GUILHERME GONZAGA DUARTE PROVIDELLO MÚSICA E SUBJETIVIDADE: experimentações híbridas do pensamento ASSIS 2018 MÚSICA E SUBJETIVIDADE: experimentações híbridas do pensamento Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Doutor em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade). Orientador (a): Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima ASSIS 2018 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp P969m Providello, Guilherme Gonzaga Duarte Música e subjetividade: experimentações híbridas do pensamento/ Guilherme Gonzaga Duarte Providello. Assis, 2018. 100 p. : il. Tese de Doutorado – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Drª Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima 1. Música e filosofia. 2. Subjetividade. 3. Arte e filosofia. 4. Deleuze, Gilles, 1925-1995. 5. Guattari, Félix, 1930-1992. I. Título. CDD 780.1 Scanned by CamScanner AGRADECIMENTOS O momento de escrita dos agradecimentos talvez seja aquele em que mais intensamente se sinta que o processo de pesquisa se encerrou. Assim, ele remete a duas coisas, que a língua portuguesa coincidentemente chama pela “mesma palavra”: parto. Parto como substantivo, pois nasce algo ao final desse processo de quatro anos (longa gestação, um cansativo pré-natal...). Nesse sentido, tenho muitos a quem agradecer. Primeiramente, à Beth Lima, minha orientadora. Sua insistência em mantermos contato apesar das distâncias – não somente entre nós, mas com todo um grupo de pesquisa – é o motivo pelo qual a tese se concretizou. Retirando um poema de Fernando Pessoa da manga, ela nos fez entender a intuição que Freud já enunciara: “aonde quer que eu vá, descubro que um poeta já esteve lá antes de mim”. Segundo minha orientadora, orientar uma pesquisa é um processo de desorientar. Desorientou- nos muito: desconstruímos ideias, conceitos, pré-concepções, nos perdemos muito, nos ferimos muito... E nos dedicamos a cicatrizar: a juntar os cacos, detritos, migalhas, pedaços. Com eles, fizemos um vitral: atravessa muita luz. Construímos mais que teses, dissertações, artigos. Construímos uma rede de trocas intensivas. Agradecer ao grupo de pesquisa não é figura de linguagem. Foi por meio deles que fizemos esse trabalho a muitas mãos. Lívia Pelegrini nos contagiou com seu devir- literário da escrita acadêmica. Paula Aversa ensinou humildade, levando-nos aos lugares ermos de que já estava voltando (lugares das Artes, talvez?), mas sempre nos dizendo: “não, volta, não entendi”. Juliana Araújo me inspirou com sua seriedade e seu foco, dois atributos que as pessoas próximas sabem que eu não tenho. Rafael dividiu conosco o espaço de brincar e fazer festa, rir de pesos e prazos, burocracias e formulários de pós- graduação (sabedor de cada detalhe de cada uma das regras... mistérios). Juliana Aleixo já nos carregava com sua risada e nos desestabilizava com elogios e otimismo. Ocupa um espaço enorme. Tânya deixou uns três ou quatro dedos nesta tese; dúzias de pegadas esculpidas pela discussão de seus textos, também sobre música, que segui aqui. Torço para que este texto também lhe sirva. Taís, quieta, “na sua”, talvez não entenda a importância de sua “maternagem” do grupo: nos recebeu mil vezes, cozinhou para nós, abriu-se para nós ao abrir sua casa. Também há nessa finalização um outro parto: do verbo partir. Quebro, rompo quatro anos de vida. De algo que ocupou sonhos (dois sentidos aqui também), tempo, energias, pensamentos, leituras, noites sem dormir. Viajo em direção a outras paragens. Ou estaria voltando a algum lugar? Ao lugar da docência, com certeza, volto. Foi ele que me trouxe aqui. Saberiam meus alunos? Que também por eles me coloquei nesse lugar? Jornada dupla (ou quádrupla?) de pesquisar e lecionar sem auxílio de uma bolsa? Saberiam eles que foi a vida que eu sentia na troca em sala de aula que me inspirou a buscar mais, a estudar mais, para ter ainda mais a dividir? Eu me expresso mal: em aula não se divide, se multiplica. Talvez sejam eles o povo por vir (os psicólogos por vir) para o qual escrevo. Talvez sejam eles a razão da minha obsessão por escrever de forma clara, por me fazer entender, da minha irritação com os autores que estudo e seus hermetismos. Minha vontade de “mudar o mundo” que se manifesta com provocações para que eles se indignem, pensem e se arrisquem a querer algo mais desse planeta azul. Parto de volta “aos meus” também, dos quais precisei manter distância para me dedicar a esse processo. Minha mãe, que “inventou”, naquela época, em torno de meus dez anos, que eu era “inteligente”. Alimentou-me com livros que pegava na biblioteca da escola – clássicos da literatura mundial, Frankenstein, Crusoé, Gulliver... Contaminou-me com o desejo de pensar e de estudar. Profecia auto realizada. Meu pai me abandonou nessa caminhada. Descobri recentemente, em fotos de infância – muitas idas à praia de que não me lembrava -, que foi ele que me ensinou a amar o mar. Meu irmão mais velho me ensina, já há muito tempo, a importância da presença silenciosa, para além das palavras. Minha irmã mais nova troca poesias comigo e me ensina, hoje em dia, que as palavras são também importantes. Agradeço também aos amigos, tantos que não consigo listar, por me fazerem “sair da tese” vez ou outra. E à banca de qualificação, que provocou mil ideias, propostas e percepções, muitas das quais tento abarcar no texto que se segue. "Quão poucas coisas são necessárias para a felicidade! O som de uma gaita. Sem a música a vida seria um erro. O alemão imagina Deus cantando canções." Nietzsche - Crepúsculo dos Ídolos, sentenças e setas, aforismo 33 [grifo nosso] PROVIDELLO, Guilherme Gonzaga Duarte.MÚSICA E SUBJETIVIDADE: experimentações híbridas do pensamento. 2018 100 F. Tese (Doutorado em Psicologia). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2018. RESUMO O presente texto objetiva construir uma articulação entre filosofia e música para discutir uma das grandes questões da Psicologia: a subjetividade (modos de viver, modos de pensar, modos de sentir...). Dar-se-á enquanto um experimento do pensamento, no sentido de construção exploratória. Para alcançar tal objetivo, colocam-se alguns pontos, na própria forma de construir essa reflexão, que se inspiram no pensamento de Deleuze e Guattari, a saber: de que a arte e a filosofia (mas também a ciência) são domínios da produção de sentido sobre o mundo que não se hierarquizam, mas trabalham em série, em paralelo; e de que arte e filosofia podem ser intercessores, um para o outro, o que nos permite propor ao pensamento questões que não seriam possíveis se estivéssemos circunscritos a apenas um desses domínios; e de que um conceito é uma ferramenta que permite produzir um determinado recorte sobre o mundo. Nesse sentido, abordaremos os conceitos de Ritornelo, Devir, Tempo e Subjetividade para explorarmos tais premissas nessa relação entre música, filosofia e produção de subjetividade. A presente pesquisa se voltou para a exploração do pensamento dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, nos pontos em que o atravessamento entre filosofia e música faz emergir conceitos que em sua composição engendram uma concepção de subjetividade como modo de viver, modo de pensar e modo de sentir. Palavras-chave: Música e filosofia; Subjetividade; Arte e filosofia; Deleuze, Gilles, 1925-1995; Guattari, Félix, 1930-1992. PROVIDELLO, Guilherme Gonzaga Duarte. MUSIC AND SUBJECTIVITY: hybrid thinking experimentations. 2018 100 F. Psychology Ph.D.Thesis. – São Paulo State University (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2018. ABSTRACT This paper aims to establish a connection between philosophy and music in order to address one of Psychology’s greatest questions: subjectivity (ways of living, thinking, feeling...). It is built as a thinking experimentation to explore ideas and concepts. To achieve this goal, some questions are put, in the very form of developing this reflection, which are inspired by Deleuze and Guattari’s thinking, namely that art and philosophy (but also sciences) are domains of meaning production that do not hierarchize, but work in series, in parallel; and of which arts and philosophy can be intercessors, one by another, which allows us to pose thinking questions that would not be possible if we were circunscribed to only one of these domains; and that a concept is a tool that allows us to produce a certain clipping of the world. In this sense, we explore the concepts of Refrain, Becoming, Time and Subjectivity to exam theses premises in the light of such link between music, philosophy and subjectivity production. The research in hand looked to the exploration of Gilles Deleuze and Félix Guattari’s works where the crossing between philosophy and music makes surface concepts that in their composition engender a certain conception of subjectivity as ways of life, ways of thinking and, ways of feeling. Key words: Music and philosophy; Subjectivity; Arts and philosophy; Deleuze, Gilles, 1925-1995; Guattari, Félix, 1930-1992. LISTA DE IMAGENS Imagem 1 A escola de Atenas, Rafael Sanzio, circa 1509 24 Imagem 2 Detalhe de A escola de Atenas: Platão 24 Imagem 3 Detalhe de A escola de Atenas: Aristóteles 24 Imagem 4 Cantaloupe Island, Herbie Hancock 36 Imagem 5 Cantaloupe Island: o tema 37 Imagem 6 Manuscrito de A Love Supreme, John Coltrane 38 Imagem 7 Onda sonora 51 Imagem 8 Partitura Organ² - ASLSP 53 Imagem 9 La Monte Young – 1960 #7 54 Imagem 10 Harmônicos 85 SUMÁRIO INTRODUÇÃO – OU UM RELATO A QUEM POR VENTURA LERÁ O TRABALHO 11 1.1 Chá com madalenas - Ou objeto de pesquisa 13 1.2 Mais notas, desta vez de precaução: Isso não é uma biografia - ou Discussão Metodológica 15 1.2.1 Imanência... 22 1.3 Pausa: como se deu/dará a pesquisa e a escrita - ou procedimentos 26 Breve Prelúdio: Deleuze, Guattari e experiências musicais do pensamento 29 1. PRIMEIRO MOVIMENTO – RITORNELO, TERRITÓRIOS SUBJETIVOS E IMPROVISAÇÃO 33 1.1 O fio de Ariadne: a cançãozinha da qual saímos, a cançãozinha para qual Voltaremos (será?) 39 1.2 Música rizomática? 40 1.3 Produção de subjetividade, música, ritornelo... onde está a conexão? 42 2. SEGUNDO MOVIMENTO – O TEMPO E O RITMO 49 2.1 O que é ritmo? 50 2.2 Distorcer, deformar, distender o tempo, parte 1: Música 52 2.2.1 Distorcer, deformar, distender o tempo, parte 2 54 2.3 Presente, contração e fundação do tempo: Filosofia 56 2.4 Pausa Mahler, Bernstein e o fim do tempo na música 59 2.5 Liso e estriado. Cronos e Aion 61 Fim do capítulo: adagíssimo... 63 3. TERCEIRO MOVIMENTO – SILÊNCIOS, RUÍDOS, DEVIR-PÁSSARO... 