UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” CAMPUS DE SÃO PAULO INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA MARIA ELISA FERREIRA RISARTO A LEITURA À PRIMEIRA VISTA E O ENSINO DE PIANO SÃO PAULO 2010 2 MARIA ELISA FERREIRA RISARTO A LEITURA À PRIMEIRA VISTA E O ENSINO DE PIANO Dissertação apresentada ao programa de Pós- Graduação em Música do Instituto de Artes da UNESP - Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”- Campus de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Música. Orientadora: Profª Drª Sonia Regina Albano de Lima SÃO PAULO 2010 3 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP (Fabiana Colares CRB 8/7779) R595l Risarto, Maria Elisa Ferreira. A leitura à primeira vista e o ensino de piano / Maria Elisa Ferreira Risarto. - São Paulo, 2010. 177 f. Bibliografia Orientador: Profa. Dra. Sonia Regina Albano de Lima Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. 1. Música – leitura e execução. 2. Música – Instrução e estudo. 3. Piano – Instrução e estudo. 4. Leitura à primeira vista. I. Lima, Sonia Regina Albano de. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título CDD – 780.7 4 MARIA ELISA FERREIRA RISARTO A LEITURA À PRIMEIRA VISTA E O ENSINO DE PIANO Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP (Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”), Campus de São Paulo, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Música. Área de concentração: Musicologia/Etnomusicologia Orientadora: Profª Drª Sonia Regina Albano de Lima Dissertação defendida e aprovada em 30/08/2010 Banca Examinadora: _____________________________________________________________ Presidente: Orientadora: Profª Drª Sonia Regina Albano de Lima (Departamento de Música – UNESP) ______________________________________________________________ 2º Examinador: Prof. Dr. Celso Antonio Mojola (Escola Superior de Música - Faculdade Cantareira) _____________________________________________________________ 3º Examinador: Prof. Dr. Amilcar Zani Neto (Departamento de Música – ECA – USP) 5 À minha amada mãe, Domingas, in Memorian, por seu contagiante amor pela música e pela vida. 6 AGRADECIMENTOS Meus sinceros agradecimentos a todos que, de alguma maneira, contribuíram com este trabalho. À minha querida orientadora, Prof. Drª. Sonia Regina Albano de Lima, agradeço de coração todo apoio, entusiasmo, paciência e amizade demonstrados durante o meu percurso acadêmico. À DD. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Música do IA-UNESP, Prof. Drª. Lia Tomás, aos professores das disciplinas cursadas no PPGM do IA-UNESP: Alberto Tsuyoshi Ikeda, Dorotéa Machado Kerr, Giacomo Bartoloni, Marisa Fonterrada, Nahim Marun e Sonia Regina Albano de Lima e a todos os colegas do curso, que muito me auxiliaram no cumprimento das tarefas e dos trabalhos apresentados e que me brindaram com sua amizade e entusiasmo. Ao Prof. Dr. Cláudio Richerme de Oliveira Azevedo, que me aceitou no estágio de docência, permitindo-me participar de suas aulas, tomando contacto com a sistemática curricular do curso de bacharelado do IA-UNESP. Aos funcionários do IA-UNESP, incluindo o pessoal da secretaria de pós-graduação, na pessoa de Marisa Isabel Alves, ao pessoal da biblioteca do IA-UNESP, na pessoa de Fabiana Colares e aos funcionários do SAEP na pessoa de Moacir Vieira da Silva, que sempre solicitamente me apoiaram em tudo que necessitei para esta realização. Ao Prof. Henrique Gregori, ex-Diretor da EMM, por autorizar a realização do curso de leitura à primeira vista na Instituição, que se consolidou como uma das fontes de pesquisa deste trabalho. Ao Prof. Dr. Celso Mojola e ao Prof. Dr. Amilcar Zani Neto, pelas valiosas observações durante o exame de qualificação e na defesa de minha dissertação. À Prof. Marizilda Hein, por me apresentar o método de leitura à primeira vista de Wilhelm Keilmann, dando ensejo a este trabalho. A todos os professores e amigos pianistas, que participaram das entrevistas muito solicitamente, a saber: Achille Picchi, Alex Sandra Grossi, André Rangel, Angela Volcov, Claudio Richerme, Diva Evelyn Reale, Eduardo Monteiro, Estela Caldi, Flavio Augusto, Gilberto Tinetti, Glacy Antunes, Hermes Daniel Jacchieri, Lilian de Almeida, Marco Antonio 7 de Almeida, Marcylda Clis, Margarida Fukuda, Marisa Lacorte, Marizilda Hein, Nahim Marun, Paulo Gori, Paulo Steinberg, Renato Figueiredo, Ricardo Ballestero, Rosana Civile e Scheilla Glaser. Aos alunos da EMM que participaram do curso de leitura à primeira vista para pianistas, a saber: Beatriz Chaim Salles, Camila Cursio Brioli, Cíntia Pereira Gasparetti, Priscilla Barbosa Ribeiro e Rodrigo Queroz Cunha, cujas presenças muito contribuiram para a elaboração da pesquisa, agradeço pelo entusiasmo que demonstraram. Agradeço também aos seus professores que sugeriram que participassem. Ao Pedro Luiz Pinotti pela construção do teclado-mudo, a nosso pedido, que muito nos ajudou nas aulas de leitura à primeira vista. A todos que de alguma forma me apoiaram, incluindo os professores e amigos da secretaria da EMM, principalmente à Maraiza, à Sonia e à Terezinha. Agradeço também à Cristina e ao Lutero Rodrigues pelo empréstimo dos dois volumes do método de Keilmann. Ao professor Dante Cavalheiro Filho, pelo apoio, pela tradução da biografia do autor e por conseguir os originais em alemão do método. À Ana Consuelo Ramos pela boa vontade em me enviar sua dissertação de mestrado. Aos meus amados familiares, pai, irmãos, sobrinhos (especialmente ao Homero, à Renata e à Clarissa) pela ajuda, e principalmente ao Roque, marido e companheiro paciente e amoroso, pelo apoio e incentivo nestes tempos em que estive ausente. 8 “Os maus músicos não podem ouvir o que tocam; os medíocres poderiam ouvir, mas não escutam; os músicos medianos ouvem o que „tocaram‟; apenas os bons músicos ouvem o que „irão‟ tocar”. Edgar Willems 9 RESUMO A leitura ao piano é utilizada pela maioria dos músicos: arranjadores, regentes, compositores, professores de matérias teóricas, cameristas, instrumentistas, acompanhadores e correpetidores. Mesmo assim, os cursos de música ainda não oferecem na sua matriz curricular uma disciplina essencialmente voltada para o desenvolvimento da leitura à primeira vista. Esse fato contribui para a formação de instrumentistas alheios a essa prática, situação que se agrava ainda mais, quando se trata dos pianistas. Esta dissertação, utilizando a pesquisa-ação como modelo investigativo, parte dessa problemática, fazendo uso de procedimentos variados para demonstrar a importância de se introduzir nos cursos de música, a disciplina leitura à primeira vista ao piano como suporte pedagógico auxiliar ao desenvolvimento da performance. Primeiramente a mestranda avaliou os resultados pedagógicos obtidos no curso de leitura à primeira vista para pianistas, realizado na Escola Municipal de Música. Nele foi empregada a metodologia de Wilhelm Keilmann dirigida ao desenvolvimento da leitura à primeira vista para pianistas, descrita no método Introdution to sight-reading at the piano or other keyboard instrument (1972). Também foram entrevistados diversos pianistas e professores do instrumento, com o intuito de verificar de que forma essa habilidade foi incorporada no cotidiano desses instrumentistas e como ela é ensinada por eles. Integrou a pesquisa o levantamento bibliográfico efetuado, com o intuito de compreender a natureza e o sentido da leitura à primeira vista na performance e o quanto ela depende do aprendizado anterior da lecto-escrita musical. Graças a esse levantamento observou-se que nem sempre o aprendizado da lecto-escrita musical obedece a um trabalho seqüencial dos conteúdos teórico-musicais, vivenciados anteriormente, produzindo um hiato entre o nível de leitura musical do pianista e o seu desenvolvimento performático. Contribuiu nessa verificação a teoria do aprendizado musical desenvolvida por Edwin Gordon. Concluiu-se ainda que a metodologia de W. Keilmann estava embasada em dados teóricos presentes na maioria dos pesquisadores consultados, mostrando-se pedagogicamente eficiente para a aplicação no ensino dessa habilidade. As entrevistas, o método de W. Keilmann e o levantamento bibliográfico apontaram para a necessidade de se verificar quais as capacidades cognitivas e habilidades musicais envolvidas na leitura musical e na leitura à primeira vista. De forma enfática, fizeram parte da fundamentação teórica os pesquisadores John Sloboda, Edwin Gordon, Robert Pace, Luigi Pareyson, H. G. Gadamer, dentre outros. As capacidades cognitivas analisadas foram: a percepção, a atenção e a memória. Também foram verificados alguns procedimentos cognitivos envolvidos no aprendizado da lecto-escrita e as habilidades musicais pertinentes ao ato de ler à primeira vista, quais sejam: habilidade motora; motora ocular; motora de acessar condicionamentos; de entendimento e antecipação da leitura em relação à execução; de dar continuidade e/ou corrigir erros da partitura inconscientemente; de reconhecimento do teclado pelo tato e pela visão periférica; de monitoramento visual e auditivo; de cantar à primeira vista: de incluir aspectos expressivos na leitura à primeira vista. Concluindo a dissertação, constatou-se que a pesquisa-ação produzida contribuiu sensivelmente para incorporar ao tema, subsídios teóricos que possibilitaram uma reflexão contínua em torno dessa prática. Verificou-se ainda, que o aprendizado da lecto-escrita musical proposto por E. Gordon beneficia consideravelmente o desenvolvimento da leitura à primeira vista, fato que viabiliza a inclusão da disciplina nos cursos de música em geral. A partir dos subsídios coletados, espera-se a continuidade desta investigação para o fortalecimento científico da área de performance. Palavras chave: Leitura à primeira vista, piano, processos cognitivos, habilidades musicais, aprendizado musical. 10 ABSTRACT Reading piano scores is used by most musicians, arrangers, conductors, composers, teachers of theoretical subjects, chamber musicians, instrumentalists, accompanists and co-repetitors. Nevertheless, the music courses still have not offered in their syllabus a subject which is essentially directed to the development of sight-reading. This fact has contributed to the formation of instrumentalists who are foreign to this practice, a situation which becomes even worse in the case of pianists. Making use of the action-research as an investigative model, this dissertation starts from this problem, using various procedures in order to demonstrate the importance of introducing the subject of piano sight-reading in the music courses as a pedagogical aid to promote the development of the performance. As a first step, the graduate student evaluated the pedagogical results achieved in the course of sight-reading for pianists, held at the Municipal School of Music [Escola Municipal de Música]. In this course, Wilhelm Keilmann‟s methodology directed to pianists was used, as described in his Introduction to sight- reading at the piano or other keyboard instrument (1972). Several pianists and teachers have been interviewed in order to verify the way in which this ability has been incorporated into these instrumentalists‟ daily lives and how it is taught by them. As part of the research, the bibliographic raising was carried out in order to understand the nature and the meaning of sight- reading in the performance, as well as how much it depends on the previous learning of musical reading and writing. Thanks to this data collecting, it was observed that the learning of musical reading and writing does not always follow a sequential study on the theoretical and musical contents which were previously experienced. This seems to produce a gap between the level of reading music