UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO André Ricardo Mininel CREDIBILIDADE, SEGURANÇA E FÉ: O USO DO JORNALISMO NA PROGRAMAÇÃO RELIGIOSA DA RECORD. BAURU - SP 2008 2 André Ricardo Mininel CREDIBILIDADE, SEGURANÇA E FÉ: O USO DO JORNALISMO NA PROGRAMAÇÃO RELIGIOSA DA RECORD. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Comunicação, da Área de Concentração em Comunicação Midiática, da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - campus de Bauru, como requisito à obtenção do título de Mestre em Comunicação, sob a orientação do Prof. Dr. Cláudio Bertolli Filho. Bauru - SP 2008 3 DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO UNESP – BAURU Mininel, André Ricardo. Credibilidade, segurança e fé: o uso do jornalismo na programação religiosa da Record / André Ricardo Mininel, 2008. 143 f. Orientador: Cláudio Bertolli Filho. Dissertação (Mestrado)– Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2008. Ficha catalográfica elaborada por Maricy Fávaro Bra ga – CRB-8 1.622 4 André Ricardo Mininel CREDIBILIDADE, SEGURANÇA E FÉ: O USO DO JORNALISMO NA PROGRAMAÇÃO RELIGIOSA DA RECORD. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - campus de Bauru, para a obtenção do título de Mestre em Comunicação. Banca examinadora: Presidente: Prof. Dr. Cláudio Bertolli Filho Instituição: Universidade Estadual Paulista (Unesp) Titular: Profª. Drª. Luzia Mitsue Yamashita Deliberador Instituição: Universidade Estadual de Londrina (UEL) Titular: Prof. Dr. Maximiliano Martin Vicente Instituição: Universidade Estadual Paulista (Unesp) Bauru (SP), Agosto de 2008. 5 Agradecimentos No segundo semestre de 2002, começou uma pesquisa que, ainda não finalizada, resultou nesta dissertação de mestrado. Eu era um estudante do segundo ano de Jornalismo que tinha insônia. Dormia pouco, trabalhava o dia todo como técnico bancário na Caixa Federal e adorava televisão. O ligar a televisão em um programa iurdiano foi um acaso, mas o interesse pela pesquisa em comunicação era uma certeza. Encontrava, então, um tema que me fascinava. É verdade que de nada adiantaria ter um problema na cabeça, ter a vontade de pesquisar e não ter um incentivador. Por isso agradeço, especialmente, ao Prof. Dr. Cláudio Bertolli Filho, o principal incentivador deste estudo. Sua paciência, dedicação, experiência e, acima de tudo, sua confiança em meu projeto de pesquisa foram fundamentais para o desenvolvimento desta dissertação. Foram anos de orientações certeiras, conselhos verdadeiros e também de amizade. Nos momentos de dúvidas, de cansaço ou mesmo de desâmino, encontrei, no bom humor do prof. Cláudio, um incentivo para perseverar nos estudos. Foi muito gratificante ser um mestrando em Comunicação Midiática da Unesp de Bauru. Ao Prof. Cláudio Bertolli, serei sempre grato. A Profª. Drª Salete Alberti da Silva e a Profª Suad Haddad Barrach são dois personagens importantes em minha vida. A Prof. Saletinha me fez ver a “chincha chinchística” de tantos aspectos importantes da cultura brasileira. Nunca mais ouvi uma música ou li uma poesia da mesma forma, depois que conheci essa gatinha que infelizmente se aposentou. À Prof. Suad devo o gosto pela leitura, dos textos do Machado de Assis às das páginas de Bundas, que líamos juntos, no intervalo das aulas, na época do segundo grau. Essa D. Suad, que agora virou artista, fez a gramática ser tão interessante quanto os bons livros de literatura que indicava. Obrigado a vocês duas. Agradeço aos professores da Pós-Graduação, especialmente ao Prof. Dr. Antonio Carlos de Jesus e ao Prof. Dr. Maximiliano Martin Vicente, ambos membros da banca de qualificação desta dissertação. À Profª. Drª Ana Silvia Lopes Davi Médola, à Profª. Drª Regina Célia Baptista Belluzzo e ao Prof. Dr. Jorge Pedro Sousa. 6 Também gostaria de agradecer aos meus familiares. Meu pai Roberto e minha mãe Rosinha sempre acompanharam minha trajetória. Tenho vivas, em minha memória, a torcida para que uma das 25 vagas fosse minha e também a paciência em aturar minha ansiedade na espera da lista de aprovados no processo seletivo de mestrado. A cada etapa vencida, a cada passo dado, estavam vocês dois, ao meu lado, junto com os meus irmãos Fabinho, Clara e Adriano. Também é nessa época que entra na história uma certa Amanda Furtado, que iria estar ao meu lado durante todo o desenvolvimento desta dissertação. O meu muito obrigado pelos papos, pelos desabafos, pelos sonhos compartilhados, pelos puxões de orelha, pelo amor, pelo carinho e pela compreensão. Só vocês foram capazes de entender meu mau humor passageiro, meus estresses e minha ausência. Vocês sabiam que eu estava realizando um sonho. Mais uma etapa vencida... Muito obrigado. Alguns amigos não tiveram essa paciência, especialmente nesses últimos meses. Alguns até ficaram chateados comigo porque eu demorava pra mandar emails, pra telefonar ou mesmo pra fazer uma visita. Sou grato pelas amizades que tenho e elas são fundamentais para que eu seja quem eu sou. Como não são tantos nomes assim, vale a pena citar: Amadeu Von Richtophen, Mônica, Teresa, Nilo, Nereide, Tchan, Nega, Du Santiago, Nhanha, Netão, Preto, Natália, Layza, William, Melissa, Brunão, Kika, Bessi, Mayra, Pai, Mãe, Vinicius, Flávio, Fernanda, Sasha, Lídia, Renata, Ulisses. Devo ter me esquecido de alguém... Há também alguns amigos da Caixa que me ajudaram, seja cobrindo minhas faltas ou mesmo permitindo que eu faltasse. Bassan, Gerson, Bete, Belmiro, Telminha, Venceslau, Tanque, Adriano, Marcelo Coleta, Karina, Miriam, Mayra, Fabiano, Flavinho, Flavião, Amanda, Aninha, Paula, Ju, Dona Luzia e João Carlos. Especialmente, a Telminha e o Flavinho, meus chefes diretos, foram muito bacanas comigo. Obrigado. Por fim, quero agradecer a Deus, a Olorum, à Natureza, a Alá, a Brama, enfim, a essa força criadora que nos dá forças para seguirmos na caminhada. 7 Dedicatória Dedico este trabalho à vó Mathilde, ao vô Zé, a meu pai Roberto, a minha mãe Rosinha, a meu velho amigo Amadeu e a Amanda, minha companheira. Tanto esforço e tanta dedicação só fizeram sentido porque vocês sempre me esperaram chegar lá de onde eu vim... 8 MININEL, André Ricardo. Credibilidade, segurança e fé: o uso do jornalismo na programação religiosa da Record. 2008. 143 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Midiática). Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Unesp, Bauru, 2008. Resumo Este estudo aborda o uso de recursos televisivos, em especial do Jornalismo, na programação religiosa da Rede Record de Televisão, emissora de transmissão aberta comandada pela cúpula da Igreja Universal do Reino de Deus, segmento religioso brasileiro em expansão. Foram observadas a construção da comunidade iurdiana, a atribuição de credibilidade às mensagens televisivas, a criação de um ambiente seguro em que se possa propagar a fé, a pregação de uma “fé inteligente”, bem como a similitude com os programas da grade comercial daquela emissora de tevê. Palavras-chave : Comunicação, Telejornalismo, Rede Record, Tevê regional, Neopentecostalismo brasileiro. 9 MININEL, André Ricardo. Credibility, security and faith: the journalism use on the religious Record programming. 2008. 143 f. Master Dissertation. (Mediatic Communication Mastership Program) Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, UNESP, Bauru, 2008. Abstract This study approaches the television resources use, especially in journalism, on the religious programming of Rede Record de Televisão, a TV station with open transmission commanded by the Universal Church of Kingdom of God leadership, a Brazilian religious segment in expansion. Iurdian community construction, the attribution of credibility to television messages, the creation of a safe atmosphere in which is possibly to disseminate faith, the preachment of an “intelligent faith”, as well as the similarity of programs from that commercial grade TV station were observed. Key words : Communication, Telejournalism, Rede Record, local TV, Brazilian neopentecostalism 10 Sumário Introdução, p. 11 1. Problemas, fontes e método 1.1 O contexto religioso brasileiro, p. 14 1.2 A hipótese, p. 18 1.3 O corpus, p. 21 1.4 O método, p. 31 1.5 O referencial teórico, p. 37 1.6 Alguns apontamentos acerca do jornalismo, p. 52 1.6.1 Histórico do telejornalismo, p. 56 2. A Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) 2.1 O grupo Universal, p. 62 2.2 Histórico da Iurd, p. 65 2.3 Um deus endividado, p. 71 2.4 Mídia e Igreja Universal, p. 75 2.5 Interesses na política, p. 80 2.6 A expansão iurdiana, p. 82 2.7 A Iurd pelo mundo, p. 88 3. A programação iurdiana 3.1 A descrição do corpus, p. 91 3.2 Alguns aspectos gerais da programação iurdiana, p. 94 3.3 As particularidades de cada programa iurdiano, p. 100 3.4 A questão da credibilidade, p. 109 3.5 A questão da segurança, p.117 3.6 A questão da fé, p. 124 Considerações finais , p. 134 Referencias , p. 137 Anexo , p. 143 11 Introdução Estudar a relação entre mídia e religião não é apenas um recorte dos estudos na área de Comunicação, da Teologia ou da Sociologia da Religião. Da mesma forma que é deficiente a pesquisa em Comunicação que desconsidera o contexto em que a produção midiática é realizada, tais como implicações econômicas, políticas e sociais, a religião, no caso específico do contexto brasileiro, é fator indissociável ao contexto das mídias televisivas de circulação aberta. Em outras partes do mundo, tal afirmação seria equivocada. Em Portugal, por exemplo, país cujo governo proíbe a veiculação de programas de conteúdo religioso nas redes de televisão, a religião tem papel esporádico na mídia televisiva, quando ela revela algum interesse público. Como resultado deste interesse, têm-se materiais jornalísticos que abordam essa temática. Como exemplo pode ser citada a cobertura da imprensa durante a visita do papa a um país asiático, os conflitos no Oriente Médio que tanto repercutem nos jornalísticos europeus, ou ainda, em denúncias contra padres acusados de pedofilia, tão presentes nos Estados Unidos. Em outras palavras, a religião é pauta, está distanciada do processo de produção midiática. No Brasil – onde pelo menos três redes de tevê, Rede Vida, Rede Canção Nova e Rede Record, pertencem a instituições religiosas – é impossível não relacionar o campo da mídia com o campo religioso. Destacam-se dentre as citadas emissoras, seja pela abrangência de suas transmissões, seja pelo crescimento constante que apresentam, a primeira e a última. A Rede Vida, com a ajuda financeira de católicos de todo o Brasil, anuncia em seu slogan que além de ser o "Canal da Família", também é a maior televisão católica do mundo. Já a Record, propriedade do bispo Edir Macedo, principal expoente religioso da Igreja Universal do Reino de Deus, se mostra como uma potência que ainda tímida busca dentro de alguns anos arranhar a hegemonia televisiva do Grupo Marinho. Neste estudo, vale ressaltar, serão analisados produtos midiáticos exclusivamente da Rede Record de Televisão. A utilização dos meios de comunicação se mostra como uma potencialidade já explorada por diversas facções religiosas não só como meio de conquista de fiéis, como forma de doutrinação em massa, mas especialmente como forma de dar visibilidade a uma determinada religião. É comum acusarem os editoriais, 12 no jornalismo impresso, de serem os porta-vozes desta ou daquela ideologia política. Quando se fala em mídia religiosa, esta voz, apresentada em materiais midiáticos, se faz presente camuflada, ora por uma similitude com os programas jornalísticos, como se verá nas páginas seguintes, ora com a aparência de puro entretenimento, com a utilização de dramatizações que se assemelham ao formato tão popular da telenovela. Conforme sugere Martino1, a utilização da mídia televisiva por parte de segmentos religiosos cumpre a função de estabelecer, por meio de canais de comunicação institucionais, uma relação rápida e eficaz entre a religião e o crente2. A mídia religiosa tem o papel de fornecer ao maior número de fiéis possível a voz institucional capaz de amainar os males que o crente propriamente dito ou o fiel em potencial possuem em suas vidas. O indivíduo não precisa ir a um templo, basta ligar a tevê, abrir o jornal ou navegar pela Internet. A Igreja Universal do Reino de Deus, segmento neopentecostal que financia e comanda a Rede Record, tem sua história vinculada ao uso dos meios de comunicação de massa como instrumento de pregação de suas crenças e uma conseqüente conquista de fiéis. Primeiramente, foram utilizados espaços em emissoras de rádio, o que causou um impacto positivo nos ouvintes. Como o número de fiéis aumentava, a cúpula iurdiana passou a desenvolver uma estratégia de adquirir veículos de comunicação. Em um ínterim de pouco mais de 20 anos, Iurd construiu um império midiático que conta com nada menos que 62 emissoras de rádio, outras tantas de tevê, uma gravadora, uma produtora de vídeos, duas editoras, além de jornais e revistas, com destaque para o jornal Folha Universal, com uma tiragem que supera os dois milhões de exemplares por semana3. A trajetória bem sucedida da Universal teve seu ápice, em novembro de 1989, com uma transação financeira, da ordem de aproximadamente 45 milhões de dólares, em que o Bispo Edir Macedo, principal liderança daquele segmento neopentecostal, adquiriu a Rede Record de Televisão e Rádio do empresário e apresentador Silvio Santos e da família Machado de Carvalho. 