65 3.1 Devir-pássaro 69 3.2 Devir é um verbo 71 3.3 Relações musicais de devir: a feminina voz do cantor 74 QUARTO MOVIMENTO – SUBJETIVIDADE E SOM 79 4.1 Território e subjetividade 80 4.2 Tempo e subjetividade 82 4.3 Devir e subjetividade 84 4.4 Encontros e outramentos 86 4.5 Subjetividade política, ética... mas também estética 89 CONSIDERAÇÕES FINAIS 92 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS 95 11 INTRODUÇÃO – OU UM RELATO AQUEM POR VENTURA LERÀ O TRABALHO Finda-se o processo de escrita. O que se produziu até aqui é apenas parte de uma caminhada–talvez, com final incerto e atrelada à própria vida-que teve como um de seus resultados a tese que será defendida. Não nos preocupamos imensamente com a construção de um pensamento "fechado"; os capítulos parecem incompletos e se abrem para outras conexões e outros territórios. Nós nos propusemos a "fotografar" o estado atual de um processo de pesquisa que se fez indissociável de uma produção de subjetividade, com a intenção de possibilitar diálogos e abrir novas portas. Assim, a tese é um retrato de um processo que, como todo retrato, imobiliza um instante específico de uma realidade que por si só está em permanente movimento. Porém, o relato que proponho como início, mas também fio condutor do texto que se segue - "Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas" (ROLNIK, 2011, p. 32) - tem a ver com esse momento: tantos livros lidos e fichados, tantos textos elaborados, escritas e reescritas, e a necessária interrupção para que uma forma possa surgir. Uma composição que fique em pé sozinha, mesmo que em desequilíbrio, mesmo que para isso seja preciso imperfeição, anomalia... (DELEUZE; GUATTARI, 1992,p. 214). É preciso interromper e finalizar esse processo. Surge um desejo de acalmar o processo de pensamento para que alguma clareza se torne possível - findar a adição de conteúdos, autores, textos e livros, respirar fora dos conceitos, da filosofia, da música, da psicologia. Dessa necessidade de mudar de ares, ecoou, em algum momento, retomar a literatura como paisagem. Retornei a um desejo antigo e muitas vezes suplantado pelo medo frente a grandiosidade do projeto: ler as quase 3500 páginas de Em busca do tempo perdido, de Proust (PROUST, 2006). Muito poderíamos falar do quanto a pós-graduação adoece seus pós-graduandos com as exigências de produtividade dos órgãos reguladores de pesquisa e seus prazos. A mim restou, nos últimos quatro anos, o abandono desse passatempo tão querido que é "ler por prazer", - em contraposição à atenção ao sempre presente "ler por necessidade" - e a somatória das obrigações do doutorado com as da docência, e a necessidade de produzir uma imersão tal no campo de pesquisa que me colocasse mais intensivamente 12 nesse processo de produzir sentido, de se debruçar sobre a pesquisa, e a produção de conhecimento, de "viver através da doença do vivido". Os artistas são como os filósofos, têm frequentemente uma saúde frágil, não por causa de suas doenças ou de suas neuroses, mas porque viram na vida algo grande demais para qualquer um, grande demais para eles, e que pôs neles a marca discreta da morte. Mas esse algo é também a fonte ou o fôlego que os fazem viver através das doenças do vivido (o que Nietzsche chama de saúde). (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 224) Ora, marca não de morte, do negativo, da tristeza, mas o excesso de vida, sua intempestividade. Um pensamento que se impõe a alguém, "a potência de uma vida não orgânica, a que pode existir numa linha de desenho, de escrita ou de música." (DELEUZE, 1992, p. 183). Segundo Rolnik: O que nos força é o mal-estar que nos invade quando forças do ambiente em que vivemos e que são a própria consistência de nossa subjetividade, formam novas combinações, promovendo diferenças de estado sensível em relação aos estados que conhecíamos e nos quais nos situávamos. Nestes momentos é como se estivéssemos fora de foco e reconquistar um foco, exige de nós o esforço de constituir uma nova figura. É aqui que entra o trabalho do pensamento: com ele fazemos a travessia destes estados sensíveis que embora reais são invisíveis e indizíveis, para o visível e o dizível. O pensamento, neste sentido, está a serviço da vida em sua potência criadora. (ROLNIK, 1995, p. 1) Contudo, posta de lado a digressão das páginas anteriores: a leitura de Proust me serviu para balizar um exercício, um "subterfúgio" de escrita, de que me utilizo frequentemente e que gostaria de empregar para iniciar este texto - e o exercício de trazer a "leitura por prazer" para a tese mostra o quão frustrada foi minha tentativa de fugir do processo de pesquisa, já que ela também intercede no pensamento nesse momento. De que se trata esse subterfúgio? Logo nas primeiras 50 páginas da narrativa, o personagem principal nos coloca diante do exercício de lembrar-se, da memória que por si mesma já é produção, descrevendo todo seu drama infantil na casa da cidade fictícia de Combray (onde esperava o beijo da mãe para adormecer todas as noites). Assim, de forma também a colocar uma das questões que atravessa o livro, o autor nos atenta que era 13 ...como se Combray consistisse apenas em dois andares ligados por uma estreita escada, e como se fosse sempre sete horas da noite. Na verdade, poderia responder, a quem me perguntasse, que Combray compreendia outras coisas mais e existia em outras horas. Mas como o que eu então recordasse me seria fornecido unicamente pela memória voluntária, a memória da inteligência, e como as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada destes, nunca me teria lembrado de pensar no restante de Combray. Na verdade, tudo isso estava morto para mim. Morto para sempre? era possível. Há muito de acaso em tudo isso, e um segundo acaso, o de nossa morte, não nos permite muitas vezes esperar por muito tempo os favores do primeiro. (PROUST, 2006, p. 70) Relatar (relembrar) é produzir um recorte e um olhar sobre o que passou: a infância do personagem está soterrada sob o véu do passado, da memória que seleciona sempre o que importa lembrar. Até que, páginas depois, uma xícara de chá e uma madalena (um tipo específico de biscoito de origem francesa) promovem um rasgo nesse véu... 1.1 Chá com madalenas - ou Objeto de pesquisa Desde a reunião inicial de orientação, discutimos a pertinência, o alcance e o ineditismo da proposta de meu projeto preliminar. Dali em diante houve deslocamentos variados, mudanças bruscas (ou não), alterações, reenquadres... Até chegarmos às questões que aparecem nesta tese. Em dado momento desse processo exploratório, buscando entender (e me fazer entender) meu objeto de pesquisa, me foi colocada à questão: Porque a música? Qual a sua questão com a música? Assim como o herói de Proust, comecei a procurar na memória, a partir daquela pergunta, daquela afetação (poderíamos dizer: meu chá com madalenas...) o que havia produzido em mim a necessidade de pesquisa. Abaixo, alguns excertos do diário de campo do pesquisador trazem episódios marcantes, produzidos no trato com a memória, a partir daquelas perguntas: Na quarta série, meu melhor amigo se apresenta com a Banda Municipal de Santa Rosa de Viterbo, na escola em que eu estudava. Ele tocava trompete. Imagino qual a sensação, o prazer, de produzir som, música. Nesses sonhos acordados, eu seria saxofonista (sem saber, aos 10 ou11 anos, qual era efetivamente a diferença entre os vários instrumentos de sopro). Na 6ª série, minha mãe me leva a uma loja de cds: 14 - Escolha um para você, Guilherme. Do que você gosta? - Eu não sei... Meu irmão mais velho ouvia rádio o dia todo, principalmente música eletrônica. Minha mãe ouvia MPB e Rock Clássico. Ainda me lembro de ser acordado às 7 da manhã, aos domingos, pelo som de Secos e Molhados. Entretanto, nunca havia me perguntado do que gostava. Escolho um cd de rock pela capa: No London Calling, do The Clash, o baixista Paul Simonon golpeava o chão com seu instrumento. No 3º colegial: um amigo me convida para fazer parte do Coral Municipal. Cantam música popular, fogem do erudito. Depois dos ensaios, vão todos para um barzinho. Cansado da vida resumida a estudar para o vestibular, aceito. Sete anos depois daquele primeiro encontro com a música na escola, finalmente chego à escola municipal de música e resolvo aprender a tocar um instrumento. Queria tocar baixo, mas somente havia vagas para aulas de piano. Faço aulas de piano por seis meses. Com um baixo emprestado do professor de canto do Coral, viro baixista sozinho. Retomando Deleuze, em seu livro Diferença e Repetição (DELEUZE, 2000), repetiremos uma sentença: "só se pensa porque se é forçado". Forçado muitas vezes, como bem salienta Rolnik1(1995), pelo que ela chama de experiências intempestivas, momentos no qual somos de tal forma desterritorializados pelo mundo ao nosso redor, que não nos resta nada a não ser pensar. Mais que momentos intempestivos nos forçando a pensar, podemos também pensar em outras multidões de "intempestividades" que podem nos empurrar para o pensamento. A música pode, assim, ser pensada como uma delas. Livros, e conceitos, também. Aqui nos vinculamos, sempre pensando a partir de Deleuze e Guattari, também com o conceito de intercessor: algumas ideias, coisas, animais, objetos, animados ou não, pessoas, músicas, sons... nos servem para promover pensamento, produzir. Segundo o filósofo francês, o que importa são os intercessores: Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também são coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir. (DELEUZE, 1992, p. 152) 1 "Ninguém é deleuziano", entrevista a Lira Neto e Silvio Gadelha, publicado in O Povo, Caderno Sábado:06. Fortaleza, 18/11/95. Disponível em http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/ninguem.pdf Acessado em 23/09/2017. 15 Parto dessa premissa, dos intercessores que "forçam o pensamento", para produzir então uma reflexão sobre questões teóricas em torno da subjetividade e sua produção, que a experiência de ou com a música nos exige: uma série (pois foge do pensamento causal) de ideias intercedidas pela música, ou intercedendo sobre a música. Assim, o trabalho que se segue é um exercício de exploração do pensamento em torno das questões que a música e a subjetividade nos provocam. Os intercessores que nos auxiliam nesse processo são principalmente o que convencionamos chamar de filosofia da diferença – principalmente os conceitos de Deleuze e Guattari –, mas também os sons e as músicas que se mostram presentes ao longo das páginas que se seguem. Esse exercício se fará pela tentativa de colocar, lado a lado, em paralelo, a construção e a reconstrução dos referidos conceitos por meio de um jogo de fricção entre os conceitos desses autores e os blocos de sensação dessas obras (perceptos e afectos, diriam os autores que intercedem). De alguma forma, nesse jogo vai se engendrando uma concepção de subjetividade e outros possíveis para a produção de mundos, para a psicologia, para a clínica... e para o que mais, porventura, sirva ao leitor. Assim, pensamos também na questão sempre presente da delimitação de um problema, de um objetivo e de um objeto: a marca de uma perspectiva cartográfica torna-se imperativa aqui, já que embasa a construção de uma pesquisa (e de um texto), por meio de um percurso que vai se delineando à medida que se avança. Esperamos que, com essa exploração teórica, tais questões (qual o objeto? qual o objetivo?) possam ser respondidas pelo leitor e por nós. Portanto, esta tese visa produzir um bloco filosofia-música, que possa tornar possível uma multiplicidade de afetações, passível de nos “forçar a pensar”. Por meio de tal experimentação teórica buscaremos apreender a concepção de produção de subjetividades presente nesses autores. 1.2 Mais notas, desta vez por precaução; isso não é uma biografia - ou Discussão metodológica A leitura desse início do texto pode trazer ao leitor uma sensação estranha de que se trata de uma escrita permeada de um perspectivismo tacanho, talvez até autobiográfico, que poderia resumir a pesquisa a um relato de vivências do pesquisador. Ainda que esse não seja o caso, toda cartografia de pesquisa tem também um 16 componente, um registro de cartografia de um pesquisador. Problematizaremos essa questão para que não nos prendamos a essa sensação estranha. Ressaltamos tal detalhe nessa nota, pois acreditamos na importância de evidenciar, já inicialmente: há sempre um alguém na escrita; há sempre um alguém que escreve. Essa colocação (a colocação do "alguém que escreve" na escrita), seria aprofundada ainda por uma outra, um pouco mais "enigmática": Escrevemos o anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o mais distante. Distribuímos hábeis pseudônimos para dissimular. Por que preservamos nossos nomes? Por hábito, exclusivamente por hábito. Para passarmos desapercebidos. Para tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir, experimentar ou pensar. E, finalmente, porque é agradável falar como todo mundo e dizer o sol nasce, quando todo mundo sabe que essa é apenas uma maneira de falar. Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em que não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados." (DELEUZE; GUATTARI, 2011c, p. 17) Ora, a que se refere esse excerto? Bem, primeiramente, vale salientar a importância do fato de que, sim, alguém escreve; mas também que, sim, cada autor é mais que um em suas referências, encontros, leituras, inspirações, intercessores; e essa multidão que escreve, pelas mãos do autor nomeado, da função autor (FOUCAULT, 2006)- daquele nome que aparece no topo do texto, na capa, antes mesmo do título da pesquisa, tal qual um adjetivo que serve para explicar o lugar de onde se escreveu, dentro de um campo de enunciações, de um rizoma (DELEUZE e GUATTARI, 2011a)- nada mais é que uma figura de linguagem, "uma maneira de falar". Quando se escreve, se dá espaço a uma enunciação específica, que não tem dono, em sentido estrito, mas que foi produzida por um caminho ao longo do qual muitos foram agenciados, compondo um lugar de enunciação. Sabemos que o sol não "nasce", estrito senso: ele surge pelos movimentos de rotação e translação da Terra, que em sua peregrinação pelo espaço o faz despontar aos nossos olhos. Ora, também sabemos que nunca escrevemos sozinhos; ainda assim é mais interessante levantar uma posição em que se clarifique que quem escreve, o faz em primeira pessoa, de um lugar específico, ainda que entendamos que a pessoa ou o lugar em questão seja muitos, seja uma multidão que se singulariza na produção de um texto. Acreditamos que seja mais interessante a implicação daquele que escreve, das primeiras pessoas do singular e/ou plural (EU, NÓS) do que a inconspicuidade, a assepsia de se dizer objetivo, de se usar o sujeito oculto (penso, logo existo - entende-se um EU que 17 pensa e, portanto, existe, mas não necessariamente é esse o caso: pensa-se, logo se existe). O eu aqui é menor, uma singularidade que emerge no caminho do pesquisar, pensar, ouvir música, ensinar... A divisão inerente entre aqueles que estão na prática e os que estão na academia não promove uma divisão mais subcutânea, a dos que fazem e a dos pesquisam para produzir conhecimento? Essa divisão não reitera outra divisão, tão duramente apontada na crítica ao positivismo, de que há um distanciamento entre o pesquisador e o objeto de pesquisa? Não inviabiliza um saber que seja produzido de dentro da prática - pois ele não se encaixaria nos moldes da academia - em prol de um saber esterilizado daquele que "olha de fora"? Não força, indiretamente, que o pesquisador esteja obrigatoriamente "do lado de fora"? O mito da Torre de Babel nos serviria de metáfora para discutir outro ponto, ainda referente às diferenças entre a academia e a prática (e mesmo dentro da academia). Tal qual a Torre, a academia poderia ser entendida como uma empreitada para "ascender ao céu" (i. e., atingir o conhecimento) que foi malograda: a busca pela unidade de conhecimento, de uma teoria unívoca2 - ou linguagem, no exemplo bíblico - acaba por produzir uma multiplicidade de campos semânticos para a produção de conhecimento -assim como Iavé transforma a língua única da Torre de Babel em uma multidão de linguagens, causando total confusão e a impossibilidade de diálogo. A produção dessas várias linguagens - ou campos semânticos, ou escolas de pensamento, ou teorias do conhecimento, etc. - impossibilita o diálogo não somente entre os "moradores" da Torre de Babel (pesquisadores, acadêmicos, professores, etc.), mas também entre esses habitantes e os de fora (os que fazem): somente se tem acesso ao que é produzido lá dentro quando se aprende a linguagem específica do conhecimento que se busca: a linguagem psicanalista, a linguagem marxista, e também – como fugir à autocrítica? – a linguagem esquizoanalista. Nós nos esforçamos gigantescamente para não incorrer neste erro durante a escrita da tese. Acreditamos que a perspectiva da cartografia possa nos ser útil para desconstruir essa problemática, que, assim como a discussão que inicia estas notas está baseada em uma contraposição do entendimento do sujeito enquanto ser fechado, para explorar, na 2" Durante os anos 1945-65 (penso na Europa), havia uma maneira correta de pensar, um certo estilo de discurso político, uma certa ética do intelectual. Era preciso estar na intimidade com Marx, não deixar seus sonhos vagabundearem muito longe de Freud, e tratar os sistemas dos signos - o significante - com o maior respeito. Tais eram as três condições que tornavam aceitável esta ocupação singular que é o fato de escrever e de enunciar uma parte da verdade sobre si mesmo e sua época." (FOUCAULT, 1993) 18 escrita, no pensamento e na própria feitura da tese, uma perspectiva da subjetividade enquanto sistema aberto, uma perspectiva que a intercessão entre música e filosofia nos ajuda a pensar e habitar. Quando Barros e Passos (2009) chegam e essa questão, a do sujeito que pesquisa, podemos vê-la se abrir para caminhos interessantes. Utilizando-se da discussão proposta por Simondon, passam a discutir exatamente os termos que constituem esse "sujeito", a ontogênese do sujeito. Segundo essa abordagem, é necessário desconstruir a linearidade da ontogênese do sujeito: linearidade que diz haver um princípio pré-individual, que passa por processos de individuação, ruma a um indivíduo formado e fechado. Desfazer-se da relação causa-efeito, inserindo essa ontogênese no Devir: não partir de uma origem (pré-individualidades) e um fim (individualidade), mas entender esses processos como abertos, sempre em um "quase lá", em que o sujeito se coloca não em um equilíbrio, mas em uma metaestabilidade dinâmica que se resolve em constante processualidade, transformação, na medida em que se produz sempre em conjunto com o meio - já que nos processos de individuação não se produzem somente indivíduos, mas também a realidade em seu entorno: o ouvinte, mas também o pássaro que canta, assim como seu canto, este texto... - e nunca se encerra em um ser acabado, fechado, totalmente individuado. a individuação psíquica advém quando a problemática interior do vivo o obriga a posicionar-se como elemento do problema através de sua ação, sendo essa a condição que lhe confere a posição de sujeito. Mas, se o processo é ininterrupto, o ser psíquico não resolve, ele mesmo, a sua problemática, sendo forçado a ultrapassar os seus próprios limites, agora numa individuação do coletivo. (BARROS & PASSOS, 2009, p. 23) As ideias aventadas servem para explicitar a inclusão obrigatória do sujeito - em nosso caso, o pesquisador - no diagrama da problemática em que ele se propõe a produzir conhecimento: não há uma separação em si, os de lá e os de cá, mas sim duas frentes de batalha que se produzem coletivamente: a produção de conhecimento e a intervenção do processo de pesquisa no meio pesquisado.3 Retornaremos a essas questões quando abordarmos, no capítulo 4, a questão da produção de subjetividade. 3 É premente salientar a importância dessa ideia também para a análise institucional por meio de conceitos como o de implicação e intervenção, ou de campo de intervenção: também na A.I. não se subentende o sujeito que pesquisa separado do campo onde efetua o trabalho de análise. (LOURAU, 1993) 19 A divisão aparente entre o pesquisador e o pesquisado é herdeira direta do diagrama sujeito-objeto, sempre levado em consideração nas várias críticas das ciências humanas a esse registro possível de produção de conhecimento, o positivista. a separação entre dois polos - sujeito e objeto - fala de um funcionamento de maquinas binárias que dualizam e dicotomizam: de um lado, o ser- substância; de outro, os objetos. O sujeito é continente a priori de todas as modalidades possíveis de existência. Tal primazia do sujeito sobre o objeto supõe: a unidade de cada um dos termos; uma hierarquia entre eles; centramento da atividade de conhecer em torno de um deles." (BARROS, 2013, p. 184-185) Ora, encaminhamo-nos, circularmente, de volta ao texto que nos iniciou neste caminho: Introdução: Rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 2011a), o primeiro capítulo de Mil Platôs. O assunto precisa ser abordado extensivamente aqui para levarmos adiante nossa linha argumentativa. Explicamos, antes de mais nada, tentando conceituar Rizoma e aplicar tal conceito à nossa problemática: segundo Deleuze e Guattari Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo "ser", mas o rizoma tem como tecido a conjunção "e... e... e..." Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio. (DELEUZE; GUATTARI, 2011a, capa do livro) O conceito de rizoma apresentado aqui se refere a uma fuga da diagramática dualista do positivismo: fuga do duplo sujeito-objeto; fuga da organização causa- consequência; fuga do "ser" rumo a uma possibilidade de plurideterminação, multiplicidade de conjunções (e...e...e...). Um rizoma pode ser entendido como um sistema de pensamento que desconsidera relações diretas (A=B+C) em prol de relações múltiplas entre os objetos internos ao sistema (A se relaciona com B e C, também B relaciona-se com A e C, e C com B e A). Conforme atentam os autores, criar uma experimentação do pensamento que não seja arborescência (particularidade das árvores que se multiplicam exponencialmente, mas têm como origem a unidade - o tronco que vira galhos, multiplica-se em folhas...), mas também que não seja radicular (ora, as raízes também se multiplicam em número, mas originam-se de um ponto único) 20 (DELEUZE; GUATTARI, 2011a). Tal sistema nos remete a uma indeterminação causal de seus elementos, uma indiferenciação que nos faz pensar no campo de forças, na imanência, tema que será tratado no próximo segmento do texto. Qual a conexão com o assunto? Um sujeito (o pesquisador, por exemplo) inserido em um sistema rizomático (um campo de pesquisa, no exemplo) relaciona-se diretamente com o objeto de pesquisa, com a problemática de pesquisa, com um enviesamento ético e político de suas ações, com a demanda trazida à sua pesquisa pelo objeto de pesquisa, com o próprio campo de pesquisa, e... e... e... Aqui há um enredamento nas linhas: se aquele (ou aquilo) que pensa, busca com esta pesquisa os traços de uma concepção de subjetividade que emergem da intercessão entre música e filosofia, é ele mesmo, o sujeito do conhecimento, que está posto em questão. Conexões: dentro de um rizoma, são o que não nos faltam. Considerando o rizoma enquanto sistema aberto, labirinto sem entrada ou saída, e também sujeito enquanto sistema dinâmico, metaestável e aberto, podemos estruturar um entendimento que supõe que o sujeito que pesquisa se "dilui" no espaço que pesquisa, buscando nesse contato com o campo de pesquisa, com o sistema aberto, conexões, problemáticas e conceitos; buscando a si mesmo nesse plano de imanência. Há uma circularidade fundamental entre o conhecimento e o mundo conhecido que a ciência ignora. Essa circularidade deveria se tornar evidente nos estudos da cognição, pois aí não podemos, de forma alguma, separar a cognição que conhece daquela que é conhecida, ou seja, não podemos separar a estrutura cognitiva que se conhece da experiência concreta do conhecer. (PASSOS; EIRADO, 2009, p. 121) Veyne (1998), assim como Deleuze (DELEUZE; PARNET, 1980), nos indicam a importância desse meio do caminho entre as partes das dicotomias do conhecimento, sejam elas a que diz que há sujeito-objeto, a que diz que há conhecimento-mundo, ou mesmo aquela - com a qual estamos nos debatendo desde o início deste texto - a do fazer-conhecer. Ora, mas para onde apontam? "o que conta em um caminho, o que conta em uma linha, nunca é nem o princípio nem o final, sempre é o meio. Sempre se está a um caminho, em meio de algo..." (DELEUZE; PARNET, 1980, p.34) Conforme nos provoca Regina Benevides de Barros, quando comenta a afirmação de Deleuze acima: 21 Mas... o que está no meio? O encontro dos corpos, responde-nos Espinoza, para quem todo corpo vivo é dotado de capacidade de afetar e ser afetado. a afecção é um estado do corpo, é a potência que tem um corpo vivo de se agenciar, se ligar, se compor com algo que vem de fora.