UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” PEDRO OLIVERO MAZIERO ANÁLISE DE CONTEÚDO SOBRE O CONCEITO DE "CRIME DE RESPONSABILIDADE" EM EDITORIAIS DO ESTADÃO NOS GOVERNOS DILMA E BOLSONARO BAURU 2022 PEDRO OLIVERO MAZIERO ANÁLISE DE CONTEÚDO SOBRE O CONCEITO DE "CRIME DE RESPONSABILIDADE" EM EDITORIAIS DO ESTADÃO NOS GOVERNOS DILMA E BOLSONARO Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de bacharel em Comunicação Social - Jornalismo, sob orientação do Prof.º Maximiliano Martin Vicente. BAURU 2022 M476a Maziero, Pedro Olivero Análise de conteúdo sobre o conceito de "crime de responsabilidade" em editoriais do Estadão nos governos Dilma e Bolsonaro / Pedro Olivero Maziero. -- Bauru, 2022 144 p. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado - Comunicação Social: Jornalismo) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru Orientador: Maximiliano Martin Vicente 1. Jornalismo. 2. Impeachments. 3. Análise de conteúdo (Comunicação). I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. PEDRO OLIVERO MAZIERO ANÁLISE DE CONTEÚDO SOBRE O CONCEITO DE "CRIME DE RESPONSABILIDADE" EM EDITORIAIS DO ESTADÃO NOS GOVERNOS DILMA E BOLSONARO Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de bacharel em Comunicação Social - Jornalismo, sob orientação do Prof.º Maximiliano Martin Vicente. Bauru, 09 de março de 2022. Banca examinadora: _________________________________ Prof. Dr. Maximiliano Martin Vicente Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” _________________________________ Prof. Dr. Carlo José Napolitano Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” _________________________________ Ma. Vanessa Beltrame Faculdade de Comunicação Universidade de Brasília AGRADECIMENTOS Li alguém dizer que o resultado de uma graduação nunca é o trabalho de conclusão de curso, em si; o resultado é, na verdade, a pessoa em que aquele aluno ou aluna pôde se tornar a partir das experiências e aprendizados vivenciados durante o curso. Gosto dessa perspectiva, e espero que o Pedro que deixa a Unesp possa fazer jus, ainda que minimamente, a todas as oportunidades que lhe foram concedidas; que saia mais consciente do país em que vive, dos deveres que lhe cabem e dos direitos de que não deve abrir mão. Foram muitas as pessoas que tiveram contribuições essenciais nesse processo. Por isso, considerei me limitar a fazer agradecimentos mais generalistas, buscando evitar que, injustamente, deixasse alguém de fora. Mas creio que injustiça maior seria deixar de citar nominalmente a quem tanto devo. Agradeço ao grupo (Beatriz, Bianca, Camila, Larissa, Maiara, Mariana, Wesley — e respectivos cônjuges) por terem tornado minha temporada em Bauru tão especial e terem proporcionado um ambiente em que me senti confortável para, afinal, ser eu mesmo. Sinto falta de todos vocês e espero que nossas vidas voltem a se cruzar no futuro. Já incorrendo em uma repetição, não posso deixar de dedicar um parágrafo específico à Beatriz, que, como costumo dizer, é “coautora” deste projeto — ainda que apenas figurativamente. Sem o apoio dela, não teria sido possível escrevê-lo. Obrigado por todas as contribuições feitas a cada um dos setecentos e vinte e seis temas que considerei para este TCC; obrigado por acreditar em mim mais do que eu mesmo; e obrigado por estar presente, sempre. Agradeço também meus colegas de sala pelas relações fraternas que mantivemos ao longo dos semestres e pela inspiração profissional que tantos deles, com seus gigantescos talentos, suscitam em mim; agradeço a todos os envolvidos no jornal Fatos da Rua e no cursinho Ferradura, projetos de extensão que foram o ponto alto de minha experiência universitária e com os quais me orgulho muito de ter contribuído. Adicionalmente, agradeço a todos os funcionários da Unesp de Bauru, desde os terceirizados, passando pelos servidores e chegando, enfim, aos professores, que, mesmo trabalhando sob condições adversas, mantêm-se leais a seus valores e contribuem para a formação de profissionais idôneos, comprometidos e apaixonados pelo Jornalismo. Foi, também, graças ao apoio do corpo técnico da FAAC e do Conselho de Curso de Jornalismo que pude, enfim, prosseguir para a conclusão do curso, depois de um período de descrédito em minha própria capacidade. Agradeço especialmente a Rodrigo Botton e à professora Angela Grossi pela compreensão e disposição em me ajudar nesse processo. Também dedico um agradecimento especial aos professores que compõem a banca: Prof. Dr. Carlo José Napolitano, de quem tive o prazer de ser aluno ainda no início da graduação, e a Ma. Vanessa Beltrame, uma das maiores incentivadoras deste trabalho e uma de minhas maiores referências profissionais e pessoais; agradeço a ambos pela disponibilidade, pela leitura atenta e pelas considerações que, tenho certeza, agregarão muito ao trabalho. Agradeço, ainda, a meu orientador, Prof. Dr. Maximiliano Martin Vicente, pela paciência e compreensão inesgotáveis, por todo o aprendizado proporcionado — seja durante o andamento desta pesquisa, seja nas aulas (das quais tanto sinto falta) —, e pelo exemplo de professor que é, comprometido com a educação brasileira e com cada um de seus alunos. Por fim, agradeço a minha família, que apoiou irrestritamente minhas decisões educacionais e profissionais, além de prover todas as condições para que eu pudesse me dedicar a encaminhá- las, movendo esforços que mal posso dimensionar, mas que espero poder retribuir. “Nestes últimos vinte anos Nada de novo há No rugir das tempestades Não estamos alegres, É certo, Mas também por que razão Haveríamos de ficar tristes? O mar da história É agitado. As ameaças E as guerras Havemos de atravessá-las. Rompê-las ao meio, Cortando-as Como uma quilha corta As ondas.” (Vladimir Maiakovski) RESUMO O presente trabalho busca comparar a abordagem do conceito de “crime de responsabilidade” em editoriais do jornal O Estado de S. Paulo nos governos de Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro. Para tanto, analisa o conteúdo de 34 editoriais, referentes às infrações fiscais cometidas durante o governo Dilma e ao apoio de Bolsonaro a manifestações antidemocráticas ocorridas no primeiro semestre de 2020. A fim de embasar a análise, o trabalho faz um panorama do papel do jornalismo na sociedade contemporânea, um resgate da trajetória do crime de responsabilidade e do processo de impeachment no arcabouço jurídico brasileiro e contextualizações político-econômicas referentes aos governos Executivos federais discutidos. O conceito de crime de responsabilidade é caracterizado por contemplar, concomitantemente, uma dimensão política e outra jurídica, e, a partir desta análise, foi possível verificar diferenças na ênfase dada a cada uma dessas dimensões a depender do contexto em que se deram as acusações. Além disso, verificou-se diferenças no tratamento dispensado às vozes dissonantes no debate público sobre o cometimento, ou não, de crime de responsabilidade. Por fim, constatou-se um empobrecimento da discussão em torno dos eventos, causado, em parte, pela baixa qualidade argumentativa trazida à esfera pública pela imprensa. Palavras-chave: jornalismo político; impeachment; crime de responsabilidade; Dilma Rousseff; Jair Bolsonaro. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8 2 O PAPEL DO JORNALISMO NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS .... 10 3 O CRIME DE RESPONSABILIDADE ................................................................... 22 3.1 A caracterização na Constituição de 1988 ................................................................ 22 3.2 A trajetória histórica e as controvérsias em torno do instrumento ....................... 25 4 CONTEXTO POLÍTICO-ECONÔMICO ............................................................... 38 4.1 Os governos Dilma Rousseff ...................................................................................... 38 4.1.1 Nova Matriz Econômica e recessão: a política econômica nos governos Dilma ......... 38 4.1.2 A discussão sobre a condução da política fiscal ........................................................... 48 4.1.2.1 As pedaladas fiscais ...................................................................................................... 48 4.1.2.2 Os decretos suplementares............................................................................................ 51 4.2 O início do governo Jair Bolsonaro .......................................................................... 54 4.2.1 As eleições de 2018 e a onda de extrema-direita.......................................................... 54 4.2.2 Os atritos entre os poderes e as manifestações antidemocráticas ................................. 60 5 ANÁLISE SOBRE O CONCEITO DE “CRIME DE RESPONSABILIDADE” EM EDITORIAIS DO ESTADÃO ....................................................................................... 67 5.1 A Análise de Conteúdo como método ....................................................................... 67 5.2 Análise de editoriais sobre o impeachment de Dilma .............................................. 74 5.3 Análise de editoriais sobre a possibilidade de impeachment de Bolsonaro .......... 