1 Martino, 2003, p. 85. 2 Quando neste estudo for usado o termo "crente", deve-se entendê-lo em seu sentido mais óbvio, ou seja, aquele que crê. Logo, não se faz uma referência especificamente aos fiéis de segmentos protestantes, evangélicos pentecostais ou neopentecostais. 3 Tavolaro, 2007, p. 238-239. 13 A Iurd é detentora de um conjunto de meios de comunicação e os utiliza para propagação de sua doutrina e para a conseqüente conversão de novos fiéis. Os programas iurdianos4 exibidos pela Rede Record de Televisão, apresentados às madrugadas após o término da exibição da programação comercial da emissora, utiliza- se de técnicas do jornalismo. A principal hipótese proposta, nesta dissertação, é que a associação dos programas evangélicos ao jornalismo camuflaria o interesse de pregação doutrinária dos produtores dos referidos programas e, com o uso de técnicas jornalísticas, tentariam passar aos telespectadores uma idéia de independência editorial e de credibilidade jornalística. A constituição de uma representação midiática de o que é ser um fiel iurdiano bem sucedido revela uma adequação da doutrina da Igreja Universal do Reino de Deus ao cenário da alta modernidade. 4 O termo iurdiano foi usado pela primeira vez pelo pesquisador Leonildo Silveira Campos, em Teatro, tempo e Mercado (1997). Para Campos, o termo se refere não apenas aos fiéis da Iurd, mas também àqueles que possuem alguma identificação com a doutrina e que compactuam das mesmas idéias dos adeptos deste segmento neopentecostal. Neste estudo, seu uso será estendido também para designar referência àquele e/ou àquilo que possui relação com a Igreja Universal do Reino de Deus. 14 1. Problemas, fontes e método 1. 1 O contexto religioso brasileiro Se a utilização da mídia televisiva por parte de facções neopentecostais, em especial da Igreja Universal do Reino de Deus, é um evento de inegável interesse acadêmico para a pesquisa em Comunicação, torna-se necessária uma atenção às alterações ocorridas no cenário religioso da atualidade. É importante destacar que da mesma forma que os estudos acerca de comunicação televisiva de transmissão aberta no Brasil tem uma relação próxima com a religião, nota-se que a religião também é influenciada pela mídia em geral. Ao se observar os números do Censo de 2000, percebe-se uma tendência clássica, comum a todas as culturas religiosas: a de que as religiões mais tradicionais percam crentes (ver tabela 1). A exemplo do que acontece com o hinduísmo, na Índia, que perde fiéis para as doutrinas muçulmanas, no Brasil, o catolicismo é atingido pelo avanço evangélico, apesar de os católicos ainda serem o maior grupo religioso do país5. Tabela 1 – Distribuição de fiéis entre as principais religiões de 1980 a 2000 no Brasil. Religião 1980 1991 2000 Católicos 89,2 83,3 73,7 Evangélicos 6,6 9,0 15,4 Espíritas 0,7 1,1 1,4 Afro-brasileiros 0,6 (0,57) 0,4 (0,44) 0,3 (0,34) Outras religiões 1,3 1,4 1,8 Sem religião 1,6 4,8 7,3 Total (*) 100,0% 100,0% 100,0% (*) Não inclui religião não declarada e não determinada. Fonte: IBGE, Censos Demográficos. Essa expansão das religiões pentecostais brasileiras, nascidas com forte influencia estrangeira, especialmente do pentecostalismo norte-americano6 (aqui se 5 Pierucci, 2004, p. 19. 6 Campos, 2005, p. 108. 15 unificam o pentecostalismo tradicional, com destaque para a Assembléia de Deus e a Congregação Cristã do Brasil, e as jovens ramificações neopentecostais, sendo destacada a Igreja Universal do Reino de Deus), é um fenômeno que não pode ser considerado recente ou episódico, uma vez que o aumento do número destes fiéis vem ocorrendo de forma contínua, nas últimas cinco décadas. Apesar de uma grande quantidade de denominações, as três vertentes religiosas acima citadas são as mais representativas, já que concentram 74% dos pentecostais, ou seja, representam a fé de aproximadamente 13 milhões de brasileiros7. Uma característica peculiar – e ponto chave desta dissertação – ao avanço pentecostal, em especial à Iurd, é a utilização dos meios de comunicação na divulgação da doutrina e na conseqüente conversão de fiéis. Conforme sinaliza Leonildo Silveira de Campos – docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, pesquisador especialista na doutrina iurdiana que transita entre o campo da sociologia e da comunicação – as denominações evangélicas, de uma maneira geral, tendem a ter uma postura agressiva no embate com a concorrência religiosa, principalmente ao catolicismo e aos cultos afro-brasileiros, além de uma dependência dos meios de comunicação para que possam buscar legitimidade no espaço religioso8. Seja com a compra de espaços na grade de programação de emissoras com dificuldades financeiras, estratégia usada pela Igreja Internacional da Graça de Deus, fundada pelo Missionário Romildo Ribeiro Soares, cunhado de Edir Macedo, que exibe em horário nobre, na Rede Bandeirantes, o programa Despertar da Fé, ou ainda, como faz a Iurd, com a utilização de brechas entre atrações televisivas de suas próprias emissoras de televisão, a Rede Record e a extinta Rede Mulher, com programas como o Mistério ou o mais conhecido deles, A Sessão do Descarrego, o neopentecostalismo conquista um local de destaque no cenário religioso brasileiro. A Renovação Carismática Católica pode ser entendida como a resposta católica a este avanço neopentecostal. A RCC é vista com cautela pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), porém é inegável o seu sucesso entre os padres 7 Mariano, 2004, p. 121-122. 8 Campos, 2004, p. 148. 16 recém-ordenados e as escolas de formação de sacerdotes9. O movimento carismático é caracterizado pela formação de grupos de orações que pretende dar a seus membros um aperfeiçoamento do conhecimento das histórias e interpretações bíblicas, tornando- os aptos a desenvolver uma evangelização baseada no testemunho pessoal e grupal. Esta não é a única aproximação da RCC com o neopentecostalismo. O gosto pelo uso da mídia televisiva é outra convergência entre carismáticos e neopentecostais10. Os adeptos desta segmentação da Igreja Católica Apostólica Romana ganham cada vez mais espaço no mercado televisivo brasileiro. Para tanto, basta relembrar a permanente presença, que teve seu ápice no final da década de 1990, dos chamados padres- popstar nas atrações televisivas em rede nacional. Houve uma inegável conquista de espaço no mercado editorial, radiofônico, fonográfico e televisivo por parte de religiosos carismáticos, a ponto de uma declaração de um líder deste movimento ser considerada, aos olhos de um católico médio, como visão mais representativa e legítima da Igreja Católica como um todo do que a do presidente da CNBB ou até mesmo do próprio papa11. O principal ícone da RCC brasileira, o Pe. Marcelo Rossi, ex-professor de Educação Física, religioso habilidoso no uso das mídias, capaz de reunir diversas vezes milhões de fiéis em um único culto religioso, tem suas celebrações litúrgicas exibidas semanalmente, aos domingos, pela maior rede de tevê do Brasil, a Rede Globo de Televisão. Bem menos representativos quanto ao número de fiéis estão os espíritas de orientação kardecista e os praticantes de religiões afro-brasileiras. O espiritismo, no Brasil, sempre esteve vinculado à cultura escrita, já que fundamental para este segmento religioso é a leitura de obras psicografadas e doutrinárias que seriam responsáveis por uma evolução espiritual dos seus praticantes. Não passa desapercebido o volume de publicações com esta tendência. O mais conhecido autor de best-sellers espíritas brasileiro é o médium Chico Xavier que vendeu nada menos que 25 milhões de exemplares. Com uma tiragem inferior a Xavier, aparecem o baiano Divaldo Franco e a médium Zíbia Gasparetto, ambos com mais de cinco milhões de livros vendidos. 9 Valle, 2004, p. 101. 10 Valle, 2004, p. 102. 11 Valle, 2004, p. 103. 17 O sucesso deste tipo de literatura é tamanho que Gasparetto já possui editora própria, a editora Vida e Consciência, que publica além dos romances psicografados da médium, outras obras de cunho kardecista. É importante ressaltar que o público destas publicações não necessariamente é composto por espíritas praticantes. Em grande parte, é formado por simpatizantes da doutrina ou ainda pelos leitores acostumados aos tão populares manuais de auto-ajuda12. Como se pode observar nos dados do Censo de 2000, o número de fiéis das religiões afro-brasileiras, de maneira geral, vem diminuindo nos últimos 20 anos. Mas há de destacar que dentro deste conjunto de religiões ocorrem dois fenômenos distintos. Enquanto o número de praticantes do candomblé aumenta, o de umbandistas decresce. O número de seguidores do candomblé cresceu de cerca de 107 mil, no ano de 1991, para quase 140 mil, nove anos mais tarde. O caminho inverso aconteceu com os praticantes da religião afro-brasileira com maior número de fiéis. A umbanda teve uma retração de aproximadamente 110 mil devotos no mesmo ínterim em que o candomblé cresceu. Um dos fatores que contribuem para esta perda de número de fiéis umbandistas é a estratégia agressiva de embate religioso promovido pelas religiões neopentecostais, em especial na mídia televisiva, com destaque para a desenvolvida pela Igreja Universal do Reino de Deus, que se caracterizam por ataques à doutrina e aos adeptos das religiões de origem afro-descendente13. 12 Stoll, 2005, p. 178. 13 Prandi, 2004, p. 227. 