(BARROS, 2013, p. 195) A proposta de produzir conhecimento pela potencialidade do encontro não é totalmente nova: se insere na proposta cartográfica por intermédio da Análise Institucional. Observamos tal "herança", por exemplo, quando Barros e Passos salientam o primado do plano da experiência na elaboração do conhecimento (BARROS e PASSOS, 2009), afirmando que somente lá se encontrarão os operadores analíticos e as ferramentas conceituais; ou quando reciclam a máxima da Análise Institucional (de que é preciso transformar a realidade para conhecê-la) alegando que no método cartográfico, o fazer gera o conhecer, e não o contrário. Eirado e Passos (2009, p. 122) também articulam essa linha quando discutem que O cartógrafo não só tem que trabalhar com a circularidade fundamental e reconhecer a coemergência "eu-mundo", mas, sobretudo, ele precisa garantir a possibilidade de colocar em xeque tais pontos de vista proprietários e os territórios existenciais solidificados a eles relacionados. Seu paradigma não é o do conhecer, mas o do cuidar, não sendo também o do conhecer para cuidar, mas o do cuidar como única forma de conhecer, ou ainda, o paradigma da inseparabilidade imediata entre cuidar e conhecer.(PASSOS; EIRADO, 2009, p.122) Tais assertivas (transformar para conhecer, fazer gera conhecimento, cuidar como única forma de conhecer, conhecer no encontro) também se baseiam em questões que nos remetem a uma fuga do positivismo predatório do conhecimento (sujeito que extrai conhecimento do objeto) rumo a uma coprodução do conhecimento: posição que demonstra uma mudança não somente de forma de se conhecer, mas também como forma de conceber as relações dentro do rizoma, aquém de verticalidades, hierarquias... Intervir para o cartógrafo não pode ser, portanto, conduzir ou dirigir o outro como se levasse nas mãos coisas. O cartógrafo acompanha um processo que, se ele guia, faz tal como o guia de cegos que não determina para onde o cego vai, mas segue também às cegas, tateante, acompanhando um processo que ele também não conhece de antemão. O cartógrafo não toma o eu como objeto, mas sim os processos de emergência do si como desestabilização dos pontos de vistas que colapsam a experiência no ("interior") eu. (PASSOS; EIRADO, 2009, p.123) Pesquisar, portanto, é inserir-se no plano de imanência. 22 1.2.1 Imanência... Alteremos o ritmo da escrita. Para evitar confusões causadas pelo excesso de informações referentes ao termo “imanência”, nos interessa voltar ao mais básico dos expedientes de pesquisa, aquele primeiro que nos ensinam ainda na infância: o dicionário. O dicionário Aurélio (2014) define a palavra “imanência” como: "qualidade daquilo que é imanente; existência da causa na própria causa". Vem do latim, in- manere, manter-se em si, existir em si. No ofício de ensinar, é necessário sempre produzir inteligibilidade aos conceitos, tal qual uma tradução, indo de encontro à confusão da Torre de Babel, trazendo o conhecimento e o pensamento para o nosso "chão da fábrica", que é a sala de aula. Faço aqui essa digressão para lembrar de dois fatos correlatos, sobre este mesmo conceito, vividos em sala de aula: um como aluno, outro como professor. Quando da tentativa de definir, em linhas gerais e bem sintéticas, a importância das articulações do que chamamos Filosofia da Diferença, sempre recorro à contraposição desse conceito ao de transcendência, e para que tal paralelo não se estenda a um cunho religioso - e mobilize nos alunos uma antipatia capaz de ensurdecê- los ao pensamento, graças ao dogmatismo irracional de muitas religiões de caráter cristão - retorno a Platão (PLATÃO, 2000). Mais especificamente, para ilustrar de forma clara, o mito da caverna: algemados no fundo de uma caverna, pessoas veem algo tal como um teatro de sombras refletindo "o mundo real" lá fora, acreditando que as sombras são reais. Para Platão, esse "mundo real lá fora", inacessível, é o mundo das ideias: em que a perfeição existe. Como já disse, inacessível, pois o "mundo aqui", mundo das aparências, não permite a perfeição das ideias; estamos fadados à convivência com as sombras, as cópias (próximas do modelo ideal que está "lá"), ou os simulacros (distantes do modelo ideal que esta "lá"). A questão que se impõe aqui é a seguinte: nesse modelo platônico - Nietzsche irá dizer que o catolicismo é um platonismo para o povo, uma doença que assola o pensamento ocidental (NIETZSCHE, 2001, p. 08) - nos acostumamos a viver uma relação com a perfeição inalcançável do além, do ideal, do transcendente (diríamos também: o utópico). Consequentemente, valoramos as coisas do mundo em que vivemos com base na semelhança que elas guardam com seu modelo ideal 23 transcendente (cópia válida quando semelhante, simulacro inválido quando dessemelhante). Sob a perspectiva nietzschiana de "reversão do platonismo", se torna premente pensar não a similitude, mas o valor da dessemelhança. O simulacro nos importa, pois coloca em questão a própria noção de cópia, uma vez que implica o desvio, a diferença. E a diferença traz em seu bojo a potencialidade de produção do novo, do não dado. Ou seja, fugir de uma Filosofia da Semelhança (do transcendente) e buscar uma Filosofia da Diferença (do imanente). Para a filosofia dos autores em questão, a imanência é de suma importância: não há um caos originário, do qual virá o entendimento pela elaboração de ideias completas, prontas, ou no entendimento de Platão, perfeitas: caos não é um ponto de partida, é um ponto de chegada - ele literalmente soletra o fim das coisas - do qual nunca escapamos. A teoria dos autores não é uma teoria da síntese como si mesma porque para eles tudo sempre já está conectado. Como isso poderia ser? Não podemos imaginar algo que esteja verdadeiramente desconectado pois no processo mesmo de imagina-lo procederíamos pelo caminho das conexões. O que varia então é a modalidade das coisas - nossos conceitos, nossos pensamentos, sendo eles mesmos, podem ser mais ou menos caóticos, mais ou menos ordenados, mas nunca completamente ordenados ou completamente caóticos. Esse é o porquê a filosofia dos autores é uma filosofia da imanência: sempre se está no meio das coisas. (BUCHANAN, 2006, p. 4)4 Segundo episódio sobre o conceito: aula do professor Silvio Yasui, no curso de pós-graduação, quando do cumprimento de créditos em disciplinas para o doutorado. Ele nos apresenta o seguinte quadro de Rafael: 4 Este trecho, assim como várias outras citações de obras consultadas em inglês ao longo da pesquisa, foram traduzidos informalmente pelo pesquisador para evitar a criação de barreiras linguísticas na leitura. 24 imagem 1: A escola de Atenas, Rafael Sanzio, circa 1509 No afresco em questão, o pintor busca ilustrar os pensadores gregos que influenciaram (e influenciam até hoje) o pensamento ocidental, como que uma declaração sobre a importância da filosofia. É considerada uma das obras primas do pintor e do Renascimento, e embora muitos dos pensadores representados nas figuras tenham sua identificação dificultada, dois são claramente distinguíveis. No centro exato da figura, vemos a conversa de dois dos principais pensadores gregos: Imagem 2 e Imagem 3: Detalhes de a Escola de Atenas 25 À esquerda vemos Platão, de túnica vermelha. Conforme ressaltamos anteriormente neste texto, sua filosofia enfocada na transcendência, no mundo das essências, é retratada aqui por um gesto em meio à aparente discussão: um dedo em riste, apontado ao céu, ao além. À direita vemos Aristóteles, de túnica azul. Ele carrega consigo o livro "A Ética", e parece contrapor (assim como as cores se contrapõem) o gesto de seu professor, apontando com a mão espalmada o chão, o "mundo daqui". A contraposição entre transcendência e imanência, é pintada por Rafael, como o centro (conforme já dito, os pensadores são representados no centro do quadro) da questão filosófica. Contudo, como a questão da imanência pode ser uma chave para uma porta que permita passar o pensamento? Quando acompanhamos Foucault em sua extensa obra, ou mesmo quando pensamos com Deleuze e Guattari, entendemos uma guinada interessante: a realidade não está lá aguardando para ser interpretada por um sujeito do conhecimento transcendente a ela. Ela é uma série de regimes de visibilidade, práticas e discursos que foram constituídos historicamente, e a empreitada não é para revelar algo oculto, extrair um conhecimento da essência da coisa em si, mas sim uma empreitada de "incisões a serem feitas nos estratos, para que o invisível, já presente, se torne visível." (BARROS, 2013, p. 199). O "objeto", assim como o "sujeito" não são, mas se encontram aparentando ser, com base em uma série de formas de se pensar, campos históricos específicos; tem em si também uma potencialidade ainda por ser efetuada. Esse campo das potencialidades, que Deleuze chamou de campo de consistência ou de imanência, e que alguns - inspirados em Nietzsche - também chamam de plano das forças (ESCÓSSIA; TEDESCO, 2009), se constitui por um constante jogo de forças, sem espaço para figuras conceituais, mas apenas fluxos constantes de potencialidades que eventualmente se individualizam em figuras já estabilizadas: coisas, conceitos, objetos e sujeitos, uma canção, um discurso, etc. Essa individualização aproxima as figuras - mas nunca passando para, já que vimos em Simondon que não há individualização completa, mas apenas processos de - do plano de organização do real, o plano de consistência, o plano onde se dá nossa inteligibilidade. Entretanto, as metodologias tradicionais pecam em considerar a metaestabilidade, em processo de lentificação/cristalização na forma de coisas e 26 conceitos, como fixa e natural. Deleuze e Guattari nos indicam que nada nunca passa permanentemente a esse plano das formas acabadas – uma vez que não há outro plano que não o plano de imanência - nada nunca é totalmente individuado, pois tudo sempre porta, como já salientamos, a imanência de suas potencialidades. É nesse plano, da imanência, que o cartógrafo fixa seu objetivo: no contato com o campo, na relação com o real, no encontro com o "objeto", pretende produzir conhecimento a partir da atualização das potencialidades dos sujeitos e objetos com que lida. O encontro espinosano se serve também desse plano: encontros nos remetem a uma atualização do eu, uma produção de eu, que nos lembra sempre nossa infixidez. Acreditamos que, por meio dessas inúmeras questões metodológicas levantadas aqui, justifiquemos uma série de questões acerca da forma como pretendemos escrever e como concebemos o processo da pesquisa: uma exploração de conceitos em intercessão com sensações; uma tentativa de acessar o plano de imanência, tentativa essa intercedida pela música e pela filosofia da diferença. O plano de imanência da pesquisa é o próprio processo de produção de subjetividade: produção de si e do mundo enquanto se busca pensar e conhecer. 