79 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 86 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 89 APÊNDICE A – FICHAMENTOS DOS EDITORIAIS SOBRE DILMA ROUSSEFF ......... 95 APÊNDICE B – FICHAMENTOS DOS EDITORIAIS SOBRE JAIR BOLSONARO ......... 95 ANEXO A – EDITORIAL “O VALE-TUDO DE DILMA” ............................................... 1295 ANEXO B – EDITORIAL “A DEFESA TRAPALHONA DE DILMA” ............................. 131 ANEXO C – EDITORIAL “POPULISMO DESMORALIZADO” ...................................... 133 ANEXO D – EDITORIAL “FICÇÃO E PIEGUICE” ........................................................... 135 ANEXO E – EDITORIAL “O PODER QUE BOLSONARO QUER” ................................. 137 ANEXO F – EDITORIAL “BOLSONARO E A DEMOCRACIA” ..................................... 139 ANEXO G – EDITORIAL “A RUA NÃO TEM DONO” .................................................... 141 ANEXO H – EDITORIAL “OS PEDIDOS DE IMPEACHMENT” ..................................... 143 8 1 INTRODUÇÃO Segundo levantamento da Agência Pública (OS PEDIDOS DE IMPEACHMENT…, 2021), até o fim de novembro de 2021, 141 pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro haviam sido enviados ao presidente da Câmara dos Deputados, sendo que a maioria deles (134) aguardava apreciação. Dentre as denúncias, figuram infrações relativas à condução da crise sanitária decorrente da pandemia de covid-19, quebras de decoro, uma suposta tentativa de interferência na Polícia Federal, improbidade administrativa, questões relacionadas à Ditadura Militar, direitos humanos, relações internacionais, abuso de poder, povos indígenas, meio ambiente, corrupção etc. Ainda assim, nenhum dos referidos pedidos prosperou e poucos ganharam destaque na mídia brasileira. De forma diversa, em 2015 tinha início o processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, baseado em denúncias que diziam respeito, sobretudo, a práticas fiscais do governo. O processo logo ganhou protagonismo na cobertura jornalística de todo o país e manteve-se como um assunto de destaque ao longo de todos os meses em que transcorreu. O presente trabalho busca analisar o enquadramento dos termos “crime de responsabilidade” e “impeachment” em editoriais da imprensa brasileira sobre algumas das infrações alegadamente cometidas por ambos os presidentes, que poderiam conduzi-los — e conduziram, no caso de Dilma — a um afastamento do cargo. Reconhecendo, no entanto, que uma análise do material jornalístico referente ao tema seria insuficiente para a compreensão de eventuais diferenças no tratamento desses acontecimentos políticos, optou-se por partir de uma introdução que busca, justamente, dimensionar o papel do jornalismo nas sociedades contemporâneas, bem como seus limites. Em seguida, faz-se uma caracterização do “crime de responsabilidade” na Constituição de 1988, bem como um resgate histórico sobre o instrumento no Brasil e suas origens no mundo, buscando uma melhor compreensão das questões jurídicas envolvidas no impeachment e as controvérsias em torno da ferramenta, a fim de depreender pontos de atenção que possam ser elucidativos no decorrer da análise dos editoriais. 9 Ainda antes de proceder-se à análise, de fato, há uma contextualização político-econômica dos governos Dilma Rousseff e dos anos iniciais do governo Bolsonaro. No caso de Dilma, busca- se compreender o papel dos governos petistas na recente história política brasileira e privilegia- se o contexto em que se deu sua reeleição, bem como a política econômica conduzida pelo governo, já que os crimes dos quais Dilma foi acusada guardam estreita relação com a área. Já no caso de Bolsonaro, privilegia-se o contexto de sua eleição, o traço antipolítico de sua campanha e a forma como tal traço se relaciona às tendências antidemocráticas flagrantes em sua prática de governo. Para além do contexto, também se dedica parte considerável do trabalho ao estudo dos alegados crimes: as chamadas “pedaladas fiscais” e a emissão de decretos suplementares sem autorização prévia do Congresso, no caso de Dilma, e a participação e o apoio a atos de cunho antidemocrático, no caso de Bolsonaro. Percorrido esse caminho, busca-se verificar de quais formas os diferentes processos políticos apareceram no corpus analisado, considerados também os aspectos políticos, econômicos e sociais que, certamente, influenciam em grande medida a cobertura midiática e a opinião pública em torno dos temas, para além das questões meramente comunicacionais. 10 2 O PAPEL DO JORNALISMO NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS Uma primeira evidência do papel desempenhado pelo jornalismo nas sociedades contemporâneas pode ser extraída do senso comum, antes mesmo de um aprofundamento em teorizações sobre o tema, se tomada a expressão popularmente utilizada em referência à mídia: o “quarto poder”. O termo foi cunhado no século XIX por McCaulay, um deputado do Parlamento inglês, em um contexto de influência da Revolução Francesa sobre o território europeu. Traquina (2005a) explica que a referência dizia respeito a um quarto poder complementar aos três estados que caracterizavam a sociedade francesa de então: clero, nobreza e povo/burguesia. Posteriormente, em contextos democráticos, a expressão “quarto poder” seguiu sendo utilizada, equiparando a mídia aos três outros poderes constitutivos das democracias liberais: Executivo, Legislativo e Judiciário, divisão que tem sua origem teórica na obra “Espírito das Leis", do filósofo francês Montesquieu. Montesquieu defende a divisão dos poderes em um contexto absolutista, em que o rei concentrava todos os poderes políticos. Da divisão, espera-se a descentralização das decisões e a inibição de eventuais arroubos autoritários. Parte fundamental da teoria é o sistema de freios e contrapesos, em que os poderes se fiscalizam mutuamente, agindo de forma a coibir possíveis abusos cometidos por outra instância. Para Fonseca (2011), equiparar a atuação da mídia à dos outros poderes não só é frequente no senso comum, como também é uma prática recorrente na própria mídia, colocada como peça fundamental na garantia dos valores democráticos. Essa equiparação, porém, incorre em algumas contradições, das quais Fonseca (2011) destaca duas: enquanto os três poderes são estatais, e, portanto, estão necessariamente a serviço do interesse público, a mídia — embora promova-se como defensora desse mesmo interesse — é majoritariamente constituída por empresas privadas, estando submetida a interesses igualmente privados. Ao debruçar-se sobre o surgimento da imprensa, pode-se traçar reflexões mais embasadas sobre a origem dessas aparentes contradições. Vieira (1998) explica que, com a complexificação das sociedades, o núcleo comunitário perdeu força e a comunicação direta entre os membros de um 11 mesmo grupo acabou dificultada, diante do aumento crescente da população e sua dispersão por espaços territoriais mais amplos. Nesse cenário, os detentores do poder precisavam encontrar soluções para se comunicarem com o maior número de pessoas possível e, assim, fortalecerem-se. Um exemplo citado por Vieira (1998) remete à Roma Antiga, em 69 a.C. e refere-se a um primeiro relato de massificação da informação. Por determinação do imperador Júlio César, a população romana era informada, diariamente, sobre atos do Senado. É interessante observar, neste caso, que a iniciativa para a democratização das informações partiu não como resposta a um anseio da sociedade, mas por determinação de um governante. Não à toa, Rizzini (1997 apud VIEIRA, 1998, p. 36) defende que essa medida específica visava “desmoralizar o Senado, ao expor dissídios e conflitos até então cobertos por inviolável sigilo”. Ou seja, cumpria um propósito evidente de fortalecimento do poder do imperador. Um longo caminho foi percorrido desde iniciativas como essa e a consolidação, de fato, de uma imprensa. O Aviso de Augsberg, geralmente considerado como tendo sido o primeiro jornal publicado, só foi criado em 1609, na Alemanha (TRAQUINA, 2005b). Briggs e Burke (2006) apontam que o ano de 1450 é a data aproximada para a invenção da prensa gráfica de Johann Gutenberg, ferramenta responsável por viabilizar o posterior surgimento da imprensa e dos jornais. Ainda que na China e no Japão a impressão já fosse praticada há muito tempo, o método utilizado era outro, baseado em blocos de madeira entalhados, mais apropriados àquelas línguas constituídas por milhares de ideogramas, enquanto a prensa de Gutenberg utilizava tipos móveis representando o muito mais conciso alfabeto alemão. A partir de sua invenção, o processo de impressão passou por uma rápida expansão, possibilitado não só pelo desenvolvimento tecnológico, mas por condições sociais e culturais favoráveis. Por volta de 1500, já havia máquinas de impressão em mais de 250 lugares da Europa, com uma estimativa de cerca de 13 milhões de livros circulando em um continente que tinha cem milhões de habitantes, à época (BRIGGS; BURKE, 2006). 