18 1.2 A hipótese É importante ressaltar que diversos gêneros e formatos televisivos são utilizados na programação iurdiana. Neste estudo, será enfocado, especialmente, o jornalismo. A teledramaturgia, por exemplo, exerce função marcante durante a programação, mas será apenas abordada ocasionalmente. Assim, a intenção é verificar a maneira com que os iurdianos se utilizam de práticas peculiares ao jornalismo para atribuir a seus produtos midiáticos credibilidade, interesse e segurança. A visibilidade midiática, camuflada por uma espécie de pseudo jornalismo, permite que a audiência tenha acesso a uma “fé inteligente”, racional, que conduz ao sucesso na vida pessoal e à prosperidade financeira. Este é um enfoque de importância, porém, anterior a este, uma vez que o jornalismo em si faz parte das transformações modernas, nota-se a presença recorrente de reflexos da modernidade nos programas analisados. Não se pode esquecer que, como os líderes iurdianos possuem sob seu domínio e a sua disposição uma rede de emissoras de televisão, torna-se eficiente e desejável a utilização destes meios para a pregação. A Rede Record, enquanto empresa midiática potente e atualizada que é, possui uma estrutura regionalizada. É através de emissoras afiliadas que a Record consegue proporcionar a seu público um noticiário regional, a exemplo do que acontece com a Globo e, com menos intensidade, com o SBT, Bandeirantes e Rede TV!. Este fenômeno da regionalização também se deu no tele-evangelismo iurdiano. O pastor ao se tornar apresentador se transforma em uma celebridade midiática disposta a se aproximar, em nome de Deus, da audiência que precisa de orientação espiritual. Que outra vertente religiosa possui seus lideres tão midiatizados? E ainda mais, não são os grandes líderes, distantes da maior parte da população que comandam a grade iurdiana. São as estrelas da pregação o pastor que está durante a tarde toda no templo, em cidades próximas ao telespectador, seja Bauru, Jaú ou Marilia, a espera daqueles que os assistiram. Há uma relação de intimidade (não se fala com um pastor que está distante de mim, que não vive na mesma região que eu, que não conhece a minha realidade social), de cumplicidade entre emissor e receptor, relação esta que conduz a uma sensação de segurança. Desse relacionamento confiável emerge uma relação fiduciária e um sentimento de comunidade. 19 Ainda para reforçar a questão da comunidade, é sempre presente, nos testemunhos, o depoimento de pessoas que já estiveram na posição de espectadores e agora se tornaram, por força divina, emissores de mensagens midiáticas de salvação. Os depoimentos são carregados de histórias que seguem a seguinte seqüência: “eu estava desanimado, viciado, doente, atormentado pelo mal, falido economicamente, assisti ao programa do pastor, resolvi ir ao templo e minha vida mudou”. Isso busca criar uma identificação entre emissor e receptor, indispensável para a criação da comunidade. É importante notar que existe uma variação nesta seqüência da narrativa. Quando aquele que se converteu não assistiu a um programa, conheceu a igreja por meio de um amigo ou parente. Se a comunidade iurdiana torna-se midiaticamente representada, para que esta se reafirme, é necessário que se estabeleçam limites entre o que é ser iurdiano e o que é não pertencer à comunidade. Logo, é de relevância para este estudo qualquer discurso intolerante a outras doutrinas religiosas. Referências a católicos, umbandistas, adeptos do candomblé ou de outras ramificações neopentecostais merecem ser analisadas neste estudo. Um outro ponto importante é a modernização da fé. A fé iurdiana é uma “fé inteligente”, que vem acompanhada de dicas práticas de administração de empresas, que conduz o fiel à prosperidade e independência financeira. Trata-se de uma fé crítica e racional em que o crente tem de escolher o lado em que quer atuar. Caso o lado escolhido seja o do Mal, o individuo vai enfrentar desgraças e tristezas, como dependência química, vícios, dificuldades na vida amorosa, problemas familiares, doenças, necessidade financeira. No entanto, se a escolha for seguir o caminho de Deus, desde que seja um iurdiano dedicado e perseverante que freqüenta o templo com assiduidade, o que existe entre fiel e o divino é um relação de negócios. Um toma partido do outro; um freqüenta o templo enquanto o outro manda bênçãos, estabilidade financeira, familiar, amorosa, libertação de vícios e a conquista da paz. O pastor diz que apenas oração não enche a barriga de ninguém. É preciso que se tenha uma fé critica e pragmática, com atitude por parte do crente. O crente precisa ajudar a Deus em sua manifestação certeira e gloriosa. 20 A questão da família também é destaque. Muito embora o padrão desejado da família iurdiana seja o de uma família tradicional composta por pais que se amam e filhos obedientes e agradecidos aos pais, a pregação iurdiana não despreza aqueles que não seguem a este modelo. As mães solteiras, os filhos rebeldes, os maridos adúlteros, as prostitutas são bem vindos nos templos iurdianos, muito embora, a libertação signifique seguir o modelo tradicional de família e ainda mais, com prosperidade financeira. Isto pode ser encarado como falta de preconceito e necessidade de mostrar, segundo a perspectiva da Iurd, o caminho traçado por Deus àqueles que estão perdidos ou então uma estratégia obvia de não desprezar fiéis em potencial que outras facções religiosas desprezam. O que os programas iurdianos fazem é, na verdade, a criação de um espaço próprio, o espaço de uma comunidade regional iurdiana. Tal comunidade seria formada por pessoas que se identificam com a identidade cultural midiática dos adeptos da Igreja Universal do Reino de Deus. Contribuem para a institucionalização desta comunidade, a regionalização da programação, a pregação de uma fé inteligente e a apresentação da estrutura da família moderna. Como mecanismos utilizados para a criação das fronteiras desta comunidade, estão o arremedo de jornalismo e da telenovela. Em alguns discursos da programação, nota-se que mais importante do que evidenciar o que faz parte da comunidade é destacar o que é externo a ela. Daí a relevância de se abordar o preconceito em relação aos adeptos de religiões afro- brasileiras, ou seja, aqueles que são diferentes dos membros da comunidade iurdiana. Assim, pode-se até pensar que se há necessidade de confiança, para que haja o desencaixe, esta confiança é garantida por um ser divino, infalível, onipresente e justo. Logo, se a Igreja é um sistema perito, não há como o crente não ter confiança nela, ainda mais com o respaldo de um ser reconhecidamente superior em sabedoria e com poder de influenciar na vida dos humanos. O objetivo principal desta pesquisa é, considerando todos os apontamentos acima citados, verificar o processo de construção de uma comunidade iurdiana, com sua identidade própria, através da utilização de técnicas do telejornalismo em um veículo de comunicação de massa. 21 1. 3 O corpus Ao contrário do que se poderia esperar de um segmento religioso em expansão, a direção da Iurd preferiu não alterar drasticamente a programação da emissora. Enquanto se esperava que programas religiosos povoassem toda a grade de atrações, a exemplo do que hoje acontece com a TV Canção Nova e com a Rede Vida, esta com menos intensidade que a primeira, a Record continuou com uma política de investimento em entretenimento, programas de auditório, filmes e teledramaturgia. No entanto, especula-se, pela imprensa, o desejo da cúpula iurdiana de criar uma nova rede internacional de televisão com programação exclusivamente evangélica. O “Projeto CNN”, como foi chamado pelos jornais, aponta para a possível sede da futura emissora ser em Atlanta (EUA), com transmissões em inglês e espanhol, a exemplo do que acontece com aquela emissora norte-americana. Os dirigentes da Iurd pouco comentam sobre este ambicioso projeto14. No entanto, o bispo Edir Macedo não escondia, na época da compra da Rede Record, que sua intenção era fazer da emissora uma tevê moderna, profissional e com destacado papel no mercado de comunicação15. Logo, os programas de cunho religioso ficaram restritos a horários determinados, ocupando principalmente as madrugadas. Espaço na grade de programação estratégico este que alia a baixa lucratividade publicitária do horário à uma audiência solitária que procura algum conforto na forma de entretenimento mais acessível: a tevê. É curioso que, apesar da inegável potencialidade da pregação televisiva, existem alas da cúpula iurdiana que ainda preferem a pregação via radio, devido aos programas radiofônicos soarem como uma conversa mais íntima e eficaz com a audiência16. É importante esclarecer o recorte, feito aqui neste estudo, da grade de programação da Rede Record. Tal divisão, um dos principais artifícios que mantiveram a Record como emissora lucrativa, se dá entre a programação comercial e a programação iurdiana. Quando a Record, uma das emissoras de tevê mais tradicionais 14 Castro, 2006. 15 Campos, 1997, p. 287. 16 O bispo Carlos Rodrigues, por exemplo, responsável pela rede de emissoras de rádio da igreja, não esconde a sua preferência pessoal pela radioevangelização. "O rádio é um meio de comunicação sem igual, não há nada como o rádio. A televisão tem o poder da imagem, mas não tem a força do rádio”. (Mariano, 1999, p. 68) 22 do país, foi comprada pelo Bispo Edir Macedo, especulou-se que esta televisão se tornaria uma extensão dos altares dos cultos iurdianos. Mas isto não aconteceu. A proposta da nova direção foi não alterar drasticamente a programação. Pelo contrário, modernizaram a emissora, agindo com um profissionalismo que manteve a Record num patamar de destaque no mercado televisivo brasileiro17. A Record possui uma programação semelhante a das suas concorrentes. Programas de auditórios, sessões de filmes norte-americanos, seriados, telejornais, programas femininos, de variedades e humorísticos são uma constante. A formula dos reality-shows, lançada no Brasil pela Rede Globo de Televisão – com o No limite e mais tarde o sucesso de Big Brother Brasil – , fez de O aprendiz (uma espécie de jogo em que o apresentador, um patrão cruel, demite um participante a cada semana e, ao final da temporada, o vencedor tem como prêmio um cargo com alto salário na empresa do apresentador-empresário) um dos líderes de audiência da emissora. Observe no fragmento a seguir a opinião do bispo Edir Macedo sobre o carnaval brasileiro: É a festa da carne. A época em que há mais mortes, brigas, tragédias, desgraças em geral. Muitos lares são destruídos com a promiscuidade. Eu gostava do carnaval, mas, depois de minha conversão, mudei de pensamento. Nunca mais participei desse tipo de festa e não sinto falta. Minha alegria não dura os três dias de folia, mas os 365 dias do ano. Eu detesto, mas respeito os que gostam. (TAVOLARO, 2007, p.227) No entanto, apesar de o bispo Macedo considerar o fato de comemorar tal festa não ser próprio do fiel iurdiano, no carnaval de 2007, a Rede Record surpreendeu a audiência e ainda mais suas concorrentes ao fazer, pela primeira vez desde a aquisição da emissora pelo bispo Macedo, a cobertura dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, festa popular esta que nos cultos da Iurd é tratada como “festa do diabo”. A direção da emissora não colocou empecilhos para que repórteres, direto da Sapucaí, entrevistassem artistas e celebridades que estavam em um camarote para assistir ao desfile carnavalesco. O programa entrou no ar como Especial Carnaval 17 Campos, 1997, p. 287. 