1.3 Pausa: como se deu/dará a pesquisa e a escrita - ou Procedimentos Antes de começarmos o texto da tese propriamente dito - o leitor, assim como nós, havemos de concordar que ele já começou, ainda que tangenciando o tempo todo o objeto da pesquisa enquanto tratamos de questões metodológicas- é necessário estabelecer algumas questões práticas que guiaram a pesquisa e a escrita, assim como explicar a divisão pretendida neste texto final. Em termos de procedimentos de pesquisa/escrita, além da pesquisa bibliográfica, buscamos ao longo de todo o texto utilizar músicas e sons para exemplificar as questões tratadas teoricamente. Acreditamos que seria difícil fazer de outra forma, uma vez que buscamos aqui pensar uma concepção de subjetividade a partir da intercessão entre o plano de sensações da música e o plano dos conceitos que habita o pensar, e nesse sentido nos valemos muito de outros pesquisadores que aproximaram o campo da filosofia e da música -LIMA (2003), FERRAZ (1998, 2005, 2010), RODRIGUES (2009), WISNIK (1989), BUCHANAN (2006), GILBERT (2006), CAGE (1961), são alguns exemplos. 27 Tais conexões se darão por links direcionados a sites da internet onde as músicas em questão estavam hospedadas na data da escrita: as leis de direitos autorais estão em permanente conflito com tais práticas de armazenamento na rede e podem causar a remoção do conteúdo e a inutilização dos links. Infelizmente, não há alternativa, já que a opção de produção de um CD também infringiria as leis de direitos autorais. Em casos inviabilidade dos links, contamos com a boa vontade do leitor para procurar as obras em questão na internet ou obtê-las por outros meios. Em alguns momentos, partituras também serão utilizadas. Sabemos da carência de proficiência na leitura de tais notações, pois mesmo entre os músicos a leitura de partituras não é costumeira, dada a frequência do autodidatismo e de outras formas de notação musical. Por isso, evitaremos fazê-lo sem também anexar uma forma de acessar a música em questão online. Pontualmente, conforme explicitado e exemplificado na introdução acima, a memória do percurso de pesquisa será presente por cenas relacionadas à imersão no processo da pesquisa, devidamente registradas em diário de campo. Esse diário, elaborado pelo pesquisador por meio de anotações e diagramas referentes às aulas das disciplinas de doutoramento, encontros de orientação, encontros do grupo de pesquisa de que fazemos parte, mas também de episódios cotidianos da docência, serviu de matéria-prima para o texto que se apresenta aqui, ainda que não seja citado literalmente com frequência. A seguir, apresentamos alguns textos que pretendem, com base em todas essas questões abordadas até aqui, operar sobre os conceitos da filosofia de Deleuze e Guattari em sua relação com a música. A linearidade da escrita reflete na necessidade de linearidade da leitura. Assim, as ideias apresentadas na introdução serão retomadas posteriormente, assim como as discussões sobre ritornelo, no primeiro capítulo, serão referenciadas no segundo capítulo, e assim por diante. Pretende-se abordar os conceitos deleuzianos e guattarianos que se conectam com a música, muitas vezes trazendo a reflexão de outros autores sobre tais conexões e, principalmente, objetivando construir uma inteligibilidade desses conceitos. 28 Se, como alguns Deleuzianos gostam de pensar, Mil Platôs é uma versão contemporânea da lendária chave para todas as mitologias que o pobre e desorientado Sr. Casaubon gastou sua vida tentando construir sem nunca terminar, então é uma chave que precisa de uma chave. Sua terminologia é obstrutiva e difícil de conectar, e a apresentação de seus argumentos é tão longa e convoluta que tende a se perder na esfoliação dos conceitos em si. A citação de Deleuze do lamento de Liebniz, de que justo quando ele imaginava que havia chegado a um porto seguro ele se encontrava estando totalmente lançado ao mar, tem uma qualidade profética para os leitores de seus próprios trabalhos, pois descreve exatamente como muitos leitores se sentem em seu primeiro encontro com Mil Platôs. (BUCHANAN, 2006, p. 1) Tal processo se torna de suma importância para o cumprimento do objetivo final da tese, que é operar com os conceitos de Deleuze e Guattari em busca de uma forma de pensar a música, o som e as subjetividades. Ainda que haja o esforço de separar essas duas perspectivas da pesquisa (música em Deleuze e Guattari e filosofia da Diferença pensando o som), as discussões tendem a se mesclar e acreditamos que isso somente tem a contribuir para enriquecer o texto. 29 Breve prelúdio: Deleuze, Guattari e experiências musicais do pensamento A proposta desta tese é promover uma reflexão acerca dos conceitos elaborados por Deleuze e Guattari em suas obras: o ritornelo, o devir. Além disso, exploraremos também a concepção dos autores sobre tempo e subjetividade. Tal proposta busca instrumentalizar, por meio destes conceitos, o entendimento acerca da conexão entre música, filosofia, e produção de subjetividade: “por vezes, um conceito exige uma palavra estranha, com etimologias quase loucas, por vezes uma palavra corrente, mas da qual se tira harmônicos os mais remotos [...] O primeiro caráter do conceito é operar um recorte inédito das coisas” (DELEUZE, 2016, p. 404). Partiremos, portanto, dessa “construção de um recorte das coisas”, por meio de um conceito, na tentativa de possibilitar tal recorte num quase hibridismo entre música e filosofia. Deleuze e Guattari trazem a música (e outras artes) para o campo do pensamento de forma muito interessante: não se colocam na posição de pensar especificamente a música. Podemos salientar dois textos que remetem a esse sentido: a conferência Tornar audíveis forças não-audíveis por si mesmas (2016) e, Péricles e Verdi- a filosofia de François Chatelet(1999) são aqueles que mais se colocam nesse papel. Há também trechos muito carregados de música nos cinco volumes de Mil Platôs, ou mesmo nas transcrições de algumas aulas ministradas por Deleuze em 19775. Entretanto, a música ressoa profundamente no pensamento dos autores, permeando toda sua escrita. Faziam com essa arte específica (assim como com outras artes, e com as ciências) um exercício muito interessante, com o objetivo de vitalizar o pensamento: se apoderavam dela como uma intercessora. Deleuze nunca enunciou, conceituou, definiu em detalhes os intercessores. Entretanto, no texto intitulado Os intercessores (1992), trabalha para tornar clara a problemática que convida os intercessores ao pensamento. Convite que se faz para "forçar o pensamento a pensar": “se hoje em dia o pensamento anda mal é porque [...] há um retorno às abstrações, reencontra-se o problema das origens, tudo isso... de pronto são bloqueadas todas as análises em termos de movimento, de vetores.” (DELEUZE, 1992, p.155). O que poderia ser mais potente para pensar movimentos, 5Aulas datadas de 08/03/1977 e 03/05/1977 disponíveis em www.webdeleuze.com, acessado em 25/10/2017 30 vetores, singularizações e processos de subjetivação do que aquelas artes que se inserem no tempo, artes dos movimentos (o cinema- movimentos físicos e a música - movimentos sonoros)? Esse conceito de intercessor se torna palpável, por exemplo, quando Deleuze trata, em Tornar audíveis forças não-audíveis por si mesmas (2016), de uma lista de pensamentos que a música pode nos trazer. Nessa perspectiva, poderíamos salientar uma miríade de conceitos que surgiram no pensamento do francês advindos da música. A proposta é que aproveitemos o espaço desta pesquisa para tratar de conceitos que consideramos centrais na obra de Deleuze para pensar a subjetividade e que são engendrados a partir de uma intercessão com a música. Neste momento, podemos - por exemplo - destacar esse conceito que já se fez presente no texto algumas vezes: a série, ou síntese disjuntiva. A série citada por Deleuze é um desses conceitos musicais: Olivier Messiaen, compositor por exemplo de quarteto pelo fim do tempo6 -, mas também seu aluno Pierre Boulez - que escreveu Le marteau sans maître7-, propõem com suas músicas uma questão: o que seria da música sem o primado da melodia? Ora, poderíamos reduzir os sons a suas características básicas: timbre, altura, força e duração. Como musicar tal ideia? Propondo uma canção que, onde quer que fosse tocada, quando quer que fosse começada, faria sentido. A ideia de série então seria essa: criar conexão entre coisas autônomas umas das outras, sem que para isso se lance mão de uma proposta de causalidade. Notas que não se organizariam em torno de uma lógica específica (uma nota como base, uma escala musical como guia). Não pensar A=B=C, logo A=C - uma operação conectiva; mas sim A e B e C, incluindo, assim, as conexões entre A e não-A, e as conexões que não propõem sentido, mas que dizem apenas da conexão em si. Ora, encaminhamo-nos, por ressonância, em direção novamente àquela série de proposições sobre o rizoma, que também já abordamos brevemente na introdução. Colocando lado a lado dois conceitos dessa perspectiva - série e rizoma - vemos que o pensamento dos autores se opera também pelas premissas dos próprios conceitos. Seja no primeiro volume, seja no quarto, encontramos em suas obras uma série de pensamentos que permeiam circularmente, interconectando, as mesmas ideias. 6Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=jyvqtmfN3g0. 7Disponível emhttps://www.youtube.com/watch?v=MS82nF85_gA. 31 Aproveitemos o ensejo para nos dar ao luxo de também pisar novamente em lugares já visitados: acompanhemos Deleuze (2016) em mais um exemplo da forma peculiar como ele articula a música como intercessor do pensamento, enquanto acesso a um plano de imanência: Há um certo tipo de individuação que não se resume a um sujeito (Eu [moi]), nem mesmo à combinação de uma forma com uma matéria. Uma paisagem, um acontecimento, uma hora do dia, uma vida ou um fragmento de vida...procedem de outro jeito. Tenho um sentimento de que o problema da individuação na música –que certamente é muito, muito complicado – está mais para o tipo daquelas segundas individuações paradoxais. Como se chama a individuação de uma frase, de uma pequena frase, em música? Eu gostaria de partir do nível mais rudimentar, em aparência mais fácil. Ocorre de uma música fazer nos lembrar de uma paisagem. Assim é o célebre caso de Swann, em Proust: o bosque de Boulogne e a pequena frase de Vinteuil. [...] motivos, nas óperas, estarem ligados a personagens, por exemplo: um motivo wagneriano é obrigado a designar um personagem. [...] Na ópera, pode-se considerar certos motivos em associação com um personagem. Em Wagner, porém, os motivos não se associam apenas a um personagem exterior, eles se transformam, têm uma vida autônoma em um tempo flutuante não pulsado onde eles próprios, e por si próprios veem personagens interiores à música.( (DELEUZE, 2016, p. 165-166) Logo, os motivos wagnerianos são um exemplo dessa relação que Deleuze levanta entre as artes, a ciência e a filosofia: intercessores que nos servem para pensar o plano das pré-individualidades, o plano de imanência do sujeito. Wagner nos indica o caráter mutável dos sujeitos por meio deste itinerário: em suas óperas, certas músicas ou frases são encarnações musicais de personagens8, e, como os personagens, nunca se mostram fixas, sempre com pequenas variações, sempre em devir. A música, então, não é um assunto apenas dos músicos, na medida em que ela não tem o som por elemento exclusivo e fundamental. Ela tem por elemento o conjunto de forças não sonoras que o material sonoro elaborado pelo compositor vai tornar perceptíveis, de tal maneira que até mesmo se poderão perceberas diferenças entre essas forças, todo o jogo diferencial dessas forças. [...] Não há ouvido absoluto, o problema é ter um ouvido impossível - tornar audíveis forças que não são audíveis em si mesmas." (DELEUZE, 2016, p.166-167) Deleuze propõe pensar a música enquanto ferramenta possível para tornar audíveis forças que não eram perceptíveis pelo pensamento de outra forma: acoplamento entre materiais sonoros elaborados e forças que por si só não são sonoras 8A opera Tristão e Isolda, onde tal artifício é utilizado, é considerada a obra prima do compositor alemão, e pode ser conferida aqui: https://www.youtube.com/watch?v=L44Ml8K_mDg. 32 (o tempo, a intensidade, a duração, mas também o sujeito/personagem, a paisagem, etc.). É nessa perspectiva que novamente ressaltamos a proximidade a que Deleuze se referiu entre a filosofia, a ciência e a arte. Produção, criação, elaboração: busca no plano de imanência daqueles pensamentos inauditos que podem interceder no pensamento, interceder na realidade: Filósofos estão gradativamente buscando elaborar um material de pensamento muito complexo para tornar sensível forças que não são pensáveis por si mesmas. Não há ouvido absoluto; o problema é ter um ouvido impossível - fazendo audíveis forças que não são audíveis em si mesmas. Na filosofia, é uma questão de pensamento impossível, fazendo pensável através de um material de pensamento muito complexo forças que são impensáveis. (DELEUZE, 2016, p.167) Acredito que quando nos encaminhamos nessa direção, a direção de pensar os processos de subjetivação, talvez possamos sair da posição de pensar a música nos escritos de Deleuze e Guattari e passar a pensar o pensamento deles na música. Se a questão são as séries, não deveria haver algo passível de extrapolar a relação música- leva-ao-pensamento em direção a plurideterminação de um pensamento que leva à música, de pensar a música ou mesmo de musicar o pensamento? 