by the pianist and his performance development. The theory of musical learning developed by Edwin Gordon contributed to this verification. It was concluded that W. Keilmann‟s methodology was based on theoretical data present in the majority of the consulted researchers, proving to be pedagogically effective for the application in the teaching of this skill. The interviews, W. Keilmann‟s method, and the bibliographic data have pointed to the need of ascertaining which cognitive capabilities and musical skills are involved in sight-reading music. In an emphatic way, John Sloboda, Edwin Gordon, Robert Pace, Luigi Pareyson, and H. G. Gadamer, among others, were part of the theoretical foundation. The cognitive capabilities evaluated were the ones of perception, attention and memory. Some cognitive procedures involved in the learning of reading and writing, as well as the musical skills which are relevant to the act of sight-reading were also observed, such as: motor and ocular motor skills; motor skills to access conditioning processes; ability to understand and anticipation of reading in relation to the execution; ability to give continuity and/or unconsciously correct errors in the score; to recognize the keyboard by touch and peripheral vision; visual and auditory monitoring; sight- singing; to include expressive aspects in sight-reading. Concluding the dissertation, it was verified that the produced action-research has significantly contributed to incorporate theoretical support to the theme, which allowed for continuous reflection on this practice. It was also found that the learning of reading and writing music proposed by E. Gordon considerably benefits the development of sight-reading, a fact that makes it possible for the inclusion of courses in the discipline of music in general. Having the collected subsidies as a starting point, the continuity of this research is expected in order to provide scientific strength to the performance area. Key-words: Sight-reading, piano, cognitive processes, musical skills, musical learning. 11 LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURAS Pág. Fig. 1 - Quadro sobre pesquisação de Tripp 24 Fig. 2 - SLOBODA: a) sequência de fixação vertical na leitura pianística; b) sequência de fixação horizontal na leitura pianística; c) exemplo de fixação vertical em progressão de acordes e d) exemplo de fixação horizontal em música contrapontística 69 Fig. 3 - Método W. Keilmann, p. 51 – Exercício nº 118 74 Fig. 4 - Foto do Blind-Keyboard (teclado-cego) 84 Fig. 5 - Método W. Keilmann, p. 15 – Figuras diatônicas - Escala 85 Fig. 6 - Método W. Keilmann, p. 16 – Intervalos de segunda, em forma harmônica ou simultâneos (acima) e melódica ou quebrados (abaixo) 86 Fig. 7 - Método W. Keilmann, p. 23 – Ritmo 87 Fig. 8 - Método W. Keilmann p.24 – Transposição de uma passagemn dada para um tom acima e um tom abaixo 87 Fig. 9 - Método W. Keilmann p. 36 - Exercício nº 39 88 Fig. 10 - Método W. Keilmann, p. 34 – Exercício nº 31 89 Fig. 11 - Método W. Keilmann, p. 40 – Exercício nº 54 89 Fig. 12 - Método W. Keilmann, p. 43 – Exercício nº 67 90 Fig. 13 - Método W. Keilmann, p.47 – Exercício nº 80 90 Fig. 14 - Método W. Keilmann, p. 51 – Exercício nº 98 91 Fig. 15 - Método W. Keilmann, p. 53 – Exercício nº 102 91 Fig. 16 – Carta da Profª Drª Lia Tomás, escaneada 177 12 LISTA DE SIGLAS PPGM – Programa de Pós-Graduação em Música UNESP – Universidade Estadual Paulista IA – Instituto de Artes EMM – Escola Municipal de Música SAEP - Seção de Apoio, Ensino, Pesquisa e Extensão 13 SUMÁRIO INTRODUÇÃO: PROBLEMÁTICA E JUSTIFICATIVA DA PESQUISA.................15 OBJETIVOS E METODOLOGIA DA PESQUISA............................................................23 CAP. 1 LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO 1.1 LIVROS.....................................................................................................27 1.2 DISSERTAÇÕES DE MESTRADO.........................................................31 1.3 MONOGRAFIAS......................................................................................33 1.4 ARTIGOS CIENTÍFICOS........................................................................35 CAP. 2 LEITURA À PRIMEIRA VISTA 2.1. CONCEITUAÇÃO....................................................................................43 2.2. PROCEDIMENTOS COGNITIVOS E MUSICAIS PRESENTES NA LEITURA À PRIMEIRA VISTA..............................................................52 2.3. HABILIDADES PRESENTES NA LEITURA À PRIMEIRA VISTA 2.3.1. Habilidade motora ............................................................................64 2.3.2. Habilidade motora ocular .................................................................67 2.3.3. Habilidade motora de acessar condicionamentos físico-rítmico- motores necessários à execução (subsunçores).................................70 2.3.4. Habilidade de entendimento e antecipação da leitura em relação à execução.......................................................................71 2.3.5. Habilidade de dar continuidade e/ou corrigir erros da partitura inconscientemente.............................................................................72 2.3.6. Habilidade de reconhecimento do teclado pelo tato e pela visão periférica ...........................................................................................74 2.3.7. Habilidade de monitoramento visual, auditivo e rítmico na leitura à primeira vista.......................................................................75 2.3.8. Habilidade de ler à primeira vista cantando (sight- singing)................... ..........................................................................76 2.3.9. Habilidade de incluir aspectos expressivos na leitura à 1ª vista .......77 CAP. 3 O CURSO DE LEITURA À PRIMEIRA VISTA E OS RESULTADOS ALCANÇADOS 3.1. O MÉTODO DE WILHELM KEILMANN.............................................80 3.2. OS QUESTIONÁRIOS DE AVALIAÇÃO.............................................96 3.5.1. Primeiro questionário..................................................................97 3.5.2. Segundo questionário..................................................................99 3.6. DAS ENTREVISTAS..............................................................................103 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................111 REFERÊNCIAS TEXTOS..................................................................................,.......................114 PARTITURAS UTILIZADAS NO CURSO.................................................119 ENTREVISTAS..............................................................................................120 QUESTIONÁRIOS.........................................................................................122 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .....................................................................................124 14 ANEXOS ENTREVISTAS DE PIANISTAS E PROFESSORES EDITADAS............131 PRIMEIRO QUESTIONÁRIO DE ALUNOS PARTICIPANTES..............160 SEGUNDO QUESTIONÁRIO DE ALUNOS PARTICIPANTES..............163 DIÁRIO DAS AULAS...................................................................................171 CARTA DA PROF. DRA. LIA TOMÁS (Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita” – Campus de São Paulo) PARA O MAESTRO HENRIQUE GREGORI (ex-diretor EMM)..............................................................177 15 INTRODUÇÃO PROBLEMÁTICA E JUSTIFICATIVA DA PESQUISA O piano, ainda hoje, é um dos instrumentos mais utilizados na prática musical. Os instrumentistas em geral, sejam regentes, compositores, arranjadores ou professores de performance e matérias teóricas não desconhecem a importância de desenvolverem uma leitura pianística básica para utilizar nas aulas, em seus estudos, na execução de suas composições, arranjos, nos ensaios de coro e na prática camerística. É comum presenciarmos violinistas, percussionistas e outros performers executarem ao piano os seus estudos de harmonia, contraponto e percepção, principalmente aqueles que lidam com instrumentos melódicos. É bom que se esclareça que mesmo com a queda vertiginosa pela escolha da carreira de pianista solista, há que se contemplar o número acentuado de pianistas que têm se dedicado a outras práticas musicais, quais sejam, a prática camerística, a correpetição, o preparador de cantores de ópera, o acompanhador nos balés, pianistas que atuam em musicais, gravações, fato que pressupõe uma leitura pianística bem mais eficiente e imediata do que a de um pianista solista. Na verdade, a execução pianística ainda é uma grande aliada de boa parte dos músicos. Se a leitura pianística pode ser precária para os músicos, é inadmissível que o seja para os pianistas. Esses profissionais devem ter uma leitura pianística precisa, eficiente e rápida. Mesmo assim, não é tão incomum depararmo-nos com pianistas que têm dificuldade em ler com certa desenvoltura uma partitura desconhecida à primeira vista. Lenita Portilho Furlan dá início à sua dissertação de mestrado, relatando a sua perplexidade ao observar as dificuldades que uma pianista consagrada enfrentou ao ler à primeira vista uma partitura simples, em linguagem tonal. Esse acontecimento norteou sua pesquisa que se desenvolveu no sentido de elaborar desde o início do aprendizado musical um trabalho pedagógico voltado para a compreensão e execução da lecto-escrita 1 musical: A tarefa de leitura e escrita musicais, ao longo dos anos, tem passado por sucessos e fracassos. É freqüente nas escolas de música brasileiras, em todos os níveis, deparar- se com queixas de alunos e professores a respeito da falta de domínio da leitura e escrita musicais, principalmente entre os alunos de piano, que, por vezes, por não estarem desde o início do processo de aprendizagem, inseridos em um contexto de 1 Habilidade adquirida de ler e escrever. 16 prática de leitura-escrita, nem sempre se familiarizam com estes processos [...] O que é possível perceber, por meio de contato com alunos e professores, e por dados levantados informalmente, é que eles próprios atribuem essa falta de competência a falhas na formação básica inicial, que incidem na dificuldade de compreensão do código de escrita e no estabelecimento de relações entre os elementos desse código e o fenômeno sonoro (FURLAN, 2007, p.14-5). Acreditamos que essa inabilidade é resultado de um ensino de piano que prioriza essencialmente o trabalho técnico e o estudo do repertório pianístico, deixando para um segundo plano a leitura à primeira vista. Para um pianista solista, uma boa leitura à primeira vista não se faz tão necessária, uma vez que, de alguma maneira, ele irá dominar o seu repertório graças aos seus estudos diários. Já, nas atividades onde ele atua em conjunto, vai ter que dispor de uma leitura musical muito mais ativa. Costumeiramente, as aulas de piano nos conservatórios, institutos de ensino superior e escolas técnicas, têm uma duração semanal de 50 a 60 minutos, tempo insuficiente para se trabalhar a leitura à primeira vista. A maioria dos professores de piano parte do pressuposto que essa habilidade vai se consolidar com o tempo, a partir do estudo do repertório e de um trabalho técnico contínuo. As aulas de música de câmara ou prática de conjunto, por sua vez, também são destinadas ao estudo do repertório que será executado nos ensaios gerais. Dessa forma, a leitura à primeira vista quase sempre é realizada pelo próprio aluno, sem a utilização de uma metodologia específica ou de critérios pedagógicos mais direcionados. Tanto é ruim depararmo-nos com pianistas que têm uma excelente técnica, mas não têm uma boa leitura, ou com pianistas que apenas têm uma boa leitura, mas não