Alfa, São Paulo, v.35,p. 175-185, 1991. O LÉXICO DO "RIBEIRINHO" AMAZÔNICO: UM EXEMPLO DE SUSTENTAÇÃO E EXPANSÃO DE VALORES Devino João Z A M B O N I N * RESUMO: A análise do léxico específico do ribeirinho põe-nos em contato não só com a pra­ xis sócio-cultural que faz desse grupo social um grupo diferenciado de forma marcante, como também nos proporciona o conhecimento de sua dinâmica interna num espaço e tempo determi­ nados. O campo Léxico das crenças mostra-nos como o caboclo amazônico se relaciona com o sobrenatural: encara-o como algo sempre presente em sua vida, é inclinado a lhe atribuir valor prático e se apresenta como indispensável à sua sobrevivência. UNUERMOS: Sócio-cultural; campo léxico; brasileirismo; ribeirinho; crença; sobrenatural. " Pour Sapir, seul 'le lexique' dune langue est organisateur de l'expé­ rience du peuple qui la parle" (1) Nossa intenção, aqui, não é expor um conjunto acabado de idéias, mas apresentar apenas algumas conclusões, fruto de uma pesquisa maior (a) em que incluiu levanta­ mento, enquadramento em Campos Léxicos, descrição e explicação de uso específico de uma determinada região — a amazónia brasileira — e retratados nas obras Matupá, Puçanga, A Mata Submersa e Histórias da Amazônia do escritor regionalista ama­ zônico J. Peregrino R. F. Junior, reunidas mais tarde, em uma única publicação, por nós consultada, sob o título A Mata Submersa e outras histórias da Amazônia (b). As obras têm como cenário a região denominada baixo amazonas e suas narrati­ vas, no gênero de histórias curtas, retratam os "ribeirinhos". * Departamento de Lingüística - Faculdade de Ciências e Letras - UNESP -14800 - Araraquara - SP. (a) Refiro-me à pesquisa Léxico Específico e Cultura Regional - um exemplo amazônico, apresentada como tese de doutoramento, junto ao Programa de Pós-Graduação em Lingüística e Línguas Indígenas - USP, sob a orientação do Prof. Dr. Erasmo d' Almeida Magalhães. (b) O fato de usarmos um texto literário como corpus, de onde os dados lingüísticos foram colhidos e analisados sob ângulo específicos, mostra aspectos outros de interpretação que não os de pura análise literária. 176 Vivendo em pequenos povoados, em "s í t ios" ou em "freguesias", ou espalhados pelas barrancas dos igarapés, os "ribeirinhos" têm como ponto de convergência o barracão ou o comércio das pequenas vilas ou cidades, onde, normalmente, resi­ dem os "pa t rões" e os donos de casas de aviamento. Ambiente geográfico, técnicas utilizadas na exploração de bens de subsistência, forte contingente indígena em seu passado, dificuldades de meios de comunicação, períodos intermitentes de avanço e domínio luso, métodos utilizados de desculturação indígena e aculturação lusa, instabilidade e rarefação demográfica apresentam-se co­ mo alguns fatores importantes na configuração da cultura dominante no vale amazônico. Ao lado desses fatores de natureza extralingüística, encontram-se, no falar do " r i ­ beirinho", expressões lingüísticas indígenas, influência direta da dominância indígena na região e da utilização da língua franca — o nhengatu — como meio de comunica­ ção, desde os princípios do século X V I I I , entre as diferentes tribos e famílias indíge­ nas/missionários, soldados e colonos e que ainda hoje, os missionários salesianos a usam em sua vivência com as diversas tribos da região do Uaupés (alto Rio Negro). Infere-se dos textos de onde os brasileirismos foram extraídos, que o Autor tenta retratar uma realidade dos fins do século X I X e primeiras décadas do século X X , etapa esta, por conseguinte, pertencente ao chamado 3- período do processo de for­ mação cultural da região. Esse período é fruto de um processo histórico iniciado na segunda década do século X V I I , quando o nativo, sob a inluência e controle do co­ lonizador, é forçado a se integrar à sociedade colonial. Após a expulsão dos jesuítas, em 1759, a região adquire certa autonomia administrativa, e os ameríndios, j á mais adaptados à novas exigências e padrões culturais, fundem-se na sociedade mameluca emergente. A região, contudo, entrará em períodos de decadência após a revolta na- tivista, só se reerguendo com a descoberta do processo de vulcanização do látex. Tanto o caboclo amazônico quanto os migrantes nordestinos passam, assim, a