalidade do espaço na prática. Usando como exemplo os Centros Integrados de Apoio à Criança (CIACs)11, os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPSs)12, e os Centros 11 Construídos durante o governo de Fernando Collor na década de 1990 e projetados por João Filgueiras Lima. 12 Construídos no Rio de Janeiro no governo de Leonel Brizola em 1985 e projetados por Oscar Niemeyer. 30 Educacionais Unificados (CEUs)13, aponta problemas como serem construções difíceis de reformar, que apresentam obstáculos de circulação para as crianças transitarem entre as áreas internas e externas, problemas de acústica, ventilação e também de poluição sonora, por serem construídos em áreas com grande movimentação urbana, priorizando a visibilidade do projeto em detrimento dos objetivos pedagógicos. Kowaltowski (2001) defende que a arquitetura escolar está relacionada com o conforto ambiental, e esse pode ser definido a partir dos aspectos térmicos, visuais, acústicos e funcionais. Aponta que, no Brasil, as escolas públicas mostram qualidade arquitetônica frequentemente insatisfatória, apresentando superlotação e arranjos inadequados de mobiliário. Indica que é possível fazer alterações nessas estruturas, porém elas devem ser muito bem pensadas e levar em consideração muitos aspectos, incluindo a aprovação de seus usuários. Em nossa pesquisa pudemos observar que enquanto as escolas convencionais apresentam uma estrutura básica reconhecida em qualquer território, com carteiras dispostas em fileiras, com o professor localizado à frente da sala, salas de aula quadradas dispostas em corredores e pátios panópticos, nas escolas de resistência notamos uma grande preocupação com a incorporação do ambiente no processo de aprendizagem, com a importância dada aos elementos naturais que cercam essas experiências educacionais, produzindo conhecimento de forma mais orgânica e conectada com o meio ambiente. Explicitado o contexto de nossa pesquisa, passemos agora para a estruturação dessa dissertação. Ela está dividida em três capítulos: Do que é feita uma escola convencional?, Do que são feitas as escolas de resistência? e A escola como espaço de autonomia. No primeiro capítulo buscamos caracterizar os elementos que compõem uma escola convencional a fim de caracterizá-la como uma instituição de grande importância na manutenção da ordem social. Partirmos de teóricos como Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, Louis Althusser, Mariano Fernandez Enguita, Paulo Freire, Michael Apple e Henry Giroux. A partir dessa discussão foi possível observar que as escolas convencionais são projetadas para modelar pensamentos e comportamentos que convergem com os interesses sociais das classes economicamente dominantes. No segundo capítulo procuramos ao redor do mundo exemplos de escolas de resistência, ou seja, exemplos de escolas que têm objetivos pedagógicos e sociais que vão além da reprodução das condições econômicas e das relações sociais capitalistas, prezando pela emancipação e pela criticidade de seus estudantes. Os modelos escolhidos são a educação 13 Construídos na cidade de São Paulo durante o governo de Marta Suplicy (2001/2005) e projetados por Alexandre Delijaicov, André Takyia e Wanderley Ariza 31 escolar indígena brasileira, a educação no Movimento Zapatista, a educação no Movimento Sem Terra, a teoria da educação desinstitucionalizada, o homeschooling, a escola Summerhill, a educação infantil em Reggio Emilia, a pedagogia Waldorf, a Escola da Ponte e o nosso objeto de estudo, a EMEF Desembargador Amorim Lima. Pudemos observar a importância de se levar em consideração o contexto geográfico, histórico, político, econômico e social ao formular uma proposta educacional que faça sentido para a comunidade atendida. No terceiro capítulo fizemos um ensaio teórico sobre a teoria Piagetiana, dissertando sobre os estágios do desenvolvimento cognitivo, os estágios do desenvolvimento moral, o egocentrismo infantil, o julgamento moral, jogos e interações sociais. Também aprofundamos os conceitos de esquemas, estruturas cognitivas, conflito, desequilíbrio e equilíbrio cognitivos, e epistemologia genética. Também analisamos o Projeto Político Pedagógico, a Carta de Princípios e o regimento interno da EMEF Desembargador Amorim Lima à luz da teoria piagetiana. O objetivo foi demonstrar como um ambiente educacional tem potencial para estimular relações democráticas de cooperação e o desenvolvimento da moral autônoma dos seus estudantes. 