12 Entre as consequências da invenção da prensa, Briggs e Burke (2006) destacam as conclusões da historiadora norte-americana Elizabeth Eisenstein, que atribui à impressão gráfica a padronização e preservação do conhecimento e a possibilidade de criticar a autoridade, uma vez que a ferramenta facilitou a divulgação de pontos de vista diferentes sobre um mesmo assunto, inclusive através dos jornais. Um exemplo emblemático da importância da prensa foi sua influência na Reforma Protestante. Martinho Lutero, um frade alemão que se tornou herege, era crítico a algumas das práticas da Igreja Católica e era favorável a que leigos pudessem se envolver, de forma mais direta, nas atividades religiosas, inclusive lendo a Bíblia através de traduções do latim para as línguas vernáculas. Apesar de considerarem que há certo exagero nesta afirmação, Briggs e Burke (2006) apontam que a invenção da impressão gráfica teria contribuído para romper com o monopólio de informação da Igreja, sendo crucial para o sucesso da Reforma. Sobre a imprensa, especificamente, Vieira (1998) explica que, a princípio, os jornais que surgiram não eram produtos comercializáveis — eram um instrumento de influência e transformação das relações de poder então vigentes, espaços para a defesa de interesses econômicos e políticos da burguesia que ascendia, a partir das revoluções por ela protagonizadas — notadamente a Revolução Inglesa, ocorrida entre 1640 e 1688 e que foi responsável por consolidar a monarquia parlamentarista no país. Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, notabilizados posteriormente, na Revolução Francesa, e incorporados à constituição norte-americana, já estavam presentes na Revolução Inglesa, e é nesse contexto que emerge a noção de cidadania e participação ativa da população nas atribuições do Estado. Mudanças estruturais são essenciais para atender não só a esses anseios, mas também (e principalmente) aos anseios econômicos da burguesia, com a defesa da livre produção e comércio. A população, no geral, se orientava a partir das intenções da burguesia, através das notícias dos jornais (VIEIRA, 1998). No Brasil, se tomada como referência a data de fundação do já mencionado primeiro jornal alemão (1609), foram necessários quase dois séculos para que o mesmo ocorresse aqui. Na colônia, a administração europeia proibia as letras impressas, temendo a influência que pudessem ter sobre a população. Em 1808, no entanto, com a vinda da família real para o Rio 13 de Janeiro, o Brasil pôde progredir em diversos aspectos, sobretudo culturais (LUSTOSA, 2003). Nesse mesmo ano, em 1º de junho, o primeiro jornal brasileiro foi publicado em Londres, por Hipólito da Costa, chamado Correio Braziliense. A publicação era bastante diferente dos jornais a que estamos habituados, prestando-se, naquele contexto, também a um papel educativo, como explica Lustosa (2003, p. 15): Assim, não é de se estranhar que o jornal tivesse o tamanho e a forma de um livro, nem que fosse composto de longos e densos artigos onde a informação era veiculada de forma circunstanciada e analítica em textos que, às vezes, se prolongavam por vários números seguidos. Era assim o Correio Braziliense, cada número tinha cerca de 100 páginas e era dividido em seções: política, comércio e artes, literatura e ciência, miscelânea e, eventualmente, correspondência. Na virada do século XIX ao XX, a imprensa tornou-se responsável por fortalecer os sentimentos de nacionalismo e republicanismo, que culminaram na Proclamação da República (VIEIRA, 1998). Posteriormente, com a complexificação do capitalismo, os jornais foram se transformando em empresas de escala industrial, mais próximas ao que conhecemos hoje — e a partir dos anos 2000, com o advento da internet, muito mais mudanças somaram-se a essas, e em intervalos de tempo cada vez mais curtos Nesse sentido, Ribeiro (2003) retoma as principais fases da evolução da imprensa brasileira. Até a segunda metade do século XX, havia grande aproximação entre o jornalismo e a literatura, com valorização de gêneros mais livres e opinativos, como a crônica e o artigo polêmico. Havia, também, grande aproximação do jornalismo com a política, sendo que até a década de 1940, “(...) os jornais eram acima de tudo porta-vozes do Estado ou de grupos políticos que os financiavam em parte ou na totalidade”, ainda marcados pela presença da opinião e de uma linguagem agressiva decorrente de debates e polêmicas políticas (RIBEIRO, 2003, p. 148). Na década de 1950, ocorreu um processo de modernização dos jornais — principalmente os cariocas, já que, à época, o Rio de Janeiro ainda era a capital do país. Há uma substituição do jornalismo político-literário pelo jornalismo empresarial, pautado pelo privilégio da informação e pela adoção de critérios de objetividade e imparcialidade, sob influência, sobretudo, do jornalismo norte-americano. Houve a adoção de técnicas redacionais com o lide e a pirâmide invertida, novas concepções de design que buscavam embelezar e conferir leveza às páginas, a 14 profissionalização da imprensa com aumentos de salários e a criação de cursos superiores de jornalismo, a adoção de manuais de redação, reorganizações administrativas nas empresas de comunicação etc. (RIBEIRO, 2003). Essa influência norte-americana também é apontada por Traquina (2005a), que situa no surgimento da chamada penny press nos EUA, nos anos 1830-1840, a mudança de paradigma em que os jornais passam a ser encarados como negócios rentáveis, fornecendo informações e não mais propaganda política. O nome, penny press, fazia referência ao baixo preço praticado na venda dos jornais, o que teve como consequência uma alteração no perfil da audiência, que passou a ser mais difuso e politicamente heterogêneo, o que também ia na contramão da imprensa de antes, que podia evidenciar suas afinidades políticas. No contexto brasileiro, Ribeiro (2003) não atribui essa modernização a um processo espontâneo e gradual, mas sim a um esforço consciente de reformulação, encabeçado por determinadas empresas e profissionais da imprensa. Em um contexto mais amplo, o processo também foi possibilitado pela associação do conteúdo jornalístico à publicidade, que contribuía para a viabilidade financeira dos periódicos, além de mudanças mais estruturais, com a melhoria dos meios de transporte e comunicação e a elevação do nível cultural da população. No entanto, ao comparar a modernização do jornalismo brasileiro com as experiências norte- americana e europeia, Ribeiro (2003) aponta limites e contradições no processo. Em sua visão, apesar de a imprensa nacional importar técnicas mais modernas, os periódicos seguiam, em grau variado, a serviço da política. A autora defende que o aspecto político nunca saiu, completamente, de cena e atribui essa característica ao fato de que “apesar de se terem afirmado imperativos de gestão e de administração, estes ainda não eram suficientes para garantir a autonomia das empresas” (RIBEIRO, 2003, p. 156), sendo o apoio a grupos políticos no poder ou na oposição essencial para garantir a sobrevivência de algumas das empresas, através de incentivos, anúncios, créditos ou empréstimos. Tendo coberto seu surgimento e modernização, podemos nos perguntar sobre o papel desempenhado pela mídia, hoje. Fonseca (2011) elenca alguns aspectos: influência na definição de agendas públicas e governamentais; intermediação de relações sociais entre grupos distintos; influência na opinião de inúmeras pessoas sobre algum tema específico; participação em 15 disputas políticas, seja por meio da defesa ou veto de uma causa ou no apoio a governos e partidos; e a atuação como aparelhos ideológicos capazes de organizar interesses. Em última análise, pode-se dizer que um dos principais papéis desempenhados pela mídia é na construção da opinião pública — conceito que se relaciona, também, ao de espaço público, proposto por Habermas. Habermas considera que, com o desenvolvimento do capitalismo mercantil na Europa, no século XVII, surge um espaço que faz uma intermediação entre o Estado e a esfera privada, no qual se daria a discussão livre e racional acerca da atuação da autoridade política. O surgimento desse espaço seria catalisado, em parte, pela mudança na relação da burguesia com o poder, que abre mão de exercê-lo, diretamente, mas reivindica o direito de acompanhar as realizações do Estado, fazendo com que as relações entre Estado e sociedade passassem a ter um caráter público (AVRITZER; COSTA, 2004), com a legitimação das opiniões pela sustentação de argumentos racionais, em vez de fatores externos como poder e riqueza (PERLATTO, 2012). Em uma definição sintética, Perlatto (2012, p. 81) explica que a esfera pública: (...) se configura justamente como a arena por meio da qual a vontade coletiva é processada e por onde se justificam as decisões políticas, transformando-se, por conseguinte, em uma instituição constitutiva do mundo moderno. Ela pode ser percebida como uma “rede” de circulação de conteúdos e de tomadas de posição, guiadas pela “racionalidade comunicativa”, as quais são filtradas e sintetizadas, de sorte a constituírem “opiniões públicas” topicamente definidas. Avritzer e Costa (2004, p. 709) destacam a influência da esfera pública nos contextos democráticos, onde “os procedimentos legais e políticos institucionalizados asseguram que os processos espontâneos de formação de opinião sejam considerados nas instâncias decisórias”, cabendo