se de­ dicarem à extração da seringa. Por volta de 1912, essa economia extratiyista, por força da concorrência inglesa, entra em fase de estagnação e decadência. As obras de PJ, retratam setores da vida do homem ribeirinho dessa última fase. Baseados nas diferentes narrativas, parece-nos que as idas e vindas — fastígio e decadência - pouca influência exerceram sobre a vida do caboclo. Houve, porém, al­ gumas alterações na estrutura social. Já não se fala mais, como nos períodos anterio­ res, na distinção índios/brancos em termos de organização social. Fala-se, agora, em caboclos e patrões. Aqueles coletados entre os índios domesticados, mamelucos, nordestinos, portugueses, e estes, da mesma origem, porém de cultura e situação só- cio-econômica superior. O caboclo sintetiza o habitante rural que normalmente vive nas barrancas dos iga­ rapés e lagos. Dedica-se à pesca, à salga de peixe ou à extração da seringa. O termo aplica-se também ao seringueiro do alto, normalmente cearense que prefere a caça à pesca e é mais propenso a uma agricultura de subsistência. Existem também aqueles — os roceiros — que se dedicam a uma pequena agricultura em sítios próximos aos povoados. Todos eles, porém, partilham do mesmo padrão cultural, diferenciando-se Alfa,S§o Paulo, v. 35,p. 175-185,1991. 177 apenas pela atividade que exercem. Todos conhecem o mínimo de técnicas essenciais à subsistência na região: construção de casas, roçado, pesca, caça, corte de seringa. O seringueiro, não raro, usa suas folgas dedicando-se a uma pequena agricultura de subsistência e o roceiro, às vezes, aproveita o verão para a extração da seringa. Esse é o habitante que predomina na região. E é com ele que PJ, em suas obras, se preocupa. Cumpre ainda acrescentar que os textos de PJ surgiram num momento do Moder­ nismo em que a Literatura era entendida, por uma grande maioria, como mimese da realidade, em que os autores se viam atraídos por uma ideologia de compromisso com o conjunto da vida nacional. Como escritor regionalista, produzindo na década de 30, PJ não fugiu a esse propósito e buscou decalcar, da realidade que vivenciou, os fatos, personagens, espaço e linguagem. Ao se aproximar das camadas populares, bem a gosto da época, tentando retratá-las fielmente, põe a descoberto "um " dos "vários Brasis". Interessados em pesquisar a dimensão do relacionamento língua/cultura tendo co­ mo informante suas obras, usamos, na nossa pesquisa, como suporte teórico a Teoria dos Campos Léxicos e as posições assumidas por E. Sapir e seu discípulo B . Whorf, que defendem o princípio do Relativismo Lingüístico e estudam o imbricamento lín­ gua/cultura/realidade. Ao fixarmo-nos, porém, no léxico e não na língua como um todo, foi por acredi­ tarmos na especificidade do pensamento defendido por Sapir. A promulgada hipótese Sapir-Whorf acabou por aproximar - praticamente identificando - esses dois pesqui­ sadores que, se por um lado possuem certos princípios e hipóteses de trabalho co­ muns, apresentam profundas diferenças quanto ao modo de encarar a realidade obje­ tiva, à atitude do falante face a essa mesma realidade e conseqüentemente ao relacio­ namento lthgua/pensamento/realidade. Além de o fato de ser apenas o léxico para Sapir e só a gramática para Whorf que dependem da cultura, Marcellesi & Gardin mostram que há entre eles outras profun­ das diferenças: "En ce qui concerne l'atitude devant le monde objectif , l'écart est grand entre les deux hommes. Pour Sapir la langue est formée dans le monde social et ce n'est qu'après qu'elle agit sur la manièere dont la société conçoit le monde. C est-à-dire que, si l'homme ne vit pas seulement dans un monde objectif, l'existence de ce dernier ne fait aucun doute. La langue organise dans une proportion importante toutes nos réflexions et contribue ainsi à conditionner notre manière de concevoir ce mode objectif. Ainsi Sapir envisage des rapports d'interacion: Langue — culture — réalité et esquisse les bases d'une conception matérialiste dans ce domaine. Au contraire pour Whorf, comme pour Humboldt, le monde extérieur n'est qu'un chaos sans F intervention du système linguistique. Ainsi le monde extérieur existe bien, mais il n'est pas possible de le connaître scientifiquement puisque la connaissance qu'on en a est relative à la langue." (1) Alfa, São Paulo, v. 35, p. 175-185,1991. 