32 2. DO QUE É FEITA UMA ESCOLA CONVENCIONAL? “Que demonstra a história das ideias senão que a produção intelectual se transforma com a produção material? As ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante” (Karl Marx; Friedrich Engels, 1998, p.57). O presente capítulo objetivou revisar teorias críticas educacionais a partir de alguns de seus principais pensadores, e para isso consideramos importante fazer um breve histórico sobre essas e as teorias conhecidas como teorias educacionais tradicionais, para contextualizarmos as obras que serão aqui abordadas. Para iniciar a discussão que irá apresentar diferentes abordagens educacionais, entendemos que é crucial esclarecer o uso do termo "tradicional". O termo “tradicional” é comumente utilizado para descrever métodos de ensino convencionais e teorias pedagógicas não críticas. No entanto, essa designação merece uma análise mais aprofundada, especialmente à luz das discussões teóricas e conceituais sociológicas. Na perspectiva de Max Weber, as práticas tradicionais são ações orientadas por costumes e normas que se perpetuam ao longo do tempo, sendo legitimadas pela força da tradição. Essas práticas não dependem de uma reflexão crítica ou de uma análise racional em cada nova aplicação, mas da aceitação social de padrões herdados que sustentam a continuidade e a estabilidade das relações sociais. A legitimidade dessas ações está associada à autoridade tradicional, que se fundamenta na crença no valor das normas estabelecidas e na confiança no que sempre foi praticado, preservando uma ordem social que prioriza a manutenção do status quo. Embora algumas práticas pedagógicas sejam frequentemente denominadas "tradicionais", na perspectiva weberiana, elas não podem ser compreendidas como práticas tradicionais no sentido estrito, pois envolvem uma racionalidade deliberada e intencional. Para Weber, mesmo métodos que parecem conservadores ou baseados em normas antigas são produzidos de forma racional, sendo moldados para atender a objetivos educacionais específicos. Nesse contexto, as práticas pedagógicas refletem escolhas fundamentadas que vão além da simples repetição de costumes, exigindo planejamento, reflexão e adaptação ao contexto social e cultural em que estão inseridas. Assim, ainda que carreguem elementos históricos, as práticas pedagógicas evidenciam um grau de racionalidade que as distingue das práticas puramente tradicionais, conforme definidas por Weber.14 14 Economia e sociedade (1922). 33 Assim, é importante diferenciar a escola convencional da escola tradicional. A escola convencional, frequentemente vista como sinônimo de tradicional, na verdade, aplica metodologias e estratégias pedagógicas cuidadosamente planejadas. Fernando Becker (1993) argumenta que mesmo nas situações consideradas "tradicionais" de ensino, há um planejamento intencional e calculado, visando resultados específicos na prática pedagógica. Essa análise mostra que o uso do termo 'tradicional' não deve ser simplificado ou utilizado de forma pejorativa para descrever práticas pedagógicas que não se alinham às teorias críticas. Reconhecer a racionalidade presente em todas as abordagens pedagógicas, sejam elas convencionais ou inovadoras, permite uma análise mais justa e completa do campo educacional. Dessa forma, evitaremos a simplificação da compreensão das diversas práticas educacionais substituindo o termo escola tradicional por escola convencional e teorias educacionais tradicionais por teorias educacionais conservadoras. As teorias educacionais conservadoras dominaram o campo dos estudos referentes à educação aproximadamente entre as décadas de 1920 e 1970, quando a área do currículo escolar passou a ser um campo profissional especializado. Tinham como principal objetivo pensar e elaborar currículos que maximizassem a eficiência na transmissão do conteúdo, mas sem fazer questionamentos sobre os conteúdos eleitos como importantes e de presença obrigatória nas escolas e os que não eram considerados importantes e, portanto, descartáveis. Essa concepção da educação é originaria, na maior parte, de teorias estadunidenses, e está atrelada à institucionalização da educação de massas. O primeiro livro que marca o estabelecimento do currículo como um campo especializado é o de John Franklin Bobbitt The curriculum (1918), que propunha que a escola funcionasse como qualquer empresa comercial ou industrial. A palavra-chave era eficiência, e para isso Bobbitt advogava pela transferência dos princípios administrativos de Frederick Taylor15 para o ambiente escolar. Além de teoria taylorista de educação proposta por Bobbitt, temos também entre as teorias educacionais conservadoras a de John Dewey, considerada mais progressista. Dewey estava mais preocupado com a elaboração de currículos que priorizassem a construção da democracia em detrimento do funcionamento econômico. Entretanto, sua teoria teve, naquele contexto, impacto limitado nos estudos acerca dos currículos se comparado à de Bobbitt, pois essa última permitia à educação “tornar-se científica”. 