TASSIANA BARRETO DE BARROS MOREIRA O Acampamento Marielle Vive: da desigualdade socioespacial à luta pela terra contra a especulação imobiliária em Valinhos/SP São Paulo - SP 2023 TASSIANA BARRETO DE BARROS MOREIRA O Acampamento Marielle Vive: da desigualdade socioespacial à luta pela terra contra a especulação imobiliária em Valinhos/SP Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como exigência para obtenção do título de Mestra em Geografia, na área de concentração “Desenvolvimento territorial”, na linha de pesquisa “Campesinato, capitalismo e tecnologias”. Orientador: Clifford Andrew Welch São Paulo – SP 2023 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA A pesquisa apresenta impacto potencial por realizar um estudo sobre um conflito agrário, contribuindo para a compreensão da atualidade da luta pela terra, em especial em contextos metropolitanos, ao mesmo tempo coloca luz sobre o perfil das famílias acampadas e os interesses e formas de atuação do capital imobiliário na região metropolitana de Campinas, São Paulo, Brasil. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH The potential impact of this research includes its contribution to the study of agrarian conflict, bringing greater understanding to the current struggle for land, especially in metropolitan contexts. At the same time, it offers qualitative and quantitative analysis of the profile of encampment families and their interests and the forms action practiced by real estate capitalists in the metropolitan region of Campinas, São Paulo, Brazil. IMPACTO POTENCIAL DE ESTA INVESTIGACIÓN La investigación tiene un impacto potencial al realizar un estudio sobre un conflicto agrario, contribuyendo a la comprensión de la lucha actual por la tierra, especialmente en contextos metropolitanos, al mismo tiempo estudia sobre el perfil de las familias que acampaban y sus intereses y formas de acción del capital inmobiliario en la región metropolitana de Campinas, San Pablo, Brasil. Às famílias do Acampamento Marielle Vive, por me ensinarem todos os dias a não desistir e a ter esperanças no que estamos construindo. AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações aqui expressas são de responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a visão da CAPES. Agradeço também o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra por me tornar quem eu sou. À Escola Nacional Florestan Fernandes e aos trabalhadores e trabalhadoras sem terra que possibilitaram, através da luta por acesso à educação, que eu realizasse essa pesquisa pelo Programa TerritoriAL. Ao Cliff, orientador e companheiro, pelas contribuições teóricas, metodológicas, pela paciência, estímulo e disponibilidade. Por fazer a batalha das ideias e me ensinar sobre o papel da academia. À Turma Ana Primavesi, pelos aprendizados em tempos tão duros de pandemia. Aos professores e professoras do TerritoriAL, em especial a Silvia Adoue e Paulinho Chinelo pelas trocas e contribuições à pesquisa. Aos companheiros e companheiras do Marielle Vive, pelas risadas e angústias tão intensamente compartilhadas, sempre cheias de esperança. Agradeço aquelas e aqueles que gentilmente concederam entrevistas e as companheiras da Secretaria que contribuíram muito para a sistematização de dados. Ao Ayan, meu pequeno que também é fruto do Marielle. A dissertação acompanhou a amamentação, o fazer dormir, sua introdução alimentar e suas primeiras palavras. Obrigada pela paciência com a mamãe. Ao Gerson pelas contribuições na pesquisa e por ter preenchido minha luta com seu sorriso. Aos meus pais, Roseli e Geraldo, minha vó, Neuza, e irmãos, Amilcar e Daniel, pelo eterno porto seguro. À Nina e Leleco, pelo escritório em momento crucial, pela amizade e risadas. “Só saio dessa terra morto” Seu Luis Ferreira RESUMO A presente pesquisa tem como objetivo analisar e debater sobre o Acampamento Marielle Vive (MV) do MST, em Valinhos/SP, onde cerca de 450 famílias vivem e lutam por reforma agrária desde 2018. O território MV é concebido através da luta por terra contra o capital imobiliário, representado pela Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários, que possui a propriedade da Fazenda Eldorado irregularmente improdutiva até ser ocupada pelos sem-terra que colocam em xeque a expansão descontrolada da especulação nesta região onde predomina a territorialização de condomínios horizontais de luxo. Na realização deste enfrentamento, são muitos desafios colocados cotidianamente para as famílias sem-terra, como falta de água, assassinato, risco de despejo, situação estrutural precária, entre tantos. Não obstante, a resposta dos sem-terra é dada através da organização e participação popular para encontrar as saídas para a superação das contradições. Pretende-se, a partir deste território, estudar a atualidade da luta pela terra em contextos metropolitanos, a característica do sujeito Sem Terra advindo das periferias da Região Metropolitana de Campinas (RMC), os desafios postos a organização dos trabalhadores e trabalhadoras frente a crise estrutural do capital e seus atuais desdobramentos, identificar características da luta por terra contra a especulação imobiliária e as estratégias de domínio rural utilizadas por este setor em Valinhos/SP. Para a realização da dissertação, foram utilizadas metodologias de quantitativas e qualitativas, inclusive entrevistas, levantamento de documentos e observação, bem como pesquisa participante. Palavras-chave: reforma agrária; crise capitalista; organização popular; especulação imobiliária. ABSTRACT This study analyzes and discusses the Marielle Vive (MV) MST Encampment in Valinhos, São Paulo, where about 450 families have lived and fought for agrarian reform since 2018. Valinhos is a town located in the greater metropolitan region of the city of Campinas (RMG). The MV territory is conceived through the struggle for land against real estate capital, especially the Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários, which bought the Fazenda Eldorado, an abandoned plantation that was classified as unproductive, making it subject to expropriation and settlement as an agrarian reform project. However, the landless workers who occupied it, made the land productive. The landless occupation challenges the territorialization of land speculation in the region, a process that has seen the construction of many horizontal luxury condominiums – that is to say, gated communities of single-family dwellings on large lots. In their confrontation of the gated-community model of farmland transformation, the landless families face many daily challenges, such as the risk of eviction, water shortages, inadequate infrastructure, precarious shelters, and even murder. However, oriented by the Landless Workers Movement (MST), the landless have developed internal organization and cultivated broad popular participation to mutually overcome these challenges and carry on the struggle. From the example of this territorial dispute, the dissertation examines the contemporary struggle for land in metropolitan contexts, including key demographic characteristics of the landless and the challenges posed to the well-being of workers by the current structural crisis of capitalism. The key objective is to identify and analyze the characteristics of a struggle for land between agroecological farmers and real estate developers in the context of metropolitan areas. To complete the study, the research included the use of quantitative and qualitative methodologies as well as participant-observer data collection. Keywords: agrarian reform; capitalist crisis; popular organization; real estate speculation. RESUMEN Esta investigación tiene como objetivo analizar y discutir el Campamento del MST Marielle Vive (MV), en Valinhos/SP, donde cerca de 450 familias viven y luchan por la reforma agraria desde 2018. El territorio del MV es concebido a través de la lucha por la tierra contra el capital inmobiliario, representado por Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários, propietaria de la propiedad de Fazenda Eldorado, irregularmente improductiva hasta que fue ocupada por los Sin Tierra, que cuestionan el predominio y la hegemonía de la especulación en una región de condominios horizontales de lujo. Al llevar a cabo este enfrentamiento, son muchos los desafíos que se le plantean a diario a las familias Sin Tierra, como falta de agua, asesinato, riesgo de desalojo, precaria situación estructural, entre muchos, sin embargo, la respuesta de los Sin Tierra se da a través de la organización y participación popular. .para encontrar formas de superar las contradicciones. Se pretende, a partir de este territorio, estudiar la actualidad de la lucha por la tierra en contextos metropolitanos, la característica del sujeto Sin Tierra proveniente de la periferia de la Región Metropolitana de Campinas (RMC), los desafíos planteados a la organización de los trabajadores en frente a la estructura de crisis del capital y sus desarrollos, identificar características de la lucha por la tierra contra la especulación inmobiliaria y las estrategias de dominio agrario utilizadas por este sector en Valinhos/SP, para realizar la investigación, métodos cuantitativos y cualitativos, participante y se utilizaron investigaciones militantes. Palabras clave: reforma agraria; crisis capitalista; organización popular; especulación inmobiliaria. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Mapa 01 – Região Metropolitana de Campinas (RMC).…............................ 28 Mapa 02 – Localização Acampamento Marielle Vive…………………........... 41 Figura 01 – Acampamento Marielle Vive em 2018……………………………. 48 Figura 02 – Acampamento Marielle Vive em 2020……………………………. 49 Gráfico 01 – Profissões dos homens do Acampamento Marielle Vive………. 65 Gráfico 02 – Profissões das mulheres do Acampamento Marielle Vive……… 66 Figura 03 – Mural da Escola Popular Luis Ferreira……………………………. 95 Figura 04 – Reforço escolar na Escola Popular Luis Ferreira em 2020…….. 96 Figura 05 – Distribuição de alimentos na Cozinha Coletiva do MV………….. 97 Figura 06 – Distribuição de alimentos na Cozinha Coletiva do MV………….. 97 Figura 07 – Distribuição de alimentos na Cozinha Coletiva do MV………….. 98 Figura 08 – Foto aérea região Estrada do Jequitibá anos 1984 e 1994……. 109 Figura 09 – Foto aérea região Estrada do Jequitibá anos 2004 e 2014……. 109 Figura 10 – Foto aérea região Estrada do Jequitibá anos 2020……………... 110 Figura 11 – Mapa das fazendas que integram o projeto de urbanização da chamada Região dos Lagos…………………………………………... 115 Figura 12 – Anteprojeto de urbanização da região dos Lagos, Valinhos (SP).... 115 Figura 13 – Organograma de empresas acionistas da Eldorado Empreendimentos Ltda…………………………………………………117 Figura 14 – Localização FEEI………………………………………………………..124 Figura 15 – Proposta de divisão espacial do Assentamento Marielle Vive por NBs………………………………………………………………………. 125 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Quantidade de pessoas por gênero …...…………...…………………..60 Tabela 2 – Quantidade de pessoas por idade…...…………...……………….........60 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CT Comunas da Terra FEEI Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários INCRA Instituto de Colonização e Reforma Agrária MPE Ministério Público Estadual MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MV Acampamento Marielle Vive NBs Núcleos de Base RAP Reforma Agrária Popular RMC Região Metropolitana de Campinas SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO......................................................................................... 15 2 A LUTA PELO ACAMPAMENTO MARIELLE VIVE: MOBILIZAÇÃO E CRIAÇÃO DE UM TERRITÓRIO COMUNITÁRIO….…………............... 19 2.1 Do município de Campinas à RMC.……...…………….…..….…………... 26 2.2 O Acampamento Marielle Vive: da concepção à ocupação…...………. 29 2.2.1 A Comuna da Terra na Região de Campinas. Povo do campo e da cidade: tamo junto e misturado……………………………………………….. 29 2.2.2 A Reforma Agrária Popular: da crise estrutural do capital ao programa agrário do MST…………………………………………………………………. 34 2.2.3 Entre o campo e a cidade: a constituição do Acampamento Marielle Vive. 38 2.3 A territorialidade do Acampamento Marielle Vive………………………. 