178 É nesse sentido que se deve entender a tão repetida afirmação " A língua recorta a realidade". Esse recorte varia, naturalmente, segundo a língua. Estando esta presa a uma práxis ideológica, apresenta-se como um sistema pluridimensional fragmentado em subcódigos e registros causados por diversos elementos (tempo, espaço, situação sócio-cultural etc.) permitindo, como conseqüência, a seguinte constatação: cada grupo de indivíduos tem uma determinada percepção do referente criado por deter­ minados estereótipos. A própria língua reitera esses referentes. Esse sistema de refe­ rências está preso a diferentes signos. Tal constatação, porém, não deve considerar a língua como decalque da realidade ou uma organização puramente referencial. Ela é, antes de mais nada, um sistema simbólico e como tal temos consciência de seu caráter arbitrário e convencional. Mas essa arbitrariedade e convencionalidade em nada vem destruir a representação da realidade focalizada e filtrada pelo observador. Esta realidade será limitada, organi­ zada e transmitida através deste código lingüístico que, uma vez captado, tornará es­ sa mesma realidade presente no mundo do decodificador. O mecanismo da sociedade humana é, pois, reconhecido pela linguagem e esta, por sua vez, impõe limites àquela. Daí o indivíduo, basicamente, ver, perceber e sentir a realidade de acordo com os padrões e valores propostos pela comunidade em que vive, confirmados e veiculados pela linguagem. Daí entendermos as relações língua/sociedade em uma extensão a mais ampla pos­ sível implicando-se todos os problemas advindos do inter-relacionamento lín­ gua/cultura, língua/pensamento/realidade. Isto nos levará a uma abordagem sócio-et- nolingüística, qual seja, a comparação da estrutura lingüística com a estrutura sócio- cultural, sabendo que não se tratará de condicionamento puro e simples, mas de co- variações sistemáticas. Ao se imprimir, pois, uma direção sócio-etnolingüística no estudo da língua, pode- se chegar ao conhecimento da visão de mundo de seus falantes e conseqüentemente às leis que regem tal grupo. Mas o que é verdadeiro para o léxico não o é necessa­ riamente para a gramática dessa mesma língua, uma vez que "seul le lexique d'une langue est organisateur de l'experience du peuple qui la par le"( l ) . Julgamos, com Sapir, que o signo-palavra funciona como elemento de ligação en­ tre natureza e homem. O homem, como sujeito cognoscente, ao apreender o mundo circundante, transformando-o em objeto cognoscível, o faz via signo-palavras. Estas, ressalte-se, apresentam-se não como meras variações de expressões que re­ metem a significados universalmente válidos, mas surgem como designações que de­ limitam aspectos de experiências vividas por cada comunidade que as emprega. Afirmando isso não estamos querendo introduzir um objeto extralingüístico no qua­ dro da significação, mas simplesmente vemos as palavras como unidades que me­ deiam homem-mundo, que mostram um saber de um falante para outro, segundo a amplitude da competência do destinatário e performance do destinador. Foi precisamente pela captação das relações entre língua e mundo que fomos le­ vados à teoria dos "Campos", utilizada por muitos lingüistas objetivando uma des­ crição coerente dos signos no que se refere ao significado. Alfa, São Paulo, v. 35, p. 175-185, 1991. 179 Nos varios Campos Léxicos por nós estudados (Hidrografía, Atividade Humana, Climatologia, Alimentação, Crenças...) pudemos perceber a ação organizadora da língua, sobre o comportamento cognitivo e a visão de mundo do seu falante. Obser­ vamos, igualmente, a força do universo extralingüístico pressionando seus habitantes a adaptarem e/ou a criarem unidades lingüísticas mais condizentes com certa 'reali­ dade' específica regional. Essas unidades léxicas efetivam recortes culturais e cons­ tituem-se em um universo lingüístico suficiente para dar conta desse universo refe­ rencial específico. Nossa pesquisa nos mostrou, também, que os Campos Léxicos analisados asso­ ciam-se intimamente a fatores de natureza histórica e sócio-econômica, traduzindo, em grande parte, padrões sócio-culturais do ambiente regional. Ou seja, os brasilei­ rismos locais levantados, descritos