15 Nos referimos aqui ao Taylorismo, teoria de administração científica que visa aumentar a eficiência do trabalho industrial. Taylor propôs a análise sistemática das tarefas de trabalho, a padronização dos métodos, a divisão de tarefas e o uso de incentivos salariais para motivar os trabalhadores. Ele acreditava que, através da observação e medição precisas das tarefas, era possível determinar a maneira mais eficiente de realizar cada trabalho, resultando em maior produtividade e menor desperdício de tempo e recursos. 34 Outra teoria educacional conservadora que ganha forma a partir dos pensamentos educacionais de Bobbitt é a de Ralph Tyler, que publica em 1949 o livro com título em português Princípios básicos de currículo e ensino. Nesse livro, ele enfatiza o caráter tecnicista que o currículo deve ter, o construindo a partir de quatro perguntas: que objetivos educacionais a escola deve procurar atingir? Que experiências educacionais devem ser oferecidas para alcançar esses objetivos? Como organizar eficientemente essas ideias? Como garantir que os objetivos foram alcançados? Com relação à primeira pergunta, sobre os objetivos educacionais, Tyler indica que devem ser levados em consideração estudos sobre os aprendizes, estudos sobre a vida contemporânea fora da educação e sugestões de especialistas de diferentes disciplinas. Expande assim o modelo de Bobbitt ao incluir em sua proposta de formulação de currículo a psicologia e as disciplinas acadêmicas. Afirmando que os objetivos devem ser claramente definidos e que estes devem ser formulados em termos de comportamento explícito, Tyler populariza entre outros pensadores educacionais a orientação comportamentalista, muito influente na década de 1960. Como um referencial dessa tendência comportamentalista e tecnicista está o psicólogo Robert Mager e seu livro com título em português Análise de objetivos (1962) cuja preocupação é decidir quais experiências devem ser propiciadas e como elas devem ser organizadas para garantir os objetivos elencados em um currículo, conforme a teoria de Tyler. Tanto as teorias tecnocráticas de Bobbitt e Tyler quanto as teorias progressistas, como a de Dewey surgem de uma tendência de contestação à formulação do currículo humanista que dominava a educação secundária. Esse currículo era derivado das “artes liberais” que vinha da antiguidade clássica e se estabeleceu na Idade Média e Renascimento, incluindo as áreas de conhecimento de gramática, retórica, dialética, astronomia, geometria, música e aritmética. Tinha como objetivo introduzir os estudantes ao que consideravam as melhores realizações já feitas pelo homem, as obras literárias e artísticas clássicas gregas e latinas. O currículo humanista só sobrevive no contexto de uma educação secundária restrito às classes dominantes. Ele tem fim com a democratização da educação e a contestação às teorias educacionais conservadoras. Enquanto as teorias tecnocráticas o atacam pela inutilidade de seus conteúdos para a preparação para a vida moderna e atividade laboral as teorias progressistas o atacam por seu distanciamento dos interesses e experiências de crianças e jovens, desconsiderando a psicologia infantil. 35 A hegemonia das teorias educacionais conservadoras começa a enfraquecer a partir da década de 1960, quando mudanças sociais16 ocorrendo ao redor do mundo oferecem novas teorias tanto para se repensar o currículo como as dinâmicas educacionais e seus impactos na sociedade mais ampla. É nesse contexto que ganham forças as chamadas teorias educacionais críticas. É importante não perder de vista nesse capítulo o pensamento de Tomaz Tadeu da Silva (2005) sobre teorias pedagógicas e teorias sobre currículo, pois de acordo com ele todas as teorias pedagógicas e educacionais são também sobre currículo, mas não são, estritamente falando, teorias apenas sobre o currículo. Portanto, as teorias apresentadas aqui vão ter como objetivo exemplificar o impacto que a escola tem, a partir de seus currículos, dentro e fora de seus muros. As teorias críticas do currículo contestam e reformulam os fundamentos das teorias conservadoras. Enquanto essas tomavam o status quo como referência desejável, as teorias críticas desconfiavam dele e o responsabilizavam pelas desigualdades e injustiças sociais. “As teorias tradicionais eram teorias de aceitação, ajuste e adaptação. As teorias críticas são teorias de desconfiança, questionamento e transformação radical” (Silva, 2005, p.30). Como marcos da teoria educacional crítica temos os livros Pedagogia do oprimido (Paulo Freire, 1970); A ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado (Louis