33 1 PRIMEIRO MOVIMENTO – RITORNELO, TERRITÓRIOS SUBJETIVOS E IMPROVISAÇÃO. Ritornelo: o que volta. Ou, usando de nossa língua materna, o refrão. Ora, o refrão é fácil de conceituar na música popular: aquela parte da música, normalmente mais dinâmica e marcante, que se repete. Dentro do Jazz, por exemplo, desempenha um papel central: um tema (refrão/ritornelo) é exposto e, a cada repetição, retorna, mas sofrendo variações, improvisos de cada um dos músicos (ou trades na linguagem do Jazz) que trazem diferenças em relação ao tema original, e também em relação uns aos outros. Ao final da música, retorna-se ao tema principal. Cartografando um projeto de pesquisa: orientar é um processo de revisitar os caminhos já traçados. Durante a orientação do TCC de uma percussionista sobre as relações entre a música e a produção de subjetividade, precisei revisitar muitas paisagens conceituais, muitos textos-sementes para tudo aquilo que ainda me debato para pensar hoje. Heráclito estava certo: "não se banha duas vezes no mesmo rio". Era como ler outro texto, outro livro... Os pedidos de esclarecimento da aluna me faziam duvidar da memória: "onde isso aparece neste texto?", "como é possível ver centralidade em questões que eu nem me lembrava existir?". Era outro olhar, mostrando que a rede de implicações, de subjetividade de quem lê, interfere - e como, já nos disse Heisenberg9 - na produção de sentido que esse encontro (corpo-leitor, corpo-texto) produz. Outros olhares: quantos não foram os olhares que pairaram sobre esta pesquisa? Outros passarão10 por este texto também. Esses outros olhares somaram muito nessas "segundas leituras": Juliana Araújo (SILVA, 2012)me trouxe um livro de Portugal, que justifica muito do que vocês encontrarão adiante. Paula (AVERSA, 2012) me deu um livro que abriu caminhos, me lembrou que eu tinha outro que usarei aqui ou acolá. Tânya(CARDOSO, 2014)também estuda música e sempre nos colocamos a maquinar ideias. Taís nos recebe para o grupo de estudo com uma lasanha deliciosa. Juliana 9 Na física quântica, foi comprovado por Heisenberg em seu famoso Princípio da Incerteza, que mesmo o ato de observar um elétron interfere na complexa equação que diz onde ele estará: olhar um elétron influencia o local deste elétron. O observador interfere na observação. 10 "eles passarão/ eu passarinho" me lembro agora do Poeminho do Contra, de Mário Quintana. Seria talvez a esperança de que essas passagens não passem "atravancando meu caminho"? (QUINTANA, 2005) 34 Aleixo (ALEIXO, 2016) nos coloca a pensar nossos corpos. Rafael (RODRIGUES, 2016)colocava Jazz na vitrola, ou whisky no copo... Outros olhares que produziram pensamento, e produziram outro olhar para os textos quando da segunda leitura para a orientação. No TCC que oriento, chegamos a dúvidas sobre como prosseguir. Como que por reflexo, costume já encarnado, "corro" atrás de minha orientadora. "Talvez te ajude partir deste texto escrito a quatro mãos para desenvolver o sentido do seu trabalho", ela me responde. O que faltava ao trabalho da aluna? Um conceito importantíssimo para essa conexão entre música e produção de subjetividade. Para os autores de que nos propomos a tratar, e também para muitos de seus comentaristas, o ritornelo é um conceito valioso que marca um movimento eternamente repetido nesse processo vital de subjetivação: um eterno retorno das diferenças, promovido por uma série de movimentos marcantes. O conceito de ritornelo está de tal forma conectado a outros conceitos, compondo uma rede forte e quente com outros conceitos que surgem da intercessão com a música, que é imprescindível passar por ele quando nos colocamos a explorar a concepção de subjetividade dos autores. Tal importância também pode ser observada em entrevista dos atores: - Aos olhos de vocês, quais são os conceitos criados por filósofos do século XX? -Quando Bergson fala da “duração” ele emprega essa palavra insólita por não querer que a confundam com o devir. Ele cria um novo conceito. [...] Em A arqueologia do saber, Foucault cria um conceito de enunciado que não se confunde com o de frase, o de proposição, o de ato de fala, etc. O primeiro caráter do conceito é operar um recorte inédito das coisas. - E quanto a vocês, quais conceitos pensam ter criado? - O ritornelo, por exemplo. Formamos um conceito de ritornelo em filosofia. (DELEUZE, 2016, p,404) Novamente uma série, pois faz parte do ritornelo três coisas que não se articulam em ordem pré-determinada( não-A > B > C, mas A e B e C e ...): ora se busca um centro, ora se cria um território, ora se salta para fora dele, mas nunca se está em apenas um desses três movimentos. Ainda, definitivamente, nunca se para num deles. Desterritorialização, buscar um "centro no buraco negro", territorialização, desterritorialização...(DELEUZE, 2011c). 35 Reproduzo as palavras dos autores para abrir espaço para a linha de fuga do pensamento que quero acompanhar: I. Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Ela anda, ela para, ao sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua cançãozinha. Esta é como o esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos. Pode acontecer que a criança salte ao mesmo tempo que canta, ela acelera ou diminui seu passo; mas a própria canção já é um salto: a canção salta do caos a um começo de ordem no caos, ela arrisca também deslocar-se a cada instante. Há sempre uma sonoridade no fio de Ariadne. Ou o canto de Orfeu. II. Agora, ao contrário, estamos em casa. Mas o em-casa não preexiste: foi preciso traçar um círculo em torno do centro frágil e incerto, organizar um espaço limitado. Muitos componentes bem diversos intervêm, referências e marcas de toda espécie. Isso já era verdade no caso precedente. Mas agora são componentes para a organização de um espaço, e não mais para a determinação momentânea de um centro. Eis que as forças do caos são mantidas no exterior tanto quanto possível, e o espaço interior protege as forças germinativas de uma tarefa a ser cumprida, de uma obra a ser feita. Há toda uma atividade de seleção aí, de eliminação, de extração, para que as forças íntimas terrestres, as forças interiores da terra, não sejam submersas, para que elas possam resistir, ou até tomar algo emprestado do caos através do filtro ou do crivo do espaço traçado. Ora, os componentes vocais, sonoros, são muito importantes: um muro do som, em todo caso um muro do qual alguns tijolos são sonoros. Uma criança cantarola para arregimentar em si as forças do trabalho escolar a ser feito. Uma dona de casa cantarola, ou liga o rádio, ao mesmo tempo que erige as forças anticaos de seus afazeres. Os aparelhos de rádio ou de tevê são como um muro sonoro para cada lar, e marcam territórios (o vizinho protesta quando está muito alto). Para obras sublimes como a fundação de uma cidade, ou a fabricação de um Golem, traça-se um círculo, mas sobretudo anda-se em torno do círculo, como numa roda de criança, e combina-se consoantes e vogais ritmadas que correspondem às forças interiores da criação como às partes diferenciadas de um organismo. Um erro de velocidade, de ritmo ou de harmonia seria catastrófico, pois destruiria o criador e a criação, trazendo de volta as forças do caos. III. Agora, enfim, entreabrimos o círculo, nós o abrimos, deixamos alguém entrar, chamamos alguém, ou então nós mesmos vamos para fora, nos lançamos. Não abrimos o círculo do lado onde vêm acumular-se as antigas forças do caos, mas numa outra região, criada pelo próprio círculo. Como se o próprio círculo tendesse a abrir-se para um futuro, em função das forças em obra que ele abriga. E dessa vez é para ir ao encontro de forças do futuro, forças cósmicas. Lançamo-nos, arriscamos uma improvisação. Mas improvisar é ir ao encontro do Mundo, ou confundir-se com ele. Saímos de casa no fio de uma cançãozinha. Nas linhas motoras, gestuais, sonoras que marcam o percurso costumeiro de uma criança, enxertam-se ou se põem a germinar "linhas de errância", com volteios, nós, velocidades, movimentos, gestos e sonoridades diferentes. (DELEUZE, 2011c, p. 102) [Grifo nosso] 36 Voltemos então ao primeiro parágrafo desse tópico: dentro do Jazz ( de algumas das formas de Jazz, ao menos), o tema é exposto e depois revisitado pelos músicos, cada um a seu tempo, em seu trade, produzindo a partir do tema uma improvisação. Cito um exemplo: Imagem4: Cantaloupe Island, Herbie Hancock Em Cantaloupe Island, um tema bastante marcante de Herbie Hancock 11, observamos esse primeiro momento, "esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante no centro do caos"(idem) que se avizinha. Na imagem 4, observamos a partitura da “base” da música tocada no piano logo no começo da canção, de forma bastante cadenciada: seis das sete notas têm a mesma duração; a quinta delas dura o dobro do tempo das outras, causando uma sensação de deslocamento, swing. O intercalamento entre sons únicos e bicordes (duas notas tocadas ao mesmo tempo) também provoca tal sensação de deslocamento, desta vez em termos de volume de som. Não somente isso, mas os bicordes escolhidos pelo pianista intercalam-se em sons consoantes e uma única combinação “não harmônica”, novamente na quinta nota, acentuando sua importância rítmica e na construção de uma certa tensão que se desfaz nos dois últimos acordes da partitura – novamente harmônicos. Entre as inumeráveis combinações possíveis (ou impossíveis, que dobram as regras da música ocidental) de acordes, ritmos, melodias que poderiam ser colocadas após o silêncio daqueles milésimos de segundo antes do início da música, surge bem esta: a "cançãozinha" nos assegurando de estar em algum lugar. Ela se repetirá, incessantemente, durante quase toda a música, trazendo a sensação de uma familiaridade com o som que se executa, marcando quase subliminarmente a individualidade dessa música. Aos 15 segundos, Freddie Hubbard, com seu cornet12nos expõem o tema, o local de onde se partirá e para onde se voltará: 11 Ouça a música aqui https:/www.youtube.com/watch?v=8B1oIXGX0Io 37 Imagem5: Cantaloupe Island: o tema Durante toda sua execução, o músico privilegia os dois últimos tempos de cada compasso13, aqueles tempos que na base são marcados pela quinta nota a que me referia anteriormente: o ponto de tensão e sua consequente dissolução. Isso somente muda no final da exposição do tema – o ultimo compasso da imagem 5 – onde o cornet e o piano tocam as duas primeiras notas do compasso, como que pontuando o final da frase. A colocação de um território para a música - o momento II de que nos falam os autores - uma frase do cornet, um tema para a música. Vale lembrar que essa música, e principalmente essas frases, tem sido utilizada ad infinitum tanto no Jazz quanto fora dele: foi muito ouvida e ganhou projeção imensa entre os não amantes de Jazz quando de sua utilização como sample para a música Flip Fantasia.14 "foi preciso traçar um círculo em torno do centro frágil e incerto, organizar um espaço limitado". Marcar entre as quase infinitas articulações possíveis entre notas, ritmos, alturas, acordes, harmonias, timbres, etc., "um lugar para chamar de casa". Ainda que nos preparemos para um salto. Pouco mais de um minuto depois, temos a passagem a um terceiro momento: o cornet começa seu improviso, com uma nota longa, arrastada, como que "apalpando" o caminho a traçar em sua viagem. E depois o piano. Nada do que os instrumentos "dizem" está escrito na partitura. 