23 2007 – Camarote Brahma18. Tal ocorrência mostra que a direção iurdiana da emissora não costuma – ou pelo menos é cuidadosa – ao misturar a programação comercial com os preceitos religiosos pregados pelo bispo Edir Macedo. Outra empreitada que a Record tem se envolvido com sucesso é a produção de telenovelas. No mês de março de 2007, a rede de televisão do Bispo Macedo tentou contratar uma das mais populares atrizes da televisão e do cinema brasileiro: Fernanda Montenegro. A artista, estrela da Rede Globo que foi indicada ao Oscar de melhor atriz por Central do Brasil (Walter Salles, 1998), rejeitou a proposta de estimados um milhão de reais mensais alegando não desejar fazer novelas naquele ano. Sem dúvidas, apesar da empreitada mal sucedida, das declarações de que Montenegro não descarta negociar com a Rede Record no futuro, pode-se perceber que a ordem na emissora é não poupar investimentos19. Fernanda Montenegro tornou-se exceção ao negar o convite do Bispo Macedo. Artistas e jornalistas da Rede Globo de Televisão tem cedido às propostas da Record o que fez com que a emissora ganhasse uma roupagem de semelhança com a líder de audiência. Celso Freitas, jornalista que apresentou o Jornal Nacional, telejornal de maior audiência da televisão brasileira, de 1983 a 198920, comanda o Jornal da Record. A novela Vidas Opostas tem como protagonistas atores e atrizes que já fizeram parte do casting da Globo. A apresentadora da Record e cantora gospel que freqüenta a Iurd, Mara Maravilha, em declaração à Folha de S. Paulo, analisa o atual contexto artístico-televisivo brasileiro. “A Record está quebrando o monopólio na tevê, libertando a classe artística da escravidão. A Globo é como se fosse uma ditadura. É preciso acabar com a falsa idéia de que o sucesso só existe se o artista aparecer na tela da Globo”21. Ainda falando em jornalismo, a imprensa tem chamado de “guerra jornalística” a contratação por parte da Record, com propostas vantajosas de salário, de jornalistas renomados da Rede Globo. Nos últimos dois anos mudaram de emissora Silvestre Serrano, Rodrigo Vianna, Lúcio Sturm, Arnaldo Duran, dentre outros. Mais 18 Feltrin, 2007(1) 19 Feltrin, 2007 (2) 20 Ribeiro, 2004, p. 398. 21 Feltrin, 2007 (3) 24 recentemente, a correspondente internacional Heloísa Villela assinou contrato com a emissora do bispo Macedo. A experiência da jornalista que há 17 anos é correspondente nos Estados Unidos, a estrutura de um escritório em Washington, com vista para a Casa Branca e, a exemplo do que só a Globo possuía dentre as televisões abertas brasileiras, uma credencial que permite aos jornalistas da Record acesso à sede do governo norte-americano prometem acirrar a disputa entre Globo e Rede Record nas coberturas internacionais22. Todo este investimento na programação fez com que a Record ultrapassasse o Sistema Brasileiro de Televisão em índices de audiência, no ano de 2007. Em janeiro deste ano, SBT e Record empataram na vice-liderança, mas nos dois meses seguintes a última emissora se isolou como segunda rede de maior audiência do Brasil. Em comparação com o desempenho do primeiro trimestre de 2006, a Record teve um crescimento de audiência de aproximadamente 18%, enquanto que a emissora de Silvio Santos teve um decréscimo de 17% nos índices de audiência23. A rede de televisão do bispo Macedo, embora apresente crescimento tanto em índices de audiência quanto em faturamento24, ainda está distante da líder de audiência, a Rede Globo de Televisão, propriedade da família Marinho. Mas a Record tem conquistado o seu espaço e começa a incomodar a Globo. Um passo importante rumo a liderança no Ibope foi dado ao ser definido que o direito de transmissão das Olimpíadas de 2012, em Londres, será exclusividade da Record. Com uma proposta muito superior a da concorrente, a rede iurdiana desembolsará aproximadamente 30 milhões de dólares para exibir o evento esportivo. Para se ter uma idéia, de quão superior foi a proposta vencedora, a Globo pagou 12 milhões de dólares para exibir os Jogos Olímpicos de Pequim - 200825. Até mesmo a atual programação comercial da Record incomoda a Globo. É o caso da disputa travada entre o Hoje em Dia e o Mais Você, da primeira e da segunda emissora, respectivamente. Ambos os programas são atrações de variedades, com jogos com o telespectador, culinária, notícias, ambientados em um cenário que faz 22 Feltrin, 2007 (4). 23 Feltrin, 2007. (5) 24 Schneider, 2007. 25 Jardim, 2007. 25 alusão uma casa. O programa de Ana Maria Braga, por anos líder de audiência no horário, não só perdeu telespectadores para o Hoje em Dia, bem como não é mais novidade ficar atrás no ibope da atração comanda por Britto Jr (um jornalista que fez carreira na Globo), a modelo Ana Hickmann e o culinarista Edu Guedes. A disputa entre os dois programas promete se acirrar ainda mais agora que a atração da emissora do bispo Edir Macedo promete lançar um jogo de perguntas e respostas com os telespectadores que irá dar prêmios de até um milhão de reais26. Um outro exemplo do crescimento da Record é o programa “Show do Tom”. Estrelado pelo humorista Tom Cavalcante que fez sucesso na década de 90 na Globo, a atração tem alcançado índices de audiência que trouxeram um novo rival para a emissora da família Marinho nas tardes de domingo. Com uma sátira do filme Tropa de Elite (José Padilha, 2007), Tom e um grupo de atores e humoristas tem deixado o Domingão do Faustão na vice-liderança27. Ou ainda, o lançamento do canal de notícias Record News acirra a disputa entre as duas emissoras. A Globo, sem dúvidas, ganhou uma adversária que promete incomodar ainda mais nos próximos anos. Edir Macedo possui um objetivo claro: conduzir a Record à liderança do mercado televisivo de transmissão aberta brasileiro. “Avançamos bem, mas ainda é pouco. Vamos ser líderes na comunicação no Brasil. A Record será a número 1. Iremos trabalhar o tempo que for necessário, mas vamos chegar lá. (...) Quem viver, verá”28, afirma o bispo Macedo. Com tanto dinheiro a investir, a declaração do bispo não pode ser considerada apenas um blefe. O superintendente comercial da emissora, Walter Zagari, em entrevista à Folha de S. Paulo, na festa de lançamento de mais uma telenovela da emissora, em 12 de Outubro de 2006, disse que a expectativa era estar dentro de dois anos no mesmo patamar de audiência e faturamento da Rede Globo de Televisão29. Esta declaração de impacto de Zagari poderia ser considerada infundada, apenas com o objetivo de promover sua empresa. Mas em enquete online, a Folha de S. Paulo questionou cerca de 17 mil internautas e obteve como resultado que 57% acreditam que a Record irá ser a líder de audiência um dia. Quando a questão se 26 Reipert, 2007. 27 Dantas, 2007. 28 Tavolaro, 2007, p. 149. 29 Pompeu, 2007. 26 referia ao tempo que a emissora iurdiana levaria para ultrapassar a Rede dos Marinho, com uma participação de mais de 4 mil leitores, apenas 16% dos que responderam à enquete não acreditam que a Record será capaz de superar a Globo30. É esta programação lucrativa, de altos índices de audiência, semelhante à grade das emissoras concorrentes que classificamos de programação comercial da referida emissora. No entanto, todas as noites, terminada a programação comercial, sempre após a meia-noite, ocupando toda a madrugada, tem inicio aquilo que nesta dissertação será classificada de programação iurdiana31. A apresentação destes programas não tem em seu comando ex-estrelas globais, a exemplo do que acontece com a programação comercial, mas é sempre feita por pastores daquela facção neopentecostal. A busca da conversão da audiência aos dogmas da Igreja Universal do Reino de Deus é uma marca sempre presente. O bispo Edir Macedo não esconde que exista a separação entre a programação comercial e a programação iurdiana. A Igreja Universal nada mais é que um dos clientes da Record. Ela aluga espaços na programação da emissora e, como qualquer outro anunciante, paga por esses espaços. A igreja paga pelo aluguel da madrugada, horário, aliás, que a Globo e o SBT não querem alugar. Já recebemos diversas propostas negativas, principalmente da Globo, para nossos pedidos em comprar espaço nesses dois canais durante a madrugada. (TAVOLARO, 2007, p. 214) Mas o que chama a atenção é que, cada vez menos, são exibidas pregações gravadas em templos da Iurd. A pregação dos altares, de inegável eficiência nos templos, reproduzida na tevê não chama tanto a atenção da audiência quanto os programas iurdianos, deslocados para os estúdios da emissora, que se aproximam dos formatos de programa de entrevista ou de telejornalísticos. Tapes de curta duração de exorcismos realizados nos templos, matérias investigativas desenvolvidas por repórteres, atendimento espiritual em que a audiência toma conselhos com o 30 Feltrin, 2007. (6) 31 Achou-se oportuno não selecionar um programa específico, uma vez que tais programas não possuem horário fixo para entrar no ar, são substituídos por outros similares sem aviso prévio e são muito semelhantes entre si. Nota-se que não existem grandes diferenças entre Mistérios e o Nosso Tempo, por exemplo. São também exemplos de programas iurdianos o Falando da vida, A hora dos empresários, Saindo do vermelho, O despertar da fé, dentre outros. 27 apresentador-pastor, entrevistas exclusivas com vítimas de forças demoníacas, a tradicional benção do copo de água, sempre ao final dos programas, compõem a programação iurdiana que sempre termina, logo ao amanhecer do dia, com o primeiro programa da grade comercial da Record. Este fenômeno da utilização dos meios de comunicação por parte da religião estaria provocando não apenas uma mudança no cenário midiático, mas também no religioso. Chega-se ao conceito de religião fast food, desenvolvido por Martino. Para ele, a necessidade de exercer a religiosidade, por parte dos fiéis, é comparável à fome de um consumidor que, na correria de seu dia, substitui seu almoço por um sanduíche. Ou seja, encontra uma solução rápida para sua necessidade32. A audiência procura uma resposta eficiente e superficial que consola e ameniza as situações de conflito que esta vê retratada na tevê. A busca por palavras de consolo não está mais condicionada à ida ao templo religioso. Assistir a um programa de tele- evangelismo surge como opção mais prática e até mesmo agradável33. Com uma roupagem dinâmica em que o apresentador-pastor entrevista convidados, fala com a câmera, chama matérias externas, a programação iurdiana propõe uma evangelização com características de entretenimento e de jornalismo. Nesta dissertação, serão exploradas especialmente as aproximações de tais programas às técnicas particulares ao jornalismo. A doutrina está sempre implícita. Correntes divergentes dentro da própria instituição, líderes com idéias conflitantes ou a exposição de argumentos que possam causar discussão acerca dos dogmas são evitados. A exemplo do que acontece com qualquer mídia, os processos de realização de pautas e de edição são artifícios utilizados para enfocar um determinado tema de maneira tendenciosa, porém com uma aparente imparcialidade. Tudo parece representar uma realidade. Mas com um olhar atento, percebe-se que esta pseudo-realidade é, em geral, conduzida por escolhas temáticas, seleção de imagens, textos e depoimentos que visam defender um ponto de vista 32 Martino, 2003, p. 53. 33 É importante ressaltar que, no caso da programação iurdiana, o fato de o individuo ser audiência desses programas não torna dispensável a sua ida a um templo da Iurd. Isso pode ser comprovado com os repetidos convites feitos pelas lideranças religiosas durante os programas iurdianos. 