Althusser, 1970); A reprodução (Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, 1970); L’école capitaliste em France (Christian Baudelot e Roger Establet, 1971); Class, code and control (Basil Bernstein, 1971); Knowledge and control, new directions for the sociology of education (Michael Young, 1971); Schooling in capitalist America (Samuel Bowles e Herbert Gintis, 1976); Toward a poor curriculum (William Pinar e Madeleine Grumet, 1976) e Ideologia e currículo (Michael Apple, 1979) Para esse capítulo selecionamos o livro de Althusser, que vai fornecer uma base crítica marxista da educação, correlacionando educação e ideologia e o livro de Pierre Bourdieu e Jean- Claude Passeron, que diferente da base crítica marxista pensa a escola e a cultura como possuidoras de uma economia própria, demonstradas pelos conceitos de capitais cultural e simbólico. Se para Althusser, a escola está encarregada da reprodução social, para Bourdieu e Passeron, está encarregada da reprodução cultural. 16 Movimento dos direitos civis nos Estados Unidos; Movimento Feminista; Contracultura e Movimento Hippie, Revolução Cultural na China; Descolonização na Ásia e África; Protestos Contra a Guerra do Vietnã; Maio de 1968 na França; Golpe Militar de 1964 no Brasil; Movimento Tropicalista; entre outros. 36 Expandiremos a teoria de reprodução social de Althusser com o livro de Mariano Fernandez Enguita, A face oculta da escola (1989), por oferecer uma análise mais completa e complexa ao examinar as funções latentes e disfuncionais da escola. Enguita argumenta que a escola não apenas reproduz a sociedade atuando como um mecanismo de controle social, mas também desempenha um papel crucial na construção da subjetividade do trabalhador assalariado. Destaca como a prática escolar cotidiana molda comportamentos e atitudes que se alinham às exigências do mercado de trabalho e da sociedade capitalista. Selecionamos também o livro de Michael Apple, que traz uma crítica neomarxista às teorias conservadoras, e diferente dos livros citados acima, tem foco no currículo, entendendo que há uma relação estrutural entre economia e educação, uma vez que a economia afeta todas as esferas sociais. Porém, saindo da concepção determinista e mecanicista das teorias marxistas ortodoxas, ele indica a mediação da ação humana no processo. Foi selecionado também o livro de Paulo Freire, que aborda a questão “o que ensinar?” de maneira filosófica, baseada na dialética hegeliana das relações servis ampliada pelo marxismo humanista de Erich Fromm, pela fenomenologia existencialista e pela crítica do processo de dominação colonial desenvolvida por Albert Memmi e Frantz Fanon17. O foco é retirado da dominação como reflexo das relações econômicas e colocado na dinâmica própria do processo de dominação. O último livro selecionado foi o de Henry Giroux, que ataca as teorias educacionais conservadoras pela sua perspectiva técnica e empirista, deixando de lado o caráter histórico, ético e políticos das ações humanas e sociais, afastando do currículo o que o autor entende por conhecimento emancipatório. Desenvolve sua crítica baseado nas ideias de Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse18. Nesse capítulo também serão incorporadas não apenas as críticas, mas também as propostas educacionais oferecidas por Henry Giroux e Paulo Freire. 17 Os temas citados nesse parágrafo podem ser aprofundados a partir dos livros Fenomenologia do Espírito (Friedrich Hegel, 1807); Conceito Marxista do Homem (Erich Fromm, 1983); O retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (Albert Memmi, 1957); Os condenados da Terra (Frantz Fanon, 1961). Jean Paul Sartre, Martin Heidegger e Maurice Merleau-Ponty podem ser consultados para leituras sobre Fenomenologia e Existencialismo. 18 Os autores citados, juntamente com Jürgen Habermas desenvolveram a Teoria Crítica, uma abordagem filosófica e sociológica desenvolvida principalmente pela Escola de Frankfurt, na Alemanha, durante o início do século XX. Eles buscaram analisar e criticar as estruturas de poder e dominação presentes na sociedade capitalista moderna. Essa teoria questiona a racionalidade instrumental e a cultura de massa, argumentando que essas perpetuam a opressão e a alienação dos indivíduos. Além de analisar a economia política e a cultura, a teoria enfatiza a necessidade de emancipação social e a transformação radical das condições sociais para alcançar uma sociedade mais justa e equitativa. 