12 O cornet é um instrumento de sopro, muito parecido com o trompete, ainda que tenha um timbre mais “aveludado” que este. Era utilizado para a execução de toques militares em tropas de infantaria, e na sua forma mais arcaica, imitava a forma de um chifre (corno). 13 Um compasso é uma unidade de medida em música, uma subdivisão do tempo: nas imagensreproduzidas aqui, cada compasso conta com quatro tempos, e são demarcados por uma linha vertical que atravessa o pentagrama (o pentagrama são as cinco linhas horizontais que dizem a “altura” da nota). 14Sample é uma forma de composição utilizada no hip-hop, Rap, na música eletrônica e no Funk carioca: "recorta-se" um trecho, uma frase, de outra música e ela é colocada para servir como fundo para a música que se desenvolve sobre ela, a partir dela. Esse processo também passa pela mesma dinâmica que trazemos aqui quando falamos sobre o Jazz: produção de diferença a partir da repetição. Confira: https://www.youtube.com/watch?v=JwBjhBL9G6U 38 Imagem6: Love Supreme Manuscripts, John Coltrane A figura acima, a título de exemplo, são as anotações, ou a "partitura" de John Coltrane para Love Supreme15. Salvas algumas pouquíssimas exceções, não há anotado no manuscrito as notas ou harmonias da música: aparenta ser um diagrama caótico e muito difuso de indicações ("tema tocado em todos os tons ao mesmo tempo"), fluxogramas de tempo ("solo de baixo", "recitação musical de oração"), ferramentas sobre o estado a que se pretende chegar ("fazer o fim tentar alcançar um nível transcendental"). Todas essas informações constam, sem que elas engessem os músicos na construção de algo específico: são linhas gerais que indicam um bloco de devir, um devir-música a se levar em consideração no ato da criação de cada improviso. Nesse sentido, para cada interpretação, esse momento de improviso é único, pois construído nesse devir-música. Somos então levados ao momento III: "nos lançamos ao mundo, arriscamos uma improvisação. Porém, improvisar é ir ao encontro do mundo, ou confundir-se com ele". 15 Ouça a música em https://www.youtube.com/watch?v=lHUapMTgWD0 39 Aos quatro minutos, depois de muito vagar, Cantaloupe Island volta ao tema, como que seguindo o fio de Ariadne. O fio de Ariadne marca o ponto de nossa linha de fuga. 1.1 O fio de Ariadne: a cançãozinha da qual saímos, a cançãozinha para qual voltaremos (será?) Primeiramente, o contexto: no mito grego, Ariadne amava Teseu que seria sacrificado ao Minotauro em um labirinto. Teseu foi orientado pelo oráculo de Delfos, avisado de que somente venceria o embate com a ajuda do amor. Ariadne deu a ele uma espada e um novelo: ao andar pelo labirinto, Teseu desenrolava o fio para marcar um caminho pelo qual voltar. Todavia, não se volta o mesmo: Teseu vai para o labirinto enquanto sacrifício, volta enquanto herói. Matou o monstro, fez-se outro. O lugar ao qual se volta também não é o mesmo: em todas as versões do mito, os personagens se afrontam com o fato de que Teseu não amava Ariadne, não amava o lugar para onde voltara. E ambos partirão de novo. Nossa linha de pensamento nos leva a esse lugar. A jornada, seja do herói que enfrenta o chamado da aventura munido de seu novelo, seja do músico que se depara com um devir-música munido de sua "cançãozinha". Ou então - e aqui reside a importância do ritornelo para nosso pensamento - a subjetividade que se lança à desterritorialização rumo a outros encontros, em um processo de se produzir. O que acontece lá, no caos, fora dos espaços já determinados, das linhas já traçadas, da frase musical já escrita, no campo de imanência? Voltemos a falar de música, acompanhando a proposta de experimentação de um pensamento “híbrido”, musical/filosófico, que viemos traçando até aqui. Lá "fora" compõe-se, combina-se, ressoa, de acordo com as diferenças inclusas em um encontro de músicos com a matéria sonora, o território e a "cançãozinha" em um devir-música. Por meio de experimentações, mutacionam indefinidamente a forma de cada obra, a cada ensaio ou apresentação, pode-se estar atento à temporalidade específica de cada integrante e conjugá-la em um ritmo comum, uma sonoridade comum, surgido de acordo com cada momento. "Improvisar, compor, é, então relacionado à ideia da afetação por diferenças, da redescoberta e do florescimento de um 40 corpo. Algo que me permite encontrar meu próprio ritmo entre os compassos" (ATTALI, apud GILBERT, 2006, p. 127) Ora, seguindo a tese de Regina Benevides de Barros (BARROS, 2013), o grupo (e em nosso caso fazer música em grupo) se estabelece enquanto intermediário entre duas pretensas totalidades, o indivíduo e a sociedade, e por ocupar esse intermezzo, esse espaço de indiferenciação, esse rizoma, permite uma abertura ao plano das pré- individualidades, esse campo/plano de imanência: é uma potencialização da produção intersubjetiva. De acordo com Pelbart, não para fazer bandinha, enquanto prática engessada e presa em uma lógica de repetição, mas para dividir algo, construir uma temporalidade, por meio de ritmos e sons compartilhados. 1.2 Música rizomática? Para ampliar nossa discussão, acompanharemos Jeremy Gilbert na busca por esclarecer esses dois pontos que aqui se impõem: O devir-música, e a música rizoma. Segundo o autor, quando da criação do álbum Bitches' Brew16, Miles Davis "inaugurou o gênero cujo próprio nome poderia ser um sinônimo para a criatividade rizomática: fusion(GILBERT, 2006, p. 123). Esse álbum busca levar os princípios do Jazz às suas últimas consequências: a improvisação passa não mais a uma parte da música, mas a fundamento da obra. Improvisam-se outros timbres ("eletrificando" e distorcendo o som do trompete de Miles, por exemplo), outras configurações de banda - fugindo das formações tradicionais do Jazz, e gravando muitas vezes com duas bandas ao mesmo tempo- mas, principalmente, estabelecendo a proposta do "solo/improviso de ninguém, solo/improviso de todo mundo". Música feita de pura desterritorialização, puro salto ao caos de todos ao mesmo tempo. Tal proposta evidencia uma série de questões tratadas pelo autor inglês supracitado, ou mesmo nas palavras de Deleuze e Guattari: 16Ouça-o em: https://www.youtube.com/watch?v=SbCt-iXIXlQ - de preferência enquanto lê o resto do texto. 41 Ao colocar todos os seus componentes em variação contínua, a música por si mesma se torna um sistema supralinear, um rizoma ao invés de uma árvore, e segue ao serviço de um continuum virtual cósmico do qual mesmo buracos, silêncios, rupturas e quebras fazem parte. (DELEUZE: GUATTARI, 2011a) Um rizoma ao invés de uma árvore: ao colocar todos os instrumentos na lógica da desterritorialização, do improviso, desarticula-se uma gama infinita de questões "arborescentes" na música, que podemos ver, por exemplo, na música erudita clássica: a forma extremamente hierarquizada da orquestra, com a obra do compositor, a partitura, fazendo as vezes de "palavra sagrada", mediada em "um regime despótico-passional de signos, com o maestro como ponto de individuação" (GILBERT, 2006, p. 128), e todos os músicos, mas também a plateia, sob seu jugo, sob seu olhar numa expressão explícita de poder. Cada ínfimo detalhe da execução da peça milimetricamente descrito na partitura e vigiado pelo condutor. Entretanto, ainda mais que isso, pois "a materialidade da música, a corporeidade do som, é sublimada numa experiência de música como pura transcendência, de gratificação adiada, até o singular e individual momento de clímax: o final sinfônico estrondoso." (GILBERT, 2006, p. 129). A experiência da música como falta, a espera do final, que produz em todos os presentes (músicos, plateia, condutor) uma série de afectos muito específicos, marginalizando a possibilidade de variação, do contágio por quaisquer outros. Nesse sentido, a música "clássica" ocidental empurra a lógica e a prática da improvisação para as margens. Não obstante, o que pensar de Bitches' Brew? Se o leitor acompanhou a indicação da nota de rodapé na página anterior, percebeu até agora algumas questões: que a primeira música ainda não acabou; que ao contrário do que discutimos anteriormente, não houve exposição do tema. Todos os músicos estão improvisando ao mesmo tempo, criando um terreno movediço, uma paisagem totalmente desterritorializada: não somente em questão de notas, frases, melodias, ritmos..., mas até mesmo intensidades e timbres dos instrumentistas variam caoticamente. Mais notas de pesquisa: enquanto escrevia o último parágrafo, um aluno - músico que organiza no momento uma oficina no sistema prisional - me pergunta pelo celular: "...por falar no Miles [...] como é que o cara constrói um tema com apenas dois acordes fundamentais com variação de um semitom: D e D#? É...". A fuga do padrão da música europeia, clássica, erudita, é tamanha que faltam instrumentos teóricos para explicar as composições que se constroem nesse contato com o devir música. 42 Efetivamente, nos esclarece Gilbert, "a música feita por um processo de conexões laterais entre sons, gêneros e músicos, que almeja sempre abrir-se ao espaço cósmico, deve ser arquetipicamente moderna e rizomática nos termos Deleuzianos" (GILBERT, 2006, p. 124). A total desterritorialização produzida por essa forma não hierárquica de se fazer música, nos leva a descaracterizar qualquer ideia de autoria individual. Seria uma autoria coletiva, daquela coletividade que se produz por entre os músicos? Na impura espontaneidade da composição/performance em tempo real, há necessariamente um momento de devir-música no qual os limites entre executante e executado, entre audiência e composições, entre músico e instrumento, entre músicos e eles mesmos estão todos borrados: esse é o momento de abertura ao 'cósmico' que é também uma experiência da sociabilidade como tal. (GILBERT, 2006, p. 124) Nesse sentido, promulga-se uma experiência, no ato de fazer música, que acaba por exacerbar uma dessubjetivação dos integrantes. Como se a arte, no quase sagrado momento da produção da obra, nos arrancasse de nós. Relembra-nos de uma sensação recorrente da própria dissolubilidade de tudo que costumamos chamar, na sociedade ocidental moderna, de “indivíduo”. Uma produção que tem mais a ver com a abertura da passagem de algo “por nós”, do que de algo que brota “em nós”. Quase como se não fosse nunca um alguém que escreve. Marguerite Duras foi muito feliz ao descrever tal questão no poema abaixo: Escrever. Não posso. Ninguém pode. É preciso dizer: não se pode. E se escreve. (DURAS, 1994, p.47) 1.3 Produção de subjetividade, música, ritornelo... qual é a conexão? “Porque esta tese está sendo escrita na Psicologia?” Foi-me indagado em certo momento da qualificação. Ofereci naquele momento duas respostas. "Porque não?" foi uma delas. A segunda exige alguma explicação. A formação em Psicologia se coloca em um território transdisciplinar por excelência: da Sociologia à