aos atores da sociedade civil contribuir para a solução de problemas, trazer novas informações e denúncias, impulsionando a formação da vontade política e pressionando parlamentos, judiciários e governos. Ao tratar especificamente da América Latina, Avritzer e Costa (2004, p. 718) consideram que seriam justamente os meios de comunicação de massa a cumprir o papel da mediação social desde o início da constituição das sociedades urbanas, o que implicaria determinadas limitações: 16 Não se espera obviamente que, nesse espaço público assenhoreado pela mídia, argumentos racionais sejam esgrimidos, questões substantivas sejam levadas a debate e posições doutrinárias e ideológicas claras e diferenciadas venham à tona. Diante da lógica própria da mídia, com ênfase na televisão, em cuja linguagem não cabem verdades matizadas nem longos exercícios argumentativos, mas apenas enunciados bombásticos, a política veria se esvaírem seus conteúdos (...). É importante ressaltar, portanto, que a opinião pública não é um fenômeno que surge espontaneamente nas relações sociais. Ao contrário, pressupõe um sujeito (pessoal ou coletivo) que tem como objetivo a disseminação de algo no espaço público, a ser conhecido e compreendido pelo público. Além disso, pressupõe que haja meios que propiciem essa comunicação de forma rápida e abrangente — notadamente, a própria mídia (CRUZ, 2011). Fonseca (2011, p. 53), em uma leitura crítica, conclui que a opinião pública “é uma expressão estratégica e fundamentalmente voltada muito mais a encobrir — interesses e visões de mundo particularistas e privados — do que a revelar, decorrendo, portanto, do conceito de ideologia”. O autor explica que os grandes jornais brasileiros muitas vezes associam sua opinião privada, enquanto empresas de comunicação, à opinião pública — o que desconsidera que, mesmo se houvesse uma correlação entre a opinião do jornal e a de seus leitores, estes correspondem aos estratos médios e superiores da sociedade brasileira, um recorte limitado de um universo populacional mais amplo e complexo. Um exemplo que corrobora a artificialidade desse conceito é a análise promovida por Fonseca (2011), que se debruçou sobre editoriais de jornais impressos brasileiros publicados durante o Congresso Constituinte (1987 e 1988) sobre os temas dos direitos sociais que se pretendia incorporar à constituição em elaboração. Ao analisar detidamente a abordagem sobre o direito à greve, Fonseca (2011, p. 62) conclui que a Folha de S. Paulo, embora o admita como “legítimo”, defende que os constitucionalistas advogam em prol de um “direito irrestrito de greve”. Tal interpretação culmina, ao fim da argumentação percorrida no editorial, no veto do jornal àquele mesmo direito que antes adjetivara como “legítimo”. Indício maior da dissonância entre o jornal, que se propõe representante da opinião pública, e o que poderia ser chamado de opinião pública “de fato” (correspondente à maioria da 17 população), é a pesquisa realizada também pela Folha de S. Paulo em maio de 1985, publicada sem grande destaque e que constata que 71,6% dos moradores de São Paulo eram favoráveis ao direito à greve até mesmo nos serviços considerados essenciais (FONSECA, 2011). Ao admitir os limites no papel que a mídia desempenha enquanto porta-voz da opinião pública, é importante, também, expor os limites de sua influência. Cruz (2011) pontua que já houve, nas discussões sobre a mídia, a defesa de que os meios de comunicação de massa seriam capazes de incutir na população suas ideias, valores e informações sem encontrar grandes críticas ou resistências por parte do público. No entanto, contemporaneamente, uma visão atenuada dos poderes da mídia é a mais consensual, como defende Paul Lazarsfeld em sua “teoria dos efeitos limitados”, que admite os meios de comunicação como detentores de grande poder de determinação na agenda pública e na disseminação massiva das informações, mas pondera que os receptores ativamente filtram e processam o conteúdo a que são expostos (CRUZ, 2011). Entre algumas das razões pelas quais deve-se relativizar o poder de influência da mídia, Cruz (2011) elenca pontos defendidos pelo pesquisador Örjan Olsen: o tema veiculado pode não ser relevante para a audiência em um dado momento; a informação compete com outras, contraditórias, sobre o mesmo tema; a mensagem não condiz com a realidade percebida pelo receptor e a mensagem pode ser formulada inadequadamente (fora de contexto ou excessivamente complexa). Pontuadas suas limitações, outra reflexão que ajuda a entender o potencial da mídia é a teorização sobre a “política informacional”, proposta por Manuel Castells e retomada por Fonseca (2011). Segundo Castells, as sociedades contemporâneas são essencialmente midiáticas, o que quer dizer que as relações sociais e de poder são intermediadas pela mídia. A política, inserida nesse contexto, também tem que se adequar ao jogo midiático, em que o entretenimento e o espetáculo se fundem às notícias. Castells defende ainda que a crise dos sistemas políticos tradicionais (partidos, sindicatos, movimentos sociais) contribui para que a mídia desempenhe um papel ainda mais significativo no processo, já que o que é negligenciado pela mídia fica à margem da discussão política 18 (FONSECA, 2011). Eleições, organização política, processos decisórios, métodos de governo e a relação entre Estado e sociedade sofrem o impacto desse processo: Capturado na arena da mídia, reduzido a lideranças personalizadas, dependente de sofisticados recursos de manipulação tecnológica, induzido a práticas ilícitas para obtenção de fundos de campanha, conduzido pela política do escândalo, o sistema partidário vem perdendo seu apelo e confiabilidade e, para todos os efeitos, é considerado um resquício burocrático destituído da fé pública (CASTELLS, 2000 apud FONSECA, 2011, p. 45). É interessante, também, pensar em aspectos relativos à notícia. Traquina (2005b) considera que a visão que os jornalistas apresentam do que é notícia é, ao mesmo tempo, simplista e minimalista. Isso porque, de acordo com a ideologia jornalística, o profissional faria um mero relato do acontecimento, tal qual um espelho que reflete a realidade, como um simples mediador, em um papel reduzido. O autor considera que, habitualmente, os jornalistas têm resistência em reconhecer a influência e importância de seu trabalho. Parte dessa influência fica evidente quando pensamos na distinção entre os valores-notícia de seleção e valores-notícia de construção, proposta pelo acadêmico italiano Mauro Wolf e retomada por Traquina (2005b). Os valores-notícia de seleção seriam aqueles que embasam a decisão de um acontecimento ser notícia ou não, e podem ser substantivos, que dizem respeito ao acontecimento em si, ou contextuais, que levam em conta o contexto de produção da notícia. Já os valores-notícia de construção “funcionam como linhas-guia para a apresentação do material, sugerindo o que deve ser realçado, o que deve ser omitido, o que deve ser prioritário na construção do acontecimento como notícia” (TRAQUINA, 2005b, p. 78), o que evidencia o papel desempenhado pelo profissional no tratamento do fato. Exemplos desses valores-notícia são a simplificação, a amplificação, a relevância, a personalização, a dramatização e a consonância com narrativas previamente estabelecidas. Fonseca (2011) também evidencia a natureza distinta que a notícia tem enquanto produto. As empresas jornalísticas são, em sua maioria, empresas capitalistas, e a elas cabe formar opinião, ao mesmo tempo em que são influenciadas por seus consumidores e, principalmente, anunciantes; ainda precisam manter uma relação com o Estado que fiscalizam (essa relação concernente a questões tributárias, previdenciárias, isenções, empréstimos, questões 19 regulatórias) e, perpassando todos esses elementos, há o objetivo de auferir lucro. Além disso, a notícia pode, eventualmente, causar danos a pessoas, instituições, grupos sociais e sociedades. Nesse sentido, o fato de serem empresas capitalistas preocupadas com a auferição de lucro novamente evidencia a contradição entre o público e o privado, em que “os direitos dos cidadãos se confundem com os do dono do jornal”, pontua Fonseca (2011, p. 52): (...) a mídia atua nesse ambiente indefinido, constituído pelos interesses e pela opinião privados, mas que se manifestam como públicos. Por mais que intentem atuar numa perspectiva “pública” – o que implica a existência de vários lados e interesses contrastantes –, estarão sempre presos, os meios de comunicação privados, a interesses, compromissos e visões de mundo privados e mercantis e, o que é essencial, tal atuação será desprovida de responsabilizações e contrapartidas efetivos pela sociedade e pelo Estado. Entra em jogo, então, a necessária defesa da liberdade de expressão, já que, em se tratando de informação, o risco de intervenções autoritárias e censura não é desprezível. A defesa de Fonseca (2011) é pela garantia da liberdade, mas de uma liberdade acompanhada pela contraparte da responsabilização, já que vícios na produção noticiosa podem conduzir à supressão de vozes dissonantes no debate, e, portanto, terem consequências antidemocráticas. Se a mídia atua como um quarto poder, nada mais justo do que ser fiscalizada pelos outros três. No entanto, discussões sobre a democratização da mídia são frequentemente malogradas sob a pecha de se tratarem de um intervencionismo abusivo e uma afronta aos valores democráticos. Na mídia brasileira, essa discussão é especialmente importante, já que há uma expressiva concentração da mídia e propriedade cruzada de veículos de comunicação (CRUZ, 2011). O Media Ownership Monitor (MOM), ferramenta que busca organizar uma base de dados pública sobre a posse dos meios de comunicação relevantes de um país, aponta riscos consideráveis em diversos indicadores que avaliam as ameaças à pluralidade na mídia, no Brasil. Em relação à concentração de audiência, o risco é alto para a TV, jornais e internet; a classificação como “risco alto” refere-se a quando, no país, os quatro principais grupos proprietários em um dado segmento de mídia têm uma participação na audiência total daquele segmento superior a 50%. 