37 2.1 Teoria Geral dos campos Utilizaremos como principal ponto de partida para observarmos os elementos constituintes da escola convencional e sua função social a teoria de reprodução desigual do capital culturar realizada através da escola, proposta por Pierre Bourdieu em parceria com Jean Claude Passeron. Entretanto, consideramos importante localizar essa teoria dentro da teoria geral dos campos de Pierre Bourdieu, uma vez que ela perpassa toda a sua produção intelectual e vai nos ajudar a contextualizar a escola no pensamento bourdieusiano. Para introduzir o pensamento de Bourdieu vamos começar por sua abordagem praxiológica, ou seja, que tem como foco a investigação de como a exterioridade das estruturas objetivas é interiorizada pelos agentes19 sociais e como a interioridade desses é exteriorizada nessas estruturas. Rejeitando tanto os aspectos individualistas das teorias subjetivistas20 quanto os deterministas das teorias objetivistas21, propondo inclusive que não exista tal dicotomia apresentada pelas duas vertentes no mundo social, realiza uma síntese dessas ideias formulando o seu estruturalismo construtivista. Nele os agentes são influenciados pelas estruturas objetivas, porém são eles que as constroem, imprimindo nelas também sua subjetividade. Já sua teoria geral dos campos examina como diferentes esferas da sociedade, ou "campos", funcionam de maneira relativamente autônoma, cada uma com suas próprias regras, capitais22 (econômico, social, cultural e simbólico) e estruturas de poder. Nos apresenta assim a ideia de espaço social, formado por três campos principais: político, econômico e cultural (produção simbólica) e mais os outros campos e subcampos que podem ser identificados a partir destes. Começou a ser desenvolvida a partir de seu estudo do campo intelectual23, onde ele identificou que as relações visíveis entre autores e editores disfarçavam as relações objetivas entre as posições ocupadas por esses agentes no campo. 19 Termo utilizado em substituição a indivíduos para enfatizar o poder de atuação desses nas estruturas objetivas nas quais estão inseridos. 20 As teorias subjetivistas destacam a importância das percepções, experiências e interpretações individuais na construção da realidade social e na formação de valores e normas. Essas teorias propõem que a sociedade e suas instituições são criadas e mantidas pelas interações e significados atribuídos pelas pessoas, ao invés de serem entidades objetivas e independentes dos indivíduos. São exemplos a Teoria do valor subjetivo, Fenomenologia social, Interacionismo simbólico, Construtivismo social e o Existencialismo. 21 As teorias objetivistas afirmam que a estrutura social, as instituições e as normas existem independentemente das percepções e interpretações individuais, sendo consideradas entidades objetivas e externas aos indivíduos. Essas teorias sustentam que a sociedade possui uma realidade concreta e estruturada que influencia o comportamento e as interações humanas de maneira consistente e previsível. São exemplos o Funcionalismo estrutural, o Materialismo histórico, a Teoria do valor-trabalho, Realismo científico e Teoria dos sistemas sociais. 22 Qualquer posse socialmente valorizada e que funcione como instrumento de poder. 23 Champ Intellectuel et Projet Créateur (1966). Esse estudo pode ser encontrado no livro Problemas do estruturalismo (Pouillon Jean et al. Rio de Janeiro: Zahar, 1968) com o título em português Campo intelectual e projeto criador. 38 Para refinar sua análise, recorre à teoria das esferas de ação de Max Weber24 que descreve campos como o econômico, político e religioso, com regras próprias. Bourdieu então cria um instrumento de análise aplicável a diferentes domínios sociais, como alta costura, literatura e filosofia, revelando propriedades constantes entre os campos. Essa teoria do espaço social rompe com a visão marxista ao criticar a tendência de privilegiar substâncias (grupos reais) em detrimento das relações, o economicismo que reduz o campo social ao econômico, e o objetivismo que ignora as lutas simbólicas nos campos. “Pierre Bourdieu substitui a luta de classes, motor da história em Marx, pela luta de classificações, motor da lógica do espaço social” (Assis, 2022, p. 18). Com a constituição da teoria geral dos campos é elaborado o próprio conceito de campo25. Este refere-se a um espaço social estruturado onde os agentes e instituições interagem e competem por diferentes formas de capitais e poder. Cada campo possui suas próprias regras, normas e lógica de funcionamento, que definem o valor e a hierarquia dos capitais em jogo. O capital mais valorizado em um campo, chamado de capital específico, nem sempre é econômico. Os campos são relativamente autônomos, mas interdependentes, e os agentes que atuam dentro deles são regidos pelos habitus, conceito que aprofundaremos adiante. Bourdieu (1996) afirma que o Estado tem a capacidade de regular o funcionamento de diferentes campos, apresentando