47 2.4 A construção de um território: o ser sem terra na luta pela terra em regiões metropolitanas………………………………………………………. 53 3 ACAMPAMENTO MARIELLE VIVE: OS E AS PROTAGONISTAS DA LUTA PELA TERRA NA REGIÃO METROPOLITANA DE CAMPINAS… 58 3.1 Desemprego e subemprego: desdobramentos da reestruturação produtiva na constituição do Acampamento Marielle Vive e suas implicações na vida das famílias acampadas………………….………… 61 3.2 Migração: trajetória de vida das famílias do Acampamento Marielle Vive………………………………………………………………………………. 73 3.3 As tentativas de desterritorialização: assassinato, coerção e ataques………………………………………………………………………….. 83 3.3.1 Espaço proibido: negação de direitos por parte do poder municipal……... 86 3.3.2 Disputa ideológica nas narrativas dos Sem Terra e do poder público local 88 3.3.3 Resistindo à desterritorialização: coerção, ameaças e assassinato……… 90 3.4 Organização popular: de Seu Luis às resistências……………………..…... 93 4 A NOVA LUTA PELA TERRA: ASSENTAMENTO OU CONDOMÍNIO FECHADO………………………………………………………………………. 100 4.1 Valinhos: da capital do figo roxo à cidade dos condomínios fechados………………………………………………………………………… 102 4.2 O avanço dos condomínios de luxo: análise de fotos aéreas da região da Serra dos Cocais próxima a Estrada do Jequitibá…………. 108 4.3 A Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários: a improdutividade para a certeza de ganhos futuros…..………………... 113 4.4 Assentamento Agroecológico Marielle Vive……………………………... 118 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 127 REFERÊNCIAS....................................................................................... 131 15 1 INTRODUÇÃO A presente dissertação “O Acampamento Marielle Vive: da desigualdade socioespacial à luta pela terra contra a especulação imobiliária em Valinhos/SP” traz a análise e pesquisa acerca do Acampamento Marielle Vive (MV) e do conflituoso processo de luta entre a proposta de reforma agrária do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a de construção de condomínios horizontais de luxo pela empresa denominada Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários Ltda (FEEI) na Fazenda Eldorado no município de Valinhos (SP). A especulação imobiliária tem avançado sobre áreas rurais na Região Metropolitana de Campinas (RMC) transformando regiões outroras agrícolas em local de construção imobiliária. Valinhos é uma referência de município que possui condomínios de alto e médio padrão no qual o avanço do capital imobiliário foi determinante para sua configuração espacial nas últimas décadas. A região da Serra dos Cocais, onde se localiza o MV, tem sido vetor de expansão de condomínios de luxo devido à localização próxima às grandes rodovias que possibilitam acesso fácil aos municípios como Campinas e São Paulo, a sua beleza paisagística, existência de áreas agrícolas e pelos fragmentos de vegetação originária preservada. Em abril de 2018, famílias organizadas pelo MST ocuparam a FEEI como forma de denunciar o uso improdutivo da fazenda então destinada a especulação imobiliária e reivindicar a área para a reforma agrária, levantando barracos, construindo local de moradia, produção e resistência desde o início da ocupação. Além da improdutividade, as famílias denunciaram o uso da área para a construção de um condomínio horizontal luxo devido aos impactos em relação à segregação espacial e à questão ambiental. O MV se contrapõe a este modelo de desenvolvimento e propõe a construção de um assentamento ambientalmente e socialmente sustentável para a região. Além das denúncias e exigências em torno ao direito à terra e à reforma agrária, as famílias do MV constroem diariamente, há cerca de 5 anos, uma forma de uso do espaço e organização comunitária de modo a demonstrar a viabilidade do projeto de assentamento. Também são muitos os desafios enfrentados pela comunidade como riscos de despejo, precariedade material, e ataques de diversas ordens para forçar as famílias a saírem da área. Em 18 de julho de 2019, o acampado conhecido como Seu Luis, um homem humilde de 72 anos de idade, foi 16 assassinado durante um ato político que exigia abastecimento de água potável no MV. O caso revoltante do assassinato do Seu Luis expressa a resiliência da comunidade que, sob tantos ataques, também luta por justiça e pela prisão do assassino Leo Ribeiro. O estudo sobre a história de vida e situação atual das famílias do MV nos ajuda a compreender vários aspectos das questões relativas à formação espacial do acampamento e territorialização da luta pela terra atualmente nas metrópoles, como a RMC. É sabido que a estrutura socioespacial elitizada e segregadora faz parte do urbano brasileiro, o interessante é interpretar quais efeitos desta realidade propiciam trabalhadores/as urbanas a fazerem a luta pela terra neste período histórico, logo após o impactante golpe contra a presidente Dilma Rousseff em 2016 e a ascensão do governo reacionário de Michel Temer, seguido pelo fascista Jair Bolsonaro que assumiu o poder de 2019 a 2022. Na prática, foi um período de diversos ataques à reforma agrária, sem conquista de novos assentamentos no país, além de sofrer a reversão de diversas políticas públicas, como as que apoiaram os assentamentos e outros direitos sociais conquistados, como as leis trabalhistas e de previdência social. Foi neste quadro histórico da crise estrutural do capital, com suas manifestações no Brasil e consequências para a vida das e dos trabalhadores, que pesquisamos o MV. Através da rica experiência do acampamento, no limiar entre os espaços urbano e rural, que temos como objetivo geral contribuir no debate sobre a atualidade da luta pela reforma agrária no país. Objetivos adjacentes da dissertação são: o debate sobre os desafios organizativos da classe trabalhadora no contexto atual a partir da realidade da organização interna e base social do MV; e o questionamento acerca da função social da terra em período de hegemonia do capital financeiro mundial através da análise do conflito travado entre MST e FEEI,. Para concretização dos objetivos, em relação ao método realizamos levantamento bibliográfico acerca das temáticas que permeiam diversas ciências humanas e são fundamentais para interpretarmos o MV, como a questão urbana, questão agrária, reforma agrária, acampamentos e assentamentos rurais, reestruturação produtiva, capitalismo periférico, crise estrutural do capital, especulação imobiliária. Além disso, foram analisados documentos da Prefeitura Municipal de Valinhos, MST, Judiciário, assim como vídeos e entrevistas sobre o MV e fotos aéreas. 17 Metodologicamente também realizamos pesquisa participante, ou seja, acompanhamos o processo anterior ao surgimento do MV - principalmente o trabalho de base - e posterior à ocupação ao longo dos anos de resistência da comunidade, de setembro de 2017 ao final de 2022. A pesquisa participante se deu através da experiência concreta no território como militante do MST, participando do cotidiano das famílias, nas reuniões internas da comunidades, em reuniões com outros setores da sociedade, em atividades no MV (de formação, cultura e organização) e externas, como atos políticos que a comunidade sem-terra promoveu. Adicionalmente, tivemos acesso ao cadastro das famílias do MV, realizado pela secretaria do acampamento, que possui diversos dados sobre a realidade e sobre quem são os e as acampadas. Também realizamos outros levantamentos através da realização de entrevistas semi estruturadas com acampados/as e coordenadores/as do MST, cujos dados contribuíram com elementos concretos sobre os temas estudados. Na dissertação utilizamos dois contos sobre o MV escritos em 2021 pela autora, com o objetivo de introduzir às temáticas abordadas, eles são analisados ao final de cada capítulo à luz das evidências apresentadas. A pesquisa também contou com dados secundários principalmente acerca da RMC, FEEI e Valinhos. Organizamos a apresentação da pesquisa em três capítulos. O primeiro capítulo, de número 2, conta a geo-história do MV a partir das seguintes análises: a) do urbano e da realidade da RMC, metrópole que condensa a desigualdade socioterritorial da qual deriva o MV, do avanço do capital imobiliário às ocupações e autoconstruções realizadas pelos trabalhadores e trabalhadoras; b) de duas elaborações do MST, a Comuna da Terra (CT) e o Projeto Agrário da Reforma Agrária Popular (RAP), que são construções políticas - teóricas e práticas - do MST ao longo das primeiras décadas do século XXI das quais o MV é uma de suas expressões; c) a história do MV, o processo de construção da comunidade, da territorialidade e da identidade sem terra. A metodologia empregada para o estudo desses temas incluiu levantamento bibliográfico, a pesquisa participante, realização de entrevistas, e análise de reportagens, documentos e imagens aéreas. O capítulo 3 apresenta pesquisa qualitativa e quantitativa sobre a base social do acampamento, a partir da morfologia da classe trabalhadora imposta pela reestruturação produtiva e o processo histórico brasileiro da desterritorialização dos 18 camponeses e a formação da força de trabalho urbana. Ele aborda a questão das variadas profissões das famílias sem-terra do MV, sua flexibilidade e resiliência, e também as múltiplas migrações que os levaram até o acampamento, dois vetores fundamentais na vida das famílias. Ainda serão debatidos no capítulo os ataques sofridos pela comunidade, com a apresentação do levantamento dos dados coletados a partir da realização de entrevistas, análise do discurso, análise de documentos, além da pesquisa participante. É nessa sessão que vamos falar sobre o assassinato do Seu Luis e as repercussões do assassinato na comunidade e a construção das resistências frente aos ataques. O exame da disputa atual entre a invasão imobiliária dos condomínios de luxo na região da Serra dos Cocais, no município de Valinhos, e a resistência apresentada pela proposta dos acampados do MV de implantar nas terras da Fazenda Eldorado um assentamento agroecológico é o objeto central do capítulo 4. As imagens do Google Earth da região das proximidades da Estrada do Jequitibá, onde está o Marielle, nas últimas 4 décadas são utilizadas para identificar o avanço da especulação imobiliária e as transformações espaciais ocorridas. O capítulo também serve para investigar os planos dos dois personagens da disputa: a empresa Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários Ltda e o MST. A FEEI pretende construir condomínio horizontal de luxo nas terras, juntamente com demais fazendas improdutivas da região. Pelo contrário, o MST defende planos para construir transformar o acampamento MV no Assentamento Agroecológico Marielle Vive, propondo para a Serra dos Cocais projetos de preservação ambiental, agricultura sustentável e produção de alimentos agroecológicos. A dissertação também é um relatório da sistematização de debates e sínteses coletivas realizadas na militância do MST sobre o MV e a luta pela reforma agrária no Estado de São Paulo, ao mesmo tempo que potencializa a interpretação da realidade através do uso de dados e debate com autores e autoras. Sobretudo, é uma oportunidade de registrar e contar a história do acampamento e de suas famílias que ousam questionar privilégios e exigir, através da luta, seus direitos. É especialmente para elas que, como parte de nossa tarefa militante, apresentamos os resultados desta pesquisa. 