são bons intérpretes. A execução pianística requer profissionais que detenham além de uma boa leitura musical, um alto poder interpretativo e outras tantas habilidades. Nesse sentido, medir o seu campo de ação, a sua importância na performance, o momento em que ela deve ser preterida em prol de um bom desenvolvimento interpretativo, são tarefas prioritárias para um pianista. No que concerne à leitura musical em geral, é importante, primeiramente, observarmos as diferenças que existem entre a leitura de um texto musical e a leitura de um texto verbal. Liliana Garb Bollos, em seu artigo Performance na música popular: uma questão interdisciplinar, assim se reporta à leitura musical: Se pensarmos que o ensino da leitura na escola tem como objetivo chegar à compreensão direta do texto escrito através de uma leitura interior e silenciosa, o ensino da música não tem dado a mesma importância a este processo de interiorização da leitura musical, da mesma forma que, mesmo músicos com anos de treinamento 17 não estabelecem contato direto entre a página escrita e o sentido musical que nasce dentro dela [...] Essa condição técnica, a leitura mental da partitura, pouquíssimo discutida na performance musical, é uma grande aliada na interpretação, determinando, muitas vezes, o rumo de um fazer musical (LIMA, 2009, p. 107-8). A leitura inicial de um texto literário não exige a participação integral do corpo, só a do aparelho fonador, no caso de uma leitura falada, e em uma leitura internalizada, uma atitude e concentração mental direcionadas. O texto literário pode ser compreendido em toda a sua integralidade, mesmo que sua leitura seja silenciosa. A música, no entanto, só se consuma na execução. Mesmo que possamos conceber uma leitura silenciosa do texto musical, é na execução que a obra musical adquire sua plenitude, e nessa execução o corpo participa de forma integral. Para o filósofo L. Pareyson, a execução musical não se produz na decifração da escrita simbólica e convencional contida na partitura. Executar uma obra musical é fazê-lo de tal forma, que o conjunto de sons reais, as palavras cantadas, os gestos e os movimentos que resultam dessa execução, sejam a própria obra em sua plena e acabada realidade (PAREYSON, 1993, p. 211). A execução musical pressupõe, além do domínio pleno da linguagem musical e a interpretação dos signos e da idéia musical contida na partitura, a habilidade e coordenação motora para concretização dessa execução; bom entendimento rítmico e pulso interno; domínio muscular e outras habilidades que interagem de forma sincronizada na mente do intérprete. Qualquer tensão muscular ou falta de domínio corporal pode afetar sensivelmente a execução. O instrumentista deve ter plena consciência de suas limitações corporais e dos enfrentamentos que poderá deflagrar contra o seu corpo para obter uma performance adequada, fato que não ocorre com o leitor de um texto falado, a não ser que este seja encenado ou declamado em público. Nos últimos anos tem havido um aumento de pesquisas que estudam a relação do corpo com a performance. São comuns trabalhos científicos que tratam do funcionamento dos músculos e suas funções na execução musical. Habitualmente a pesquisadora e contrabaixista Sonia Ray tem produzido textos descrevendo a importância da preparação de um instrumentista sob uma perspectiva psíquica e corporal. No artigo Relações da performance musical com a anato-fisiologia de CARVALHO, MACHADO & RAY (2004, p. 174) estão descritas as situações de stress físico e emocional pelo qual passa a maioria dos 18 instrumentistas em sua atividade cotidiana. Esse fato exige um preparo corporal e psíquico de excelência para que se possam cumprir as tarefas técnicas de domínio do instrumento, da voz e regência. Em outra publicação, Sonia Ray demonstra a importância de o performer se prevenir das lesões em sua atividade: É possível que o performer musical se prepare com consciência no processo à medida que se informa sobre como adquirir resistência muscular, como treinar sequências de movimentos usando mínimo esforço, como se alimentar mais adequadamente para período de maior e de menor intensidade de trabalho e, principalmente, como se prevenir de lesões quando em atividade. Um preparo inadequado pode impedir o desenvolvimento pleno do performer tanto em sua preparação quanto em sua execução (RAY, 2005, p. 46). No mesmo artigo ela descreve o quanto os aspectos neurológicos estão diretamente ligados a tudo que o corpo faz, tendo em vista que o cérebro está por traz de todas as ações voluntárias e involuntárias realizadas no corpo. Nesse sentido, cada vez mais presenciamos a importância de reintegrar ciência e arte na pesquisa performática. Gainza & Kesselman, no livro Música y Eutonía 2 deixam claro a necessidade de o músico trabalhar bem com o seu corpo: Hoje existe um consenso de que todo músico necessita sentir e usar seu corpo com destreza, sensibilidade, e ainda com uma necessária funcionalidade e com economia de esforço, como o faria um desportista, um mágico, um acrobata ou um astronauta. [...] Os enfoques mais recentes em matéria de consciência corporal aplicados à arte, ao esporte e à vida cotidiana, consideram o corpo e o movimento como instâncias que todo ser humano constrói de um modo único e pessoal. [...] Sem dúvida, aos executantes e intérpretes profissionais – ou a caminho de sê-lo – o corpo deveria necessariamente interessar-lhes: à semelhança do bailarino ou do desportista profissional, o músico deve treinar-se corporalmente para otimizar seu rendimento técnico, pois é sabido que, a partir de certa etapa da formação, se requerem horas de esforço e dedicação para incorporar os aspectos básicos da técnica instrumental. [...] tudo aquilo que o músico sabe e sente acerca da música deverá ser realizado, expressado, mediante uma atuação corporal inteligente e sutil; um trabalho que é executado pelos dedos, mas em que estes apenas constituem a trama final de um circuito finamente integrado que inclui a totalidade do corpo. A atuação corporal do executante se reflete no som: tanto suas virtudes e capacidades técnicas como seus vícios e dificuldades corporais poderão ser vistas, mas também serão ouvidas através da música que produz. (GAINZA & KESSELMAN, p. 68-9) 3 2 A palavra eutonia (do grego eu = bom, justo, harmonioso, e tonos = tônus, tensão) foi criada em 1957 para expressar a idéia de uma tonicidade harmoniosamente equilibrada, em adaptação constante e ajustada ao estado ou à atividade do momento (ALEXANDER, 1991, p. 9). 3 Tradução livre da mestranda do texto: “Hoy existe consenso acerca de que todo músico necesita sentir y usar su cuerpo con destreza, sensibilidad, y además con una necesaria funcionalidad y economía de esfuerzo, como lo 19 No capítulo I do livro A Mente Musical, John A. Sloboda elabora um estudo comparativo entre a linguagem verbal e a música. Embora o assunto não seja o enfoque primeiro de nossa pesquisa, é importante tomarmos conhecimento dessa analogia, pois os padrões cognitivos ali existentes têm implicações profundas e articuladas em todas as atividades musicais (SLOBODA, 2008, p. 84). Para esta pesquisa, entretanto, o capítulo de maior importância é aquele destinado à performance, pois a partir dele, vamos verificar quais as habilidades que envolvem a execução musical, como ela se processa e quais os benefícios de uma boa leitura musical para os intérpretes. Sloboda parte da hipótese de que os performers dão realidade a uma composição pré-existente, dessa maneira, admite a existência de três estágios principais de envolvimento do performer com uma partitura: Primeiramente, há a performance não-premeditada que o músico é capaz de realizar na primeira leitura da partitura. Isso é geralmente conhecido como leitura à primeira vista. Em segundo, vêm as performances geradas por um período de exposição continuada à partitura. O objetivo destas performances é geralmente o de aprimorar a execução até que a mesma atinja um certo critério de adequação, já que a leitura à primeira vista nem sempre produz uma execução totalmente satisfatória. Este tipo de performance é conhecido como ensaio ou prática. Finalmente, há o produto mais ou menos acabado do ensaio, uma execução que foi aperfeiçoada e que pode envolver a memorização total de uma partitura. Esse último tipo de performance será chamado aqui de performance expert, embora seja importante salientar que alguns músicos podem executar bem diversas músicas sem necessidade de muitos ensaios. Uma boa leitura à primeira vista (e, de fato, um bom ensaio) também identifica um expert (SLOBODA, 2008, p. 87-8). Foi esse capítulo que nos permitiu delimitar com maior precisão o campo de ação da leitura à primeira vista, conceituá-la, e analisar seus efeitos para o desenvolvimento do performer. Embora nossas inquietações iniciais estivessem concentradas mais na execução pianística e não tanto no aprendizado da lecto-escrita musical 4 , muitos questionamentos surgiram a partir dessa relação: Como adquirir uma boa leitura pianística? As falhas ocorridas harían un deportista, un mago, un acróbata o un astronauta. [...] Los enfoques más recientes en matéria de conciencia corporal aplicados en el arte, el deporte y la vida cotidinana, consideran el cuerpo y el movimiento como instancias que todo ser humano construye de un modo único y personal. [...] Sin embargo, a los ejecutantes e intérpretes profesionales – o en camino de serlo – el cuerpo debería necesariamente interesarles: a semejanza del bailarín o el deportista profesional, el músico debe entrenarse corporalmente para optimizar su rendimiento técnico, pues es sabido que, a partir de cierta etapa de la formación, se requieren horas de esfuerzo y dedicación para incorporar los aspectos básicos de la técnica instrumental. [...] todo aquello que el músico sabe y siente acerca de la música deberá ser realizado, expresado, mediante una actuación corporal inteligente y sutil; un trabajo que es ejecutado por los dedos, pero en el que éstos apenas constituyen el tramo final de un circuito finamente integrado que incluye la totalidad del cuerpo. La actuación corporal del ejecutante se refleja en el sonido: tanto sus virtudes y capacidades técnicas como sus vícios y dificultades corporales podrán verse, pero tambíén se escucharán a través de la música que produce”. 4 Habilidade adquirida de ler e escrever música. 