assim um dos limites de suas autonomias. Para ele não há campo totalmente subordinado à demanda externa, muito menos com independência absoluta às exigências do mercado. É uma arena de lutas sociais onde se desenrolam disputas pela legitimidade e reconhecimento em um determinado contexto social. Nesse espaço, a posse dos capitais dita as distâncias, aproximando e afastando agentes em perspectiva social e geográfica e formando as categorias de dominantes e dominados. É possível, a esta altura da exposição, comparar o espaço social a um espaço geográfico no interior do qual se recortam regiões. Mas esse espaço é construído de tal maneira que, quanto mais próximos estiverem os grupos ou instituições ali situados, mais propriedades eles terão em comum; quanto mais afastados, menos propriedades em comum eles terão. As distâncias espaciais - no papel - coincidem com as distâncias sociais (Bourdieu, 2004, p.154). 24 Essa teoria é uma forma de entender como diferentes domínios da vida social (como a economia, a política, a religião, o direito, a ciência, a arte, entre outros) operam de maneira relativamente autônoma, cada qual com suas próprias normas, valores e racionalidades. Economia e Sociedade (1921). 25 Para uma leitura mais detalhada dos elementos que constituem um campo consultar: Pierre Bourdieu: em discussão o entrecruzamento das fronteiras cientificas no campo das ciências humanas e sociais. (Jacira Helena do Valle Perreira Assis, 2022) e Campo (Bernard Lahire, 2017, In: Vocabulário Bourdieu. Afranio Mendes Catani et al.) 39 Não é possível dissertar sobre o conceito de campo sem correlacionar outros conceitos, como o de habitus, que se refere ao conjunto de disposições duráveis e internalizadas que os indivíduos adquirem ao longo de suas vidas, principalmente através da socialização, e que orientam suas percepções, ações e reações no espaço social. É a mediação fundamental entre o individual e o social, socialmente gerado e socialmente gerador. Resulta das condições sociais de existência e guia a prática dos agentes de maneira quase automática e inconsciente. É a partir dele que o agente conhece e reconhece as leis do campo em que está inserido, e só pode ser agente de um campo aquele que além de deter o habitus específico exigido, pois de outra forma não tem condições de participar da luta do campo, participa efetivamente da disputa. Ele permite que os indivíduos adaptem suas estratégias conforme as exigências dos diferentes campos sociais em que participam, contribuindo tanto para a reprodução das estruturas sociais e das relações de poder como para a subversão dessas. Também se relaciona com o conceito de campo o de capitais, que vão além do econômico e são valorizados socialmente. O conceito de capital cultural de Pierre Bourdieu aparece relacionado ao campo educacional e refere-se aos recursos culturais acumulados por um indivíduo, que podem existir em três estados: incorporado (disposições duráveis da mente e do corpo, como habilidades e conhecimentos), objetivado (bens culturais materiais, como livros, obras de arte, instrumentos) e institucionalizado (credenciais educacionais, como diplomas e títulos acadêmicos). Esse capital cultural é transmitido principalmente através da família e do sistema educacional, desempenhando um papel crucial na reprodução das desigualdades sociais, pois facilita o acesso a posições de poder e prestígio dentro dos diversos campos sociais a quem já o possui “de berço” e exclui desses ambientes os que não o tem. Assim, o capital cultural não só confere status e vantagem competitiva, mas também legitima e perpetua a dominação cultural e social sobre quem o tem menos. Um título como o título escolar é capital simbólico universalmente reconhecido e garantido, válido em todos os mercados. Enquanto definição oficial de uma identidade oficial, ele liberta seu detentor da luta simbólica de todos contra todos, impondo a perspectiva universalmente aprovada (Bourdieu, 2004, p.164). Temos também o conceito de reprodução social de Pierre Bourdieu que se refere aos mecanismos e processos pelos quais as estruturas sociais, as relações de poder e as desigualdades são perpetuadas ao longo do tempo. Bourdieu argumenta que a reprodução social ocorre através da transmissão desigual de capitais e do habitus, que moldam as disposições e 40 práticas dos indivíduos, reforçando as hierarquias e a dominação existentes. As instituições, como a família, a escola e o Estado, desempenham um papel crucial na legitimação e na continuidade dessas estruturas, garantindo que as posições sociais e as vantagens sejam mantidas de uma geração para outra. Dessa forma, a reprodução social contribui para a manutenção da ordem social e das distinções