19 2 A LUTA PELO ACAMPAMENTO MARIELLE VIVE: MOBILIZAÇÃO E CRIAÇÃO DE UM TERRITÓRIO COMUNITÁRIO O sol O dia de uma ocupação é sempre um dia muito agitado e de ansiedade. Isso para qualquer um/a. Imagine como foi pra ela, com 15 anos, tão aflita porque não queria se mudar do bairro, nem ficar longe dos colegas e não faz a menor ideia para onde está indo. Olhou para a mão tentando achar algum dedo que ainda tivesse uma pontinha de unha para roer. Já não tinha nenhuma, mesmo assim colocou a mão na boca e logo foi repreendida pela mãe. Elas estavam no ônibus, a caminho do que viria ser uma mudança imensa de vida. Carregavam três sacolas cada uma, tinha roupa, colchonete, comida, creme de cabelo, sabonete, panela e vinham segurando fora da bolsa dois copos de plástico e uma garrafa térmica com café, daqueles bem melados, da gente não saber se é açúcar com café ou café com açúcar. O pai dela vinha atrás, na Belina velha dele. Não queria vir de jeito nenhum, mas não teve jeito, a mulher saiu andando com as trouxas e a filha, quando percebeu que era sério ele saiu correndo de carro atrás. O ônibus finalmente parou, estava tão escuro que ela só conseguiu ver lanternas aleatórias, ouvir gritos com palavras de ordem que a arrepiaram e perceber um monte de gente andando, correndo para entrar na fazenda; nas sombras dava pra ver seus vultos carregando malas, cachorros, bambus. Ela caminhou no mesmo sentido das pessoas até então desconhecidas, juntamente com a mãe, ambas tentando identificar onde estavam e pelo o que dava pra ver, elas nunca tinham ido ali. Atravessaram o portão da fazenda que fora arrebentado, quase tropeçando, ela pisou na corrente e no cadeado caídos no chão para finalmente estar na terra. Avançou bravamente pela fazenda que agora começava a dar lugar para a construção do acampamento quando de repente já não ouvia mais as palavras de ordem, viu tanta terra que cabia todas aquelas pessoas e muito mais, percebeu-se sozinha pela primeira vez na sua vida, já não sabia onde estava sua mãe, e não se importava porque sentiu a sensação única de respirar o ar da primeira hora da manhã. Olhou para o horizonte, o Sol já ia começar a raiar. Apenas com a terra de companhia, ela fechou os olhos como se fizesse uma prece, foi então que o primeiro raio de Sol do dia surgiu no horizonte tocando seus lábios, de forma tão quente e envolvente, que foi o seu primeiro beijo. (Moreira, 2022a) Para compreender o MV é fundamental levantarmos alguns elementos sobre a crise estrutural do capital e seus impactos nas cidades, com a reestruturação produtiva e o avanço do capital imobiliário, a fim de compreender a nível sistémico o contexto e problemática na qual está inserido o MV dentro das especificidades da RMC, uma vez que a luta do acampamento é fruto das contradições expressas no urbano em sua configuração na metrópole campineira. O capital esgotou sua capacidade civilizatória, realizando, no período atual, formas destrutivas de manter sua reprodução ampliada. Ocorre um processo de intensa destruição das forças produtivas da natureza, do meio ambiente, da força humana de trabalho; uma lógica societal voltada para a produção de mercadorias e exploração sem limite do meio ambiente em escala planetária. O capital, desprovido de 20 humanidade, impõe “a completa subordinação das necessidades humanas à reprodução de valor de troca no interesse da autorrealização ampliada do capital” (Mészáros, 2011, p.606). O caráter destrutivo do sistema capitalista produz a barbárie na qual as camadas mais pobres da população sofrem de forma mais aguda, seja pelas questões materiais - condições de moradia, exploração do trabalho, fome - com as catástrofes ambientais e também em suas expressões subjetivas, como o crescimento da violência. David Harvey (2016) demonstra o papel vital das crises no sistema capitalista que implica na atualização e transformação da paisagem, da ideologia, relações sociais, ingerindo na totalidade da sociedade e da vida, assim como na formação de territórios e dos conflitos. Crises são essenciais para a reprodução do capitalismo. É no desenrolar das crises que as instabilidades capitalistas são confrontadas, remodeladas e reformuladas para criar uma nova versão daquilo em que consiste o capitalismo. Muita coisa é derrubada e destruída para dar lugar ao novo. Terras produtivas são transformadas em desertos industriais, velhas fábricas são demolidas ou usadas para novas finalidades, bairros onde mora a classe trabalhadora são gentrificados [...] Campos de golfe e condomínios fechados, vistos pela primeira vez nos Estados Unidos, agora são encontrados na China, no Chile e na Índia, contrastando com assentamentos e ocupações irregulares, formalmente chamados de cortiços, favelas ou barrios pobres. (Harvey, 2016, p.09). Na citação acima, Harvey parece descrever o impacto social que este processo de crise acarreta sobre os trabalhadores/as que compõem o perfil das famílias do acampamento, para os capitalistas a crise significa possibilidades de ganhos através de novas oportunidades. A gentrificação de áreas de moradia da classe trabalhadora, como onde está o Marielle, e sobre o avanço dos condomínios de luxo enquanto as condições de vida e moradia da classe trabalhadora são precárias, o trecho demonstra a condição estrutural na qual o conflito do Marielle é uma das reações e das consequências à realidade socioeconômica da crise do capital. Por isso é necessário compreender este território a partir dos desdobramentos sistêmicos e gerais do capital, em diálogo com as singularidades e especificidades do MV. A barbárie sistêmica promovida pelo capitalismo é uma consequência da crise estrutural do capital, conforme David Harvey a acumulação originária sistematizada por Marx é atualizada com novas facetas a partir dos desdobramentos mais atuais do capital e está no centro do crescimento capitalista. Harvey (2005) organiza as 21 características do sistema do capital: a) inevitavelmente expansível; b) possui uma força revolucionária que está permanentemente transformando o mundo de modo incessante e constante; c) necessita da reprodução ampliada do capital; d) a burguesia tem a missão histórica de acumulação; e) no qual as contradições internas são inerentes ao crescimento econômico e por vezes irrompem em crise que são endêmicas do sistema; f) tendencialmente de natureza caótica no processo de acumulação. As crises endêmicas, frutos da natureza caótica do sistema, atuam freando a espontaneidade, impondo certa racionalidade, além disso, também produzem a expansão da capacidade produtiva renovando as condições de acumulação em níveis superiores. Nos momentos de crise aguda do capital Harvey salienta que as consequências sociais são trágicas para a classe trabalhadora, agudizando a luta de classes ao mesmo tempo que atua de modo a expandir a capacidade produtiva e alcançar um nível superior de acumulação. A expansão da acumulação ocorre através da renovação das condições dadas para sua realização como: a) aumento da produtividade da força de trabalho; b) redução do custo da força de trabalho; c) novas e mais lucrativas linhas de produção e; d) aumento da demanda efetiva por mercadorias realizando um esvaziamento do mercado de todos os bens produzidos. A tendência à expansão do capital e a consequente territorialização, garantiu sua atuação e domínio em praticamente todo o planeta, ao mesmo tempo, o espaço parece estar cada vez mais anulado com o avanço da modernização dos transportes, dos meios de comunicação e da integração espacial. O aumento da demanda efetiva, vital para o sistema, ocorre pela penetração do capital em novas atividades, pela produção de novos tipos de mercadorias (novas necessidades), expansão dos pontos de troca, com a diversificação da força de trabalho, com o aumento populacional e a expansão geográfica do capital. A acumulação por espoliação, como ação do capitalismo de acentuar a exploração humana e da natureza, reinventa novas formas de devastação garantindo as condições para a acumulação, o que culmina na tendência sistêmica de centralização e concentração de capital (Harvey, 2005). Na crise estrutural que vivemos a partir da década de 1970 nós assistimos a transformações no mundo do capital para manter e aprofundar sua rentabilidade depois de uma estagnação econômica e queda da taxa de lucros nas décadas anteriores. Com a revolução tecnológica e organizacional na produção entrou em 22 marcha a reestruturação produtiva, uma nova divisão internacional do trabalho, entre centro e periferia, a financeirização e ajuste neoliberal e com novas políticas econômicas e industriais (Behring, 2008). A consciência de classe para si enfrenta novos obstáculos com a mundialização do capital e a ideologia neoliberal apregoando a individualidade como questão central na vida, alcançando os ditames do capital a totalidade das relações humanas implicando na desestruturação das organizações de trabalhadores/as, as conquistas da classe trabalhadora nos séculos passados são extinguidas no período de crise estrutural do capital, inviabilizando ganhos que foram integrados ao sistema (Mészáros, 2011). Hoje, enfrentar até mesmo questões parciais com alguma esperança de êxito implica a necessidade de desafiar o sistema do capital como tal, pois em nossa própria época histórica, quando a auto expansão produtiva já é mais o meio prontamente disponível de fugir das dificuldades e contradições que se acumulam, o sistema de capital global é obrigado a frustrar todas as tentativas de interferência, até mesmo as mais reduzidas. (Mészáros, 2011, p.95). A crise estrutural tem sua expressão nas cidades onde, no Brasil, encontra uma estrutura extremamente desigual. Enquanto principal local no qual ocorre a reprodução da força de trabalho, o urbano brasileiro foi construído baseado nas contradições e problemas históricos nacionais como a grande desigualdade social, os séculos de escravidão, o Estado patrimonialista e na periferia do capitalismo, o modelo de cidade é fruto desse processo, assim como as formas pelas quais a população marginalizada se constrói nesse espaço (Maricato, 2013). As ocupações urbanas e periféricas, como as favelas, são inerentes ao modelo de urbano brasileiro, quem ocupa é a parte dos trabalhadores e trabalhadoras que não foi inserida no espaço residencial formal das cidades, e durante todo o surgimento das cidades no Brasil construíram formas de conquistar espaços construindo suas residências informais através de ocupações, autoconstrução, cortiços, etc. Nos anos de 1960 a 1980 houve um grande crescimento urbano no Brasil com a consolidação e construção da periferia no Brasil a partir do modelo da cidade baseado na desigualdade socioespacial, com degradação ambiental predatória e discriminação social (Rolnik, 2015). A crítica à razão dualista feita por Francisco de Oliveira na década de 1970, é um divisor de águas para a compreensão do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, 23 a formação das cidades e da superação da concepção que antagoniza o “arcaico-moderno”, Oliveira demonstra como [...] a oposição na maioria dos casos é tão somente formal: de fato, o processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que o chamado "moderno" cresce e se alimenta da existência do "atrasado", se se quer manter a terminologia. (Oliveira, 1972, p. 07). O central na crítica de Francisco é em torno do reducionismo da análise baseada em que o problema brasileiro está no subdesenvolvimento, na pobreza ou no rural, enquanto a estruturação da sociedade brasileira, social e econômica, é organicamente desigual a fins de proporcionar às demandas necessárias para a acumulação do capital em determinado momento histórico num modelo periférico de desenvolvimento. Por isso, no desenvolvimento das cidades, as ocupações, autoconstrução de moradias, favela e miséria não são a parte atrasada, ao contrário, entrelaçam-se organicamente no modelo de desenvolvimento. Assim, a construção espacial das cidades, com sua falsa dualidade centro-periferia, é organicamente desigual, a existência das periferias resultam do processo da formação dos contingentes migrantes sua força de trabalho no período da industrialização - especialmente no pós 1930 - e para a formação do exército industrial de reserva, ambas com rebaixado custo de reprodução da força de trabalho e, por conseguinte, menores salários. Rolnik (2015) sintetiza a análise de Francisco Oliveira e Lúcio Kowarick sobre o modelo periférico de desenvolvimento do capitalismo, no qual o contingente populacional “sobrante” de trabalhadores nas cidades cumprem dois papéis para dentro do sistema, da existência do exército industrial de reserva permanente e redução do custo da reprodução da força de trabalho rebaixando os níveis salariais. A existência de um grande contingente populacional de pobres e destituídos dos meios de produção nas cidades permitiria, assim, a manutenção de baixos níveis salariais. Essa condição é sine qua non para a competitividade das empresas que operam na periferia do capital, que não contam com as economias de escala e de aglomeração e com a tecnologia de que gozam seus competidores nos países centrais. Por outro lado, produtos de consumo essenciais à sobrevivência - incluindo a casa -, ofertas de forma não monetária ou a um preço bastante baixo, permitem que esses salários sejam mantidos a valores até mesmo inferiores ao mínimo vital. A autoconstrução da moradia representa, assim, a superexploração da força de trabalho, através do sobretrabalho e da espoliação urbana. (Rolnik, 2015, p.157). É importante analisar a RMC à luz do aumento mundial de metrópoles no final do século XX no qual vivemos uma ampliação populacional e espacial de cidades, 24 conformando grandes metrópoles globais com imensas regiões periféricas nas quais a pobreza e precariedade das condições materiais são alarmantes. Conforme Mike Davis (2006) a atuação do FMI e do Banco Mundial a partir das décadas de 1970 e 1980, constrangendo os países periféricos a incorporarem seu Plano de Ajuste Estrutural, foi um dos responsáveis pelo surgimento das “hipercidades” devido ao aumento da pobreza, como desdobramento desta intervenção, mais de 1 bilhão de pessoas ficaram desocupadas. Com o ajuste fiscal, somado ao neoliberalismo e a globalização pós 1980 no Brasil, a “tragédia urbana se aprofunda” (Maricato, 2013), com interiorização da urbanização e a hegemonia do agronegócio com a produção de commodities. É neste período que os municípios da RMC tem grande crescimento e muitos tornam-se municípios médios, ao mesmo tempo que a comoditização da economia começa a ter impacto na industrialização com a chamada reprimarização da economia brasileira nas décadas seguintes. Outro elemento fundamental indicado por Ana Fani Carlos (2015) é a conformação da metrópole como ponto chave para a acumulação do capital em sua fase de hegemonia financeira e de crise de superacumulação na qual: [...] a reprodução do espaço urbano da metrópole expõe o momento em que o capital financeiro se realiza através dessa reprodução, produzindo “um novo espaço” sob a forma de “produto imobiliário” que aponta uma mudança na aplicação do capital-dinheiro acumulado do setor produtivo industrial em direção ao setor imobiliário, o que exige uma fluidez avassaladora. (Carlos, 2015, p. 26). Segundo a autora, o processo de mudança da hegemonia mundial da industrialização para a hegemonia financeira impacta diretamente na produção do espaço e em sua mercantilização através do mercado imobiliário. Rolnik (2019, p.160) chama este fenômeno de “uma nova geografia” que tem início a partir da década de 1980, quando o capital entra em um novo ciclo de expansão territorial. Assim como ciclos anteriores, este é baseado na “despossessão” e “expansão territorial”, no entanto, neste vemos também a transformação da relação do capital com o espaço devido à emergência da hegemonia do capital financeiro e rentista (Rolnik, 2019, p. 160). Sob domínio financeiro, a terra, além de meio de produção e de gerar renda fundiária, é reserva de valor com grande potencial lucrativo. Nesta fase a desterritorialização e expulsão já não objetiva a constituição ou aumento da força de trabalho proletária 25 despossuída de meios de produção, mas sim a garantia de controle de ativos na qual se fundamenta novo uso do espaço. Seguindo a análise da autora, ela indica que a escassez de terras e de recursos naturais é uma nova situação que o capitalismo enfrenta e que, a partir de sua dinâmica intrinsecamente expansível, este é o avanço do sistema para a última fronteira do globo para conquistar novas terras. Neste cenário, as áreas de posse irregular ou coletiva, no campo e na cidade, como favelas, ocupações, assentamentos, terras indígenas e acampamentos rurais, tornam-se estratégicas para o capital financeiro como passíveis de funcionarem como reserva e garantia de ativos. “Assim, o locus de um exército industrial de reserva, as favelas do mundo convertem-se em novas reservas de terra para extração de renda, sob hegemonia do complexo imobiliário-financeiro” (Rolnik, 2019, p.167). A crítica de Francisco e Kowarick nos leva a indagar sobre o Marielle enquanto uma proposta contra hegemônica de organização espacial e popular, no contexto atual do capitalismo e sua estrutura no sul global, ou, em qual medida, cumpre papel na acumulação do capital no que se refere a garantia de local de moradia gratuita e marginal para trabalhadores/as urbanas “sobrantes”. Ao mesmo tempo, na fase atual do capitalismo com a utilização das terras como reserva de valor, observa-se o confronto com a especulação imobiliária expresso pela ocupação da FEEI e a pressão realizada pelo MV no questionamento em relação à legalidade do uso da terra para construção de condomínios. A proposta do assentamento incide contrariamente aos interesses do capital especulativo, uma vez que na lógica da especulação imobiliária o objetivo é a valorização financeira através da captura rentista da renda da terra a partir da compra de terrenos e constituição de estoque de terras que possibilite a criação do capital fictício por antecipar lucros futuros do que está por vir a ser construído (Fix, 2011). O processo de financeirização da moradia em solo urbano no Brasil ocorre a partir da década de 1990 e nas primeiras décadas do século XXI, a crise urbana brasileira agora se dá pelo encontro do modelo desigual e predatório, nos quais a formação das cidades brasileiras são constituídas, somado ao capital financeiro global nas cidades (Rolnik, 2015, p.266). O aumento de regiões metropolitanas com suas pobres periferias, em contraponto às suas regiões luxuosas, expõe as desigualdades socioespaciais nas quais se baseia o sistema capitalista e sua forma de produção do espaço na periferia em diferentes fases do seu desenvolvimento. 26 Essa é a realidade da RMC, que passou por grande processo de urbanização desde meados do século passado e que se transformou em uma grande região metropolitana que nas últimas décadas expande sua urbanização, com grandes ocupações formando regiões periféricas, com suas manchas urbanas que integram municípios e paulatinamente substituem a área rural e produção agrícola pelo mercado imobiliário. Importante compreendermos o processo de desenvolvimento de Campinas e a conformação da metrópole sob a ótica histórica e da espacialização para refletirmos seu papel atual. 2.1 Do município de Campinas à RMC A Lei de terras de 1850 imprimiu a mercantilização da terra que passa a ser passível de compra e venda, possibilitando o avanço de novas fazendas cafeicultoras em Campinas, seja em áreas devolutas e nas áreas preservadas de mata nativa, como também em áreas de produção canavieira que foram substituídas por café no século XIX. Ao final daquele século, Campinas já era o maior produtor de café de todo o estado, esse processo foi fundamental e embasou as condições para sua transformação em uma grande metrópole atualmente. Pela alta demanda de transporte para o setor cafeicultor do estado de São Paulo no século XIX (para deslocamento em direção ao porto destinado à exportação, para circulação de mercadorias e tecnologia para o plantio do café, entre outros) houve uma modernização de malhas ferroviárias, o que potencializou o desenvolvimento do estado com a territorialização da monocultura do café em mais lugares, estruturando espacialmente as lavouras, além de alavancar a migração em massa. No início do séc XX o município de Campinas, cujas lavouras cafeeiras já se encontravam em declínio no final do século XIX, achava-se agora consolidado como centro político, comercial e financeiro, como centro prestador de serviços especializados, irradiador de tecnologias, qualificador e distribuidor de mão de obra, mostrando-se ainda presente em sua imensa zona rural, uma importante diversificação agrícola que, neste contexto, também passava a contar com a presença de imigrantes, ou ainda, com colônias agrícolas de imigrantes (privadas e estatais). (Pellicciotta, 2013, p.09). Com a grande crise do café por volta da segunda década do século XX, a região de Campinas passa a diversificar sua produção agrícola, a industrialização ocorre com a implementação da rodovia Anhanguera, que integra regiões, 27 favorecendo a aproximação de Campinas com Ribeirão Preto, São Paulo, entre outras. A Anhanguera se torna um local estratégico para as indústrias se instalarem ao longo da via, pela facilidade e barateamento do escoamento e chegada de mercadorias, é assim que em 1950 já havia diversas indústrias na região. Com o avanço do desenvolvimento econômico, temos o surgimento da RMC na década de 1970, com um forte impulso do financiamento estatal: A partir da década de 1950 (Plano de Metas - 1956/1960), os municípios da região recebem incentivos para ampliação das exportações (soja, café, laranja, carne, cana-de-açúcar) no intuito de consolidar e dinamizar a agroindústria, em 1975 estímulos são concedidos através do Programa Proálcool, gerando efeitos na indústria de bens de capital. A implantação do Distrito Industrial de Campinas e a abertura do Aeroporto Internacional de Viracopos, impulsionaram ainda mais a expansão industrial. Nesse processo foram ampliados também os investimentos públicos produtivos em infraestrutura de transportes, comunicação, ciência e tecnologia (Unicamp, Replan, CPqD, CTI, etc.) [...] Um dos aspectos que reforça também a expansão econômica do interior paulista e da RMC, consiste na relativa alteração da base econômica da RMSP, que reduziu significativamente o desempenho de sua função industrial através do II Plano de Nacional de Desenvolvimento (II PND), plano que estimulou a criação de investimentos e novos polos industriais no território nacional, com o objetivo de deslocar os investimentos produtivos e o crescimento econômico do eixo Rio de Janeiro - São Paulo. (Gonçalves Junior, 2015, p.27). A RMC é fruto de um planejamento nacional de desenvolvimento para expansão tecnológica industrial para regiões, de modo a amenizar a saturação do eixo Grande São Paulo/Rio de Janeiro, esse planejamento ingeriu sobre o tipo de desenvolvimento capitalista da região, na sua paisagem e no tecido social. O financiamento estatal recebido para agroindústria, no período da ditadura militar, advém da inserção do pacote tecnológico do que ficou conhecido como Revolução Verde, alavancando a retomada da cultura canavieira na RMC. Esses financiamentos promoveram o desenvolvimento e transformaram a RMC em uma articuladora de regiões, como produtora de mercadorias e de desenvolvimento tecnológico, além de local de passagem de mercadorias. Segue mapa da RMC: 28 Mapa 01 - Região Metropolitana de Campinas (RMC) Fonte: Rolnik, 2007. Dezenove municípios integram a RMC, tornando-a uma região extremamente populosa e urbanizada, está dentre as mais ricas do Brasil, ao passo que a miséria de parte da população é outra característica com alto índice de déficit habitacional, desemprego e pauperização. Segundo estudo do Observatório da PUC Campinas, em 2022 eram cerca de 700 mil pessoas em condição de vulnerabilidade na RMC, destas 300 mil possuem de 0 a 24 anos (Silva, 2022). Como podemos ver no Mapa 4, Valinhos, município onde está o MV, faz divisa com Campinas, atualmente existe uma massa urbana contínua que liga os dois municípios. Conforme Nascimento (2016, p.78) “O avanço da conurbação, isto é, da ligação física entre as cidades, é uma das expressões espaciais mais concretas do processo de metropolização na região de Campinas”. A concretude das contradições e desigualdades socioespaciais, assim como os processos de luta por superação das condições precárias organizados pela classe trabalhadora, trazem o potencial de luta e mobilização existente na região e uma história de movimentos, ocupações e 29 organização popular, a reforma agrária faz parte da história da luta dos trabalhadores/as da RMC, como vamos verificar no próximo tópico. 