28 favorável à religião detentora da mensagem34. As produções televisivas surgem sem a necessidade de expor este objetivo à audiência, ou seja, de serem normativos da conduta a ser seguida pela audiência. A mídia religiosa em geral tem o papel de fornecer ao maior número de fiéis possível a voz institucional capaz de aliviar os males que o crente propriamente dito ou o fiel em potencial possuem em suas vidas. Em outras palavras, a televisão acaba se tornando um veículo eficaz de transmissão de materiais simbólico-religiosos, uma vitrine midiática do sagrado. Vale destacar a importância do simbólico para a constituição das religiões. Os símbolos religiosos representam de maneira visível o que pertence a um mundo incapaz de ser visto com olhos humanos. É por meio de uma relação simbólica que o indivíduo toma contato com o divino. Seja por meio das imagens de santos, orações, crucifixos, ilustrações ou até mesmo um livro produzido com inspiração sagrada, o simbólico se apresenta. Tamanha é a força que tal relação possui, Cruz chega a afirmar que “os símbolos são o que há de mais primitivo e duradouro no humano”35. É esta relação simbólica entre produtores midiáticos e audiência, efetivada durante a programação iurdiana que vai ser explorada nesta pesquisa. Será analisada a programação iurdiana de 07 a 14 de Maio de 2007. Serão nada menos que, aproximadamente, 50 horas de programação iurdiana. Achou-se oportuno não selecionar um programa específico, uma vez que os programas que compõe a grade iurdiana não possuem horário fixo para entrar no ar, são substituídos por outros sem aviso prévio e apresentam semelhanças de formato, temática, gênero, cenográficas entre si. A escolha desta semana também não de seu de forma aleatória. Durante este período, Joseph Alois Ratzinger, o papa Bento XVI, participou, em Aparecida (SP), da 5ª Conferência Geral do Celam (Conselho Episcopal Latino-americano). Durante este evento que reuniu autoridades católicas da América Latina e do Caribe, foi realizada a cerimônia de canonização do primeiro santo brasileiro: Santo Antônio de Sant´Anna Galvão, conhecido como Frei Galvão. A visita da maior liderança da igreja católica ao Brasil tem cobertura jornalística garantida por todas as emissoras de 34 Martino, 2003, p. 87. 35 Cruz, 2004, p. 34. 29 televisão aberta do país, em especial, a Rede Globo e Rede Bandeirantes que anunciam desde o início do ano esta atração. Mas será que a Rede Record, em sua programação iurdiana, vai comentar a visita do sumo pontífice católico? Notadamente, a pregação nos templos iurdianos é marcada pelo conflito religioso, em especial com ataques à umbanda e ao candomblé e, com menos intensidade, ao catolicismo. Em atrações da programação iurdiana já foi comum a utilização de discursos preconceituosos em relação à doutrina e às práticas de cultos afro-brasileiros. Na doutrina iurdiana, a umbanda e o candomblé são religiões demoníacas e a suas divindades e a seus praticantes são creditadas as responsabilidades pelo mal que aflige a audiência. Ter contato físico com um umbandista ou mesmo passar em frente a um terreiro de candomblé já é visto, segundo a perspectiva iurdiana, como ameaça de ser atormentado por espíritos maus, causadores do desemprego, das doenças, dos desentendimentos familiares, do envolvimento com drogas e até mesmo da homossexualidade. Veja o que diz o Bispo Macedo acerca de tais religiões: Como pode alguém servir a outrem, se a este não se submete. Assim, também os demônios não podem servir a Deus. (...) Existem pessoas que freqüentam terreiros de umbanda, quimbanda, candomblé e similares, e acreditam que estão servindo a Deus. É impossível considerar tal coisa, pois a feitiçaria e todas as suas práticas, como consulta aos mortos, mediunidade, intercessão através de guias, outros deuses, como orixás e caboclos, são pecados contra Deus. (MACEDO, 2000, p. 30) O programa Mistérios, exibido durante anos, na programação iurdiana, tinha a apresentação de um pastor e, para auxiliá-lo no atendimento de pessoas atormentadas por espíritos que participavam ao vivo, por telefone, um suposto ex praticante de cultos afro-brasileiros, tratada pelo apresentador-pastor por ex-mãe de encosto. Tal atração, que trazia às telas um verdadeiro clima de guerra espiritual em que não se tinha qualquer receio em apontar os adeptos da Iurd como representantes das forças divinas e a doutrina e os praticantes dos cultos afro-brasileiros como encarnações diabólicas, não faz mas parte da grade de programação iurdiana. Os ataques a outras instituições religiosas ainda ocorrem, mas de maneira indireta e menos agressiva do que acontecia em Mistérios, exibido durante o ano de 2004. 30 Mas será que a intensa cobertura jornalística realizada pelas emissoras de tevê aberta do país fez reviver a característica iurdiana de partir para o ataque às religiões contrárias a sua doutrina, logo, que não conduzem à “salvação divina”? Foram capazes de promover alguma crítica direta ao catolicismo, religião predominante no Brasil? Isto será verificado nas páginas a seguir e se trata de um dos objetivos desta dissertação. 31 1. 4 O método O método escolhido é o da análise de conteúdo. Ao optar por este método, corre-se o risco de se ter a pesquisa taxada, a exemplo do que aconteceu com a pesquisa norte-americana em comunicação, de meramente descritiva, com muita sistematização de dados e pouca reflexão36. No entanto, esta escolha metodológica se dá em virtude da busca por procedimentos técnicos sistemáticos e objetivos de descrição de conteúdo de mensagens, de indicadores não necessariamente quantitativos, que tornem possível a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção e de recepção destas mensagens37. A principal virtude de um trabalho que faça uso da análise de conteúdo é a sua tendência a rejeição de conclusões, quase sempre prematuras e errôneas, amparadas pela subjetividade e pela intuição do pesquisador. Não se quer de maneira alguma promover especulações, mas sim, amparado pelo discurso tele-evangélico dos iurdianos e por referências teóricas apropriadas, atingir a leituras objetivas e generalizáveis, em que o que o pesquisador desvenda na mensagem realmente esteja contido nela ou ainda esquematizar os mecanismos utilizados no processo de produção da mensagem38. Ainda pensando nos mecanismos de produção de mensagem, Bourdieu propõe alguns questionamentos que, segundo ele, deveriam estar em mente dos produtores de mensagens televisivas de qualquer espécie: Com a televisão, estamos diante de um instrumento que, teoricamente, possibilita atingir todo mundo. Daí certo número de questões prévias: o que tenho a dizer está destinado a atingir todo mundo? Estou disposto a fazer de modo que meu discurso, por sua forma, possa ser entendido por todo mundo? Será que ele merece ser entendido por todo mundo? (...) E desejaria que todos aqueles que são convidados a ir à televisão as fizessem a si mesmos ou que fossem pouco a pouco obrigados a fazê-las porque os telespectadores, os críticos de televisão, as fazem a si próprio e as fazem a propósito de suas aparições na tevê: ele tem algo a dizer? Está em condições de poder dizê-lo? O que diz merece ser dito nesse lugar? Em suma, que faz ele ali? (BOURDIEU, 1997, p.18) 36 Porém, considerar a pesquisa norte-americana, como um todo, sistemática, pragmática e de poucas contribuições reflexivas é ignorar décadas de evolução dos trabalhos daquela escola 37 Bardin, 1988, p. 42. 38 Bardin, 1988, p. 28-29. 32 Assim, o foco principal deste trabalho está na produção da mensagem. A preocupação está na eficácia comunicativa estabelecida pelos pastores- apresentadores. Apesar da inegável importância, não se pretende traçar o perfil da audiência dos programas iurdianos. A questão da conseqüência da recepção das mensagens não será abordada profundamente. Esta dissertação possui duas fases distintas de pesquisa. Num primeiro momento, empregando a análise de conteúdo, será evidenciado, pela análise das produções midiáticas iurdianas em questão, a constituição da identidade do fiel da Iurd, bem como daqueles que não são adeptos em potencial e também daqueles que são inimigos desta fé. Oportunas serão as reflexões acerca da (in)tolerância iurdiana acerca do outro, do não crente, do que optou por viver sua religiosidade em outra religião. A atenção também estará voltada para a disseminação de conteúdos que expressam a teologia39 iurdiana, como a idealização da vida com Deus, a questão da moral, da libertação de vícios, a constituição de uma fé individualista em que o sucesso no plano espiritual está diretamente ligado ao sucesso do individuo no campo financeiro (as graças divinas são comumente associadas à aquisição de imóveis, carros e de bons empregos pelos fiéis). Feita esta análise, será discutida a utilização de técnicas pertinentes ao formato telejornalístico na disseminação dos preceitos da fé iurdiana. A estrutura da notícia, a postura dos apresentadores-pastores, o texto, o cenário, as entrevistas, a participação ao vivo de telespectadores por telefone, as matérias externas, a veiculações de simulações da vida cotidiana do telespectador (aqui se nota uma aproximação com a telenovela) são pontos a serem explorados. Uma informação importante acerca da amostragem que será analisada é que a programação iurdiana, embora apresente características do formato jornalístico, não é considerada como tal na grade de programação da emissora. É importante ressaltar que os tais programas iurdianos nem sequer são mencionados no site oficial 39 É interessante observar que, ao contrário de uma tendência de outras organizações evangélicas, os pastores da Universal não possuem formação em teologia. Para o principal líder da Iurd, o bispo Edir Macedo, a formação teológica é desnecessária e conduz o religioso a uma pregação voltada para a teoria, não para a prática. Para ele, todos os ramos da teologia são fúteis. 33 da Record40 como parte de sua programação. A grade disponível no endereço eletrônico apenas faz referência àquela programação comercial já citada. Uma das principais características do jornalismo é o pacto de credibilidade que deve existir entre a audiência e os jornalistas. Mas esta credibilidade é complexificada uma vez que os jornalistas de televisão, ou da mídia em geral, não atuam simplesmente como observadores passivos que apenas reportam os acontecimentos. Há, é inegável notar, uma participação ativa, por parte dos profissionais da noticia, no processo de criação de acontecimentos passíveis de serem selecionados como de interesse jornalístico41. É comum existirem pressões políticas, econômicas e culturais para se selecionar este ou aquele fato, ser cauteloso nas críticas com esta ou aquela personalidade, por exemplo. Mas, como as empresas midiáticas precisam lucrar, é estratégico manter uma postura, mesmo que muitas vezes fictícia, de isenção editorial, de credibilidade42. Isto conduz a formulação de uma hipótese acerca da opção da Iurd, por esta aproximação, mesmo que sem o aval oficial da Record, enquanto emissora comercial: a intenção de associar os programas evangélicos ao telejornalismo proporcionaria aos programas apresentados por pastores iurdianos um status de credibilidade e independência editorial, ao mesmo tempo em que camuflam o interesse por parte dos emissores da mensagem de promoverem a pregação da doutrina da Igreja Universal do Reino de Deus. Pierre Bourdieu chama atenção às armadilhas que são as conclusões precipitadas e uma abordagem indevida em estudos acerca da televisão. Bourdieu aconselha os pesquisadores: A emergência do meio de massa por excelência que é a televisão não é um fenômeno sem precedente, senão por sua amplitude. Abro aqui um parêntese: um dos grandes problemas dos sociólogos é evitar cair em uma ou outra da duas ilusões simétricas, a ilusão do “nunca visto” (há sociólogos que adoram isso, fica muito chique, sobretudo na televisão, anunciar fenômenos inauditos, revoluções) e a do “sempre assim” (que é antes do feitio dos sociólogos conservadores: “nada de novo sob o sol, haverá sempre dominantes e dominados, ricos e pobres...”). (BOURDIEU, 1997, p.61) 40 41 Arbex Jr., 2002, p. 98. 42 Melo, 2002, p. 43. 