20 Em relação à concentração de propriedade cruzada, o risco também é alto. O MOM menciona o caso do Grupo Globo, que, de acordo com a metodologia do levantamento, concentrava 43,86% da audiência em 2016, considerando as diferentes plataformas de mídia. Para além do Grupo Globo, considerando os outros três maiores grupos, a soma das audiências de rádio, TV aberta e impresso dos veículos abarcados alcançou 74,7%, o que pode configurar um empecilho à conquista de uma democracia efetiva, com pluralidade e diversidade de vozes em circulação (QUEM CONTROLA…, 2017). Quando pensamos na influência exercida especificamente pelos jornais impressos — já que é um deles o objeto de estudo do presente trabalho —, por mais que os leitores de periódicos no Brasil sejam poucos, relativamente à população, há que se considerar o papel que exercem na formação de "polos de poder”: grupos estratégicos, reprodutores de opinião, constituídos pelas classes médias e altas da sociedade brasileira, que pautam a mídia televisiva, radiofônica e até mesmo a internet (FONSECA, 2011). Os efeitos do uso crescente das redes sociais e a descentralização da produção de informação propiciada pela internet também não podem ser desprezados ao pensar o papel da mídia, e renderiam um trabalho à parte. A expansão do acesso à internet no Brasil permitiu que diversos conteúdos informativos circulassem sob o rótulo de “imprensa alternativa”, o que inclui notícias falsas, as chamadas “fake news”, direcionadas a influenciar o comportamento de consumidores e eleitores (AZEVEDO JUNIOR; BIANCA, 2019). O fato de essas informações serem transmitidas em redes fechadas, em vez de meios de comunicação de massa, também contribui para a disseminação das mensagens, já que a interação se dá entre pessoas próximas, com relações de confiança previamente estabelecidas entre si (DE ALMEIDA, 2019). Atendo-se ao escopo desta análise, no entanto, fica evidente que o papel do jornalismo tradicional nas sociedades contemporâneas mantém-se pertinente. Ainda que não seja responsável por incutir crenças e posicionamentos em leitores apassivados, o jornalismo frequentemente reivindica para si a representação da opinião pública, é fundamental na constituição de polos de influência e tende a adquirir uma posição cada vez mais central com a crescente disseminação de fake news e informações desqualificadas na internet. Dada sua 21 influência e seu potencial de atuação complementar na manutenção das democracias, é mais que necessário que reflitamos sobre suas práticas. 22 3 O CRIME DE RESPONSABILIDADE 3.1 A caracterização na Constituição de 1988 O exercício do poder público pressupõe que os agentes públicos possam ser responsabilizados por comportamentos irregulares adotados no exercício de suas funções. O crime de responsabilidade é, portanto, uma infração político-administrativa cometida por determinados agentes políticos. O termo “impeachment” identifica o processo através do qual é apurado e julgado o crime de responsabilidade (SERRANO, 2015). Ouverney (2016) pontua que o estatuto do impedimento entrou no arcabouço jurídico brasileiro já na Constituição de 1891, logo após a proclamação da República, tendo sido mantido — ainda que com alterações — em todas as posteriores, em um modelo inspirado, em parte, pelo dos Estados Unidos. As primeiras leis infraconstitucionais a regulamentar a matéria datam de 1892 (SERRANO, 2015). Para a instauração do processo de impeachment há dois requisitos: 1) a prática de conduta tipificada durante o exercício do mandato e no exercício das funções e 2) culpabilidade estrita (SERRANO, 2015). Em relação à legislação vigente, as condutas típicas estão previstas no art. 85 da Constituição de 1988: Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária; VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). O art. 86 da referida Constituição também diz respeito à prática de crime de responsabilidade (além de infrações penais comuns), e dá disposições gerais sobre os ritos de admissão do processo e julgamento: 23 Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade. § 1º O Presidente ficará suspenso de suas funções: I - nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal; II - nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal. § 2º Se, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo. § 3º Enquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o Presidente da República não estará sujeito a prisão. § 4º O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). A Lei nº 1.079/1950 é a legislação infraconstitucional complementar, editada para regulamentar o funcionamento do estatuto previsto na Constituição. Mafei (2021) explica que a Lei do Impeachment é dividida em quatro partes: a primeira e a segunda contemplam a definição dos crimes e processos envolvendo o presidente da República e os ministros de Estado; a terceira, refere-se aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e ao procurador-geral da República; e a quarta, aos governadores e secretários de Estado. Tendo sido sancionada pelo presidente Dutra, no referido ano de 1950, é, portanto, anterior à Constituição de 1988 e, segundo Coelho e Viechineski (2016, p. 279), foi apenas parcialmente recepcionada pelo arcabouço constitucional vigente: (...) [A Lei nº 1.079/1950] foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, porém, existem posições doutrinárias controvertidas quanto a esse fato. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 378, interposta pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), enquanto se discutia o impeachment da ex-presidente Dilma Vana Rousseff, questionou a compatibilidade dos dispositivos da Lei 1.079 de 1950 com a atual Constituição Federal. A ADPF foi levada ao plenário do STF em dezembro de 2015 e julgada parcialmente procedente. Desde que promulgada, a Lei do Impeachment sofreu uma única modificação via emenda, em 2000, que ampliou o capítulo dos crimes contra o orçamento público e atualizou a lista de autoridades que podem sofrer impeachment. A mudança foi consequência da aprovação da Lei de Crimes Fiscais, complementar à Lei de Responsabilidade Fiscal, sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em maio de 2000. Além disso, a Lei do Impeachment sofreu ajustes de constitucionalidade no decorrer dos processos contra Collor e Dilma, por decisões do STF (PROCESSO CONTRA DILMA...; MAFEI, 2021). 24 Em relação ao rito do processo, Serrano (2015) o descreve a partir da divisão em dois grandes momentos: 1) juízo de admissibilidade e 2) processo e julgamento. As etapas correspondentes a esses momentos podem ser esquematizadas, de forma sintética, em: a) protocolização do pedido de impeachment; b) acolhimento pelo presidente da Câmara dos Deputados; c) votação pela continuidade do processo (na Câmara); d) encaminhamento do processo para o Senado; e) julgamento (votação no Senado); e f) penalização. A apresentação do pedido de impeachment à Câmara dos Deputados pode ser feita por qualquer cidadão brasileiro. No pedido, deve constar a caracterização do crime cometido pelo presidente. O presidente da Câmara deve, então, decidir se o pedido procede e será encaminhado aos parlamentares, ou se será arquivado. Se encaminhado, os deputados federais recebem o pedido e formam uma comissão que deve fazer sua apreciação em dez sessões. Será avaliada a consistência da acusação e a procedência das alegações e fundamentos. Além disso, o presidente da República deve apresentar sua defesa à casa legislativa. Na ausência de uma caracterização satisfatória, a Câmara poderá rejeitar a denúncia. A votação deve ser nominal e, para ser considerada procedente, a denúncia precisa reunir dois terços dos votos dos deputados. Se a opção for pela continuidade do processo, seguirá para o Senado Federal, responsável por processar e julgar a acusação. A abertura do processo pela Câmara dos Deputados não impede que o Senado também verifique se os requisitos para sua validade são atendidos. Na casa alta, será formada outra comissão para apreciação do processo. Nessa etapa, o presidente da República é obrigado a se afastar do cargo pelo período máximo de 180 dias, até que a votação definitiva ocorra no Senado. No Senado, a sessão de julgamento é presidida pelo chefe do Supremo Tribunal Federal. De forma análoga à votação na Câmara, é necessário que dois terços dos senadores votem favoráveis ao impedimento para cumprimento do processo. A condenação fica restrita à perda 25 do cargo com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública; quem assume a presidência é o vice (SERRANO, 2015). 