20 no início do processo de ensino/aprendizagem da leitura e escrita musical poderiam afetar o desenvolvimento de uma boa leitura à primeira vista? O quanto o aprendizado da lecto-escrita musical influenciaria a boa leitura à primeira vista? Como expressar em uma primeira leitura, a idéia musical contida na obra a ser executada? Que metodologia utilizar para desenvolver no pianista uma boa leitura à primeira vista? Haveria métodos adequados para o exercício dessa prática? Em que idade ou em que nível do aprendizado musical a leitura à primeira vista poderia ter início? A leitura à primeira vista para pianistas seria um atributo possível apenas aos alunos dotados de uma boa técnica? Seria a leitura à primeira vista a simples execução das notas contidas na partitura, ou um processo que prevê, além do conhecimento teórico-musical, a prática interpretativa e a compreensão da lecto-escrita musical? Além desses questionamentos, outros emergiram: Quais as razões pelas quais os pianistas têm maior dificuldade na leitura à primeira vista em relação aos demais instrumentistas? Como definir a leitura à primeira vista já que as conotações atribuídas ao termo eram um tanto diferenciadas entre os estudiosos da matéria? Alguns professores entrevistados e pesquisadores consideravam a leitura à primeira vista um simples processo de leitura inicial de uma obra musical desconhecida a ser estudada posteriormente, outros a tratavam como a interpretação de uma obra desconhecida, feita no ato e com este único intuito. Na verdade, os questionamentos expostos e o meu interesse pelo tema foram os norteadores desta pesquisa. Desde o início de meu aprendizado pianístico, tive a sorte de trabalhar a leitura à primeira vista, juntamente com a transposição e a memorização. Antes de ser alfabetizada e efetivar a minha lecto-escrita musical, desenvolvi minha percepção auditiva em aulas coletivas que envolviam a atividade corporal. Graças a esse modo de ensino, que ainda considero importante, pude conhecer boa parte do repertório pianístico, realizar exercícios de transposição de forma lúdica, executar células rítmicas com variações diversas, adquirir uma boa concentração mental na execução e memorização, transformando o meu estudo de piano em um fazer não tão repetitivo. Paralelamente, foi-me oferecido um trabalho técnico-instrumental desde tenra idade, o que me possibilitou maior desenvoltura no teclado de modo a ter contacto com todo e qualquer problema técnico-pianístico. Essa prática de leitura também me possibilitou resolver problemas técnico-interpretativo-musicais que, juntamente com a capacidade de formar imagens mentais das obras, me sugeriam modos de execução e realização ao piano, da forma mais natural e objetiva possível. Mais tarde, pude constatar como camerista, o quão necessário era desenvolver uma boa leitura à primeira vista, 21 pois é dificultoso para um grupo camerístico ter um pianista sem uma leitura musical rápida e de boa qualidade. Na minha função de professora de piano sempre tive a preocupação de ensinar leitura à primeira vista aos meus alunos, mas, conforme dito anteriormente, o tempo dedicado às aulas de performance era escasso, dificultando esse aprendizado. Durante o Festival de Música de Londrina realizado em 1991, onde atuei como acompanhadora, tomei conhecimento do trabalho de leitura à primeira vista para pianistas, realizado pela Prof. Dra. Estela Caldi. Pude assistir a apenas duas de suas aulas, mas observei o quão necessário seria trabalhar essa habilidade, separadamente. No final de 2004, por intermédio da Prof. Marizilda Hein, conheci o 1º volume do método de Wilhelm Keilmann, Introdution to Sight Reading at the Piano or other Keyboard Instrument, com tradução de Kurt Michaelis para o inglês, do original em alemão Ich spiele vom Blatt schule des prima-vista-spiels für Klavier und andere Tasteninstrumente, destinado exclusivamente ao desenvolvimento da leitura à primeira vista para pianistas. Com a adoção desse método, observei uma melhora considerável na performance dos meus alunos. Isso me fez caminhar para um estudo mais atento dessa prática, que se consumou nesta pesquisa. Foi meu intento inicial verificar se a metodologia utilizada por Wilhelm Keilmann seria adequada aos nossos propósitos e à nossa realidade, daí a elaboração de um ítem, no capítulo 3, exclusivamente dedicado à análise desse material didático. Concentrei-me no 1º volume do método, por sua importância na introdução de uma abordagem exclusivamente voltada para a leitura à primeira vista ao piano. Tive muita dificuldade em encontrar o 2º volume, não tendo tempo hábil para incluí-lo na pesquisa. Graças ao levantamento bibliográfico realizado, a pesquisa se estendeu e pude conhecer e estudar mais atentamente as capacidades cognitivas e habilidades envolvidas na prática de leitura à primeira vista, abordadas no capítulo 2. Os termos capacidade e habilidade, em geral, são considerados sinônimos. Porém, achamos conveniente empregá-los com sentidos distintos. Segundo a Enciclopédia Larousse, o termo capacidade se refere à qualidade de quem é apto a fazer determinada coisa, a compreendê-la; competência (LAROUSSE, 1998, 1133). Conforme o Houaiss, capacidade se reporta a competência e/ou talento para realizar ou compreender algo (HOUAISS, 2004, p. 132). Já o termo habilidade, se refere à qualidade daquele que é hábil, de alguém que é capaz de realizar um ato com uma boa adaptação psicomotora, adequada ao fim em questão (LAROUSSE, 1998, p. 2891). Durante a investigação constatei a escassez de cursos e métodos voltados para o desenvolvimento dessa habilidade aqui no Brasil. Alguns livros de pedagogia pianística disponibilizavam um ou dois capítulos na discussão do tema. Diante desse fato, minha 22 análise inicial concentrou-se no método de W. Keilmann, que me pareceu conter uma metodologia de ensino voltada exclusivamente para essa prática musical. Hoje, ao término desta pesquisa, estão em circulação outros métodos estrangeiros que tratam do assunto e que não serão objeto de análise neste trabalho, por razões temporais. Nos questionários e entrevistas realizados, verifiquei quão incerto era o entendimento metodológico sobre o assunto. Boa parte dos professores de piano considerava que a prática de leitura à primeira vista resumia-se na leitura de peças de menor dificuldade em sala de aula ou durante os estudos diários. Embora essa prática contribuísse sobremaneira para a melhoria da leitura musical, ela não poderia ser considerada uma metodologia de ensino adequada à leitura à primeira vista. Também pude verificar que a leitura à primeira vista não estava presente na matriz curricular de boa parte dos cursos de música, fato que não ocorria nas escolas de música estrangeiras. Seria oportuno levantar a hipótese de inclusão dessa disciplina nos cursos técnicos de música, nos bacharelados de composição e regência, nos bacharelados de instrumento e nas licenciaturas do Brasil. Constatei que no curso de graduação em composição e regência do Instituto de Artes da UNESP, a disciplina Leitura de partitura, ministrada a pelo Prof. Dr. Nahim Marun, é desenvolvida ao piano, mas ela não integra a matriz curricular do curso de bacharelado em piano. Todos esses aspectos me pareceram justificativas plausíveis para a elaboração desta pesquisa. Não obstante, teríamos que considerar o quanto um curso de leitura à primeira vista para pianistas facilitaria o desempenho profissional deles. 23 OBJETIVOS E METODOLOGIA DA PESQUISA A pesquisa teve como objetivos iniciais:  Verificar se o método de Wilhelm Keilmann de leitura à primeira vista ao piano poderia ser aplicado com eficiência aos nossos alunos de piano;  Verificar qual o conceito mais adequado para a leitura à primeira vista;  Encontrar um embasamento científico para a prática e o ensino da leitura à primeira vista, com o intuito de promover uma sincronia e integração entre a docência, a prática e a teoria musical;  Avaliar em que medida a leitura à primeira vista depende do aprendizado da lecto-escrita musical;  Verificar quais as capacidades e habilidades que estão presentes no ato de ler à primeira vista;  Oferecer aos professores e estudantes de piano, paradigmas metodológicos que permitam um bom desenvolvimento da leitura à primeira vista e, consequentemente, da performance musical;  Sugerir a integração dessa disciplina na matriz curricular dos cursos de música em geral. Adotamos como modelo de investigação, a pesquisa-ação. Ela pode ser aplicada em diversas áreas de conhecimento, dentre elas a educação. Para Thiollent (2002, p. 14) a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica, concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo, no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo. Ela tem sido empregada intensamente na educação porque permite solucionar problemas na área, uma vez que oferece uma descrição detalhada da situação investigada e permite uma avaliação diferenciada dos rendimentos escolares obtidos após sua utilização. Conforme esclarece Thiollant: “Tal orientação contribuiria para os esclarecimentos das microssituações escolares e para a definição de objetivos de ação pedagógica e de transformações mais abrangentes” (Thiollent, 2002, p. 75). 24 Ela não visa a generalização, mas atende a práticas pedagógicas determinadas e particularizadas, motivo pelo qual tem sido largamente utilizada na avaliação de metodologias de ensino ou práticas pedagógicas. David Tripp vê a pesquisa-ação como uma forma de investigação-ação que utiliza técnicas de pesquisa consagradas para informar a ação que se decide tomar para melhorar uma prática (TRIPP, 2005, p.447). O quadro abaixo descreve o trajeto investigativo adotado por Tripp para a elaboração de uma pesquisa-ação: Ação Investigação AGIR para implantar a melhora planejada PLANEJAR uma melhora da prática Monitorar e DESCREVER os efeitos da ação AVALIAR os resultados da ação Figura nº 1- Quadro sobre pesquisa-ação de Tripp 5 Para Tripp, a reflexão está presente em todo o ciclo da pesquisa-ação: O processo começa com reflexão sobre a prática comum a fim de identificar o que melhorar. A reflexão também é essencial para o planejamento eficaz, implementação e monitoramento, e o ciclo termina com uma reflexão sobre o que sucedeu. Isso se 5 Vide quadro in: A importância do ensino da improvisação musical no desenvolvimento do intérprete. Dissertação de ALBINO, César Augusto Coelho Albino, (Mestrado em Música) Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes, São Paulo, 2009, p. 6. 25 perde quando o processo é reduzido a “planeje, faça, reflita”, como acontece muitas vezes em educação (2005, p.454) No artigo de LIMA & ALBINO (2010) 6 , fica claro que a pesquisa ação não se processa enquanto investigação realizada por um único pesquisador, ela pertence a toda a coletividade envolvida no processo, por isso exige pesquisadores que saibam dialogar e respeitar a opinião de terceiros. Nesse método de análise é importante a negociação, a interação, o diálogo e a abstenção de um poder hierárquico por parte do pesquisador em relação aos colaboradores. Este deve ter consciência da importância e do lugar que cada participante ocupa na investigação. Não bastasse, o pesquisador deve estar a serviço de um objetivo de transformação ou remodelação de uma prática pedagógica ou social que está em vigor, ou de implantação de uma nova, sem deixar de lado o rigor científico na elaboração da pesquisa. Ela não visa a generalização, mas atende a práticas pedagógicas determinadas e particularizadas, motivo pelo qual tem sido largamente utilizada na avaliação de metodologias de ensino. Ela é uma pesquisa que articula a relação teoria/prática, fazendo da investigação uma ação que possibilita ao pesquisador uma atuação efetiva sobre a realidade estudada. De certa maneira, esse tipo de pesquisa trabalha com pólos antes contrapostos e considera a intervenção social na prática como seu princípio e fim último. A pesquisa-ação é capaz de construir um saber da prática e estar a serviço de um objetivo e não de um projeto imposto. Ela não permitirá apenas a produção de novos conhecimentos, mas poderá formar pesquisadores e professores mais críticos e reflexivos. Os aspectos descritos acima foram determinantes para adoção dessa modalidade de pesquisa. Com o intuito de atender aos objetivos traçados, foram cumpridos os seguintes procedimentos metodológicos:  Levantamento bibliográfico focando as pesquisas já realizadas e as publicações referentes ao tema (Capítulo I);  Conceituação do termo leitura à primeira vista (Capítulo II, ítem 1º);  Descrição das Capacidades Cognitivas e Habilidades presentes na leitura musical à primeira vista (Capítulo II, ítem 2º e 3º); 6 LIMA & ALBINO. El uso de procedimientos de investigacion - Acción Artístico-Musical. In: MEMORIAS DEL. Anais do XVI Congreso Mundial de Ciencias de La Educación. Monterrey, Nuevo León, México, 2010. Resumo expandido. ISBN 978 607 9036 – 00- 3. Colóquio n. 9. La interdisciplinariedad ¿Cuál es La Cuestión? 