34 Em meio a tantas outras pesquisas que abordam os recursos lingüísticos, as estratégias de argumentação dos pastores ou ainda que são responsáveis por descrever o histórico e o desenvolvimento da Igreja Universal do Reino de Deus, tantos enfoques possíveis e de inegável interesse, esta pesquisa quer se situar entre o “nunca visto” e o “sempre assim”, promovendo uma discussão que contextualize a programação iurdiana com a estética e os recursos de produção telejornalística atuais, para que seja verificadas, por meio da análise de conteúdo do corpus selecionado, a dimensão simbólica do discurso presente nos programas e as aproximações entre tais atrações televisivas e o campo do jornalismo. Também será observado se a questão do conflito religioso está presente, dada a visita do papa Bento XVI, bem como a presença de influências da modernidade no discurso iurdiano. Neste momento da pesquisa em que se explicita as questões metodológicas da dissertação, torna-se necessário esclarecer alguns pontos acerca de posturas e escolhas do pesquisador. Em primeiro lugar, deve-se dizer que este estudo não tem a intenção, em nenhum momento, de atacar a fé iurdiana, suas lideranças ou seus fiéis. Nota-se, em alguns trabalhos que abordam a mesma temática, uma postura claramente contrária a Iurd, com ironias acerca da doutrina e conduta da cúpula iurdiana. O que se pretende aqui, na análise das aproximações entre os programas iurdianos e o jornalismo, é desenvolver um trabalho que critique sim os pastores quando estes fizerem comentários preconceituosos que tendem à intolerância religiosa, racial ou ainda de opção sexual. Mas em nenhum momento será questionada a fé dos iurdianos, seus dogmas, suas obrigações perante a Deus, sua eficiência na vida de seus crentes. As discussões que pertencem a esta categoria devem ser respondidas por aqueles que daquela fé já experimentaram e não competem a este estudo. Não se quer repercutir acerca do caráter do bispo Edir Macedo. Outros pesquisadores o fazem, muitas vezes se utilizando de “provas” publicadas em jornais ou emissoras da tevê. Não será dada tanta importância a este tipo de “provas”, uma vez que estas são comumente veiculadas por veículos concorrentes da Record, logo potencialmente interessados em conduzir os fatos de uma maneira desagradável aos interesses do proprietário da Rede Record. Consideram-no um charlatão apenas 35 interessado no dízimo dos crentes. Chamam-no “bispo” Edir Macedo, em tom pejorativo. Nesta dissertação, o principal expoente da Igreja Universal do Reino de Deus será tratado, como autoridade religiosa que é, por bispo Edir Macedo, por bispo Macedo ou ainda, simplesmente, por Edir Macedo. No entanto, é importante ressaltar a necessidade de se relacionar a produção televisiva com a figura do bispo Edir Macedo e o segmento religioso neopentecostal do qual ele é a principal autoridade. Porém, Pierre Bourdieu aconselha cautela no desenvolvimento desta relação. Para ele, “há uma forma de materialismo curto, associado à tradição marxista, que não explica nada, que denuncia sem esclarecer nada”43. Não se pode, assim, explicar o que faz a Record apenas pelo fato de que essa emissora seja de propriedade do bispo Macedo. Também é evidente que uma pesquisa que não levasse em conta esse fato seria insuficiente. Mas a que levasse em conta apenas isso não seria menos insuficiente, o seria ainda mais porque teria apenas uma suficiência aparente. Uma outra questão oportuna de ser comentada é a utilização de dois termos, no decorrer das páginas já lidas e das que estão dispostas a seguir: crente e iurdiano. Quando neste estudo for usado o termo "crente", deve-se entendê-lo em seu sentido mais óbvio, ou seja, aquele que crê. Logo, não se faz uma referência ofensiva e pejorativa, especificamente, aos fiéis de segmentos protestantes, evangélicos pentecostais ou neopentecostais. Já iurdiano é um termo desenvolvido pelo pesquisador Leonildo Silveira Campos, em Teatro, tempo e Mercado. Para Campos, o termo se refere não apenas aos fiéis da Iurd, mas também àqueles que possuem alguma identificação com a doutrina e que compactuam das mesmas idéias dos adeptos deste segmento neopentecostal. Neste estudo, seu uso será estendido também para designar referência àquele e/ou àquilo que possui relação com a Igreja Universal do Reino de Deus. O que se quer nesta dissertação é evidenciar um aspecto ainda pouco explorado da fenômeno iurdiano: a observação da fé iurdiana sob o enfoque da comunicação midiática, da contextualização de um universo que está sofrendo as conseqüências da modernidade, de um momento histórico em que a concorrência entre 43 Bourdieu, 1997, p. 56. 36 as televisões abertas brasileiras se acirra. Outros estudos precedentes – sem dúvidas, de importância acadêmica inquestionável – que exploram os recursos lingüísticos adotados nos discursos dos pastores ou ainda aqueles que optam por desenvolver os caminhos históricos daquele segmento neopentecostal terão destaque secundário. O fato de uma minoria religiosa comandar um emissora de televisão com a representatividade e audiência da Rede Record é um tema instigante para qualquer pesquisador da área de comunicação. Como esta minoria marginalizada, num país de predominância católica, se comporta quando a ela é dada a voz, em rede nacional? Relembrando as questões propostas por Bourdieu, em uma citação acima mencionada, é oportuna a reflexão acerca do que é exibido nos programas iurdianos. Ou ainda, os pastores-apresentadores tem condições e competência para comandarem tais programas. Ou então, o que é exibido deve ser feito naquele lugar. Em resumo, por que os programas iurdianos são como são e qual o seu objetivo funcional? 37 1. 5 O referencial teórico Para Bardin, a descrição é a primeira etapa necessária para se fazer um trabalho de analise de conteúdo e a interpretação a última fase. O procedimento intermediário é a inferência, procedimento que vem permitir essa passagem, explícita e controlada, de uma à outra44. Assim, para que se tenha um bom desenvolvimento do tema é indispensável um suporte teórico apropriado. A comunicação é um campo de conhecimento ainda em construção45. Muito se tem produzido no Brasil, mas os estudos comunicacionais passam a receber atenção, com mais intensidade, por parte da academia, nas últimas três décadas. José Marques de Melo, ícone do pensamento comunicacional brasileiro, é o primeiro doutor em Comunicação titulado por uma universidade brasileira. E isto aconteceu há pouco mais de 30 anos, em 197346. Apesar da juventude da pesquisa comunicacional brasileira, não se pode negar a emergência do seu desenvolvimento. Como afirma Luiz Carlos Lopes, professor do programa de Pós Graduação da UFF, as mediações sociais da atualidade se tornaram impensáveis sem a participação dos meios de comunicação47. Ou ainda, como quer Lorenzo Vilches, as novas tecnologias da comunicação transformaram a humanidade em audiência televisiva48. Neste contexto, que alguns querem chamar de pós-moderno, a pesquisa comunicacional surge com um caráter ora inter, ora transdisciplinar49. A comunicação é tida como um ponto de encontro de uma cultura científica formada pelas ciências humanas, em especial, a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia Social, a Semiótica e a Informática50. A necessidade de repensar os conhecimentos já estabelecidos e de se desenvolver novos olhares, novas abordagens possíveis que atendam a demanda atual de problemas da vida social e cultural revela a emergência dos estudos acerca de 44 Bardin, 1988, p.39 45 Lopes, 2004, p. 24. 46 Brandão, 2004, p. 275. 47 Lopes, 2003, p. 174. 48 Vilches, 2003, p. 209. 49 França, 2002 p. 17-19. 50 Trinta, 2003, p. 157. 38 comunicação. Os problemas de ordem informacional e comunicacional precisam ser estudados51. Assim temos: uma jovem ciência que surge e uma sociedade com mediações sociais intimamente relacionadas aos meios de comunicação, meios estes que complexificam as estruturas sociais em âmbito mundial52. Que o estudo dos meios de comunicação são relevantes não se pode negar. Mas existe muita controvérsia sobre a legitimidade de uma chamada ciência da comunicação. Para Bourdieu, por exemplo, os estudos que no Brasil são categorizados como pertencentes à comunicação são apenas parte de uma das ramificações da sociologia53. Mas tem se desenvolvido no Brasil, uma considerável quantia de trabalhos que abordam a legitimidade da ciência da comunicação, uma busca pela epistemologia da comunicação. Luis Carlos Lopes também acredita que a comunicação seja um campo de conhecimento ainda em construção e possui uma postura cautelosa em relação à atribuição de status de ciência: Está-se em um campo teórico, o da comunicação, fortemente influenciado pela instrumentalidade de suas práticas, em que a definição de objetos próprios e de metodologias precisas é bastante complexa, senão impossível, por se tratar de um lugar e de problemas que podem ser analisados por quaisquer dos outros saberes e enfoques contemporâneos das áreas de conhecimento das ciências sociais e mesmo de outras ciências.[...] não se trata de criar uma nova disciplina, mas sim de criar novos conhecimentos teóricos aplicados a objetos escolhidos – um novo olhar –, deixando o corpo teórico e o acúmulo prático dos outros saberes em seus devidos lugares. [...] a comunicação midiática invadiu o mundo social de modo abissal, gerando opiniões, novas crenças e conseguindo o status da naturalidade. (LOPES, 2004, p.25) A professora Vera França propõe uma série de reflexões acerca da pesquisa em Comunicação, seu desenvolvimento e sua legitimidade epistemológica. Para ela, os objetos deste tipo de pesquisa podem ser claramente identificados: os meios de comunicação e o processo comunicativo54. Na busca por uma epistemologia da comunicação, França destaca o ponto de vista da inter e da transdisciplinaridade 51 Lopes, 2004, p. 17. 52 Prado, 2003, p. 146 53 Silva, 2001, p. 173 54 França, 2002, p. 15. 39 dos estudos. Os problemas da área da comunicação são ora explicados ora camuflados pelo debate sobre sua natureza interdisciplinar. “Estudos ou campos interdisciplinares referem-se à emergência de novas temáticas que começam a ser estudadas a partir do referencial das áreas já constituídas.”55, afirma. Um estudioso da ciência política que leve em consideração a repercussão do programa exibido durante a propaganda eleitoral obrigatória veiculada pelo rádio e pela televisão faz pesquisa em comunicação?56 Já o caráter interdisciplinar aponta para o fato de “uma determinada questão ou problema suscita(r) a contribuição de diferentes disciplinas, mas essas contribuições são deslocadas de seu campo de origem e se entrecruzam num outro lugar – em um novo lugar”57. Este novo lugar, conduzido pela Sociologia, Antropologia, Psicologia Social ou pela Semiótica seria o espaço da comunicação. Mas é preciso deixar claro que este não é um trabalho acerca da epistemologia da comunicação. Existem pesquisadores que se dedicam a este fim e eles são capazes de refletir, acerca deste tema, com mais competência do que este pesquisador. Nesse momento de apresentação do referencial teórico a ser utilizado no desenvolvimento deste estudo, a atenção do pesquisador se volta para um pressuposto: o homem é um ser cultural. Para Clifford Geertz, sob a influência de Max Weber, o ser humano acaba amarrado e conduzido por teias de significados que ele mesmo produziu. Na visão geertziana, a cultura é representada por essas teias, bem como a sua análise que visa encontrar nelas algum significado58. Denys Cuche segue a mesma linha de raciocínio, ao acreditar que, no processo de evolução humana, há uma tendência a substituição de atitudes instintivas por ações culturais, estas imaginadas e regidas pelo próprio homem. Ao se revelar como um fator de adaptação ao meio em que vive, a cultura pode ser entendida como uma forma humana de transformação da natureza59. Geertz aponta as definições do termo “cultura” desenvolvidas pelo antropólogo Clyde Kluckhohn, autor de Mirror for Man. Veja: 55 França, 2002, p. 17. 56 França, 2002, p. 15. 57 França, 2002, p. 17-18. 58 Geertz, 1989, p. 15. 59 Cuche, 2002, p. 10. 