3.2 A trajetória histórica e as controvérsias em torno do instrumento As discussões em torno da trajetória histórica e das controvérsias envolvendo os crimes de responsabilidade e o processo de impeachment são discussões essencialmente jurídicas e políticas, e não comunicacionais. Não se pretende, portanto, esgotá-las, cravar conclusões ou defender um posicionamento diante da referida legislação neste trabalho. Objetiva-se, sim, esboçar um panorama que evidencie as disputas suscitadas quando a perspectiva de um processo de impeachment ganha tração na política brasileira. Nessas discussões, encontram-se alguns dos substratos para que se possa pensar os diferentes enquadramentos feitos pela mídia acerca do tema, no quinto capítulo desta monografia. Pretende-se, então, investigar a origem do instrumento de impedimento — no Brasil e no mundo —, entender o contexto de seu surgimento e a influência desses aspectos em sua caracterização na Constituição brasileira, bem como algumas das controvérsias latentes em torno do tema. O ponto de partida é a abordagem proposta por Ouverney (2016) em ensaio sobre as regras do impedimento e seus impactos sobre a democracia, em uma perspectiva comparativa entre Brasil, Estados Unidos e Inglaterra através do Neoinstitucionalismo Histórico (NIH). Tal abordagem considera o papel das instituições como um fator chave para a compreensão das interações entre atores políticos e econômicos na distribuição de poder e de recursos: Na abordagem do NIH, as instituições são os arcabouços maiores que demarcam regimes de acesso e exercício do poder em um sistema político ou econômico e, portanto, atuam como contextos para a conformação das estratégias políticas, estabelecendo leques de opções com configurações singulares, que informam quais cursos de ação terão maiores chances de sucesso em momentos específicos da história, considerando os interesses de um determinado ator político (OUVERNEY, 2016, p. 100). As referidas instituições podem ser leis, regras, regulamentos, normas, protocolos e convenções formais que estabelecem prerrogativas e responsabilidades para os membros de uma comunidade política (OUVERNEY, 2016). 26 Nessa perspectiva, as instituições são responsáveis por corroborar determinados projetos políticos, bem como podem dificultar a concretização de um outro tipo de projeto. Ouverney (2016, p. 101) ressalta, ainda, que o estabelecimento de uma instituição pode ter — e geralmente tem — consequências imprevistas e até não intencionais sobre a política, já que o NIH “enfatiza a natureza das escolhas realizadas em momentos singulares da história e o legado que essas projetam para as relações políticas e econômicas futuras”. Tais momentos singulares da história são conjunturas críticas, em que há a possibilidade de transformação estrutural da sociedade em consequência da mudança na correlação de forças políticas (OUVERNEY, 2016). Como exemplo de uma conjuntura crítica, cabe citar o período da redemocratização brasileira, com o fim da Ditadura Militar e a formação de uma nova assembleia constituinte. O autor cita, ainda, mecanismos institucionais de autorreprodução. Uma vez consolidadas as instituições, elas “visam introduzir uma lógica de conformação no comportamento político dos atores, partindo do princípio de que esses podem buscar objetivos mais eficientes e desejáveis (...) se forem removidas certas opções de seu menu de escolhas” (OUVERNEY, 2016, p. 102). Ou seja, uma vez estabelecidas, as instituições tendem à consolidação — a menos que uma nova conjuntura crítica se imponha. Uma vez feitas as escolhas, e uma vez concretizadas por meio de uma reestruturação institucional, a lógica de autossustentação atua através de um conjunto de forças ou instituições complementares que endossam aquela opção e estreitam a possibilidade de que se faça opções alternativas, conduzindo a uma tendência inercial nas instituições (OUVERNEY, 2016). Essa tendência de autorreprodução pode conduzir a consequências não intencionais, porque mesmo em processos revolucionários e constituintes não há uma substituição completa do arcabouço institucional vigente. As novas instituições, portanto, ao se perpetuar, vão interagir com elementos de outras ordens institucionais, de outras épocas — cuja tendência é a conformação com as mudanças ocorridas no país (OUVERNEY, 2016). Um exemplo disso é a interação entre os artigos referentes ao crime de responsabilidade na Constituição de 1988 e a Lei nº 1.079/1950, cuja elaboração precede a da carta magna. 27 (...) uma nova ordem institucional pode trazer, a reboque e por diversas circunstâncias conjunturais, leis, regulamentos e estruturas administrativas, entre outras, pertencentes à velha ordem. O convívio entre instituições de épocas e propósitos diversos é, portanto, uma característica da dinâmica dos sistemas políticos e, inclusive, pode se tornar o motor de expressivas transformações no jogo político entre os atores com interesses divergentes. A coexistência de instituições criadas em momentos históricos diferentes pode criar oportunidades inusitadas para determinados atores, ampliando seu leque de ação política e as possibilidades de sucesso de suas estratégias, levando a mudanças expressivas na correlação de forças do sistema político (OUVERNEY, 2016, p. 102). Ou seja, uma instituição criada para um determinado fim pode ser empregada de forma a produzir resultados não intencionais, originalmente; instituições que tenham sido esvaziadas, por exemplo, também podem ser trazidas de volta à tona por um determinado grupo político, se representarem uma oportunidade conveniente em uma dada conjuntura. Olhar para a trajetória histórica do crime de responsabilidade e do impeachment na legislação brasileira pode ajudar a ilustrar vários desses pontos, já que a instituição do impedimento “(...) tanto influenciou a reconfiguração de sistemas políticos como foi moldada e adaptada com diferentes configurações para atender a objetivos políticos específicos de elites políticas nacionais” (OUVERNEY, 2016, p. 102). Como já mencionado, o estatuto do impedimento já fazia parte do ordenamento jurídico brasileiro na Constituição de 1891, logo após a Proclamação da República, e permaneceu em todas as seguintes, ainda que com alterações. A estrutura republicana brasileira era inspirada em grande medida no modelo federativo e presidencialista norte-americano, e a incorporação do dispositivo de impedimento se deu sob essa mesma influência. Os EUA, por sua vez, foram influenciados pelo Reino Unido, onde o impeachment surgiu no século XIV (OUVERNEY, 2016). O impedimento surge no Reino Unido como um procedimento penal contra gestores da coisa pública e políticos, sendo um de seus principais usos a punição de altas autoridades do reino por má conduta. Grande parte das acusações eram, basicamente, referentes a traição ou algo de gravidade comparável, que representasse uma severa violação à confiança depositada pela Coroa no acusado (MAFEI, 2021). 28 Queiroz (2017) aponta que os julgamentos, no Reino Unido, acarretavam consequências penalmente graves, inclusive a morte. O impeachment britânico tinha caráter penal, e não jurídico, pois “não abrangia a prerrogativa de apreciar ou julgar a qualidade do gabinete real como um todo e, muito menos, destituí-lo” (OUVERNEY, 2016, p. 103). A Revolução Gloriosa, ocorrida em 1688, representou a cessão de diversas prerrogativas reais por parte da Coroa, firmando a Inglaterra como uma monarquia constitucional e estabelecendo a supremacia da autoridade legislativa nas mãos dos parlamentares (MAFEI, 2021). Progressivamente, com a consolidação do parlamentarismo, as disputas em torno do impeachment deixaram de existir, já que a formação do governo e a escolha do primeiro- ministro refletiam a composição de forças do parlamento. O impeachment deu lugar à moção de confiança ou de censura do parlamento, que é um mecanismo automático e institucionalizado, ativado sempre que a correlação de forças no parlamento se altera, “reduzindo o prolongamento de crises e impasses nas relações entre o Executivo e o Legislativo” (OUVERNEY, 2016, p. 104). Já no caso norte-americano, Ouverney (2016) aponta que o impedimento foi incorporado como um mecanismo político, e não mais penal, primeiro na Constituição da Virgínia, em 1776, e depois na Constituição dos EUA, em 1787. O contexto da incorporação do impeachment à constituição norte-americana remonta a uma necessidade de fortalecimento do poder central, com as devidas salvaguardas. Mafei (2021, p. 39) destaca que muitos dos colonos responsáveis pela independência dos EUA passaram boa parte de sua vida pública lutando contra o rei George III, do Reino Unido, e que, portanto, era- lhes “impensável que o comandante de uma nação não fosse passível de responsabilização legal por seus erros”. Ouverney (2016) explica que o governo nacional tinha poder para declarar guerras, estabelecer relações diplomáticas; mas não tinha prerrogativas tributárias, comerciais ou administrativas nos estados; a Constituição visava, diante dessas limitações, consolidar um poder unificado, capaz de conduzir as grandes questões econômicas e de segurança no país — daí a adoção de um presidencialismo forte como sistema de governo. 