26  Realização de um curso de leitura à primeira vista para alunos de piano da Escola Municipal de Música com a aplicação e análise do 1º volume do método de Wilhelm Keilmann (Capítulo III, item 1º);  Realização de dois questionários destinados aos alunos participantes que se encontram no anexo da pesquisa, que serviram de base para a avaliação dos resultados (Capítulo III, item 2º);  Realização de diário de classe, com o intuito de auferir o aproveitamento pedagógico dos participantes (anexo);  Realização de entrevistas com pianistas e professores de piano do cenário musical brasileiro, editadas pela mestranda (Capítulo III, item 3º);  Discussão de Resultados e Considerações Finais 27 CAPÍTULO I LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO Para fundamentar teoricamente a pesquisa foi necessário elaborar um levantamento bibliográfico que englobou referenciais que cuidaram não só da leitura musical à primeira vista, mas também dos processos de aprendizagem da lecto-escrita musical, da visão e dos movimentos dos olhos, da percepção e entendimento da partitura, da memória de curta e longa duração, da execução simultânea e da resposta motora através do sistema neurológico cerebral, da interpretação musical e das metodologias relacionadas ao tema. Para tanto, foram consultados livros, dissertações, monografias e artigos científicos. Esse levantamento criou subsídios capazes de verificar se a metodologia de Wilhelm Keilmann continha embasamento teórico condizente à sua adoção e abriu caminho para inúmeras reflexões acerca do assunto. A revisão não teve intenção catalográfica, reportou-se apenas às obras cuja temática estava direcionada para a pesquisa. 1.1 Livros AGAY, Denes. The Art of Teaching Piano. U.S.A. Copyright 1981, 2004 ed. Yorktown Music Press Inc. p.197-218. Denes Agay, famoso compositor e arranjador, nasceu em 1911, em Budapest, Hungria. Fez seu doutorado em composição e performance em piano na Academia Ferenc Liszt de Música, em Budapest, em 1934. Autor da antologia “Best Loved Songs of the American People”, morreu em 2007 em Los Altos, Califórnia, onde vivia com sua filha desde 2004. O capítulo Sight Reading: The Basics, Step by Step do livro The Art of Teaching Piano, traça as diretrizes básicas para desenvolver a habilidade de ler e tocar uma música à primeira vista. É um treino para trabalhar a leitura de notas em geral, resultado de uma complexa série de funções corporais envolvendo os olhos na leitura das imagens da notação musical, o cérebro que interpreta o que foi lido pela percepção auditiva e táctil e o sistema motor que vai obedecer ao cérebro com os movimentos necessários para transformar a impressão aural e visual em som. 28 A diferença fundamental que ele estabeleceu entre a leitura de um texto verbal em voz alta e a leitura de um texto musical é que o pianista ao ler as notas da partitura tem que utilizar além do cérebro, todo o seu corpo para executá-la, enquanto que o leitor de um texto verbal, ao ler as palavras em voz alta só utiliza o cérebro e o seu aparelho fonador. D. Agay faz uso de diversos exercícios para que o aluno tenha maior destreza na execução, na mesma seqüência indicada por W. Keilmann. Ele também acredita que para um pianista ter uma boa leitura, deve desenvolver uma sensibilidade táctil e não visual. As notas devem ser executadas sem que o pianista dirija os olhos para as mãos. As teclas devem ser percebidas pelo contato dos dedos e não pelos olhos. Ele também recomenda o exame preliminar da obra a ser executada, para que o pianista armazene em seu cérebro, o maior número de informações musicais possíveis no momento da execução. Também sugere a prática de escalas, arpejos e cadências em todas as tonalidades para facilitar a leitura musical. Finalmente, o autor indica um repertório básico para desenvolver essa habilidade Constatamos ao final da leitura, que Denis Agay utiliza nessa publicação, muitas das informações contidas no método de Wilhelm Keilmann. Seu objetivo pedagógico é criar diretrizes objetivas para os professores trabalharem a leitura à primeira vista. JOURDAIN, Robert. Música, Cérebro e Êxtase: Como a Música captura nossa Imaginação. Tradução Sonia Coutinho. Rio de Janeiro. Ed. Objetiva. 1998. Robert Jourdain, pianista profissional e compositor, trabalha com inteligência artificial há mais de 20 anos, dedicando-se ao desenvolvimento de esquemas conceituais para a representação do conhecimento. Criador de software sintetizador de música feito para a representação gráfica e manipulação dos conceitos musicais, publicou até agora, cinco livros sobre computação. No livro citado, Jourdain analisa os efeitos que a música promove no indivíduo, reportando-se a outras áreas de conhecimento, entre elas, a acústica, a psicoacústica e a psicoacústica musical. Com uma introdução seguida de 10 capítulos, ele descreve vários fatores presentes no processo musical: o som, o tom, a melodia, a harmonia, o ritmo a composição, o desempenho, a escuta, a compreensão e o êxtase. Concentramo-nos na leitura do sétimo capítulo, principalmente no tópico referente à leitura da música. 29 Para ele, a leitura da música, feita através do movimento dos olhos, não deixa de ser uma habilidade motora, mas também exige certa inteligência. O campo visual de um músico não avança ao acaso. Quando um músico lê a partitura a uma distância de visão normal, a fóvea 7 abarca uma área aproximada de 2,54 cm de diâmetro. Ela absorve informações por um quarto de segundo e, depois, pula para a próxima fixação, dentro de mais um vigésimo de segundo. Essa área é suficiente para cobrir aproximadamente um compasso em uma única pauta. Entretanto, no caso de um instrumentista habilidoso, o movimento dos olhos segue a estrutura da música, focalizando pontos cruciais, musicalmente significativos. Por exemplo, quando um pianista lê uma melodia apontada por acordes, os movimentos dos olhos seguem o padrão para cima e para baixo. Quando a música é contrapontística, com duas ou mais vozes movendo-se paralelamente, os olhos desse pianista disparam para trás e para frente. É nesse momento que o músico recorre à sua inteligência para saber em que direção dirigirá a fóvea, a fim de obter bons resultados: Bons leitores à primeira vista captam instantaneamente os traços mais importantes da música e podem de imediato preencher os detalhes, quando não têm tempo para captar todas as notas. Eles tendem a olhar para sete ou oito notas adiante. Em comparação, maus leitores à primeira vista lêem no máximo três notas por antecipação, e o número de suas fixações é muito maior que o necessário (JOURDAIN, 1998, p.286). Por conseguinte, a leitura fluente de uma música tem fortes relações com a capacidade de entender a música. Em todo o capítulo o autor demonstra que essa capacidade intelectiva é determinante: Uma mente musical bem treinada prevê como serão transformados os padrões rítmicos, como as melodias serão transpostas, os acordes preenchidos, as frases concluídas. Um cérebro equipado com esse conhecimento pode ignorar notas isoladas e prestar atenção a padrões mais amplos, e saberá para onde apontar a fóvea, a fim de colher exatamente as informações necessárias e verificar se as previsões são corretas. [...] a aptidão para ler fluentemente música tem fortes relações com a capacidade para entender fluentemente música (JOURDAIN, 1998, p. 286-7). . Somente com treinamento, a mente musical poderá prever os padrões rítmicos e melódicos, o fraseado, etc.. Assim, notas isoladas serão ignoradas, sendo que a fóvea se dirigirá para onde estas informações estarão, e se elas realmente reforçam as previsões. 7 Fóvea: minúscula fosseta da parte central da retina dos vertebrados terrestres e diurnos, situado no centro da mácula lútea (LAROUSSE, 1998, vol.11, p.2525). 30 Na leitura desse capítulo, Jourdain deixa claro que alguns músicos são mais dotados de imagens mentais auditivas profundas do que outros. Esse fato determina a importância de estudarmos mais profundamente a mente musical. SLOBODA, John A. A Mente Musical: A psicologia cognitiva da música. Tradução de Beatriz Ilari e Rodolfo Ilari. Londrina: EDUEL, 2008. O Professor John Sloboda é internacionalmente conhecido por suas pesquisas no campo da psicologia da música. É autor de mais de 100 publicações na área, incluindo os livros: A Mente Musical (1985), Explorando a Mente Musical (2005) e Psicologia para Músicos (2007). Em 2008, tornou-se professor emérito na Keele University, onde trabalhou por 34 anos no Departamento de Psicologia. O livro “A Mente Musical” de John Sloboda tornou-se uma referência importante para o nosso trabalho. A publicação está subdividida em 7 capítulos, a saber: 1) A música como habilidade cognitiva 2) Música, linguagem e significado 3) A performance musical 4) A composição e a improvisação 5) A audição musical 6) Aprendizagem musical e desenvolvimento 7) A mente musical em contexto: cultura e biologia. Na nossa pesquisa recorremos mais especificamente aos capítulos 1, 2 e 3. No capítulo nº 1, Sloboda descreve como a música é capaz de afetar as pessoas. De algum modo a mente musical é que dá significado aos sons. Estes sons, de uma certa maneira, tornam-se símbolos de algo que nos faz rir ou chorar. Como a maioria de nossas respostas à música é aprendida, essa fala nos coloca em contato com aquilo que ele chama de psicologia cognitiva. Na publicação, Sloboda fala da diferença que existe entre a memória dos músicos experientes e a dos mais novatos para o reconhecimento dos elementos musicais, como por exemplo, as cadências, as progressões harmônicas, etc. Da mesma forma que um linguista tem muito mais condições de apreender especificidades de um texto escrito, o mesmo se aplica ao músico que lê à primeira vista: 31 A propósito, a pessoa experiente em leitura à primeira vista, quando confrontada com uma passagem de uma escala familiar não precisará tomar decisões conscientes sobre quais dedos usar para quais notas. Sua mão automaticamente tomará a configuração certa, enquanto sua atenção poderá estar nos elementos expressivos, ou no preparo mental da próxima frase musical (SLOBODA, 2008, p.9). No capítulo nº 2, Sloboda faz um paralelo entre a linguagem verbal e a música e discute o significado da música. Grande parte do capítulo é organizado em torno da subdivisão da linguagem e da música em três componentes: fonologia, sintaxe e semântica. Referindo-se à linguagem musical, ele declara: A fonologia se refere à maneira como uma variedade potencialmente infinita de sons é „recortada‟ em um número finito de categorias sonoras discretas, que constituem as unidades comunicativas básicas. A sintaxe concerne à maneira de como essas unidades são combinadas em sequências [...] A semântica preocupa-se com a maneira como as sequências construídas veiculam sentido. Combinações particulares e fixas de unidades fonológicas podem ter significados fixos, mas é característica tanto da linguagem quanto da música que o significado também seja veiculado pela ordenação e combinação dos elementos em sequências mais longas (SLOBODA, 2008, p.17) No capítulo nº 3, ao descrever os vários tipos de performance, Sloboda aborda especificamente o tema leitura à primeira vista: A pergunta que muitos músicos fazem é „o que torna alguém um bom leitor à primeira vista? Esta pergunta inclui duas preocupações distintas – primeira, o que se pode dizer acerca das características de quem lê fluentemente à primeira vista – e, segunda, o que deve fazer um indivíduo que apresenta uma leitura à primeira vista ruim? Um fato lamentável, mas inevitável, é que uma resposta razoavelmente completa da primeira pergunta não conduz, necessariamente, a uma receita para a segunda (SLOBODA, 2008, p.88-9). Ele descreve algumas características básicas que o performer deve ter para obter essa habilidade, tais como, o movimento dos olhos na leitura, os erros de leitura e os aspectos expressivos na leitura à primeira vista, contribuindo imensamente para a nossa pesquisa. 