e explicitados em suas ocorrências contextuais, nos levaram não só a inferir algumas conclusões relativas à visão de mundo desses usuários, como também a inferir os processos que culminam numa práxis sócio-cultu- ral específica de um grupo, num espaço e tempo determinados. Interessa-nos, neste artigo, apresentar algumas das conclusões a que chegamos ao estudarmos os brasileirismos locais que formaram um dos Campos Léxicos: o das crenças. Fica claro, apenas conclusões, pois não é oportuno aqui expor todo o trajeto percorrido para chegarmos a essas conclusões. Neste Campo Léxico agrupamos os lexemas que registram a relação dos partici­ pantes da comunidade em análise com entidades e manifestações cuja existência se justifica pela crença no sobrenatural. Não foi nossa intenção, evidentemente, discutir o tema do "sobrenatural, mas in ­ ventariar os termos tidos como criações e/ou adaptações lingüísticas específicas de um grupo social, registrar suas ocorrências no corpus escolhido — para termos, com mais precisão, as possíveis acepções em que são utilizados os lexemas - , explicitar, o mais possível, seus referentes e descrever o comportamento de seus usuários relacio­ nado às entidades religiosas. Partindo-se do conceito generalizante de religião como uma crença no sobrenatu­ ral, limitamo-nos a um levantamento de fatos nos quais a palavra crença implique um elemento de fé, um desejo de aceitar algo sem a necessária comprovação científi­ ca, e um sentido de admiração ou respeito provocado por qualquer coisa misteriosa. A tudo que pareça ter uma eficácia, a comunidade pode atribuir valor sobrenatural. Tudo isso, logicamente, vai depender do grau de conhecimento de seus membros, medido pela chamada lei da causalidade controlada. Diferentemente de uma comunidade letrada, possuidora de um conjunto de conhe­ cimentos que lhe explicitarão as causas e os efeitos de determinados fenômenos, o grupo social focalizado por Peregrino Júnior encara determinados acontecimentos como sobrenaturalmente causados e recorre, para a sua solução e esclarecimento, ao auxílio da prática religiosamente e/ou mágica. E quanto mais incerta, difícil ou peri­ gosa é a situação, mais o sobrenatural intervém. Alfa, Sao Paulo, v. 35, p. 175-185,1991. 180 Percebe-se pelo levantamento feito que o caboclo amazônico, tal como o chamado homem primitivo, encarando as suas crenças no sobrenatural não como algo distante e afastado de sua vida diária, mas como algo muito perto dele, está sempre inclinado a lhes atribuir um valor prático, como algo indispensável para a sua sobrevivência e a do próprio grupo. A pesquisa indicou que toda a força do sobrenatural está diretamente ligada ao concreto, a seres, em suma, a um fetiche. O poder mágico do fetiche e a grande cre­ dibilidade que goza junto ao povo ribeirinho são também comprovados pelo grande número de amuletos de uso corrente nessa região. A força intrínseca desses amuletos {uirapuru, muiraquitã, mocó, dentes de certas cobras, de botos, vergalho de boto, bicos de acauã . . . ) está condicionada a sua autenticidade: do material de que é feito, de quem o prepara e do ritual de sua confecção. Se o objetivo que se pretende atingir com seu uso não for conseguido, é porque algum desses quesitos não foi rigidamente cumprido. O fato de fetichismo e politeísmo estarem na base das crenças desses grupos pro­ picia um clima favorável à existência de fantasmas, monstros, visagens e assombra­ ções. Estes povoam as águas e as matas e sua presença se faz sentir normalmente nas chamadas horas abertas: meio-dia e crepúsculo (matutino e vespertino). As assombrações e visagens relatadas por PJ, e tão a gosto de nossos mestiços, são provavelmente resultado de uma fusão, em que os elementos tipicamente nativos incorporaram cores e formas de entes mágicos de diversificada origem européia e africana. Todas as entidades que se assemelhavam irmanaram-se e ajustaram-se ao novo ambiente, permutando valores equivalentes. N ã o cabe, porém, no presente esboço, estabelecer, com precisão, a origem remota desta ou daquela entidade mágica (Boitína, Lagarta-de-Fogo, Sucuri, Sucuriju, Cobra-Grande, Cobra (TÁgua, Mãe d Água, Iara, Boto, Boitatá, Matintaperera, Curupira, Caipora, Saci-pererê, Jurupari, Anhangá, Caruanas, Companheiros