29 Mafei (2021) destaca que no desenho constitucional norte-americano fizeram-se presentes características que buscavam uma proteção institucional contra presidentes autoritários ou perniciosos, através da opção pela eleição indireta e o mandato relativamente curto, de quatro anos. Além disso, optou-se pela incorporação do impeachment como mecanismo de limitação do poder central “para prevenir contra casos extremos de tentativas de usurpação de poder por políticos e funcionários públicos, possibilidade esta registrada em diversos casos na administração das colônias americanas, ao longo do século XVII” (OUVERNEY, 2016, p. 105). Nos EUA, o impedimento foi regulado para ser utilizado apenas em casos excepcionais, a fim de garantir que não se tornasse um instrumento causador de instabilidade política nas mãos de grupos oposicionistas a um dado presidente: (...) a Constituição de 1787, em seu Artigo 2º, Seção 4, estabelece que o Presidente da República, seu Vice e demais funcionários públicos somente poderão ser afastados de suas funções mediante a prática de traição, suborno ou de crimes e contravenções graves. Nesse sentido, os legisladores constitucionais americanos, ao definirem um conjunto muito específico de atos indesejados como passíveis de impeachment, conferiram certa independência ao Presidente frente ao Congresso, reafirmando que sua política deve ser direcionada para a população e apenas por ela pode ser mudada, nas eleições presidenciais (OUVERNEY, 2016, p. 105). Além do rol restrito de crimes de responsabilidade, outra particularidade do sistema político norte-americano também contribui para que o estatuto do impedimento não ofereça um risco significativo à estabilidade dos governos: o julgamento cabe ao Senado, e somente haverá condenação se dois terços dos congressistas votarem a favor. Considerado o bipartidarismo característico da política norte-americana, em que o Partido Republicano e o Partido Democrata são os principais atores envolvidos, essa regra garante, na prática, que um presidente só será afastado do cargo caso parte de seu próprio partido vote contra sua absolvição (OUVERNEY, 2016). Queiroz (2017), ao fazer uma análise do estatuto do impedimento através do direito comparado, traz uma citação do professor norte-americano Jack Rakove que também sublinha a importância do consenso bipartidário para a instauração do processo: [...] o impeachment presidencial deve permanecer um remédio para ser empregado apenas em casos extremamente sérios e inequívocos, em que tenhamos um alto grau de confiança de que a conduta em questão se encaixe perfeitamente, e sem qualquer ambiguidade, dentro dos parâmetros de uma definição convincentes; onde o insulto ao sistema constitucional seja de fato grave, e no qual haja forte consenso bipartidário de que o impeachment é apropriado (RAKOVE, 1999, apud QUEIROZ, 2017, p. 242). 30 Quando olhamos para a trajetória do mesmo estatuto no Brasil, embora influenciado pelo norte- americano, há diferenças pronunciadas. Se nos EUA a intenção era criar uma salvaguarda ao intencional fortalecimento de um poder central, no Brasil, a ampliação do rol de crimes de responsabilidade veio para favorecer as elites que dominavam o Legislativo, especialmente as elites agrárias dos estados, na avaliação de Ouverney (2016), pois mecanismos de limitação do poder central eram essenciais para a manutenção dos interesses das elites regionais. Mafei (2021) também aponta que a opção, no Brasil, pela tentativa de prever em detalhes os possíveis crimes de responsabilidade distanciava o país das experiências norte-americana e europeia, onde o Legislativo tinha maior liberdade para decidir, caso a caso, se a infração denunciada acarretaria responsabilização. O autor comenta o nível de detalhamento dos delitos elencados pela lei, que varia: (...) a Lei nº 1.079/1950 traz delitos que são definidos com precisão (por exemplo: art. 8º, n. 6: “Ausentar-se do país sem autorização do Congresso Nacional”), mas também outros redigidos em termos vagos, especialmente no capítulo dos crimes contra a probidade na administração. São os casos, por exemplo, dos crimes de “expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição” (art. 9º, n. 4), ou “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (art. 9º, n. 7), concretizando a previsão do deputado imperial Gonçalves Ledo, em 1826: delitos de responsabilidade não podem ser definidos em tipos fechados, e qualquer lei que pretenda fazê-lo carecerá sempre de complementos por disposições vagas e abertas, capazes de serem usadas para enquadrar abusos não antevistos pelo legisladores (MAFEI, 2021, p. 69). Ouverney (2016) cita como indicativo da importância conferida ao impedimento pelo Legislativo brasileiro a prontidão com que foram sancionadas as leis infraconstitucionais que regulam o julgamento e tipificam os crimes, ambas em 1892, logo após a Constituição de 1891 entrar em vigor. No entanto, em um primeiro momento, com o estabelecimento da política do Café com Leite, em que os partidos republicanos de São Paulo e Minas Gerais se alternavam no poder, o estatuto do impedimento não precisou ser empregado. Durante o governo constitucionalista de Getúlio Vargas, a partir de 1934, o processo de impeachment sofreu mudanças significativas: como o Senado havia perdido suas funções de representação, atuando na coordenação entre os poderes, o julgamento passou a ser prerrogativa de um Tribunal Especial, formado por sorteio com alguns poucos representantes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal, o que, segundo Ouverney (2016), garantia uma blindagem do governo frente a uma eventual oposição na Câmara. 31 As conjunturas de exceção, Estado Novo e Ditadura Militar, contribuíram para que o impeachment ficasse escanteado na política brasileira, ainda que permanecesse previsto no arcabouço jurídico. O contexto de criação da Lei nº 1.079/1950, que vigora até hoje, remete, inclusive, ao período de transição entre esses dois momentos (OUVERNEY, 2016). Com o fim dos regimes fascistas europeus e a crescente oposição ao Estado Novo, o Brasil foi conduzido a um período de redemocratização em que o Legislativo e os partidos puderam recobrar parte da influência que detinham antes. As relações entre os partidos que emergem e os que já figuravam na política nacional foram decisivas na trajetória do mecanismo de impedimento, segundo Ouverney (2016, p. 107): Em resposta à formação da União Democrática Nacional (UDN), que congregava as forças liberais conservadoras de velhas oligarquias, além de parte do empresariado e da mídia, e da pequena classe média em formação, Vargas articulou o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que representavam, respectivamente, os quadros da burocracia estatal em expansão e elites governamentais regionais getulistas, e o crescente contingente de trabalhadores urbanos. Nas eleições para a Constituinte de 1946, os partidos referidos, PSD e PTB, obtiveram 66,6% das vagas no Senado e 60,3% na Câmara. Com maioria expressiva, puderam influenciar no processo constitucional, garantindo a expansão do Legislativo, mas também mantendo prerrogativas importantes para o presidente da República. O processo de impeachment voltou a seguir os moldes da Constituição de 1891, ficando a cargo do Senado o julgamento do presidente (OUVERNEY, 2016). Paralelamente, ganhava força um movimento pelo fortalecimento do Legislativo com a proposta de uma emenda constitucional que alteraria o regime de governo para o parlamentarismo, encabeçada pelo Partido Libertador (PL), com apoio de diversos políticos da UDN. No contexto da Guerra Fria, a polarização entre os atores políticos ficava cada vez mais acirrada e as articulações para a sucessão de Dutra (diante da perspectiva do retorno de Getúlio, pela via democrática) intensificaram esse tipo de proposta (OUVERNEY, 2016). Por mais que a discussão em torno do parlamentarismo tenha ganhado força durante esse período, não foi suficiente para a aprovação da emenda constitucional. Diante desse contexto, a UDN e aliados moveram esforços para, ainda assim, limitarem o poder central, com a aprovação do PLS 23/48, sancionado em abril de 1950 e que originou a Lei nº 1.079/50. “A 32 motivação para editar a lei era conferir amplas possibilidades ao Legislativo para criminalizar o futuro presidente, o que pode ser visto em seu conteúdo, que apresenta um extenso conjunto de mais de 60 atos passíveis de acusação” (OUVERNEY, 2016, p. 109). A movimentação da UDN após a eleição de Getúlio, com a tentativa de anulação do pleito junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) e tentativa de mobilização de uma intervenção militar corrobora, para Ouverney (2016), a tese de que a rápida aprovação da Lei nº 1.079/50 visava limitar os poderes do presidente. Mafei (2021) também