40 Kluckhohn conseguiu definir a cultura como: (1) “o modo de vida global de um povo”; (2) “o legado social que o indivíduo adquire de seu grupo”; (3) “uma forma de pensar, sentir e acreditar”; (4) “uma abstração do comportamento”; (5) “uma teoria, elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta realmente”; (6) “um celeiro de aprendizagem em comum”; (7) “um conjunto de orientações padronizadas para os problemas recorrentes”; (8) “comportamento aprendido”; (9) “um mecanismo de regulamentação normativa do comportamento”; (10) “um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relação aos outros homens”; (11) “um precipitado de história”, (...). (GEERTZ, 1989, p. 14) Com o desenvolvimento dos estudos na área, chegou-se a conclusão de que os grupos possuíam formas distintas de manifestações culturais. Logo, não se poderia falar em cultura, no singular, mas sim em culturas. A obra desenvolvida por Franz Boas se mostra uma busca constante de reflexão a respeito das diferenças culturais. A principal inovação proposta por ele é que as particularidades de cada grupo social possuem sua origem na amplitude de formações de ordem cultural e não racial60. Um outro expoente da antropologia, Claude Lévi-Strauss, também se destaca no pensamento do conceito de cultura e na suas diversas aplicações em comunidades distintas. Para ele, o homem possui uma resistência em aceitar a diversidade cultural como um fenômeno da natureza, fruto de relações sociais. Daí surgirem termos como “bárbaros”, denominação que agrupava todas as culturas não pertencentes ao mundo greco-romano antigo, e “selvagens”, em referência às formações culturais exógenas ao padrão europeu ocidental, utilizados para denominar a cultura do outro. Lévi-Strauss, afirma que bárbaro é aquele que crê na existência da barbárie61. Logo, como se pode perceber, a relação entre culturas distintas nem sempre é harmoniosa. Porém, tal relação é frutífera para o desenvolvimento e a legitimação de uma cultura. Para uma vertente da Antropologia que faz uma aproximação com os estudos em Comunicação, a cultura existe necessariamente 60 Cuche, 2002, p. 40. 61 Cuche, 2002, p. 47. 41 quando há ação interativa entre indivíduos que compartilham ou não das mesmas ações culturais62. Assim, chega-se ao conceito de “auto-identidade”, esta definida pelo próprio indivíduo, e de “hetero-identidade”, também chamada de “exo-identidade”, uma definição de uma cultura formulada por indivíduos que não compartilham desta. A relação conflituosa se dá quando a idéia que se faz do outro predomina e influencia o que o próprio indivíduo pensa sobre si mesmo. A auto-identidade terá maior ou menor legitimidade que a hetero-identidade, dependendo da situação relacional, isto é, em particular da relação de força entre os grupos de contato – que pode ser uma relação de forças simbólicas. Em uma situação de dominação caracterizada, a hetero-identidade se traduz pela estigmatização de grupos minoritários. Ela leva freqüentemente neste caso ao que chamamos uma “identidade negativa”. Definidos como diferentes em relação à referência que os majoritários constituem, os minoritários reconhecem para si apenas uma diferença negativa. (...) A identidade negativa aparece então como uma identidade vergonhosa, rejeitada em maior ou menor grau, o que se traduzirá muitas vezes como uma tentativa para eliminar, na medida do possível, os sinais exteriores da diferença negativa. (CUCHE, 2002, p. 184-5) Apesar da citação acima, seria um engano imaginar que a interação entre culturas é, necessariamente, negativa. Essa interação, em determinadas ocasiões, pode ser considerada salutar, ou ainda inevitável. É o que se chama de aculturação, ou seja, fenômeno que se dá na interação entre duas culturas, em que ao menos uma delas sofre alterações em seus moldes iniciais63. Tamanha é a influência que este fenômeno possui na formação cultural que as pesquisas acerca do tema tiveram uma inversão de enfoque, conforme o esquema abaixo: Mudança de enfoque nos estudos acerca de cultura (I) Cultura ► Aculturação (II) Aculturação ► Cultura Em (I), mostra-se o enfoque dos primeiros estudos que abordaram o tema da aculturação. Os pesquisadores partiam da representação cultural para uma posterior 62 Cuche, 2002, p. 106. 63 Cuche, 2002, p. 115. 42 análise de uma possível existência do fenômeno de influência de culturas externas. Já em (II), a perspectiva é a inversa. Parte-se de um pressuposto que não existem culturas puras, livres da influência de contatos com grupos culturalmente distintos. Ou seja, é através do processo de aculturação, presente em diferentes graus, que se chega a formação de particularidades culturais de um grupo. Assim, pode-se imaginar que toda cultura está em constante mutação, já que ela está em processo de construção, desconstrução e reconstrução de si própria64. Uma outra consideração que se deve fazer a respeito do termo cultura é o seu caráter simbólico. Observe as conclusões de Lévi-Strauss, citado por Cuche: Toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos. No primeiro plano destes sistemas colocam-se a linguagem, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência, a religião. Todos estes sistemas buscam exprimir certos aspectos da realidade física e da realidade social, e mais ainda, as relações que estes dois tipos de realidade estabelecem entre si e que os próprios sistemas simbólicos estabelecem uns com os outros. (CUCHE, 2002, p. 95) Após esta breve discussão acerca da perspectiva cultural humana, tão necessária nos estudos que envolvam o homem enquanto indivíduo e coletividade, não é equivocado concluir que uma das principais características peculiares aos humanos é a diversidade de formações culturais e interpretações sobre a natureza em que vive, propostas por eles próprios. Não se pretende assumir, nesta dissertação, uma postura de defender esta ou aquela linha de pensamento. O que pode e deve acontecer é uma influência por parte de pesquisadores consagrados ou simplesmente mais experientes do universo acadêmico. Logo, não se pretende, nesta dissertação, assumir como definitiva e conclusiva uma corrente teórica em especial. Também não se considera ideal a adoção de um único teórico. Buscou-se agrupar teóricos que, embora sejam pertencentes a linhas de pesquisa distintas, podem contribuir para a elucidação do cenário midiático- religioso brasileiro. 64 Cuche, 2002, p. 137. 43 Pierre Bourdieu (associado à Teoria Crítica, especialmente pelo enfoque voltado para os produtores da comunicação ou ainda a uma suposta linha francesa de pesquisa comunicacional), Jorge Pedro Sousa (declarado admirador da escola norte- americana), Stuart Hall e Anthony Giddens formam o conjunto dos principais teóricos da comunicação adotados pelo pesquisador. A intenção da pesquisa, vale reforçar este compromisso, não é confirmar ou não a veracidade das proposições dos teóricos. A busca é pela organização de apontamentos pertinentes e coerentes entre si, independentes de quem os tenha formulado, que sejam relevantes para a compreensão do tema. É o caso, por exemplo, de se aproximar o pensamento de Bourdieu com as reflexões de Sousa quando ambos falam da atuação dos jornalistas. Em outras palavras, os teóricos estão a serviço do pesquisador e não o contrário. Para a demanda de referencial teórico específico para a Religião, optou- se por seguir os apontamentos de Clifford Geertz, Roger Bastide e Pierre Bourdieu, este especialmente influenciado pelo pensamento weberiano. Na leitura desses autores, percebe-se uma constante preocupação com a dinâmica dos preceitos religiosos. Do constante atrito entre a esfera mundana e a sobrenatural ou sagrada surgem tensões propulsoras de um dinamismo. Para Bastide, estudioso francês que dedicou grande parte de suas pesquisas às peculiaridades da fé dos brasileiros, “as mudanças que podem afetar os sistemas religiosos não passam de fenômenos de adaptação e reequilibração em relação a uma realidade que não é de natureza religiosa”65. Ou ainda, dito de outra maneira, a religião praticada é uma espécie de ajuste entre as ações humanas e uma ordem cósmica imaginada, como quer Geertz66. Bourdieu é direto ao dizer que teodicéias são sempre sociodicéias67. As instituições religiosas tornam absoluto aquilo que pode ser visto como relativo e legitimam o que é arbitrário. A religião, enquanto sistema simbólico estruturado, constrói a experiência (ao mesmo tempo que a expressa) em termo de lógica em estado prático, condição impensada de qualquer pensamento, e em termo de 65 Bastide, 2006, p. 117. 66 Geertz, 1989, p.67. 67 Bourdieu, 49, p.1992 44 problemática implícita, ou seja, de um sistema de questões indiscutíveis delimitando o campo do que merece ser discutido em oposição ao que está fora de discussão (logo admitido sem discussão) e que, graças ao efeito de consagração (ou de legitimação) realizado pelo simples fato da explicitação, consegue submeter o sistema de disposições em relação ao mundo natural e ao mundo social (disposições inculcadas pelas condições de existência) a uma mudança de natureza (...). Por todas essas razões, a religião está predisposta a assumir uma função ideológica, função prática e política de absolutização do relativo e de legitimação do arbitrário. (BOURDIEU, 1992, p.46) A constituição de instituições religiosas se revela como um artifício eficiente de organização e de propagação de mensagens acerca do sagrado. Bastide considera admirável a força das igrejas cristãs em convergir para um único deus, Jeová, a disposição humana de depositar fé sobre entidades sobrenaturais poderosas68. A eficiência dessa constituição, seja da igreja católica ou de segmentos neopentecostais, promove o surgimento da autoridade de função, exercida por religiosos. Essa autoridade credita àquele que a possui a credibilidade de ser, legitimamente, elo entre o sagrado e o profano. Por exemplo, o padre católico, o pastor protestante ou o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus são todos portadores de bens de salvação, uma vez que possuem uma função dentro da estrutura religiosa a que pertencem. Logo, se seus conselhos não são eficientes ou se os milagres não acontecem, a responsabilidade do fracasso recai sobre o próprio Deus ou ao comportamento de pouca fé dos fiéis. A culpa nunca é do religioso que convive com a comunidade crente69. Mas a quem interessa a religião? Quem dela faz uso e quem dela precisa? Veja o relato jornalístico a seguir, publicado em 02 de julho de 1943, no jornal Diário de S. Paulo, em que Bastide reflete sobre essas questões: E no entanto, quando vejo passar esses homens, voltando do trabalho, com esse balancear de ombros, esses braços pendendo ao longo do corpo, essa ruga de cansaço na testa, reflito que essas máquinas estão demasiado enferrujadas, demasiado fatigadas para conseguirem fabricar deuses. Passaram o dia realizando gestos automáticos, tornando-se elas próprias ferramentas, e só aspiram ao repouso, ao silêncio orgânico, e não a fazer sagrado. Quando vejo passar esses burgueses, voltando de um chá, de uma recepção, com a cabeça pesada de números, de preocupações utilitárias, ou então de 68 Bastide, 2006, p. 94. 69 Bourdieu, 1992, p. 90-91. 