2.2 O Acampamento Marielle Vive: da concepção à ocupação Compreendendo características da metrópole onde está o MV, vamos abordar neste tópico as experiências de luta, elaboração e conquistas do MST nas décadas do século XXI, que são basilares para o surgimento do Marielle, tanto de ações construídas na RMC quanto nacionalmente, a partir da questão central da crise do capital. Vamos nos dedicar à compreensão de duas propostas do MST, a primeira, elaborada principalmente durante a primeira década do século XXI, é a Comuna da Terra enquanto proposta de realização de lutas pela terra e de projeto de assentamento em grandes metrópoles urbanas com base social dos/as trabalhadores/as urbanas. A Comuna foi uma estratégia fundamental para a territorialização do MST na RMC no início do século XXI. A segunda, já da segunda década do século XXI, é o Programa de Reforma Agrária Popular (RAP), quando o MST amadurece a análise sobre a crise estrutural do capital, seus impactos para o campo e para a humanidade, e atualiza o papel da reforma agrária neste contexto. Estas duas propostas e as elaborações em torno das questões conjunturais e estruturais do capital nas últimas duas décadas são sínteses fundamentais acerca da proposta do MV. Ainda neste tópico abordaremos a história do MV, da proposta política à ocupação e desafios. 2.2.1 A Comuna da Terra na Região de Campinas. Povo do campo e da cidade: tamo junto e misturado Alô comunidades Tamo junto e misturado Povo do campo e da cidade A Lona Preta chega dando o seu recado Ninguém vai fazer a revolução sozinho A construção desse caminho É mão na massa e mutirão Em todo canto do planeta Pelo dinheiro O rico faz a guerra O sangue da favela 30 É sangue sem-terra (Unidos da Lona Preta1, samba enredo 2010) O samba enredo da Unidos da Lona Preta, escola de samba da Comuna Urbana2 do MST em Jandira/SP, que usamos de epígrafe do subtópico nos diz muito sobre a concepção do MST sobre a relação campo e cidade. Primeiro, já se sabe que essa diferenciação vem sendo superada com o desenvolvimento capitalista e sua produção do espaço. Para o Movimento o debate se relaciona também no sentido sobre quem são os e as sem terras e potenciais sem terras, quando a letra diz “o sangue da favela é sangue sem terra” traz a concepção de que a base social é a mesma no sentido de comporem a classe trabalhadora e serem frutos da história desigual, violenta e racista do Brasil. Além do entendimento sobre a importância da unidade, da construção conjunta entre a classe trabalhadora que vive e trabalha no campo com a da cidade, para derrotar a “ditadura do dinheiro”. Desde o surgimento do MST existe intenso debate sobre formas de assentamentos, assim como do perfil em relação à sua base social com experiências de lutas envolvendo trabalhadores da cidade e do campo. Entre o final da década de 1990 e década 2000, formula-se no Movimento a concepção de assentamento denominado de Comuna da Terra (CT)3, com características específicas para contemplar um público urbanizado através da criação de assentamentos próximos a grandes centros urbanos. Do espectro de novas contradições advindas da complexa realidade urbana, o MST projetou a CT como proposta de assentamento rural que articula a luta pela reforma agrária, em áreas próximas a grandes centros urbanos e/ou regiões metropolitanas, às aspirações políticas e econômicas dos trabalhadores forjados e oriundos das cidades4. 4 Sobretudo a partir dos anos 2000 (MST) realizou lutas nos grandes centros urbanos ou próximo a estes. Exemplos neste sentido são as áreas conquistadas na Região Metropolitana de São Paulo e que se tornaram assentamentos, como a Comuna da Terra “Dom Tomás Balduíno” em Franco da Rocha, Comuna da Terra “Dom Pedro Casaldáliga” em Cajamar, a Comuna Urbana “Dom Helder Câmara” em Jandira# e o Acampamento Comuna da Terra “Irmã Alberta”, que resiste por mais de 18 anos na periferia de São Paulo. 3 Segundo Goldfarb, a primeira experiência de CT ocorreu em 1998 com a ocupação de uma fazenda em São José dos Campos, em setembro de 1998 que deu origem ao Assentamento Nova Esperança (GOLDFARB, 2005). 2 Comuna Urbana é proposta derivada do debate das Comunas da Terra sobre a luta por moradia realizada pelo MST nas cidades. 1 A Unidos da Lona Preta foi um bloco de carnaval da Comuna Urbana Irmã Alberta, na cidade de Jandira/SP. 31 Podemos observar que a preocupação e proposta do MST está diretamente vinculada ao fenômeno da metropolização que ocorre no período, observando o novo papel das cidades para a acumulação capitalista em tempos de financeirização, a grande massa de trabalhadores e trabalhadoras residentes nos centros urbanos e a essencial disputa das terras existentes numa perspectiva contra hegemônica. Para as novas realidades enfrentadas pelos trabalhadores/as urbanos, a CT é um esforço de construir a viabilidade da reforma agrária no espaço de concentração da força de trabalho, objetivando o fortalecimento do MST, da luta pela terra, assim como na perspectiva de fortalecimento da luta popular em vista à transformação social. Para contemplar esses objetivos, foram construídas ações e propostas intencionalizadas para os/as trabalhadores/a da cidade, desde a forma de trabalho de base até a forma de organização do assentamento e cooperativa. Andrade Neto (2013) em sua tese de doutorado sobre as Comunas, indica algumas características do modelo de assentamento: Em geral os assentamentos Comunas da Terra se caracterizam por ocupar pequenas áreas próximas aos grandes centros urbanos, nas quais trabalhadores vindos da cidade e do campo são assentados e desenvolvem atividades agrícolas e não-agrícolas dentro da comunidade – diferindo da concepção de pluriatividade que enfatiza, dentre outras possibilidades, o trabalho fora do local de moradia. Os assentamentos devem ser próximos das grandes cidades para facilitar o escoamento da produção, sem que os assentados sejam forçados pelas circunstâncias a vender sua produção para a indústria e para os atravessadores. As Comunas devem se basear, em termos produtivos, em formas de cooperação que não são plenamente coletivizadas, mas que busquem a cooperação para fins de beneficiamento e comercialização da produção. O MST propõe que seja realizado um planejamento permanente das atividades nos assentamentos Comunas da Terra, compondo uma organicidade que vincula as famílias assentadas a núcleos de base dentro dos assentamentos, os quais por sua vez estabelecem contato com escalas de organização superiores dentro do Movimento. (Andrade Neto, 2013, p.121). Dos elementos indicados por Andrade Neto, gostaríamos de salientar a proximidade com o urbano, embora o MST não tenha deixado de realizar a luta por assentamentos em regiões afastadas de grandes cidades, portanto não é uma substituição, há um esforço para atualizar o próprio debate sobre possibilidades em torno da reforma agrária a partir do urbano. Não por acaso o estado de São Paulo foi um dos estados que protagonizou a elaboração da CT, onde a materialidade das contradições dos trabalhadores/as nos grandes centros torna-se preocupação e dedicação da militância do MST. 32 Andrade Neto (2013) também indica que a cooperação faz parte da concepção da proposta. Em entrevista do então coordenador estadual do MST de SP Paulo Albuquerque para Tomazela, ele diz que “individualmente, o pequeno produtor tem pouca chance num mercado competitivo” (Albuquerque, 2004), ou seja, o cooperativismo é necessário para contemplar de demanda concreta de geração de renda e qualidade de vida para as famílias assentadas, como possibilita o movimento avançar na perspectiva do poder popular, constituindo núcleos de famílias que atuem politicamente no território, mas também na sociedade na perspectiva da transformação social. Durante a entrevista, Albuquerque problematiza a proposta de assentamentos realizados pelo INCRA “O governo tem usado o mesmo modelo para assentar famílias tanto nas proximidades de Campinas e Sorocaba como no Pontal, o que é um convite ao fracasso.” Com os exemplos de duas regiões metropolitanas, Campinas e Sorocaba, em contraponto ao Pontal do Paranapanema, região com mais de 1 milhão de hectares de terras apenas em terras devolutas do Estado de SP, Albuquerque argumenta em prol da CT como viabilidade para as regiões com densidade urbana. O argumento é de que a mesma lógica de funcionamento de um assentamento em regiões mais afastadas de grandes núcleos urbanos, como no caso do Pontal, não pode ser a mesma que em assentamento em suas proximidades, o formato de assentamento precisa levar em consideração as características locais e regionais, não apenas imprimir modelos de forma mecânica. Outra característica é o tamanho reduzido do lote individual, nas Comunas da Terra Milton Santos, em Americana, o lote é de 1 ha, enquanto Mário Lago, em Ribeirão Preto, o lote máximo chega a 1,7 ha, por exemplo. A proximidade das cidades potencializa a geração de renda dos assentados que comercializam principalmente hortifruti a partir da venda direta e da produção agroecológica. A agroecologia, que a partir de 2014, torna-se linha política da produção do MST, já aparece como fundamento das CT. Segundo Goldfarb (2005) a CT é fruto da avaliação política do MST/SP que constrói a proposta para contemplar a população dos grandes centros urbanos, para que não precisem realizar grande descolamento e ir morar a muitos quilômetros da cidade onde viviam, pois possibilita o assentamento nas proximidades das cidades, nas franjas com grande potencial de massificação devido à precária situação de vida 33 nas cidades. Assim, a proposta está imbricada ao processo de “recampenização”, em relação ao retorno ao trabalho na terra. Sobre a questão da base social e recampenização, Albuquerque explicita a seguinte concepção: “O antigo lavrador aprendeu a trabalhar na indústria, de forma que o industriário também pode ser um bom produtor rural.” (Albuquerque, 2004). A frase de Albuquerque na entrevista indica duas questões basilares da CT: a) que os precariados urbanos (Antunes, 2018) são o foco do Movimento nessa perspectiva de assentamento como os desempregados, trabalhadores informais, excluídos urbanos; b) ao mesmo tempo os e as trabalhadoras urbanas possuem um potencial para tornarem-se camponeses, enquanto classe, alterando o movimento campo para cidade, da cidade para o campo. Gostaríamos de problematizar o uso do termo recampenização pois possibilita análises equivocadas ao estudar assentamentos próximos a grandes cidades, sendo fato que ninguém se torna camponês simplesmente por passar a viver na área rural do município e, que, na realidade dos assentamentos e acampamentos próximos aos centros urbanos, muitas vezes o labor agrícola realizado pelos sujeitos não é excludente de que o mesmo trabalhador ou trabalhadora venda sua força de trabalho nas cidades ou se tenha uma composição familiar que mescle trabalhos rurais e urbanos. Em muitos destes territórios, como vamos verificar através do MV, o urbano e rural se dilui na questão espacial e cultural em determinadas regiões. Na perspectiva do fortalecimento do movimento social dos/as trabalhadores/as sem terra nos grandes centros urbanos, o MST ao longo de suas 4 décadas sempre atuou politicamente, realizou lutas e processos organizativos na região de Campinas. Desde o início do Movimento, ainda na década de 1980, foi realizada a luta e conquista de assentamentos no município de Sumaré. No ano de 1997, o MST contribuiu com as lutas por moradia, como a ocupação do Parque Oziel, hoje um dos maiores bairros de ocupação da cidade de Campinas. Além desse território, nos anos 1990 e 2000, foi intensificado o trabalho de base nas cidades para realização de ocupações e processo de luta pela terra em várias regiões do estado de São Paulo. Dando seguimento à luta pela terra na RMC, em 2005 foi realizada uma ocupação em Americana onde foi constituído o Assentamento Milton Santos com 78 famílias e em 2007 iniciou-se o processo de luta pela conquista do Assentamento 34 Elizabeth Teixeira com 104 famílias no município de Limeira. Ambas experiências foram projetadas dentro da concepção de CT, pela proximidade do centro urbano. Com o reflexo da crise econômica mundial de 2008, as desigualdades sociais e o desemprego no Brasil agravaram a deterioração das condições de vida dos trabalhadores nas cidades. Por este motivo, a avaliação do MST/SP foi justamente de intensificar o processo de luta e mobilização dos trabalhadores urbanos para enfrentar os efeitos da crise construindo novos acampamentos. Desta experiência de trabalho de base urbano, novos processos de luta pela terra foram iniciados na região como o Acampamento Roseli Nunes em Americana (2011) que mobilizou mais de 250 famílias e o Acampamento Nelson Mandela, na cidade de Piracicaba (2013), com 74 famílias, ambos sofreram forte oposição pelo poder local e não existem mais, a base social desses acampamentos foi incorporada a outros e parte das famílias está assentada. Em 2017 um novo processo é retomado com o início do trabalho de base para organizar famílias da periferia para a luta pela terra, que resultou na criação do Acampamento Marielle Vive e, posteriormente, o Acampamento Paulo Kageyama em Mogi-Guaçú. Esse último contava com 400 famílias e sofreu uma violenta reintegração de posse por parte da Polícia Militar do Estado de São Paulo sob o Governo Dória em abril de 2019, as famílias se dissiparam e apenas algumas hoje estão acampadas no Marielle Vive. O engajamento dos trabalhadores/as em processos de luta contra a ordem, contra as desigualdades, reivindicando direitos como acesso à terra, moradia, saúde, entre outros; ou mesmo propondo uma transformação estrutural da sociedade é, em si, uma insurgência contra o “estado de coisas”, o sistema de exploração do trabalho e seu imperativo funcional, a propriedade privada dos meios de produção. 