1.2 Dissertações de Mestrado RAMOS, Ana Consuelo. Leitura prévia e performance à primeira vista no ensino de piano complementar: implicações e estratégias pedagógicas a partir do modelo C(L)A(S)P de Swanwick. Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Orientadora: Sandra Loureiro de Freitas Reis, 11 de novembro de 2005. 32 A autora é professora da Escola de Música da Universidade do estado de Minas Gerais (ESMU/UEMG), bacharel em Piano pela Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (EMUFMG), especialista em Música Brasileira: Práticas Interpretativas pela ESMU/UEMG e mestre em Música pela EMUFMG. A dissertação está dividida em cinco capítulos. No capítulo 1 ela se preocupa em demonstrar como o piano pode ser um instrumento musicalizador e complementar à formação do músico. No capítulo 2 demonstra como o processo de musicalização ocorre no piano e de que maneira os professores se reportam à notação musical. No capítulo 3 ela apresenta o referencial teórico e analítico relativo ao assunto. O capítulo 4 trata da metodologia empregada em cinco alunos do Curso de Bacharelado em Música – Habilitação em Canto – da ESMU/UEMG, na disciplina Piano Elementar. O capítulo 5 demonstra a relevância da prática habitual da leitura prévia, os resultados da pesquisa e as impressões sobre o procedimento metodológico a ser adotado nessa habilidade. Nosso interesse concentrou-se no capítulo 2, quando a autora trata da leitura de partituras. Aqui ela discute conceitos, tais como: leitura prévia, leitura à primeira vista, primeira performance, execução à primeira vista e performance à primeira vista. Para a autora, o termo leitura prévia é usado para designar um estudo pormenorizado da obra em questão, antes do pianista executar a peça no instrumento. Queremos deixar claro que a leitura à primeira vista, no nosso entendimento, não privilegia essa prática. Dessa maneira, leitura prévia e leitura à primeira vista têm aplicações diferenciadas dentro da performance. FURLAN, Lenita Portilho. Aprendizagem da Lecto-Escrita Musical ao Piano: Um Diálogo com a Psicogênese da Língua Escrita. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2007. As questões que instigaram a autora a elaborar sua pesquisa surgiram da constatação de que certos pianistas tinham dificuldade na leitura à primeira vista: Porque alguns alunos de música aprendem com facilidade a ler partitura enquanto outros passam a vida toda com dificuldades para cumprir esta tarefa „à primeira vista‟? A razão desta dificuldade está na capacidade de aprendizagem do aluno, na visão que o músico-educador tem acerca do processo de aprendizagem da lecto-escrita 33 musical que se traduz em seu método de ensino, ou em algum outro fator? (FURLAN, 2007, p.16) A dissertação subdivide-se em 3 capítulos. No primeiro capítulo, a autora fala da iniciação à lecto-escrita musical na visão de músico-educadores. Foram analisados alguns métodos de iniciação ao piano e a metodologia de alguns educadores musicais do séc. XX voltada para o ensino do piano. No capítulo 2 a autora descreve o processo de alfabetização verbal utilizado por Emilia Ferreiro e a psicogênese da Língua Escrita. No capítulo 3 ela aplica parte da metodologia de Emilia Ferreiro, pautada no pensamento construtivista de Piaget, no processo de aprendizagem da lecto-escrita musical. A dissertação foi útil para a nossa pesquisa no sentido de verificar se um bom aprendizado da lecto-escrita na fase inicial é capaz de auxiliar a leitura à primeira vista nos processos de execução. 1.3 Monografias PACE, Robert. Sight-Reading and Musical Literacy. In: The Essentials of Keyboard Pedagogy: A series of ten monographs on basic elements of piano instruction. Lee Roberts Music Publications, Inc. 1999. Disponível em: Acesso em: 3 mar. 2008. O compositor, pianista, conferencista e educador musical americano Robert Pace, trouxe novos conceitos à pedagogia do piano. Seu método “Criando e Aprendendo” para o ensino do piano, inclui a leitura à primeira vista e a transposição. O texto em discussão é o primeiro de 10 monografias sobre os princípios básicos da pedagogia pianística e trata diretamente da leitura à primeira vista. Robert Pace inicia o seu trabalho definindo o que é leitura à primeira vista: “a habilidade de ler e tocar obras musicais à primeira vista sem provar ou praticar preliminarmente no teclado” (PACE, 1999, p.1). A partir dessa conceituação, ele discute a importância do conhecimento da notação musical e o entendimento da linguagem musical. http://iptgonline.com/Mono%201.pdf 34 Sua experiência docente levou-o a concluir que os alunos, via de regra, executavam um repertório pianístico mais difícil do que aquele que eles podiam ler à primeira vista. Diante disso, desenvolveu uma pesquisa que durou aproximadamente 25 anos. Esse trabalho foi realizado em um estúdio experimental, em Scarsdale, New York, no final dos anos 40, com 30 alunos absolutamente iniciantes e 30 transferidos de outros professores. Nesse trabalho ele relata as estratégias necessárias para se desenvolver uma boa leitura à primeira vista. Para o autor, ler à primeira vista ao piano envolve uma complexa interação cognitiva, afetiva e psicomotora, na qual dedos específicos precisam apertar e soltar certas teclas na seqüência exata de tempo e nos corretos níveis de dinâmica, ao mesmo tempo. Pace considera que todos os alunos, jovens ou adultos, devem praticar desde o início essa habilidade, pois é importante que o pianista tenha um bom conhecimento musical, para perceber e compreender o que está sendo lido e em seguida interagir psicomotoramente no teclado do piano da melhor maneira possível. Desta forma, o bom leitor combina os dados cognitivos (intervalos, padrões de acordes, sequências, repetições, etc.) de experiências prévias, com algumas intuições musicais do que poderia, pela lógica, vir a seguir, antecipando os movimentos durante a leitura. A habilidade para sentir o ritmo e o compasso, visualizar os contornos melódicos e ouvir as mudanças dinâmicas na música vai facilitar o desenvolvimento dos exercícios de leitura. Os aspectos cognitivos da leitura à primeira vista musical envolvem reconhecer com precisão, em fração de segundos, vários sinais musicais, símbolos e estruturas. O toque deve ser fluente, sem interrupções de qualquer espécie. Esta fluência da leitura à primeira vista, segundo Pace, poderia ser a meta principal para o sucesso deste trabalho. Esta monografia foi importante para a nossa pesquisa, porque mostra o resultado que o autor teve com alunos de piano em relação à leitura à primeira vista. Segundo ele, além da prática em aula, deve haver tempo suficiente para a prática diária. Isso vai assegurar que os alunos sejam hábeis em ler de acordo com a dificuldade do repertório que está sendo estudado. 35 1.4 Artigos Científicos BERNARDES, Virginia. A percepção musical sob a ótica da linguagem. In: Revista da ABEM, nº 6, setembro de 2001, p.73-85. A autora é mestra pela Faculdade de Educação da UFMG, em 2000. O artigo é um resumo de parte da sua dissertação de mestrado: A Música nas Escolas de Música: A Linguagem Musical sob a ótica da Percepção. No artigo ela objetiva discutir a percepção musical como uma das disciplinas eixo na formação musical do aluno que vem das escolas de música e das universidades que adotam a metodologia advinda dos antigos conservatórios de música: A pedagogia que serve a tais modelos curriculares, privilegia ações que se baseiam em atividades repetitivas e que têm no reconhecimento e na reprodução o seu fundamento e principal veículo metodológico [...] Foi constatado que a concepção de música que estaria ancorando o ensino e que acaba por determinar o enfoque pedagógico que tradicional e preferencialmente é empregado, não dá conta de promover a compreensão e o domínio da linguagem musical (BERNARDES, 2001, p.73). A autora vê a percepção como uma disciplina que vai trabalhar no aluno sua capacidade de perceber a música auditivamente, refletir e agir criativamente com ela (BERNARDES, 2001, p. 74-5). A maneira como hoje essa disciplina é ensinada, dando primazia aos ditados e solfejos, parece arbitrária para a autora, alienando o verdadeiro sentido da leitura musical. A autora considera que o fato de ouvir com o intuito de escrever, é diferente de compreender o que se ouve para interpretar e criar musicalmente. A percepção possibilita adquirir um entendimento sólido da linguagem musical, que pode ser utilizado de forma imediata na execução musical à primeira vista. Entretanto, nosso intuito não será discutir quais tipos de abordagens metodológicas serão mais oportunas para seu ensino, mas sim levantar a questão sobre o motivo de tantas dificuldades no entendimento da escrita musical demonstrado pela maioria dos pianistas, ao lerem à primeira vista ao piano. CASPURRO, Helena. Audição e Audiação: O contributo epistemológico de Edwin Gordon para a história da pedagogia da escuta. Revista da APEM: Associação Portuguesa de Educação Musical, 127, 2007. 36 A autora é professora auxiliar convidada no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro, interessando-se particularmente pelo tema da improvisação no processo de aprendizagem musical, tendo concluído em 2006 sua dissertação: Efeitos da aprendizagem da audiação da sintaxe harmônica no desenvolvimento da improvisação. No artigo mencionado, a autora questiona a qualidade do ensino musical instituído, tendo em vista as dificuldades que o músico erudito tem em desenvolver as habilidades de improvisar, compreender a harmonia, ler à primeira vista, transpor ou tocar „de ouvido‟ trechos musicais, mesmo considerando-se o fato de alguns educadores do séc. XX terem se preocupado com a escuta sonora, o movimento corporal e a improvisação, entre eles, Émile- Jacques Dalcroze, Edgar Willems, Zoltán Kodály, Carl Orff, Shinichi Suzuki. Para ela, essa dificuldade reside na falta de um trabalho pedagógico contínuo e seqüenciado capaz de desenvolver certas habilidades musicais que permitirão um desempenho performático mais amplo, tarefa adequadamente realizada por Edwin Gordon 8 . Em sua Teoria da Aprendizagem Musical, ele define a audiação (tradução de audiation, termo criado pelo autor), que consiste na capacidade de ouvir e compreender musicalmente o som quando ele não está fisicamente presente. Isto acontece quando lemos, improvisamos ou escrevemos música, sem auxílio de um instrumento. No texto em questão, Caspurro descreve como se ouve (audiação e sintaxe musical) e o que se ouve (padrões tonais e padrões rítmicos). O fato é que um músico que compreende o significado dos sons que ouve ou evoca, experimenta a capacidade de compreender a sintaxe tonal ou rítmica de uma música, assim como entende aquilo que lê na escrita musical. Dar sentido ou significado ao que estamos ouvindo é, por conseguinte, audiar as alturas e durações que são essenciais à nossa compreensão musical. Assim como as letras são agrupadas para formar palavras e estas, por sua vez, frases, também na música, as alturas ou durações são agrupadas em padrões e estes, por sua vez, em frases. A autora explica que diferentes atos como executar, ler, escutar ou escrever música requerem dos instrumentistas estágios diferentes de compreensão musical. Estes processos, 8 E. Gordon, nascido em 1927, é um dos mais destacados investigadores da atualidade no âmbito da Psicologia e Pedagogia da Música. Foi o criador da Teoria de Aprendizagem Musical, cujos princípios são estabelecer objetivos curriculares seqüenciais, desenvolvendo a audiação rítmica e tonal. Com a audiação, os alunos poderão atribuir significado à música que ouvem, executam, improvisam, lêem e compõem. Disponível