do fundo, Bichos do Mato, Bichos do fundo, Uirapuru, Jurutat, Pavãozinho-do-Maro, Murucututu, Uacauã, Xincauã, Tamurupará, Japim, Uirapuçu, Tapapurá, Juriti- Pepena, Pajé, Pajé Sacaca . . . ) , uma vez que o texto lingüístico tomado como cor­ pus refere-se a um contexto do início do século X X , retratando uma realidade sócio- bio-cultural em que o homem já não se apresenta na sua etnia de origem, mas num amálgama das três raças, com uma ascendência predominante indígena. É o mundo do caboclo, quer amazonense — o tapuio —, quer o cearense — o nordestino. É o mun­ do do mestiço. Alma eminentemente crédula, que teme e ama o maravilhoso, o inex­ plicável, o sobrenatural. Ligados diretamente à natureza, à memória passada, conti­ nuamente presente pelo relato oral dos causos tidos como reais (portanto exempla­ res), dotados de uma grande dose de sensibilidade e sem o acervo cultural do conhe­ cimento racional, os nossos mestiços convivem no seu dia-a-dia com entes fantásti­ cos que tanto podem protegê-los e ajudá-los, como desorientá-los e destruí-los. Tudo depende do seu comportamento. As suas ações serão sempre vigiadas, tanto pelos habitantes da floresta, como pelos das águas. Alfa, São Paulo, v. 35, p. 175-185, 1991. 181 A grandiosidade do ambiente torna o habitante mais ainda amesquinhado e impo­ tente, impelindo-o a procurar refúgio, proteção e explicação no sobrenatural. E fatos naturais assumem em suas mentes contornos fantasmagóricos. As reflexões da professora, personagem de O Noturno das Águas Fundas, que deixa a cidade grande para viver numa dessas comunidades isoladas do interior ama­ zônico, retrataram muito bem este mundo em que o real e o imaginário se fundem, sendo praticamente impossível traçar-lhes os contornos limitadores e pondo em xe­ que valores propalados e defendidos pelos grupos sociais dos centros maiores: " . . . Tudo pode acontecer nesta minha Terra Verde, de tanto mistério, de tanta assombração, de tanta miséria sem remédio. Nesta terra grande que se dissolve na lama do rio e se apaga na sombra da floresta — nesta terra que nada dentro d 'água, com os braços das árvores pedindo socorro, como se estivesse toda vida se afogando sem pressa e sem salvação. Terra de sol em que a sombra da mata engole as criaturas e vomita os mitos ... Terra sem justiça e sem futuro. Terra de infinita sedução e infinito sofrimento. Estou me afundando dentro dela e não sei a quem pedir socorro. Será que Arlindo me ensinou o roteiro do fundo, me ensinou o caminho da felicidade?"(2) O levantamento efetuado mostrou-nos que a maior parte dos brasileirismos que se referem ao mundo sobrenatural são de base lexêmica indígena. Remetem aos bichos visagentos, às práticas da pejelança, ao curandeirismo, ao xamanismo, enfim ao pró­ prio comportamento do caboclo quando se defronta com fatos a cuja explicação ra­ cional ele não tem acesso. Os bichos visagentos, sejam da mata ou das águas , as concepções relativas a en­ cantado, panema, saru, malino, malineza, mau-olhado, quebranto, coisa feita, as­ sombração, capiroto, espritado, possuído, fechar o corpo, meuã e todo o complexo da pajelança e curandeirismo induziram-nos a algumas reflexões com relação à in ­ fluência dos primeiros habitantes da região sobre o atual caboclo. O pajé é o homem que sabe lidar com essas forças sobrenaturais. Conhecedor das técnicas de seus ancestrais indígenas, usa-as para controlar fenômenos sobrenaturais em benefícios do homem. Conhecedor também das ervas e plantas locais, aplica-as em seus pacientes em forma de puçangas. Chás , danças ao som do maracá, fórmulas estereotipadas de rezas, misturando invocação de entidades indígenas e católicas, e quase sempre acompanhados do cigarro de tauari e cachaça, a prática da pajelança se faz presente sempre que o caboclo se sente prejudicado em alguns de seus objetivos pelos bichos visagentos. Pode-se afirmar que é ao pajé que se deve, fundamentalmente, a sustentação, pro­ pagação e a memória sempre viva das entidades e práticas ameríndias, bem como, em parte, a própria deificação da natureza. Aliás, conviver pacificamente com a natureza nesta região é fundamental. Para is­ so, criam-se entidades boas e más que passam a ser juízes e executores de uma ética sócio-natural. Da í a crença na existência de "deuses" protetores da floresta, da fau- Alfa, SSo Paulo, v. 35, p. 175-185, 1991. 