2.2.2 A Reforma Agrária Popular: da crise estrutural do capital ao programa agrário do MST Fruto da experiência histórica da classe trabalhadora organizada, a luta pela terra promovida pelo MST tem como importante ferramenta a ocupação de terra como forma de denunciar áreas que não cumprem sua função social, conforme 35 Constituição Federal5, na perspectiva de conquistar assentamentos rurais de Reforma Agrária. Com quase quatro décadas de existência, o MST é um dos maiores movimentos sociais do mundo e que tem enfrentado nas últimas décadas a hegemonização do agronegócio no campo brasileiro, as políticas neoliberais e a crescente financeirização globalizada. Além da pauta da luta pela terra, o MST realiza a “luta global contra o neoliberalismo estrutural” (Angotti, 2009, p.363) questionando e lutando contra o desmantelamento do Estado, com a eliminação de direitos trabalhistas e sociais, a privatização dos serviços públicos, o poderio corporações transnacionais sobre a economia, os recursos naturais e a vida. Com a “dominância da valorização financeira” a nível mundial (Paulani, 2019), a receita de lucro capitalista, baseada na exploração do trabalho e dos recursos naturais para sua reprodução ampliada, passa, no sistema capitalista sob égide do capital financeiro diretamente pela esfera da circulação, abreviando o percurso: [...] a forma de regulação adequada ao novo regime de acumulação passou a ser dada pelo capital financeiro, constituindo uma “dominância financeira”. O “circuito longo” de produção de capital, representado pela aplicação do dinheiro no processo produtivo que, ao final, produz mais dinheiro passou a ser dominado por uma forma “encurtada” de remuneração do capital, na qual o dinheiro se expande sem a mediação da produção, diretamente na esfera da circulação. Seria um “percurso abreviado”, que cria a ilusão de que o capital pode realizar-se na esfera da circulação sem passar pela produção. (Firmiano, 2014, p. 34). O capital financeiro, dessa maneira, “acelera” a realização do capital, atuando como agente fundamental em período de crise estrutural pela necessidade de garantir rapidamente a reprodução ampliada do capital. O principal modelo do capital financeiro para o campo, o agronegócio, se hegemonizou e, com sua força ideológica, realizou transformações no meio agrícola, com a inserção de pacotes tecnológicos, como agrotóxicos e transgênicos, com manutenção da concentração agrária e grande devastação ambiental. O agronegócio, na sua constituição nacional, advém do processo da “modernização conservadora” e da inserção do pacote da Revolução Verde desde o regime militar. Segundo Delgado (2012) o período das décadas de 1980/90 é um momento de transição entre as alianças de classe que possibilitam a hegemonia do agronegócio brasileiro. Atualmente vemos a atuação do agronegócio organizada com a confluência do latifúndio com o capital transnacional. Sob o capital financeiro, 5 Ver parágrafos 184 e 186 da Constituição Federal. 36 o sistema capitalista consolidou outras atividades do agronegócio que acontecem fora da propriedade rural, portanto, a agropecuária é só mais uma parte nesse modelo. Em comparação a luta pela terra dos anos 1980 e 1990, a atual pauta da luta pela reforma agrária popular encontra alguns desafios diferenciados, o avanço do agronegócio no campo acompanha a ampliação da territorialização da especulação imobiliária nas cidades e em áreas rurais, juntamente com a implementação de novas reformas e políticas necessárias ao capitalismo em crise, como a reestruturação produtiva, o neoliberalismo, a financeirização da economia, a acumulação por espoliação, entre outros, que infringiram aos trabalhadores e trabalhadoras uma sorte de espoliação e precarização das condições de vida. Para a luta pela terra, o avanço do agronegócio e a financeirização mundial significou também uma mudança qualitativa sobre a pauta da reforma agrária, o MST desenvolveu a proposta de Reforma Agrária Popular (RAP) definida como estratégia no XI Congresso Nacional do MST em 2014. A RAP é uma atualização da proposta de Reforma Agrária defendida pelo movimento, com os novos desafios a partir do patamar atual da crise estrutural do capital e o que ela impõe ao campo brasileiro e à vida da classe trabalhadora. O projeto da RAP é uma síntese de debates e análises sobre a questão agrária e do desenvolvimento do capitalismo no Brasil no contexto da crise estrutural do capital, com suas implicações para organização política social e a luta pela democratização das terras através da reforma agrária. Ao contrário da falsa ilusão sobre a superação da questão agrária brasileira com o avanço do agronegócio, o debate sobre o campo e a reforma agrária segue central, tanto em sua perspectiva histórica, quanto como centralidade das necessidades do capital de avanço sobre cada vez mais terras, submetendo tudo e todos a sua lógica destrutiva. O Programa propõe a socialização da terra para o desenvolvimento territorial da produção agroecológica, como forma de geração de renda, proteção ao meio ambiente e oferta de alimentos saudáveis para a população, ao mesmo tempo, construindo educação do campo, cultura popular, equidade de gênero e organização dos/as trabalhadores/as para sua emancipação (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2013). A RAP fortalece a relação com os/as trabalhadores/as das 37 cidades, de diversas categorias trabalhistas para a conquista e organização dos assentamentos. Nosso projeto se insere na luta da classe trabalhadora pela construção de relações sociais de produção que eliminem a exploração, a concentração da propriedade privada, a injustiça e as desigualdades. O nosso horizonte é, pois, o da superação do modo de produção capitalista. – Os objetivos de criação do MST continuam valendo e são alicerces da Reforma Agrária Popular. O conceito “popular” busca identificar a ruptura com a ideia de uma reforma agrária clássica feita nos limites do desenvolvimento capitalista e indica o desafio de um novo patamar de forças produtivas e de relações sociais de produção, necessárias para outro padrão de uso e de posse da terra. Trata-se de uma luta e de uma construção que estão sendo feitas desde já, como resistência ao avanço do modelo de agricultura capitalista e como forma de reinserir a Reforma Agrária na agenda de luta dos trabalhadores.(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2013). Conforme João Pedro Stédile durante o XXXII Encontro da Militância do MST de São Paulo, nos últimos 10 anos houve uma alteração em relação à tarefa histórica da agricultura brasileira e social, isso se dá devido à crise estrutural do capital. Se nas primeiras décadas do movimento a missão estava centrada no extermínio da pobreza no campo, atualmente ela se transformou em uma questão em relação à crise civilizatória mundial, aos novos paradigmas postos para a humanidade, a função dos movimentos populares camponeses e a reforma agrária, sem abrir mão da luta contra a miséria6. A urgência da produção de alimentos saudáveis para a humanidade, segundo Stédile, é um dos paradigmas da humanidade nesse momento histórico, isso é observado pelo nocivo modelo do agronegócio no campo, pelas doenças e contaminações geradas pelos agrotóxicos, transgênicos, desmatamentos, etc. Portanto, a agroecologia enquanto modelo de produção, torna-se também um paradigma fundamental como saída concreta para fome e produção de alimentos sem envenenamento. Outros dois paradigmas citados por Stédile são a questão da água, enquanto recurso findável que está relacionada com a necessidade da preservação ambiental, e a melhoria da qualidade de vida no campo, de modo a construirmos condições para a realização da agroecologia, com cuidado com a natureza, preservação para garantia de água e produção de alimentos saudáveis. A síntese indicada por Stédile, 9 anos após o lançamento da RAP, traduz o processo de elaboração na qual ela está inserida e os novos desafios que sua permanente 6 Informação mencionada por João Pedro Stédile durante o XXXII Encontro da Militância do MST de São Paulo realizado no dia 18 de janeiro de 2023 em Campina do Monte Alegre, São Paulo. 38 atualização aborda. A análise da crise estrutural do capital e a hegemonia do capital financeiro, com suas consequências para o campo, é a análise central da qual deriva a RAP. Assim, é nesse período histórico do capital em crise com seus desdobramentos no Brasil que surge a RAP, no contexto de crise das organizações da classe trabalhadora, grande dificuldade de extrair conquistas, como novos assentamentos da reforma agrária, e sofrendo todo o tipo de ataques. Justamente por essas razões é necessário compreender sobre os trabalhadores e trabalhadoras que formam o Acampamento Marielle Vive, das estratégias e lutas do MST e, também, sobre resistência de cotidianas investidas de seus inimigos. 2.2.3 Entre o campo e a cidade: a constituição do Acampamento Marielle Vive A Comuna da Terra e a RAP, contextualizadas pelas crises da década de 2010 e suas expressões na RMC, são bases para a elaboração da proposta da ocupação da FEEI e organização do MV. A execução do golpe de 2016, dois anos antes da ocupação do Marielle, contra a frágil democracia brasileira, fez parte de um projeto internacionalmente articulado para o aprofundamento de reformas ultra neoliberais do Estado e de subordinação ainda maior do país aos interesses financeiros do capital-imperialismo. Conforme informações coletadas na realização de entrevistas e na pesquisa participante, a construção do MV se deu em 2017 a partir da demanda concreta pela terra observada pela coordenação do MST na RMC. A RMC demonstrava este potencial por ser a maior região metropolitana do interior paulista e uma das maiores do país, com concentração de massa de trabalhadores e trabalhadoras, outra razão é o fato do MST possuir história de lutas e conquistas na região desde os anos 2000, assim como ser uma região privilegiada na existência de muitos e diversos setores da classe trabalhadora organizada. A situação da vida da classe trabalhadora urbana, com grave situação financeira decorrente da recessão econômica nos anos 2010, foi sentida sensivelmente através da fome, desemprego, miséria. Conforme podemos ver no trecho da entrevista de Gerson Oliveira, coordenador do MST de SP, concedida à autora: 39 A reforma agrária é uma política fundamental, a partir da democratização das terras podemos solucionar graves problemas de desemprego, déficit habitacional, fome, inclusive contribuir para soluções às questões ambientais e para o fim efetivo da fome no país, com a produção de alimentos saudáveis e uso racional do solo. Além disso, uma política de reforma agrária possibilita um reordenamento do uso do espaço. O Marielle demonstra, assim como outros acampamentos e assentamentos, que existem muitas as pessoas que vivem nas cidades que sonham com a terra e que, devido dificuldades, precisam de reforma agrária para geração de renda e resolver a questão da fome e moradia, ainda sem conquistar a terra o acampamento - através de sua organização popular - possibilita em parte a solução desses problemas. (Oliveira, 2020) No trecho desta entrevista, podemos observar que Gerson traz elementos estruturais em torno da questão agrária brasileira e sua urgente