em: Acessado em: 14/5/2010. http://www.escola-musica.com/metodologias-e-exames/edwin-gordon.html 37 para ela, são projeções de conhecimento realizado por meio da memória destes padrões audiados anteriormente em outras peças, portanto, teríamos a partir dessas projeções, a capacidade de generalizar, transferir, descobrir. Quando um aluno lê corretamente música não-familiar através do canto, demonstra que não apenas consegue dar sentido sonoro aos símbolos representados, como o faz de uma forma que lhe permite assegurar em tempo imediato à performance, a habilidade de detectar padrões ou estruturas na partitura (CASPURRO, 2007, p. 9-10). Caspurro admite que as dificuldades dos alunos de música erudita para improvisar melódica e tonalmente, estão ligadas a problemas relacionados com a compreensão harmônica. Ela faz uma crítica na forma como os professores de teoria aplicam os ditados, executam os solfejos rítmicos e melódicos e realizam as leituras de partituras de maneira descontextualizada. Para ela o ensino da harmonia, da percepção e da teoria musical, deve privilegiar um contexto musical real, ele não pode se constituir de repetições fragmentadas de acordes, encadeamentos e progressões desarticuladas. Essa forma de ensinar leva o aluno ao insucesso tanto na leitura, como na escrita musical. A autora vê a importância de Edwin Gordon na criação do conceito de audiação e na substituição do termo método de ensino por teoria de aprendizagem, vez que uma teoria tem maiores possibilidades de responder questionamentos importantes, quais sejam: Como se aprende a ouvir música? Como e quando se aprende a organizá-la e compreendê-la? Como se aprende a criá-la? Para nosso trabalho, este assunto teve muita importantância, porque o pianista, dentre outras coisas, deve audiar o que está lendo, no momento de tocar o trecho à primeira vista ao piano. Desta forma, a audiação torna-se presente entre as capacidades cognitivas musicais pertinentes à leitura à primeira vista ao piano. CHAPON, Martine. Le déchiffrage ou comment redonner sens à la lecture de la partition. CEFEDEM Rhône-Alpes, Promotion, 2000. Disponível em http://www.cefedemrhonealpes.org/documentation/memoires.pdf/memoires%202000/C HAPON. pdf> Acesso em: 19 abr. 2010. http://www.cefedemrhonealpes.org/documentation/memoires.pdf/memoires%202000/CHAPON.%20pdf http://www.cefedemrhonealpes.org/documentation/memoires.pdf/memoires%202000/CHAPON.%20pdf 38 A autora é francesa, estudou acordeão no Conservatoire National de Lyon, com Patricia Hivert. É membro do Quinteto de Acordeões do Conservatório desde o final dos anos 90. Titular do Diplôme d‟Ètat de Professeur de Musique, depois de 2000, após concluir sua formação do CEFEDEM (Centre de Formation des Enseignants de la Musique) do Rhône- Alpes. Leciona atualmente no Conservatório de Villefranche-sur-Saone. Questões importantes são expostas pela autora nesse texto: Quais os limites da leitura à primeira vista? Até que ponto seria simplesmente uma apropriação do texto musical? Até que ponto seria uma interpretação musical? Porque os alunos tremem ao pensar na leitura à primeira vista? Por que, normalmente, eles se saem mal quando lêem à primeira vista? Por que não conseguem dar sentido ao que lêem à primeira vista? Com entendimento semelhante à Caspurro, a autora relata que o fato de os alunos abordarem uma nova peça tocando as notas sem relacioná-las, demonstra que o ouvido (audiação) está separado da leitura. “Não será isto a fonte de todos os problemas enfrentados na leitura à primeira vista?” (CHAPON, 2000, p.11). No texto pode-se obter uma boa conceituação: “A leitura à primeira vista, enquanto atividade global e simultânea feita automaticamente, solicita uma síntese de formação musical e instrumental” (CHAPON, 2000, p.25) 9 . Também está previsto um modelo de ensino dessa prática para as escolas e, quando classificada como disciplina, a forma como ela deve se interrelacionar com as demais disciplinas da matriz curricular desses cursos, para que não haja uma dicotomia entre o ensino da teoria e da prática musical. FIREMAN, Milson. O papel da memória na leitura à primeira vista. In: Anais do SIMCAM4- IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais – maio 2008. O autor é violonista e doutor em Música pela Universidade da Bahia com a tese O aprendizado da Leitura à primeira vista ao Violão: a relação entre organização do material para estudo e o desenvolvimento da habilidade de leitura. 9 Tradução livre da mestranda do texto: ”Le déchiffrage en tant qu‟activité globale et simultanée fait automatiquement appel à une synthèse formation musicale et instrumentale”. 39 Para ele a leitura à primeira vista está ligada a habilidades mnemônicas 10 , cinestésicas 11 , perceptivas e principalmente à resolução de problemas performáticos. No texto em questão ele apresenta um modelo de estrutura da memória humana aceito pela sociedade científica, que demonstra como as memórias de curto e longo prazo interferem no processo de leitura à primeira vista e como as informações recebidas são recuperadas. O autor analisa pontos importantes ligados ao tema: as distâncias perceptivas ou eye- hand span, termo traduzido como distância olhos-mãos; o conceito chuncking, visto como unidades de reconhecimento na leitura musical e o termo proofreaders‟ error, tratado como a correção que os músicos hábeis fazem de possíveis erros de edição nas partituras, tendo em mente a audiação do trecho que está sendo lido e interpretado no momento da execução. No artigo fica claro o quão importante é trabalhar as memórias musicais do pianista ao ler à primeira vista, uma vez que elas evocam não só os padrões da escrita, mas também, e principalmente, os padrões motores e interpretativos que seriam necessários para realizar um trecho musical à primeira vista ao piano, com perfeição. HARDY, Dianne. Teaching Sight-Reading at the Piano: Methodology and Significance. In: Piano Pedagogy Forum, v. 1, nº 2, May 1, 1998. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2009. Dianne Hardy é Ph. D. em Educação Musical (Piano) pela University of Oklahoma e Professora Assistente de Educação Musical e Piano na Dickinson State University. No seu trabalho de mestrado foram entrevistados 223 professores certificados nacionalmente pela Music Teachers National Association (MTNA) com o intuito de pesquisar a importância da leitura à primeira vista para os instrumentistas. Dos 221 que responderam à pesquisa, 13% disseram considerar a leitura à primeira vista a mais importante habilidade pianística, 73% consideraram-na sumamente importante ou significativa e os demais entenderam ser essa habilidade de média importância. Somente 7% dos professores certificados que responderam à pesquisa, disseram que trabalham a leitura à primeira vista regularmente durante a semana. 10 Relativo à memória (LAROUSSE,1998, p.4023). 11 Que se referem às percepções conscientes da posição e dos movimentos das diferentes partes do corpo (LAROUSSE,1998, p.1413). 40 A autora relata que muitos professores não trabalham esta habilidade com seus alunos, por não saber como ensiná-la e alguns até por não serem bons leitores à primeira vista. No artigo, a autora cita os benefícios desta habilidade para os pianistas: facilitar o aprendizado de novas obras; permitir maior conhecimento dos estilos característicos de diferentes compositores; formar a memória táctil, aural e cinestésica, aumentando a confiança do intérprete, além de capacitá-los para muitas exigências profissionais na área. Ela considera inadequada a afirmação de que os bons leitores à primeira vista nascem feitos, pois, acredita que a arte da leitura à primeira vista pode ser ensinada. No seu entender, a maioria dos alunos de nível intermediário abandona seus estudos pianísticos pelas dificuldades que encontram na leitura de um repertório que não conseguiriam ler à primeira vista, mas que é trabalhado e estudado com dificuldade, para cumprir as exigências curriculares. Ela faz um levantamento das publicaçõe sobre leitura à primeira vista, na maioria, para iniciantes, sendo os mais usados, parte de uma série de métodos. No texto são levantadas as seguintes questões:  Estudos têm demonstrado que a maioria dos alunos não lê bem à primeira vista e que poucos professores oferecem um ensino específico de leitura à primeira vista;  Há poucas informações sobre habilidades comprovadas em leitura à primeira vista e menos ainda focadas em desenvolver um plano para direcionar o professor neste ensinamento.  As falhas de leitura e os erros cometidos pelos alunos nas aulas de instrumentos são resultantes da má compreensão da escrita musical. Este artigo trouxe um levantamento estatístico importante, confirmando a necessidade deste aprendizado para a boa formação dos pianistas. WRISTEN, Brenda. Cognition and Motor Execution in Piano Sight-Reading: A Review of Literature. In: Update, Applications of Research in Music Education, fall-winter 2005, vol.24, nº 1, p.44-56. Brenda Wristen é professora assistente de Pedagogia do Piano na Universidade de Nebraska-Lincoln, reconhecida não só por suas pesquisas destinadas aos pianistas de mãos 41 pequenas e prevenção de danos físicos para os pianistas, mas também, pelas pesquisas destinadas ao ensino da leitura à primeira vista ao piano. No trabalho citado, Wristen faz uma revisão da literatura sobre o conhecimento e execução motora na leitura à primeira vista ao piano. Ela afirma que ler à primeira vista é parte integrante da experiência musical de todos os músicos, em particular dos pianistas, que necessitam desta habilidade nas situações de música em conjunto ou na colaboração e acompanhamento de outros músicos ou grupos corais, tal a vastidão desse repertório que devem conhecer e praticar e das necessidades pedagógicas de escolha e demonstração de repertório em sala de aula, no caso dos professores. A autora inicia sua exposição declarando a importância de um nível básico de domínio técnico para que o aluno possa enfrentar tarefas de leitura à primeira vista. No caso de alunos iniciantes, a leitura à primeira vista pode incluir somente uma voz (a mão direita, por exemplo), onde ele poderá reconhecer padrões rítmicos e ganhar aos poucos, familiaridade com a geografia do teclado. Deduz-se no artigo, que os alunos não devem praticar a leitura à primeira vista com textos que estão acima de sua compreensão musical e nem muito abaixo dela. A preocupação da autora, assim como da maioria dos autores que abordam esse tema, concentra-se em verificar quais os processos internos que diferenciam os bons leitores dos menos treinados. Alguns destes estudos focam o trabalho processado pelo cérebro examinando o resultado físico durante a leitura à primeira vista. O reconhecimento de padrões de elementos básicos incluindo ritmo, melodia, harmonia e contexto formal e expressivo mais a habilidade de antecipar a leitura e prever como a música continua, sem perder o andamento e a visão geral, são algumas das necessidades deste tipo de prática. Este artigo nos interessou pela revisão da literatura abordando o tema e pelas habilidades musicais estudadas para o bom desempenho da leitura à primeira vista: a execução motora, os movimentos dos olhos durante esta prática, a percepção grupal e estrutural e o monitoramento visual e auditivo durante a execução à primeira vista. A revisão bibliográfica aqui relacionada, auxiliou-nos a compreender a natureza da leitura à primeira vista, sua aplicabilidade na performance e a forma como deve ser ministrada pelos professores. Permitiu, também, consolidar uma fundamentação teórica para a pesquisa e 42 refletir se a metodologia de Wilhelm Keilmann teria bases científicas que poderiam ser aplicadas. 