entre diferentes grupos e classes sociais. Por último, trazemos o conceito de violência simbólica, que se refere à imposição de sistemas de significados e valores, por processos simbólicos e culturais, de maneira que as relações de dominação e desigualdade sejam percebidas como legítimas e naturais pelos dominados. Essa forma de violência é invisível e sutil, operando via práticas cotidianas, instituições e discursos que internalizam normas e hierarquias, fazendo com que os indivíduos aceitem e reproduzam sua própria subordinação sem questionamento. A violência simbólica é eficaz porque exerce poder sem recorrer à força física, ao invés disso, manipula a percepção e o entendimento dos agentes sociais sobre a realidade, mascarando as verdadeiras relações de poder. O espaço social é então formado por diversos campos. Os campos, por sua vez, são estruturados pelos agentes ou instituições, que estão em posições distintas dentro deles conforme a posse do capital específico valorizado e a relação de forças que estabelecem entre si. A luta em um campo gira em torno da distribuição desse capital. Alguns dos agentes já o acumularam em lutas anteriores, orientando as estratégias posteriores. A luta é contínua e o objetivo é o monopólio da violência legítima contra os agentes que não possuem ou possuem pouco do capital específico do campo. 2.1.1 Reprodução cultural Para falarmos sobre o poder de atuação das instituições escolares na reprodução das desigualdades sociais26 através da reprodução cultural, partiremos do já mencionado estudo realizado pelos sociólogos franceses Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron, intitulado A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino (1992). Nele, os autores partem do princípio de que o sistema educacional atua a partir do conceito de violência simbólica que seria, como apresentado acima, o poder de impor significados fazendo com que sejam aceitos como legítimos, ocultando as relações de poder que sustentam essa dinâmica. Os autores dividiram o sistema de ensino a partir de elementos que identificaram como parte de sua estrutura, são eles: ação pedagógica (AP), autoridade pedagógica (AuP), trabalho 26 Nos referimos aqui principalmente às desigualdades econômicas e étnicas. 41 pedagógico (TP), autoridade escolar (AuE), sistema de ensino (SE) e trabalho escolar (TE). Nossa intenção aqui é explicar a funcionalidade de cada um desses elementos, sucintamente, a fim de identificar suas contribuições na reprodução cultural. A ação pedagógica, nesse contexto, é uma violência simbólica que impõe uma cultura arbitrária por meio de um poder igualmente arbitrário. Os autores, ao utilizarem o termo arbitrário, explicam que não se trata de escolhas culturais relacionadas à “natureza humana” ou a um inconsciente cultural, mas sim de seleção de significações relacionados à estrutura social vigente. Conforme os autores, a ação pedagógica escolar reproduz a cultura dominante e, por consequência, reproduz a estrutura das relações de força. Dessa forma, o sistema de ensino dominante assegura-se do monopólio da violência simbólica legítima. Numa formação social determinada, o arbitrário cultural que as relações de força entre os grupos ou classes constitutivas dessa formação social colocam em posição dominante no sistema dos arbitrários culturais é aquele que exprime o mais completamente, ainda que sempre de maneira mediata, os interesses objetivos (materiais ou simbólicos) dos grupos ou classes dominantes (Bourdieu; Passeron. 1992, p.24). Correspondendo aos interesses materiais e simbólicos de classes situadas em diferentes posições de poder, a ação pedagógica tende a reproduzir a estrutura de distribuição desigual do capital cultural entre essas classes, e, portanto, reproduzir a estrutura social. Lembrando que a ação pedagógica age sempre para dissimular essa dinâmica, que os autores chamam de verdade objetiva27. Para garantir a inculcação do arbitrário cultural através da comunicação pedagógica, é necessária a presença de uma autoridade pedagógica. Esta não é simplesmente uma ferramenta de imposição do arbitrário cultural, mas sim um fenômeno complexo que envolve diferentes formas de poder simbólico e cultural. É uma manifestação da dominação cultural exercida pelas instituições educacionais e pelos agentes que as representam. Também dissimula a verdade objetiva de sua ação, muitas vezes atrás de “métodos suaves” de interação. Desde que toda AP em exercício dispõe por definição de uma AuP, os emissores pedagógicos são logo de imediato designados como dignos de transmitir o que transmitem, e, por conseguinte autorizados a impor a recepção e a controlar a inculcação por sanções socialmente aprovadas ou garantidas (Bourdieu; Passeron, 1992, p.34). 