182 na, das águas, dos lares, entidades estas corporificadas, como já vimos, em elementos da natureza local. Seu papel é o de proteger a natureza, coibir os excessos praticados pelo homem contra ela, manter, enfim, a ordem e o equilíbrio homem/natureza. Percebemos que essas entidades são frutos de interpretações ingênuas da expe­ riência e que existe por parte do povo uma poderosa crença de que os processos da natureza e o sucesso do esforço humano estão sob o controle dessas entidades, fora de seu alcance, mas cuja intervenção pode mudar o rumo dos acontecimentos. Pas­ sam, então, a acreditar em seres espirituais e com poderes de encantamento, personi- ficando-os em objetos materiais que se supõe terem poder intrínseco. Outras vezes elegem certos elementos da natureza aos quais atribuem algum poder que não implica a corporificação de um espírito. Usados como elementos explicativos de tudo o que foge à compreensão, são-lhes atribuídas tantas qualidades humanas e sobrenaturais (boas ou más), quantas forem necessárias para se estabelecer um sistema coerente de idéias que servirão de guia aos membros do grupo nas mais diversificadas situações. E necessário ressaltar que alguns brasileirismos que remetem a práticas religiosas não são de origem indígenas. Apresentando étimo latino ibérico, adquiriram, quando de sua circulação na região, semas específicos próprios, afastando-se do significado que esses lexemas têm, atualmente, na língua Portuguesa, por ter, inclusive, ocorrido a perda de alguns traços semânticos que naquela região se conservaram. Referem práticas religiosas segundo princípios católico-cristãos, evidentemente apregoados pelos missionários e colonos europeus, basicamente ibéricos, que atuaram ou se esta­ beleceram na região durante o século X V I . De fato, se podemos dizer que os "ribei­ rinhos" são católicos o fazemos pensando num tipo especial de catolicismo, o en­ contrado nessa região em que convivem pacificamente, completando-se até, o univer­ so religioso dos ibéricos e dos indígenas. Se, por um lado, o caboclo amazônico res­ peita e cultua os santos da igreja Católica, por outro acredita que nem tudo pode ser resolvido por eles. Assim, com a mesma intensidade com que os celebram, temem as entidades cuja força reconhecem e que habitam florestas e água. Com relação a isso, é significativo o que aprendemos das reflexões do Padre Lula, vigário de Barranco Alto , no conto Caminhos da Redenção. Preocupado em reunir as "forças da Igreja que estavam dispersas e abandonadas, nas mãos inescrupulosas de beatas e charlatães", "em proveito da propaganda da Igreja e da difusão da fé" , reconhecia, entretanto, a coexistência das fés: " O caboclo tem seus pajés e seus mitos bárbaros, bem sabia, para os seus casos particulares, mas é ainda grande o prestígio da Igreja: os santos protegem o po­ vo e trazem bem-estar a toda gente. E é na Igreja, com rezas, promessas, missas e novenas, que o povo eleva sua voz até aos santos da sua devoção. "(2) O culto restringe-se aos santos, não ocorrendo em relação às entidades de origem indígena, que são unicamente temidas e respeitadas pelo seu poder. Alfa, S5o Paulo, v. 35, p. 175-185,1991. 183 Este fato levou-nos a pensar que, embora algumas dessas entidades tenham cor­ respondência em rituais de origem africana, esta cultura praticamente em nada in­ fluenciou o comportamento de nossos caboclos amazonenses, pois é próprio dela o culto aos orixás. Nosso levantamento de certa forma indicia essa quase que ausência de influência, ao revelar a inexistência de brasileirismos de origem africana relacio­ nados à prática religiosa. Isso explicaria também o fato de encontrarmos apenas uma coexistência pacífica entre elementos de ambas as culturas, sem sincretismos: a cul­ tura africana sofreu um processo de repressão que levou à necessidade de estabelecer a correspondência entre as divindades, para que os cultos não fossem proibidos, o que não ocorreu com a cultura indígena; os habilidosos ministros da religião cristã aceitaram essa fé pagã até imporem a sua verdade e, eles mesmos, estabeleceram cor­ respondências entre elas, só que, tendenciosamente, como não poderia deixar de ser, transformando em