43 CAPÍTULO 2 LEITURA À PRIMEIRA VISTA 2.1. Conceituação. Na música, muitos são os conceitos e significados atribuídos ao termo leitura à primeira vista. Mario de Andrade define-a como: “Expressão empregada pelo músico instrumentista quando lê um determinado trecho sem o conhecer previamente” (ANDRADE, 1989, p. 283). Essa conceituação, contudo, não é unânime entre os pesquisadores musicais. Não obstante, inúmeros trabalhos têm se preocupado em estudar as semelhanças e diferenças que existem entre a leitura de um texto verbal e a de um texto musical. No Dicionário HOUAISS o termo leitura é definido como: ação ou efeito de ler; ato de decifrar signos gráficos que traduzem a linguagem oral; arte de ler; ato de ler em voz alta; ação de tomar conhecimento do conteúdo de um texto escrito; o hábito, o gosto de ler; o que se lê; material a ser lido; texto, livro; conjunto de obras já lidas; maneira de compreender, de interpretar um texto, uma mensagem, um acontecimento; matéria de ensino elementar; ato de decifrar qualquer notação (HOUAISS, 2001, p.1739) 12 No dicionário Le Robert Micro (1998) o termo décchiffrer que se aplica à palavra leitura, tem duas conotações: decifrar uma escrita, uma mensagem, um signo e décchiffrer de la musique, que significa ler à primeira vista ou, então, a ação de decifrar música. No artigo Le Décchiffrage: ou comment redonner sens à la lecture de la partition, Martine Chapon (2000, p. 5) encontrou dois sentidos para a palavra leitura: 1. decifrar a escrita para descobrir o significado, compreender através da escrita, decodificar. 2. decifrar para vir a ler, distinguindo letra a letra. A primeira definição está pautada no ato de decifrar, associando uma busca de sentido e a segunda, no ato de soletrar, envolvendo os mecanismos de apropriação da leitura. Na Enciclopédia Larousse, decifrar significa: “Ler e executar simultaneamente, à primeira vista, um fragmento musical; interpretar” (LAROUSSE, 1998, p.1782). No Collins Dictionary of Music (1980), o termo sight-reading significa tocar ou cantar uma peça de música à primeira vista 13 . 12 Citamos somente os ítens de nosso interesse. 13 Sight-reading: playing or singing piece of music at first sight (tradução livre da autora). 44 Observa-se nas definições apresentadas, que o ato de decifrar é uma característica constante ao termo. Resta-nos então, verificar como se processa a decifragem, quais as diferenças e semelhanças existentes entre o decifrar musical e o decifrar verbal e em que medida ela adquire um significado. Na Enciclopédia Larousse fica expressa a importância de se atribuir ao ato de ler uma significação. Sem isso, a leitura torna-se inócua: A significação que se deve atribuir àquilo que se lê depende da prática da língua, e a criança que não está familiarizada com ela ignora as ligações internas do sistema lingüístico: para atribuir um som e um sentido a uma mensagem escrita, ela deverá conhecer muitos elementos dessa mensagem. Quanto mais pertinentes forem suas hipóteses relativas ao sentido da mensagem escrita, menos elementos ela terá necessidade de conhecer. Ou seja, compreende melhor o contexto, as relações de dependência das palavras, etc.. Isto mostra que, quanto mais se lê, mais rapidamente e melhor se lê (LAROUSSE, 1998, p. 3546-7). O conceito de leitura é mediado por dois outros: comunicação e linguagem. A comunicação não existe sem a linguagem, nem a linguagem existe sem a leitura. O verbo ler que deu origem à palavra leitura, tem o significado etimológico de percorrer com a vista e interpretar o que está escrito. Por sua vez, a palavra língua, que originou a palavra linguagem, é interpretada etimologicamente como sistema de comunicação verbal, idioma, entre outras tantas definições. A educadora musical Marisa Fonterrada vê na linguagem o elo de ligação do sujeito com o mundo: [...] é impossível prescindir-se dela (da linguagem) em algum momento. Todo conhecimento de si ou do mundo passa pela linguagem [...] Todo pensamento e conhecimento já estão marcados pela interpretação lingüística do mundo [...] A capacidade de comunicação da linguagem humana é ilimitada, permite a existência de significados e conceitos comuns entre os homens (FONTERRADA, 1994, p.33). Lima, em artigo publicado, entende que as diversas linguagens se manifestam no universo como formas de conhecimento representado. Diante disso, as artes também são formas de conhecimento representado e, como tal, exigem a utilização de procedimentos interpretativos para sua compreensão: Essa representação que é a base para obtenção de qualquer conhecimento, projeta-se no mundo, não como um reflexo da realidade ou como a própria realidade em sua complexidade. Ela é um artefato, um objeto técnico, uma construção dos humanos para os humanos, que é destinada a um projeto preciso. Ela toma o lugar, representa, coloca em evidência uma situação que é parte de uma realidade mais complexa. Assim, representar uma situação é sempre construir um modelo conceitual com certa 45 intenção ou objetivo, fazendo dessa construção cognitiva um processo artificial que pressupõe a limitação (LIMA, 2005, p. 92-3). . Ao tratar da representação nas artes, o filósofo Hans-Georg Gadamer assim se expressa: É evidente que não é uma determinação especial da obra de arte a de ter seu ser na sua representação, nem é uma peculiaridade do ser da história, que se compreenda em seu significado. Representar-se, ser compreendido, são coisas que não somente correm juntas, no sentido de que uma passa à outra, que a obra de arte é uma com sua história efeitual, tal como o transmitido historicamente é uno com o presente de seu ser compreendido – ser especulativo, distinguir-se de si mesmo, representar-se ser linguagem que enuncia um sentido, tudo isso não o são somente a arte e a história, mas todo ente, na medida em que pode ser compreendido (GADAMER, 1997, p. 690) Esse sentido ontológico atribuido à obra de arte pressupõe procedimentos interpretativos que para o filósofo Paul Ricoeur são similares aos que se aplicam ao texto verbal. Para ele, a compreensão de uma obra de arte tem o mesmo sentido atribuído ao texto verbal, ou seja, decifrar o sentido oculto do texto: O projeto de busca da referência do documento escrito (obra) vai, então, colocar o leitor diante de uma tarefa hermenêutica: aquela da decifração e desdobramento dos símbolos impressos que tem diante de si. Importante ressaltar que a referência do documento (ou seja, o conteúdo de sentido que foi destacado pelo leitor através da interpretação) é sempre idiossincrática, pois depende do repertório experiencial do leitor. [...] As tarefas de descontextualização e recontextualização, empreendidas dentro de um projeto prévio da compreensão do documento, é que vão mais propriamente caracterizar a interpretação. O trabalho interpretativo, portanto, revela-se como o desvelamento, elaboração e explicitação das possibilidades de significação do documento, projetadas pela compreensão. Em última análise, pode-se dizer: a interpretação des-cobre aquilo que a compreensão projeta (RICOEUR, apud SILVA, 1981, p. 68-71). Paul Ricoeur vê na compreensão de uma linguagem, um procedimento ontológico, pois se configura como a maneira de ser do indivíduo no sentido de se relacionar com os seres e com o próprio ser: Se posso compreender os mundos desaparecidos, é porque cada sociedade criou seus próprios Órgãos de compreensão, criando mundos sociais e culturais, nos quais ele se compreende. A história universal torna-se, assim o próprio campo hermenêutico. Compreender-me, é fazer o maior desvio, o da grande memória que retém o que se tornou significante para o conjunto dos homens. (RICOEUR, apud LIMA, 2005, p. 112) 46 No dizer da filósofa Dulce Mara Critelli: O ser das coisas (o que são, como são) não está consumado na sua conceituação, mas também não está incrustado nas próprias coisas, ensimesmadas. Está no lidar dos homens com elas e no falar, entre si, dessas coisas e dos modos de se lidar com elas. Está entre os homens e as coisas; está numa trama de significados que os homens vão tecendo entre si mesmos e através da qual vão se referindo e lidando com as coisas e com tudo o que há. Os homens não se dirigem direta e simplesmente às coisas em sua mera presentidade, mas mediados por essa trama de significados em que as coisas vão podendo aparecer. [...] Quando as representações não podem mais reter e expressar as coisas em seu ser e as coisas mesmas não são mais que meras coisas, insignificativas, o que se evadiu, através delas, foi o sentido que ser (existir) tinha para nós (CRITELLI, 1996, p. 17-8) Sendo a linguagem um meio de comunicação do homem com o mundo, a sua compreensão também se dá nas leituras dos significados que ela, enquanto linguagem, adquire nas suas constantes representações. No artigo intitulado “Os múltiplos aspectos e interfaces da leitura”, de Ligia Maria Moreira Dumont, encontramos informações ampliadas desse termo: Ao se tentar delinear os conceitos de leitura e mesmo de texto, verifica-se que esses extrapolam até os limites do verbal. Os chineses, por exemplo, utilizam mais amplamente o conceito de leitura há muitos séculos. Referindo-se a um quadro, dizem „ler o quadro‟ e não vê-lo. Para se ler, não se necessita tão somente de decodificar signos, mas de utilizar todos os sentidos, ou seja, toda a capacidade de interpretação e compreensão. Lêem-se quadros, fotografias, gestos, pessoas, cidades. A palavra grega legei significa colher, juntar, pôr as coisas umas ao lado das outras. Em latim, originou a palavra lego, mas os latinos utilizavam também interpretare, tendo ambas o significado de „ler‟ (DUMONT, 2002, p.3). Dumont admite que o estudo da leitura compõe-se de um mosaico de teorias e conceitos pertencentes às várias áreas do conhecimento. Concebida enquanto ação, e não como ato passivo, pressupõe uma abordagem multidisciplinar, em razão das diversas facetas do processo dinâmico do ato de ler. É a diversidade que delineia o seu conteúdo teórico, sempre aberto e tolerante à interferência de vários olhares. Cada ciência dedica-lhe um olhar específico, de acordo com o recorte social, antropológico, histórico, comportamental, filosófico, teológico, que a ela é atribuído (DUMONT, 2002, P. 1-3). Para que uma leitura se efetive, não basta ao indivíduo o conhecimento da língua, é necessária a organização das idéias e dos conhecimentos. Maria Helena Martins vê a leitura sob dois ângulos: como decodificação mecânica de signos lingüísticos, por meio de aprendizado estabelecido a partir do condicionamento estímulo-resposta (perspectiva behaviorista-skinneriana) e como processo de compreensão abrangente, cuja dinâmica 47 envolve componentes sensoriais, emocionais, intelectuais, fisiológicos, neurológicos tanto quanto culturais, econômicos e políticos (perspectiva cognitivo-sociológica) (MARTINS, 1994, p.31). O pedagogo Ezequiel T. da Silva, pautado nos ensinamentos de Paul Ricoeur, apóia-se na hermenêutica para compreensão das leituras que o homem faz do mundo. Silva nos diz que a leitura não pode ser confundida com decodificação de sinais, com reprodução mecânica de informações ou com respostas convergentes a estímulos escritos pré-elaborados: “O ato de ler [...] sempre envolve apreensão, apropriação e transformação de significados, a partir de um documento escrito. Leitura sem compreensão e sem recriação do significado é pseudoleitura” (SILVA, 1981, p. 96). Uma leitura hermenêutica da obra de arte evidencia com maior propriedade a diferença que existe entre ler um texto verbal e ler uma obra de arte. Para o filósolo Luigi Pareyson 14 a leitura de uma obra de arte, diversamente do que ocorre na leitura verbal, pressupõe sempre a execução: A execução, portanto, é um aspecto necessário e constitutivo da leitura de uma obra de arte enquanto aspecto conat