Filosofia, da Psicanálise à Neurologia, da Estatística à Economia. Assim como nos textos dos autores franceses, é um domínio de saber atravessado muitas vezes por muitos outros domínios, criando cruzamentos e mutações 43 variadas. "É preciso construir seus intercessores"; é preciso construir um hibridismo, tal qual vemos em Mil Platôs e O Anti-Édipo. Com base nesses atravessamentos da Psicologia, ressalto uma intuição aventada durante as orientações da pesquisa: a Psicologia parece inferir nos textos escritos por Deleuze e Guattari um modelo de produção de subjetividade, e talvez seja essa a questão que atrai muitos estudantes dessa área aos textos destes autores, como me atraiu em 2007. Suely Rolnik, por exemplo, aborda tal viés em seus textos: É preciso falar em processos de individuação ou de subjetivação. Tais processos são inseparáveis das linhas de virtualidade traçadas no caos, linhas que eles atualizam, correndo sempre o risco de submergir. Complexa operação de agenciamento de intensidades, que não esgota essas intensidades e seu potencial de gerar outros devires. (ROLNIK, 1996, p. 5)17 Ressalvas começam a aparecer: "individuação ou subjetivação" subentende que são coisas próximas, mas diferentes. Essa diferença é que pretendo abordar aqui, e para tal, dois trechos dos autores parecem ser bastante propícios: Por conseguinte, escrever a dois não constitui qualquer problema especial, ao contrário. Haveria um problema se fôssemos exatamente pessoas, cada um tendo sua vida própria, suas opiniões próprias, e se propondo a colaborar e discutir um com o outro. Quando eu dizia que Félix e eu éramos mais como riachos, queria dizer que a individuação não é necessariamente pessoal. Não temos certeza alguma de que somos pessoas: uma corrente de ar, um vento, um dia, uma hora do dia, um riacho, um lugar, uma batalha, uma doença têm uma individualidade não pessoal. Eles têm nomes próprios. Nós os chamamos de "hecceidades". (DELEUZE, 1992, p. 180-181) Mais que subjetivações, os autores estavam, ao longo de toda a elaboração dos escritos - trechos como esse abundam nos livros supracitados -, transpassados pela questão das individuações. É em um dos textos de Deleuze sobre música, já citado anteriormente, que a conexão dessa minha digressão se faz presente com a pesquisa em curso; Há um certo tipo de individuação que não se resume a um sujeito (Eu[moi]), nem à combinação de uma forma com uma matéria. Uma paisagem, um acontecimento, uma hora do dia, uma vida ou um fragmento de vida... procedem de outro jeito. Tenho um sentimento de que o problema da individuação na música - que certamente é muito, mas muito complicado - está mais para o tipo daquelas segundas individuações paradoxais. Como se chama a individuação de uma frase, de uma pequena frase, em música? Eu gostaria de partir do nível mais rudimentar, em aparência mais fácil. Ocorre de uma música nos lembrar uma paisagem. Assim é com o célebre caso de Swann, em Proust: o bosque de Boulogne e a pequena frase de Vinteuil. Ocorre também de sons evocarem cores, seja por associação, seja por 17Texto disponível em: http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/novascaos.pdf 44 fenômenos ditos de sinestesia. Ocorre, enfim, de motivos, nas óperas, estarem ligados a personagens, por exemplo: um motivo wagneriano é obrigado a designar um personagem. Tal modo de escuta não é nulo ou desinteressante, e talvez num certo nível de relaxamento seja inclusive preciso passar por isso, mas cada um sabe que não é suficiente. Em um nível mais tensionado, não é o som que remete a uma paisagem, mas é a própria música que envolve uma paisagem propriamente sonora que lhe é interior (como em Liszt). (DELEUZE, 2016, p. 165) É necessária, portanto, para permitir a conexão entre os dois registros que estamos tentando colocar em diálogo, a explanação do que viria a ser subjetividade para essa perspectiva filosófica. Em certo momento da Carta a um crítico severo, Deleuze escreve “visto que cada um, como todo mundo, já é muitos, isso dá muita gente” (DELEUZE, 1992, p. 16). Trata-se de uma perspectiva que evidencia um conceito de subjetividade bastante singular, uma vez engendrado numa multiplicidade de agenciamentos heterogêneos – e, portanto, avesso ao senso comum de que uma subjetividade há de coincidir com um indivíduo (indivisível). Mais que isso, pautado nessa perspectiva, Soares e Miranda concluirão que: o projeto cartesiano de fazer coincidir pensamento e ser, sujeito e subjetividade, já não faz mais sentido, pois a subjetividade não é mais do que uma coleção de dados sem ordem, sem estrutura e sem lei, e não coincide com o sujeito porque este é apenas um efeito das articulações às quais as ideias estão submetidas. (SOARES; MIRANDA, 2009, p.413) O que os autores parecem querer evidenciar, no artigo em questão, é o fato de que a subjetividade carece de essência, de internalidade, de transcendência ao plano material – características que parecem surgir da famosa intuição cartesiana: Penso logo existo.18 A perspectiva dos autores que nos propusemos discutir é uma perspectiva empirista, uma vez que é produzida nas interações com o meio, num registro imanente, pautada em acontecimentos: ...é na repetição da experiência, ou seja, no hábito de adquirir hábitos, que forjamos isso que chamamos de espírito, alma, consciência, subjetividade. 18 Podemos colocar nos seguintes termos: para esses autores, não é incorreto corromper a afirmação de Descartes ao dizer Pensa-se, logo existe, haja vista que a própria necessidade de um sujeito na frase (oculto no caso: Eu penso) nos é imposto pela língua – Nietzsche antevê essa questão diversas vezes em sua obra. Mesmo os físicos nos colocam a questão assustadoramente bela de que o mundo, suas partículas e leis constituem o ser humano que pode observar o mundo, suas partículas e leis: o mundo se observando, o mundo pensando – através de nós. 45 O sujeito é, pois, tão somente duração, persistência no tempo de um conjunto de afirmações e crenças decorrentes dos hábitos que qualificam o indivíduo e lhe conferem não “a identidade”, mas “uma identidade”, por definição provisória, que será passível de mudança tão logo mudem as experiências que conformam seus hábitos. [...] Já se pode entrever uma subjetividade material (ainda que incorpórea porque produzida por sentidos), imanente (porque se forja sempre neste mundo e com as coisas que dele fazem parte), marcadamente relacional (ao contrário do solipsismo racional do sujeito epistêmico cartesiano), associacionista e interativa, porque é apenas na interação entre matéria- sensível e matéria vibrátil (sons e tímpano, cores e olho, calor e pele, em suma, relação entre termos) que se forja o “espírito”. (SOARES; MIRANDA, 2009,p. 413-414) A subjetividade seria, assim, marcada pela territorialização de certos acontecimentos ou paisagens, um modo de sentir, pensar, agir em processo permanente de transformação: se desterritorializa a todo momento, pois não para de ser atravessada por acontecimentos. Mesmo esses acontecimentos, ou paisagens, se dão pelo agenciamento de componentes imanentes ao mundo: As “segundas individuações paradoxais”, a que Deleuze se referia em tornar audível forças não audíveis por si mesmas (2016). Individuam-se de forma singular, ou nas palavras do filósofo, uma individuação que não se resume a um sujeito. Essas questões, assim como a afirmação de que um sujeito se dá pela duração de crenças e hábitos, serão abordadas respectivamente nos capítulos 3 e 4 desta tese: são questões complexas que exigem mais espaço e tempo para serem pensadas. Repito a questão que dá título a esse subtópico: qual é a conexão entre o ritornelo e a produção de subjetividade? O ritornelo é o movimento triplo e concomitante aos processos de subjetivação – ou ainda mais amplamente, não somente de construção de subjetividades, mas de individuação das “coisas”: quando falamos desse processo estamos falando também da produção de “uma pequena frase musical”, ou de um solo de Jazz, como no exemplo do início. As perguntas as quais chegamos nesse momento: o que, no encontro com a música, é capaz de nos colocar em processo de desterritorialização/territorialização? O que pode provocar esses momentos intempestivos (ROLNIK, 1995)? O que na música nos coloca em contato com o plano de imanência? Talvez nos caiba buscar a esquizofrenia da música: não como patologia, mas como lógica de produção que subentende uma abertura radical ao fora. 46 O Pensamento do Fora é aquele que se expõe às forças do Fora, mas que mantém com ele uma relação de vaivém, de troca, de trânsito, de aventura. É o pensamento que não burocratiza o Acaso com cálculos de probabilidade, que faz da Ruína uma linha de fuga micropolítica, que transforma a Força em intensidade e que não recorta o Desconhecido com o bisturi da racionalidade explicativa. O Pensamento do Fora arrisca-se num jogo com a Desrazão do qual ele nunca sai ileso, na medida em que não saem ilesos o Ser, a Identidade, o Sujeito, a Memória, a História e nem mesmo a Obra. (PELBART, 1993, p. 96) Tal abertura radical ao fora nos coloca diante do processo de desterritorialização, busca de um centro e construção de um novo território. Afinal, pensar é perder-se. Naquilo que é chamado, grosso modo, loucura, há duas coisas: há um furo, um rasgo, como uma luz repentina, um muro que é atravessado; e há, em seguida, uma dimensão muito diferente, que poderíamos chamar de desabamento. Um furo e um desabamento. Lembro-me de uma carta de Van Gogh. “devemos – escrevia ele – minar o muro.” Salvo que romper o muro é dificílimo e se o fazemos de forma muito bruta nos machucamos, caímos desabamos. Van Gogh acrescenta ainda que “devemos atravessá-lo com uma lima, lentamente e com paciência”. Temos então o furo e depois esse desabamento possível. (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 333-334) Tal processo se dá pela construção de relações com o caos do mundo e passa necessariamente pela produção (humana ou não) de obras, signos, marcas, etc. Não há como frisar o suficiente essa questão no pensamento dos autores, mas podemos vê-la em algumas passagens do texto Acerca do Ritornelo, por exemplo: O território não é primeiro em relação à marca qualitativa, é a marca qualitativa que faz o território. As funções num território não são primeiras, elas supõe antes uma expressividade que faz território [...] A territorialização é o ato do ritmo tornado expressivo, ou dos componentes de meios tornados qualitativos.[...] podemos chamar de arte esse devir, essa emergência? O território seria o efeito da arte. O artista, primeiro homem que erige um marco ou faz uma marca... (DELEUZE; GUATTARI , 2011c, p.122- 123) A questão da construção de territórios subjetivos (territorialização), sua desconstrução (desterritorialização), o lançamento rumo ao caos -“forças do caos, forças terrestres, forças cósmicas. Tudo isso se afronta no ritornelo” (idem, p. 118) - evidencia uma geografia da subjetividade, pois a coloca no mundo, em determinado lugar do mundo, e não em uma interioridade. 47 Temos, assim, uma forma de ver a arte (e a música) como um avançar rumo ao fora e o problema é como trazer algo do fora. “O pensamento, ele é necessariamente, uma experiência que se confronta com o caos.” (ULPIANO, 2018, p.290).Ou também - como me foi lembrado recentemente por dois alunos em um relatório de estágio - nas palavras de Deleuze: Não há literatura sem fabulação, mas como Bergson soube vê-lo, a função fabuladora não consiste em imaginar nem em projetar um eu. Ela atinge sobretudo essas visões, eleva-se até esses devires ou potências. Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são passagem de vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado. A doença não é processo, mas parada