realização da reforma agrária e relaciona estas questões à demanda concreta de assentamentos rurais expressadas pelo MV, que tem base essencialmente advinda das periferias urbanas. A estrutura socioespacial da RMC, como discutiremos no capítulo, é destinada a atender os interesses da reprodução do capital, constituindo uma metrópole excludente e com sérios problemas urbanos - de moradia, transporte e desemprego. Neste aspecto, Oliveira indica que a reforma agrária, enquanto política estrutural, cumpre um papel de repensar o ordenamento do uso do espaço através da criação de assentamentos em áreas improdutivas. Através da pesquisa participante, identifiquei que o primeiro passo para constituição do Marielle, após a definição e estudo da realidade da classe trabalhadora da RMC, foi a realização do trabalho de base, o contato direto com famílias que viviam na periferia para apresentar a proposta de reforma agrária e fazer o convite para a luta pela terra. O trabalho de base ocorreu ao longo de 6 meses, entre os anos de 2017 e 2018, em bairros periféricos de mais de cinco cidades da RMC (principalmente Valinhos, Limeira, Hortolândia, Sumaré e Campinas). Conforme Gerson durante entrevista à autora: O trabalho de base do MST é basicamente organizado em três momentos: a preparação (diálogo e apresentação da nossa proposta), a luta direta (ocupação de terra) e a formação e organização do acampamento. Em geral todos trabalhadores/as que integram o movimento entraram e vivenciaram esse processo, que na verdade, é o que alterou a consciência dessas pessoas. A decisão de ir pra ocupação é a primeira decisão política significativa, pois muitos não vão nesse primeiro momento, ficam esperando um ou dois dias pra ver se deu certo e chegam depois. No terceiro momento, da construção do acampamento, é quando iniciamos um processo profundo de formação que chamamos de organicidade, que nada mais é do que a forma específica que o MST se organiza internamente. E a nossa organicidade é baseada em princípios, então é um processo lento, mas que vai gradualmente sendo incorporado. O momento da preparação é fundamental para o MST, é através dele que propagandeamos a reforma 40 agrária, é um método para diálogo com os trabalhadores, de ouvir as demandas, aprender da realidade de cada bairro e local, assim como contar sobre a experiência histórica da luta pela terra. Na região de Campinas o trabalho de base foi muito potente, além da realização de reuniões nos bairros, algumas com mais de 300 pessoas, aprendemos muito sobre a luta travada aqui já que todos os bairros fizemos trabalho de base são frutos do processo de ocupação urbana. (Oliveira, 2020). Como fruto do trabalho de base, cerca de 700 famílias decidiram fazer a ocupação e na manhã do dia 14 de abril de 2018 na Fazenda Eldorado Empreendimentos, no município de Valinhos/SP, formando o Acampamento Marielle Vive, exatamente um mês após o assassinato da vereadora Marielle Franco e, seu motorista, Anderson Gomes, no Rio de Janeiro, por isso a justa homenagem representada com o nome da comunidade. Segundo levantamento através de entrevistas e do trabalho de campo, a FEEI foi definida como área de luta pela reforma agrária principalmente por sua situação de improdutividade: A área estava completamente improdutiva, pelo menos a cerca de uma década, quando chegamos encontramos uma área devastada, só com pastagem degradada e sem nenhuma cabeça de gado, o objetivo da empresa é construir um condomínio de alto padrão, interesse puramente imobiliário para altíssimo faturamento. (Oliveira, 2020) Outro fator interessante na perspectiva do movimento para constituição de Comunas da Terra foi a localização da FEEI que é próxima a cidade, está a cerca de 10km do centro de Valinhos, o que possibilita a constituição de um assentamento com produção de verduras, hortaliças, com venda direta para o mercado consumidor, com baixo custo de transporte, e por ser local viável para pessoas que possuem vínculo com os municípios da região, como trabalho e familiares. Segue mapa da localização do MV: 41 Mapa 02 - Localização Acampamento Marielle Vive Fonte: Elaborado por Sara Abreu, Tassiana Barreto de Barros Moreira, Sandra Maria de Barros Santos e Luís Fabian Pachon Carnelo. Após um intenso ciclo de lutas e conquistas de assentamentos rurais em regiões metropolitanas de São Paulo na primeira década do século, como os acampamentos Terra Sem Males (foi fundado numa ocupação em Bragança Paulista, em 13 de abril 2002 com 193 famílias) e Getulina (município de Getulina), a constituição dos Assentamentos Sepé Tiaraju e Mário Lago, na região de Ribeirão Preto, Assentamento Milton Santos e Elizabeth Teixeira, na RMC, Assentamento Dom Tomás Balduíno e Acampamento Irmã Alberta, na Grande São Paulo, além das conquistas no Vale do Paraíba e em Sorocaba, observou-se um refluxo da luta pela terra no tocante a formação de novos grandes acampamentos rurais na década seguinte. Elemento importante que nos ajuda a compreender o fato, é a ausência da conquista de novos assentamentos, com acampamentos que estão a décadas sem regularização, como o Irmã Alberta, em Cajamar desde 2002, o Acampamento 42 Alexandra Kollontai no município de Serrana, região de Ribeirão Preto, desde 2008, ambos com características de CT. A ausência de conquistas de áreas para reforma agrária é extremamente relevante pois a relação entre conquista, mobilização social e luta é dialética, para um movimento de massas como o MST obter conquistas propagandeia o movimento, contribui para a mobilização. Sem conquistas o desafio para mobilizar e construir novos acampamentos com grande repercussão e base social são ainda maiores, ao mesmo tempo que sem base social organizada e pressionando não se obtém conquistas. Nesse aspecto, com a crise econômica e política desde 2013, retirada de direitos sociais, aumento da miséria e desemprego no campo e nas cidades, retomou-se, dentro da leitura do movimento, a possibilidade de novas ocupações em São Paulo com o público urbano que pudessem pressionar para novas conquistas através da luta. O MV, à vista disso, é a síntese da leitura política e demonstração concreta da viabilidade da luta pela terra nas regiões metropolitanas enquanto existência de demanda popular, de áreas improdutivas e da capacidade de resistência. Durante ato político realizado em 15 de abril de 2018, no MV um dia depois da ocupação, o coordenador do MST de São Paulo, Márcio José, sintetiza esta percepção indicando que, com a ocupação da FEEI e a construção do MV, o MST demonstrou 2 falácias, a primeira é a de que não havia sem terra na RMC, a segunda é de que não havia terra improdutiva na região. Em relação a mobilização e formação da base social, a constituição do MV, atual maior acampamento do MST de SP, nos permite corroborar de que existe uma parcela de trabalhadores e trabalhadoras urbanas com disposição de irem pro campo e lutar pela terra nesse momento histórico e que o MV reúne elementos importantes para compreender a atualidade e a base social da luta pela terra no contexto atual. É nesse cenário que a luta do Marielle pode contribuir para a percepção do papel da reforma agrária para os desafios dos trabalhadores e trabalhadoras organizadas, a base do acampamento advém integralmente de grandes periferias urbanas, o que evidencia as contingências e agruras sociais deste tempo histórico nas cidades, além disso a disputa de terra com a especulação imobiliária impõe a necessidade da luta pautar a questão urbana e o direito à moradia. Desse modo, é necessário discutir, para evidenciar e explicitar a particularidade da reprodução espacial do conjunto de trabalhadores e trabalhadoras que fazem a luta 43 pela terra em contextos urbanos como forma de sobrevivência e também como perspectiva de futuro, buscando assim, construir alternativas sociais frente à precarização das condições de vida, do desemprego estrutural, da fome, das violências. Características estas que compõem e repõem as vicissitudes históricas da classe trabalhadora e de sua nova morfologia no século XXI, sob a crise estrutural do capital como forma predominante de produção e reprodução da vida material. Ou seja, chamamos atenção aqui da urgência em se compreender os desafios atuais colocados para a classe trabalhadora, as contradições e possibilidades determinativas a partir das particularidades desta (e outras) experiências que estão em curso no seio da classe trabalhadora, nas periferias, nas fronteiras, nos interstícios e descontinuidades que permeiam as dimensões da reprodução social. O que revela este retrato social, tanto do desemprego como de múltiplas experiências laborais precarizadas, é a conformação de um tecido social extremamente cindido, degradado e aviltado pelos ditames do capital. Sob esta égide, de “mal-estar” permanente, a reprodução social destes sujeitos está condenada à miséria humana, a uma sobrevida, sem moradia, alimentação ou saúde adequadas; sofrendo com a violência policial e a política de controle social dos pobres e da pobreza por parte do Estado. Num sentido diversamente oposto, estas experiências de vida, as energias físicas, intelectuais e produtivas deste conjunto de trabalhadores/as, combinadas para um mesmo fim, com objetivos e interesses comuns, representam uma potência no processo de luta que impressiona os resignados e, por vezes, preocupa aqueles que operam a manutenção da ordem estabelecida. A ocupação coletiva da terra realizada por parte dos trabalhadores e trabalhadoras do MV é um ataque frontal à especulação imobiliária, aos privilégios de deste setor no município, como os acionistas da empresa FEEI, que iremos abordar detalhadamente no último capítulo. Além disso, a ocupação expressa o potencial de mobilização e insurgência de homens, mulheres, cis e trans, pertencentes a uma classe social historicamente explorada, que “tomam as rédeas" de sua própria história nas mãos. O efeito dessa ação altera a consciência dos indivíduos partícipes, uma vez que as próprias contradições geradas levam a uma compreensão da natureza dos latifúndios, da especulação imobiliária, da atuação do Estado e o 44 funcionamento da exploração de classe em sua relação direta com a concentração da riqueza e do poder. O MV é um espaço de luta e resistência, compreendendo o espaço como conjunto de sistema de objetos e ações que o formam de maneira indissociável (Santos, 2006), sendo produto do processo social e, também, o próprio processo em si. Dessa maneira as ações são elementos fundantes e fundamentais do espaço, com a indivisibilidade entre a sociedade e o espaço. Através do conflito continuado na luta do MV podemos analisar a configuração histórica do espaço, assim como o processo de disputa territorial entre as classes sociais para compreender os antagonismos existentes. Conforme Souza (2000, p.80) o território é “um espaço definido e delimitado por e a partir das relações de poder”, como um campo de forças onde os interesses operam sobre um espaço na perspectiva de deter o poder territorial. Assim a Fazenda Eldorado é um território do latifúndio improdutivo, usurpado e controlado pela especulação imobiliária, onde os interesses do capital rentista predominam a partir do poder exercido pela empresa de empreendimentos imobiliários que, de maneira ilegal, mantinha a terra improdutiva e a mercê do desenvolvimento capitalista. Através da ocupação sem terra, o interesse da especulação vem sendo frustrado e confrontado pela ação do MST, tornando-se um território em disputa, com dois pólos de poder: a reforma agrária popular e o capital imobiliário na região da Serra dos Cocais. A produção do espaço e do território é feita através das relações sociais, da relação dos conflitos das classes sociais com o território, com as disputas materiais e ideológicas. O território, enquanto campo de disputa de forças, possui caráter intrinsecamente político, sempre está submetido a uma classe social, é um instrumento da realização de determinados desejos como um campo de forças da disputa política por poder, ainda que haja hegemonia no controle territorial não existe a exclusividade de poder (Souza,2000). Com a ocupação da terra e a organização comunitária do acampamento, constituiu-se o território em um conflituoso processo entre a proposta de reforma agrária do MST e a de construção de condomínios de luxo da especulação imobiliária, que em sua lógica mantém áreas ociosas, improdutivas para sua valorização e lucros extraordinários. É nesse espaço onde se dá essa disputa entre as classes sociais no processo de produção do território. 