diabos todas as entidades de origem indígena. Como exemplo des­ se comportamento de adaptação da visão de mundo indígena à ideologia da Igreja Católica lembramos o que se deu com a figura do Jurupari: o deus legislador dos in­ dígenas passou a ser o demônio no sentido católico-cristão. Um dos aspectos que nos foi possível observar como conseqüência dessa coexis­ tência foi o fato de não se tornar visível a crença num Deus abstrato como o propala­ do pelo cristianismo. O lexema Deus surge, nos textos, somente em expressões este­ reotipadas, não se registrando, em relação à noção que implica, nenhuma atitude de fé (como a observada em relação às outras entidades sobrenaturais analisadas). As seguintes expressões, envolvendo o lexema Deus, o contexto em que ocorrem e a atitude do falante, mostram o supracitado: Castigo de Deus; Entregou a alma a Deus; Vá com Deus; Será o que Deus quiser; Graças a Deus, Deus seja louvado; Sim, pela graça de Deus; Que Deus lhe pague. Talvez isso se explique pela tendência atrás apontada de os habitantes se prende­ rem a fetiches, corroborado pela influência dos próprios portugueses que aqui estive­ ram. Sabemos que eles eram mais propensos a adorar santos e imagens do que so­ mente a venerá-los. Isso talvez explique, também, a inclinação que se percebe nesses habitantes pelo politeísmo, contrariamente ao monoteísmo, próprio da ideologia cristã. Quanto aos santos, o comportamento do caboclo ribeirinho é de respeito, mas eminentemente pragmático, no sentido de que as orações e, evidentemente, as pro­ messas, se efetuam com o objetivo de se alcançarem benesses. Acaba se estabelecen­ do uma espécie de contrato entre as partes, pois, se atendido o pedido, deve o fervo­ roso pagar sua promessa, sem o que o santo não terá mais obrigação de atendê-lo. Para os padroeiros organizam-se festas. As irmandades, a quem cabe a sua organi­ zação, funcionam como mantenedoras e propagadoras das devoções. Atualmente, em data já conhecida por todos, as diferentes irmandades preparam e realizam as festas do santo, seja da freguesia, do sítio, da ocupação ou simples devoção individual. As festas, procissões, novenas, ladainhas, são, portanto, formas coletivas de comunica- Alfa.Sâo Paulo, v. 35, p. 175-185, 1991. 184 ção ou aproximação com o santo para agradecimento e/ou cumprimento de promes­ sas, individuais ou de caráter coletivo, objetivando o bem estar da comunidade. Isso dá às irmandades a função de propiciarem a coesão grupai. Muitas vezes, agindo in ­ dependentemente dos ministros da Igreja, desempenham suas funções de forma nem sempre aprovada por ela. Isto se dá devido à grande autonomia das irmandades, compostas por leigos e normalmente sem uma formação religiosa — seja por despreparo intelectual, seja pela quase completa ausência de ministros católicos. Por isso, essas festas assumem fei­ ções laicizantes, passando o motivo religioso para o terceiro ou quarto plano. Os aspectos laicizantes, profano e arcaizante do cerimonial que envolve as festas dos santos, transparecem nos lexemas carregados de semas específicos, próprios do vocábulo quando de uso corrente do português durante o século X V I , adaptados às condições particulares do meio rural do vale amazônico. O caráter profano que essas festas apresentam poderia justificar o fato de indivíduos não católicos dela fazerem parte, inclusive como festeiros; seria o caso do único judeu referido no texto — o do regatão. Entretanto, parece-nos mais relevante entender esse fato como o processo de interação desses indivíduos na crença generalizada do meio em que se intalaram. Pelas narrativas observa-se, porém, que as rezas, os bailes e as comezainas são partes igualmente importantes numa festa religiosa daquela região. O religioso e o profano não são antagônicos e, sim, parte da mesma coisa, a festa do santo. Observa-se, portanto, que o ambiente, o tipo e as fases de ocupação pelos quais passou a região, as forças econômicas e sociais que nela intervieram fizeram com que elementos religiosos de origem e ideologia tão diversificadas coexistissem pacifica­ mente, sem serem contrários ou contraditórios. Complementando o que inferimos dos respectivos verbetes explicitados no nosso trabalho, queremos agora, apenas salientar que o fato de a maioria dos