27 Está ligada à ideia de que as relações sociais e as desigualdades não são produto de escolhas pessoais ou características individuais, mas de estruturas sociais que exercem uma influência determinante sobre a vida dos sujeitos, sem que esses sujeitos necessariamente tenham consciência de tal influência 42 Pela conotação de legítima que a autoridade pedagógica comporta, os estudantes, seus receptores pedagógicos, assumem de imediato que a informação transmitida é também legítima. Uma vez que os valores dominantes são inculcados pela autoridade pedagógica, há um reconhecimento pelas classes dominadas do valor da cultura transmitida e também do não valor de suas próprias culturas, culturas dominadas, ilegítimas. A ação pedagógica não se limita, em termos cronológicos, ao tempo permanecido na escola. Ela precisa ser realizada a partir de um trabalho, para durar para além da formação escolar. A esse trabalho os autores deram o nome de trabalho pedagógico. (…) a AP implica o trabalho pedagógico (TP) como trabalho de inculcação que deve durar o bastante para produzir uma formação durável; isto é, um habitus como produto da interiorização dos princípios de um arbitrário cultural capaz de perpetuar-se após a cessação da AP e por isso de perpetuar nas práticas os princípios do arbitrário interiorizado (Bourdieu; Passeron, 1992, p.44). O trabalho pedagógico escolar, na perspectiva trazida pelos autores, se trata de um trabalho pedagógico secundário. O trabalho pedagógico primário é o que foi inculcado no seio familiar. O que é considerado no trabalho pedagógico escolar é a distância que existe entre o habitus que se pretende inculcar e o habitus inculcado pelos trabalhos pedagógicos anteriores. O trabalho pedagógico secundário age incluindo ou excluindo seus receptores, atuando de acordo com códigos adquiridos (ou não) pelo trabalho pedagógico inicial. Os autores citam o exemplo do museu, que delimita seu público eliminando naturalmente os que não possuem os códigos culturais necessários para entender suas exposições. Essa exclusão é também dissimulada, uma vez que a ausência dos códigos necessários à inclusão cultural é atribuída ao receptor e não ao transmissor do arbitrário cultural. Dado os elementos citados, os autores vão explicar como eles se encontram no sistema de ensino institucionalizado. Todo sistema de ensino institucionalizado adquire suas características específicas de estrutura e funcionamento devido à necessidade de produzir e reproduzir, por meio dos próprios mecanismos da instituição, as condições institucionais essenciais para sua existência contínua. Essas condições são cruciais tanto para desempenhar sua função primária de inculcação quanto para realizar sua função de reprodução de um conjunto cultural arbitrário, do qual não é o criador (reprodução cultural), e cuja perpetuação contribui para a reprodução das relações entre grupos ou classes sociais (reprodução social). É no sistema de ensino institucionalizado que ganham destaque os elementos trabalho escolar e autoridade escolar. Relacionados aos elementos já citados de trabalho pedagógico e 43 autoridade pedagógica, esses dois novos elementos trazem em si as especificidades do universo escolar. O trabalho escolar é predisposto pelas condições institucionais de sua própria reprodução a limitar suas atividades nos parâmetros estabelecidos por uma instituição convocada para reproduzir o conjunto cultural arbitrário, e não para modificá-lo. Já a autoridade escolar é dispensada da necessidade de confirmar continuamente sua autoridade pedagógica, uma vez que essa ação já é feita pelo próprio sistema de ensino para manter as condições necessárias para ocorrer o trabalho escolar. 2.1.2 A Escola como um campo Em As regras da arte (1996) Bourdieu descreve algumas propriedades gerais dos campos de produção cultural. Indicando-as como necessárias para a delimitação do campo literário, essas propriedades podem também ser aplicadas à delimitação de outros campos, como propõem Massi, Agostini e Nascimento (2021) e Ostermann et al. (2022). Assim, podemos dizer que para a delimitação de um campo numa perspectiva bourdieusiana é necessário analisar a posição do campo em questão com relação ao campo do poder juntamente com sua evolução histórica; a estrutura interna do campo, com suas próprias leis de funcionamento e transformação (as estruturas objetivas entre as posições que ocupam os agentes ou grupos em situação de concorrência pela legitimidade); e a gênese do habitus dos ocupantes dessas posições. Genovez (2008) busca delimitar a escola como um campo dentro do campo (ou sistema) escolar, sendo um subcampo deste e com capitais específicos. Segundo o aut