45 Conforme Oliveira (2020) em sua entrevista, as famílias do MV pleiteiam a constituição de um assentamento rural através da luta pela terra, voltada à agroecologia e ao trabalho cooperado. Um limitante do ponto de vista da produção é a distribuição e organização espacial das 430 famílias que ocorre em apenas uma gleba da fazenda, são um pouco mais de 30 hectares ocupados de um total de cerca de 130 hectares, o que implica em limites para produção agrícola, tornando necessário desenvolver experiências coletivas e agroecológicas de plantio. O restante da fazenda não foi ocupado pela coerção e ameaça de seguranças privados armados que agem, conforme relatos, como jagunços. No município de Valinhos, em São Paulo, o avanço da territorialização capitalista tornou as franjas das áreas rurais um espaço de geração de lucro através do rentismo da especulação imobiliária. Com o aumento nacional da construção de condomínios de luxo horizontais nas últimas décadas, a região de Campinas observou o processo ocorrer em áreas privilegiadas com remanescentes florestais. Assim, na RMC o desenvolvimento territorial para as áreas rurais próximas às grandes cidades é de construção de condomínios, em detrimento da produção agrícola e geração de renda para famílias camponesas. A Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários consistia em uma área rural improdutiva, que não cumpria sua função social e estava a mercê da especulação imobiliária, o objetivo dos especuladores é integrar a fazenda na construção do maior empreendimento imobiliário de condomínio horizontal de luxo do município, envolvendo outras sete fazendas adjacentes, através de um consórcio de proprietários para realizar o mega-empreendimento da Região dos Lagos. O Acampamento Marielle Vive protagoniza um enfrentamento direto à propriedade privada e à hegemonia do capital imobiliário nas terras do município de Valinhos e da RMC atualmente, demonstra o potencial da luta popular para fazer frente ao privilégio de classe, propondo soluções concretas para a desigualdade social e a demanda por moradia, trabalho e novas relações humanas. Frente ao agravamento da crise capitalista e sanitária, a reforma agrária se apresenta como uma alternativa viável de planejamento, de redução das desigualdades, geração de empregos, trabalho e renda no fortalecimento da produção de alimentos saudáveis. Segundo Alentejano (2020), a reforma agrária também contribui para a solução do problema do caos urbano, com o desemprego e a pobreza das cidades, e como alternativa para o sistema agroalimentar atual - 46 homogeneizado pelo agronegócio - responsável pela diminuição da biodiversidade, avanço sobre áreas de preservação, pouca variedade genética, utilização intensiva de sementes transgênicas e insumos químicos de agrotóxicos. O alto nível de desemprego, crônico, estrutural e de informalidade no mundo do trabalho sobretudo da população negra, somado a um padrão de concentração de riqueza contraposta pela pobreza crescente, violência, segregação espacial etc. produz um tecido social permanentemente conflituoso e cindido do ponto de vista racial e de classe pelo poder econômico. Como estratégia frente a esta estrutura desigual e contraditória, a classe trabalhadora historicamente sempre buscou saídas e alternativas, seja individual ou coletiva, para “driblar” os problemas e garantir sua sobrevivência. A ocupação da terra no campo ou na cidade são algumas dessas ações diretas que questionam o ordenamento social, o planejamento voltado para reproduzir o capital, especialmente o financeiro e especulativo, em detrimento do direito à terra, ao trabalho, à moradia, à cidade, à vida digna para a maior parcela da população trabalhadora. Podemos observar pelo exemplo do Marielle como a produção do espaço na sociedade capitalista, além de social, é também desigual, o que é escancarado pelas paisagens, por exemplo, ao analisar casas e estruturas nos bairros ricos e pobres, comparando os condomínios de luxo ao acampamento. A desigualdade socioespacial “é um produto da reprodução ampliada do capital que se perpetua como condição de permanência da desigualdade social” (Rodrigues, 2007, p.74) fruto da apropriação privada dos bens da natureza, da privatização da terra, da exploração da força de trabalho, das desiguais formas de apropriação do espaço, ela demonstra a exploração de classe e as diferenças em relação a apropriação da riqueza produzida e a dificuldade e impossibilidade da classe trabalhadora ter as condições para a sobrevivência. Rodrigues (2007) nos indica que vivemos a intensificação e o aprofundamento da desigualdade socioespacial com a acumulação flexível, o neoliberalismo, a precarização do trabalho, a retirada de direitos sociais, com o avanço da tecnologia e com o aprofundamento do sistema capitalista. Na produção capitalista do espaço o preço da terra aumenta conforme o crescimento da cidade, a cidade se torna, em si, uma mercadoria, com a valorização de determinados bairros em detrimento da precarização de outros, é assim que a classe trabalhadora é expulsa para regiões cada vez mais afastadas dos centros das 47 cidades com a valorização de terras; formam-se periferias, produtos da expulsão dos trabalhadores/as para áreas menos urbanizadas, “As favelas e as ocupações coletivas de terra representam, na ótica do capitalismo e do Estado capitalista, a ilegalidade urbanística e jurídica, desobedecem às regras e normas de parcelamentos de solo urbano e da propriedade da terra” (Rodrigues, 2007, p.76). Na visão capitalista, regida atualmente pelo neoliberalismo, as ocupações de moradia irregular ocorrem devido ao aumento da população com um discurso de culpabilização especialmente a população migrante. O latente déficit habitacional, o aumento da miséria e pobreza, o predomínio de relações de trabalho extremamente precarizadas e o desemprego estrutural são situações cotidianas das famílias da classe trabalhadora, o aumento da pauperização, intensificado com a crise do capital, torna as condições de vida nas periferias urbanas insustentáveis. Fruto da reestruturação produtiva, que avança na desregulamentação e flexibilização do trabalho, temos uma nova morfologia da classe trabalhadora, com novos desafios no tocante à organização de trabalhadores, em relação às conquistas e na compreensão das transformações estruturais do labor e suas consequências na reconfiguração do mundo do trabalho. 2.3 A territorialidade do Acampamento Marielle Vive A formação do MV, com suas relações sociais e atividades impetradas no espaço, modifica a paisagem e impõe mudanças espaciais. A espacialização do MV está engendrada pelas características de sua base social, composta majoritariamente por trabalhadores e trabalhadoras em situação de desemprego, trabalho informal, sem casa, sem condições de pagar aluguel das cidades da RMC próximas a Valinhos. A característica urbana das famílias, implicou em uma inferência espacial. Seguem fotos da paisagem para análise do Acampamento Marielle Vive. 48 Figura 01 - Acampamento Marielle Vive em 2018 Fonte: Fotógrafo Júlio Matos, publicação Instagram Acampamento Marielle Vive. 49 Figura 02: Acampamento Marielle Vive em 2020 Fonte: Fotógrafo Júlio Matos, publicação Instagram Acampamento Marielle Vive. 50 As figuras acima são fotos aéreas do MV em diferentes momentos, 2018 foi o ano da ocupação, portanto, a figura 01 se refere quando a ocupação tinha apenas alguns meses, a figura 02 é de 2 anos após a ocupação, quando o Acampamento já possuía maior tempo construindo e alterando o espaço. Mesmo com mais de 4 anos e meio de existência, desde abril de 2018, a comunidade ainda corre risco de despejo, em um processo intenso de resistência para se manter no território. A área total da FEEI é de cerca de 130 hectares divididos em duas glebas separadas pela Estrada do Jequitibá, a ocupação está apenas em uma parte das glebas, em cerca de 30 hectares, porém a reivindicação é pela realização do assentamento em toda a fazenda. As figuras estão assinaladas com números para nos ajudar a identificar a paisagem. O item assinalado com o número 1 é a Estrada do Jequitibá, já interpretamos a importância dessa via, que é um eixo de expansão do capital imobiliário, ela liga os municípios de Valinhos e Itatiba e fica próxima à Rodovia Dom Pedro. Como demonstra a foto, a entrada no Marielle é via a Estrada do Jequitibá que é limítrofe de parte da área do acampamento. É possível identificar uma portaria na foto de 2018, que limita a entrada das pessoas e faz a segurança de quem está no acampamento. O MV está numa área que pertence à Serra dos Cocais, formada pelo Planalto Atlântico e a depressão periférica paulista, no item número 8 da figura 7 e 8 vemos fragmentos rochosos que estão presentes no Marielle e nas fazendas vizinhas. A área conta com parte de plantio de eucalipto, já está antigo que foi preservado pelas famílias como podemos ver no item 7. Ainda existe um resquício de mata nativa, o número 11, e possui uma mina que está sendo recuperada pelas famílias, assinalada no número 9. Conseguimos verificar que as demais áreas próximas da estrada e vizinhas do Marielle, identificadas com o 10, são fazendas de pasto bovino, com pequenas áreas de preservação ambiental e construções. A prática pecuária bovina extensiva é prejudicial ao meio ambiente, pois há devastação ambiental, pisoteamento e contaminação do solo e da água pelos dejetos, com a territorialização da especulação imobiliária essa prática passou a ser utilizada por esse setor para justificar a produtividade da terra através do arrendamento para uso pecuário. De acordo com dados coletados, a FEEI no período anterior à ocupação do MST não 51 possuía sequer cabeças de gados na área, porém justificava o uso de solo por essa prática. Podemos afirmar que o Marielle imprime uma diferença do uso do espaço se comparado à microrregião onde está instalado, pois não se configura como loteamento de luxo, nem como pasto. A alta densidade, características pelas habitações autoconstruídas, pode nos remeter aos bairros periféricos e favelas, no entanto, observamos reflorestamento e produção agrícola em grande horta e nos quintais agroecológicos. A atuação do movimento social gerou uma área de uso diferente por ser local de moradia de centenas de famílias e em razão da luta pela terra perpetrada pela ocupação, o que gera debate societário sobre qual deve ser o destino das terras da região, colocando em cheque os condomínios horizontais de luxo como forma sustentável de desenvolvimento e descortinando que a especulação imobiliária não cumpre a função social da terra e privatiza áreas públicas e de bens naturais. Podemos observar a mudança paisagística do item 4 na figura 1 comparada com a figura 02, em 2018 era um campo de futebol com solo extremamente compactado, em 2020 vemos que uma parte do campo foi transformado em uma horta agroecológica em formato de mandala. A horta é coletiva e se tornou uma escola de agroecologia para o Acampamento, referência de técnica agroecológica e trabalho comunitário, reverberando a agroecologia para os quintais agroecológicos que podemos observar no número 5. A produção agroecológica no Marielle é fruto de uma linha política da RAP e da Via Campesina (LVC), organização internacional da qual o MST participa. Peter Rosset e Martínez indicam que [...] vemos la emergencia de LVC después de 1992 (Martínez y Rosset, 2010, 2014) como el movimiento social transnacional que promueve la agricultura agroecológica diversificada como un elemento clave en la resistencia, junto con la recampesinización y la reconfiguración de territorios [...]. (Martínez; Rosset, 2016, p.286). Com base na linha política da agroecologia, o antigo pasto foi rapidamente transformado em local de moradia das centenas de famílias, também se tornou um local de produção, embora com limitações em relação à estrutura de irrigação e ausência de fomento paraprodução. Os quintais agroecológicos (aparecem no item 5, mas estão em torno de todas moradias) do ano