lexemas le­ vantados ser de origem indígena permitiu-nos concluir a importância dos elementos amerídios na formação do aspecto religioso do caboclo amazônico. Independente­ mente da sua origem, porém, o importante foi que esses lexemas deram-nos oportu­ nidade de delinear os contornos de uma vivência religiosa regional. E essa pareceu- nos fruto da fusão indígena/ibérico. As festas Sairé, Festa do Divino e Círio de Nazaré demonstram, no evoluir de seu cerimonial, uma mistura de ritos e motivos religiosos selvagens/católicos. A primeira é uma "cerimônia católico-tapuia das mais típicas da Amazônia" . Quanto à Festa do Divino e Círio de Nazaré temos, na evolução de seu cerimonial, registrado brasilei- rismo locais (meia-lua, ramada, pai-de-santo) ao lado de palavras cujos suportes de expressão remetem a suportes de conteúdos comuns e válidos a toda comunidade lu- so-brasileira (folia, juiz de mastro, juiz de festa, andador, alabardeiro, mestre-sala, quadra de punição). Se os primeiros refletem o meio ambiente local, os segundos são índices de uma determinada postura católico-cristã que muito se .assemelha à dos primeiros colonizadores. A permanência dessas idéias, língua e práticas, em alguns traços até de caráter medieval, deve-se ao fato de quase não ocorrer o intercâmbio entre essas pequenas comunidades isoladas e os centros maiores, fazendo com que os valores específicos Alfa, São Paulo, v. 35, p. 175-185,1991. 185 se cristalizem e suas vidas e comportamentos sejam guiados mais pela própria lei da natureza, pelo instinto de subsistência e conservação do que por um código formali­ zado próprio da sociedade global. A descrição desses brasileirismos em suas ocorrências contextuais levou-nos igualmente a inferir não um corpo formal de crenças em que a sistematização organi­ zacional se impõe de cima para baixo, em forma de legislação, mas exprimem con­ ceitos que são observados e que levam usuários a manter determinadas atitudes com­ portamentais face ao sobrenatural. Quer dizer, não se tratou de indicar, através do estudo dos lexemas, o conjunto de seres fantásticos que merecem o temor e respeito daquela comunidade, mas observar em que medida esses seres, ao se aglutinarem aos demais elementos que fazem parte do mesmo campo, deram nascimento a um tipo específico de comportamento que, em última instância, indicam a relação homem/mundo encontrada naquele contexto. ZAMBONIN, J. D. Le lexique du ribeirinho amazonique: un exemple de coservation et expansion de valeurs. Alfa, São Paulo, v. 35, p. 175-185, 1991. RÉSUME: L'analyse au lexique spécifique du (peuple) ribeirinho nous met en contact avec la praxis socio-culturelle qui rend ce groupe social un groupe distingué d'une manière assez remarquable et nous permet aussi de connaître sa dynamique interne dans un espace et temps déterminés. Le champ lexical des croyances nous fait voir la façon dont le cabocle amazonique se rapporte au surnaturel: il le tient pour quelque chose toujours présente dans sa vie, il est incliné à lui attribuer une valeur pragmatique et il se présente comme vital à sa survivance. MOTS-CLÉ: Champ lexical; brésilennismes; ribeirinho; croyances; surnaturel; socioculturelle. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. MARCELLESI, J. B., GARDIN, B. Introduction à la sociolinguistique — la linguistique sociale. Paris: Larousse, 1974, p. 26. 2. PEREGRINO JUNIOR, J. A Mata Submersa e outras histórias da Amazônia. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1960, p. 288. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA CASCUDO, Luiz de Câmara. Dicionário do Folclore brasileiro. 5. ed., São Paulo: Melhoramentos, 1979. EDELWEISS, F. Estudos Tupis e Tupi-Guaranis: Confronto e Revisões. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1966. GALVÃO, E. Santos e Visagens. São Paulo: Ed. Nacional, 1955. GECKELER, H. Semântica estrutural y teoria de campo léxico. Tradução de Marcos Martinez Hernandez. Madrid: Gredos, 1976. ORICO, O. Vocabulário de Crendices amazônicas. São Paulo: Ed. Nacional, 1937. ROQUE, C. Grande Enciclopédia da Amazônia. Belém: A. M . E. L . Amazônia, 1968. 6. v. SERPELL, R. Influência da Cultura no Comportamento. Tradução de Álvaro CabaL Rio de Janeiro: Zahar, 1977. Alfa, São Paulo, v. 35, p. 175-185, 1991.