45 preconceitos mundanos, de preços de vestidos e trajes, pergunto-me como é possível que esses advogados, pensando em seus processos, esses médicos, pensando em seus doentes, essas jovens senhoras, carregando embrulhos minúsculos, ainda possam ter lazer suficiente para inventar mitos e dar à luz divindades. (...) Passa uma velha levando na cabeça uma trouxa de roupa, alquebrada pelos anos e pelo fardo, quase um animal. Uma criança chora a um canto. Uma empregada limpa os vidros de uma janela. Passa um bonde, com cachos humanos pendurados nos estribos, rodando pesadamente rumo aos subúrbios. E todos, no entanto, fabricam deuses. (BASTIDE, 2006, p. 90-91) Se fabricam deuses, se cultuam seus ancestrais ou se se converteram aos preceitos das religiões institucionalizadas, é pertinente notar que há, em geral, um interesse religioso por parte dos indivíduos, independente de sua classe social. A resposta para as aflições mundanas, como a doença, o desemprego, o sofrimento, a morte de um ente querido ou mesmo as angústias existenciais podem ser apontadas para servirem de motivo pela busca da religião. No entanto, Weber acredita que os interesses religiosos diferem conforme a classe social em que o crente está inserido. As demandas religiosas são de duas naturezas: de legitimação (comum aos membros de classes privilegiadas, em que a riqueza é encarada como bênçãos divinas oriundas da conduta exemplar dos crentes) e de compensação (própria daqueles que vivem privados das possibilidades de consumo e que, amparados pelos dogmas e esperanças no sobrenatural, esperam uma redenção do sofrimento, “capaz de dar sentido ao que são a partir do que virão a ser”)70. Se a sociedade muda, logo a demanda também sofre mudanças. A religião tem que, constantemente, se adaptar ao contexto em que está inserida. Essa adequação aos interesses dos fiéis é, segundo Bastide, argumentada pelas autoridades de função sempre como uma forma de resgate à pureza inicial dos preceitos fundadores71. Por exemplo, a reforma protestante pode ser encarada, por seus adeptos, não como a principal ruptura do cristianismo, mas sim como um resgate de uma religiosidade pura que o clero católico teria abandonado. Assim, a religião, desenvolvida por instituições organizadas hierarquicamente com normas e rituais, tende a ser associada ao tradicional, a práticas seculares. No entanto, para que ela se mantenha 70 Bourdieu, 1992, p. 87. 71 Bastide, 2006, p. 112-113. 46 na lista de interesses dos crentes, ela se modifica, se readequa e, conseqüentemente, faz aproximações com a modernidade, como condição para que ela não se torne extinta. São essas aproximações os principais pilares para que essa pesquisa tivesse razão de existir. Por modernidade, entende-se o estilo de vida, os costumes e as organizações sociais surgidas na Europa, no século XVII, cuja influência ganhou proporções mundiais72. Enquanto alguns autores consideram que, atualmente, estaria em vigor o pós-moderno, Giddens afirma que se chegou ao período em que as conseqüências da modernidade tiveram suas dimensões radicalizadas e universalizadas, com intensidade jamais vista73. O desenvolvimento dos sistemas de transmissão de informações – e a conseqüente globalização das práticas de consumo – fez com que ondas de transformação atingissem todo o planeta. Tais transformações não provocaram conseqüências apenas em questões de ordem econômica e política, mas também cultural, atingido até mesmo as relações da intimidade individual, como a família, a comunidade em que o indivíduo pertence ou ainda a sua religiosidade. A força transformadora da modernidade – força dinâmica e de alcance global – está relacionada com a percepção de espaço e de tempo: O dinamismo da modernidade deriva da separação do tempo e do espaço e de sua recombinação em formas que permitem o “zoneamento” espaço-temporal preciso da vida social; do desencaixe dos sistemas sociais (um fenômeno intimamente vinculado aos fatores envolvidos na separação espaço-tempo); e da ordenação e reordenação reflexiva das relações sociais à luz das contínuas entradas (inputs) de conhecimento afetando as ações dos indivíduos e grupos. (GIDDENS, 1991, p.25) A questão do desencaixe merece especial atenção. Trata-se do deslocamento das relações sociais locais de interação e a sua possibilidade de estruturação, ou reestruturação, através de grandes distâncias espaço-temporais74. Os mecanismos de desencaixe atuam de duas formas: na criação de fichas simbólicas e no estabelecimento de sistemas peritos. As fichas simbólicas devem ser entendidas como 72 Giddens, 1991, p. 11. 73 Giddens, 1991, p. 13. 74 Giddens, 1991, p. 58. 47 meios de intercâmbios confiáveis que podem ser circulados sem levar em consideração as características dos indivíduos ou grupos que delas fazem uso. O exemplo mais comum é o dinheiro, que embora possa ser cotado segundo o dólar ou o euro, é meio de troca de mercadorias e serviços entre indivíduos que nada tem em comum, exceto a confiança nesta ficha simbólica75. Os sistemas peritos são organizações de excelência técnica que regem áreas diversas dos ambientes material e social em que o individuo está inserido. Quando se deposita a economia de uma vida inteira em uma conta bancária, por exemplo, na verdade, o individuo está penetrando num cenário completamente permeado por conhecimento perito. Embora possivelmente este individuo tenha pouco – ou nenhum – conhecimento acerca do mercado financeiro mundial, não tenha conhecimento de para onde vai aquele montante de cédulas e moedas que passam a ser tratados, a partir do dia do depósito, apenas virtualmente, ele aplica seu dinheiro, no banco de sua preferência, porque confia nesse sistema perito76. É preciso ressaltar, como se pode observar nos dois exemplos de mecanismos de desencaixe, que é condição para que, tanto fichas simbólicas quanto sistemas peritos, sejam legítimos, a existência de confiança por parte do indivíduo. Se esses mecanismos de desencaixe, dependentes da confiança individual de seus usuários, têm alcance mundial e alteram a percepção humana de espaço e tempo, certamente influem na constituição da identidade do indivíduo. A formação da identidade, segundo Hall, ganhou uma perspectiva inacabada, em constante construção, híbrida e até mesmo contraditória77. As conseqüências da modernidade que promoveram essa mudança de enfoque conceitual (que fez ruírem as identidades nacionais) da constituição da identidade possuem relação com o imaginário coletivo. As diferenças identitárias entre povos, por exemplo, a malandragem brasileira, o saudosismo português ou a paciência oriental, são reflexos, apenas, das diferenças na forma em que as identidades nacionais foram imaginadas78. 75 Giddens, 1991, p. 30. 76 Giddens, 1991, p. 35. 77 Hall, 2005, p. 46. 78 Hall, 2005, p. 51. 48 Também no âmbito do imaginário estão as comunidades, formação de identidades coletivas. A comunidade perdeu, com a alta modernidade, a sua obrigatoriedade de ligação com o local. Com o surgimento de meios de comunicação de massa, a televisão e o cinema, em especial, e mais tarde com as novas tecnologias da informação, como a internet, a comunidade transcendeu à concepção tradicional de espaço e de tempo. Exemplo disso é a comunidade denominada “emo”. Tem adeptos em todo o mundo, especialmente em razão da distribuição universal da indústria fonográfica e das informações que membros dela podem compartilhar por meio da internet, e ainda invocam ideais próximos ao romantismo inglês de séculos atrás. Tempo e espaço foram transformados para que adolescentes se vistam de roupas pretas, caminhem com olhares chorosos em rostos maquiados e se declarem desiludidos em relação à mesmice da existência humana, em grandes centros metropolitanos ou mesmo em cidades interioranas. A função deste conceito imaginado que é a comunidade é proporcionar a seus membros uma noção de pertencimento, a identificação e especialmente a segurança79. Quando se tem um corpus composto por programas televisivos de caráter religioso, torna-se oportuna a reflexão acerca da constituição de uma comunidade religiosa. O que é ser um iurdiano segundo a suas próprias autoridades religiosas? Como é representado o fiel ideal, o modelo a ser seguido? Hall, ao teorizar acerca da comunidade nacional britânica, dá importantes indícios para que se possa, na análise do corpus escolhido, responder essas questões: As fundações racionais e constitucionais da Grã-Bretanha ganham significado e textura de vida através de um sistema de representação cultural. Elas se sustentam nos costumes, hábitos e rituais do dia-a-dia, nos códigos e convenções sociais, nas versões dominantes de masculino e feminino, na memória socialmente construída dos triunfos e desastres nacionais, nas imagens, nas paisagens imaginadas e distintas características nacionais que produzem a idéia de “Grã-Bretanha”. Esses aspectos não são de menor importância por terem sido inventados. Embora a nação constantemente se reinvente, ela é representada como algo que existe desde as origens dos tempos. (HALL, 2003, p. 75). 79 Hall, 2003, p. 74. 49 A mídia televisiva atua como meio de transmissão da representação cultural do fiel iurdiano bem sucedido. Uma representação em que opera o princípio da heterogeneidade, resguardada pela característica comum de devoção a uma força superior divina e de repulsa às influências e tentações das entidades diabólicas que assolam os membros da comunidade iurdiana. Sejam retratados os fiéis com riquezas materiais, os que conseguiram superar os vícios e as doenças ou mesmo aqueles que conseguiram superar crises matrimoniais, tem-se, midiaticamente veiculadas, formas distintas, ou como quer Stuart Hall, hibridizadas do que é ser iurdiano80. Vale a pena reforçar que, a exemplo das identidades nacionais e das comunidades, a realidade midiática é fruto da percepção humana. “Em suma, nas condições da modernidade, os meios de comunicação não espelham a realidade, mas em parte as formam”81. É questão fundamental, como já mostrou Giddens, a confiança nas relações entre indivíduos ou entre indivíduo e mecanismos de desencaixe. É evidente que, quando o cenário abordado envolve fé, a confiança dos membros da comunidade iurdiana é depositada em uma instância divina. Neste trabalho, serão analisadas as estratégias utilizadas pelos produtores da mensagem para que passem ao telespectador a noção de segurança. Nota-se um recorrente uso de técnicas particulares ao jornalismo na grade de programação iurdiana. Como o corpus representa um meio de propagação da doutrina da Igreja Universal do Reino de Deus, ele é assistido por não crentes. Assim, por meio da similitude com o formato jornalístico, pode-se imaginar que a programação iurdiana faz uso da credibilidade do jornalismo – o que torna a mensagem segura, logo legítima e confiável – para apresentar ao telespectador a segurança de ser um membro da comunidade dos adeptos da Iurd. A segurança, que tende a ser vista unicamente como benéfica ao indivíduo, possui também uma outra face: A promoção da segurança sempre requer o sacrifício da liberdade, enquanto esta só pode ser ampliada à custa da segurança. Mas segurança sem liberdade equivale a escravidão (e, além disso, sem uma injeção de liberdade, acaba por ser afinal um tipo muito inseguro de segurança); e a liberdade sem segurança equivale a estar perdido e abandonado (e, no limite, sem uma injeção de 80 Hall, 2003, p. 73. 81 Giddens, 2002, p. 32. 50 segurança, acaba por ser uma liberdade muito pouco livre). Essa circunstância provoca nos filósofos uma dor de cabeça sem cura conhecida. (BAUMAN, 2003, p. 24) Como se pretende analisar a utilização das técnicas jornalísticas na programação iurdiana, o problema desta pesquisa exige também um repertório crítico acerca do papel desempenhado pela tevê e do desempenho profissional dos produtores de mensagens televisiva. A que papel a Rede Record se presta frente a seus proprietários iurdianos? Como, e com que intenção, agem os pastores- apresentadores? O que eles dizem à audiência? Pierre Bourdieu possui reflexões teóricas pertinentes para que se desenvolva tais questões. Taxado de pessimista em relação ao meio televisivo, de culpar os profissionais de televisão, em especial os jornalistas, pelo mau uso do meio, Bourdieu, na verdade, ao perceber o alcance e a potencia que uma mensagem televisiva veiculada possui, propõe uma reflexão acerca das rotinas de produção, uma vez que é considerável a parcela da população que tem a televisão como única fonte de informações82. A televisão, analisados seus mecanismos de produção, acabou por servir de instrumento de promoção de violência simbólica. Violência esta que é exercida com a cumplicidade in