aventa a hipótese de que a Lei nº 1.079/1950 possa ter sido uma espécie de plano B dos parlamentaristas frustrados pela derrota da emenda que buscava alterar o sistema de governo no Brasil, o que explicaria os crimes vagos trazidos na legislação, dando ao Congresso as bases para antecipar o fim do mandato de um presidente por razões essencialmente políticas. No entanto, como os partidos getulistas (PSD e PTB) mantiveram ampla expressão no Congresso, mesmo se acionado o dispositivo do impeachment seria de difícil efetivação. Viechineski e Coelho (2016, pág. 284) recuperam o primeiro momento em que o impedimento foi usado contra um presidente brasileiro — e o desfecho, contrário ao afastamento, ilustra essa conjuntura política favorável ao Executivo: (...) o primeiro processo de destituição aberto contra um Presidente da República no Brasil foi em 1953, quando Getúlio Vargas foi acusado de favorecer o jornal Última Hora com financiamentos de bancos públicos e a tentativa de implantação de uma “república sindicalista”. O pedido foi votado na Câmara dos Deputados em 16 de junho de 1954, com a presença de 211 deputados e rejeitado por 136 votos contra 35, além de 40 abstenções. Em um segundo momento, na conturbada conjuntura entre o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e a posse de Juscelino Kubitschek, em 1956, tanto Café Filho (vice de Vargas — que assume o Palácio do Catete após o suicídio) quanto Carlos Luz (presidente da Câmara dos Deputados — que assume a presidência após o afastamento de Café Filho, em novembro de 1955, por questões de saúde) também foram alvo de um processo de impeachment, porém em caráter excepcional: (...) em 1955 a Câmara dos Deputados e o Senado Federal votaram pelo impedimento dos presidentes Carlos Luz e Café Filho. A diferença é que nesses dois casos não foi 33 seguida a Lei 1.079 de 1950, ou Lei do Impeachment, já que os deputados e senadores entenderam que a situação era extremamente grave, com risco de guerra civil. Os julgamentos foram finalizados em poucas horas, e os presidentes sequer tiveram o direito de se defenderem nas casas legislativas (COELHO e VIECHINESKI, 2016, pág. 285). Posteriormente, a partir de 1964, com o golpe militar, também não havia um ambiente político favorável à aplicação do instrumento. Ouverney (2016, p. 109) argumenta, entretanto, que “sua conservação no arcabouço jurídico brasileiro abriu uma janela permanente para o enfraquecimento político do presidente da República em conjunturas econômicas desfavoráveis.” Após o fim da ditadura, a fragmentação do sistema partidário também contribuiu para a fragilidade institucional em torno do dispositivo, já que dificulta o agrupamento de dois terços dos parlamentares na base de apoio de qualquer presidente que venha a enfrentar um processo de impeachment. Mesmo com a implementação da Constituição de 1988, não foi editada nova lei complementar sobre os crimes de responsabilidade e os processos de impeachment, e, na visão de Ouverney (2016, p. 109), o STF “não se manifestou de maneira explícita e consistente sobre o quanto da Lei nº 1.079/1950 foi ou não recepcionado pelo novo ordenamento constitucional”, o que traz consequências até hoje: (...) uma legislação criada às pressas no início de 1950, por grupos liberais conservadores, especificamente para preparar um golpe parlamentar contra Getúlio Vargas, serviu como uma luva para as pretensões das articulações partidárias que levaram à destituição de Dilma Rousseff, em 2016. Golpistas do passado facilitaram a ação de golpistas do presente. As principais implicações desse evento consistem na possibilidade de produção de rupturas bruscas imediatas nas políticas de desenvolvimento nacional e inclusão social, em virtude da ausência de necessidade da mediação das urnas pelo atual governo [Temer], e na instabilidade política dos governos futuros, nas três esferas, diante do rompimento da lógica presidencialista (OUVERNEY, 2016, p. 111). Para além da trajetória contextual histórica da instituição e evolução no dispositivo do impedimento nas constituições brasileiras, Serrano (2015) levanta a discussão acerca da natureza jurídica do crime de responsabilidade: se seria penal ou política. A incursão nessa discussão pode fornecer subsídios para a análise dos editoriais jornalísticos no presente trabalho: nos textos jornalísticos, há a preocupação em caracterizar criminalmente 34 os ditos crimes de responsabilidade, de formas análogas à dos crimes comuns, previstos no código penal brasileiro? Ou há a defesa de que a caracterização dos crimes de responsabilidade é essencialmente política, e que, portanto, a caracterização penal seria secundária em um processo de impeachment? Queiroz (2017) defende que a argumentação em favor da natureza de fato “criminal” dos crimes de responsabilidade busca conferir uma maior estabilidade ao sistema político brasileiro. Nessa visão, a admissão da natureza político-administrativa do crime de responsabilidade poderia conduzir a arbitrariedades na definição das infrações pelo Legislativo. O autor, no entanto, se opõe a essa defesa e argumenta que se tratam, na verdade, de delitos políticos. Houve autores que pretenderam limitar o conceito de “crimes de responsabilidade” a estruturas “simétricas” aos crimes comuns, com o fim de afastar “juízos políticos”, de mera conveniência ou oportunidade, dos “juízos jurídicos” que pressupõem uma dogmática análoga à penal (QUEIROZ, 2017 p. 224). Em consonância estão Coelho e Viechineski (2016, p. 275): Considerando que o impeachment tem por objetivo principal o afastamento daquele que não honrou seus deveres funcionais e o compromisso com o povo que o elegeu, e não a sua condenação propriamente dita, a maior parte dos doutrinadores entende ser este um instituto de natureza política. Ao analisar essa questão, Queiroz (2017) parte de um esclarecimento a respeito da terminologia “crime de responsabilidade”. Se não têm natureza criminal, porque seriam assim chamados? A primeira caracterização do estatuto remete ao ano de 1827, durante o Império brasileiro. O Imperador não podia ser imputado juridicamente, mas seus ministros, sim. A lei 15 de outubro de 1827 é a que consolida a expressão “crime de responsabilidade”. O autor avalia que, nesse contexto, o termo “crime” era adequado, consideradas as consequências jurídicas dos crimes tipificados de acordo com o grau de culpa: “sendo máxima a gradação, a pena respectiva seria de ‘morte natural’; apurando-se em grau médio, de ‘cinco anos de prisão’, além de outras restrições administrativas em caráter acessório” (QUEIROZ, 2017, p. 228). Com o advento da República, preservou-se a expressão “crime de responsabilidade”, mas o impeachment passou a ser caracterizado político-administrativamente (e julgado pelo 35 Legislativo), em oposição à caracterização criminal (e julgada pelo Judiciário). Mesmo hoje, persiste essa diferenciação. No caso de crimes comuns cometidos por um presidente, o julgamento compete ao Supremo Tribunal Federal, e não ao Congresso. As consequências jurídicas da condenação também se alteraram, e “passaram a limitar-se a providências de saneamento político (afastamento imediato) e administrativo (inabilitação para exercício de cargos públicos por prazo determinado)” (QUEIROZ, 2017, p. 228). Ao defender sua posição de que o crime de responsabilidade tem natureza política, Queiroz (2017) traz o exemplo da condenação do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Em 1992, Collor foi condenado no processo de impeachment; em 2014, foi absolvido no STF diante das mesmas acusações. Se crimes de responsabilidade tivessem natureza criminal, haveria um problema evidente no caso de Collor, por dois motivos. (...) Estaríamos diante de dois juízos criminais grandemente dedicados à apuração dos mesmos fatos, processados perante instâncias únicas e finais (o Senado Federal, no impeachment, e o Supremo Tribunal Federal, na ação penal), com resultados frontalmente divergentes. Condenado no Senado e depois absolvido no Poder Judiciário, Collor de Mello poderia até mesmo buscar reparação pela injustiça sofrida no julgamento que o afastou da Presidência da República (QUEIROZ, 2017, p. 235). Queiroz (2017) argumenta que os desfechos distintos evidenciam que acusações, processos e vereditos em ambos os julgamentos diziam respeito a delitos de naturezas jurídicas distintas. No impeachment, julgou-se a violação de deveres políticos. No Supremo, a violação de deveres criminais, a partir de parâmetros específicos, inclusive observado o rigor do método jurídico. Outro argumento a favor da interpretação da natureza político-administrativa do crime de responsabilidade é a competência do julgamento, que fica a cargo do Senado Federal — um órgão não jurídico. Deputados e senadores não são, em geral, capazes de conduzir julgamentos técnicos e não estão sujeitos a deveres impostos a juízes e jurados, como a não antecipação do veredito. Na verdade, “é esperado que seus vereditos se confundam com juízos de conveniência eleitoral e com cálculos políticos de curto e longo prazo” (QUEIROZ, 2017, p. 239). Apesar da defesa do caráter político-administrativo do crime de responsabilidade, Queiroz (2017) reforça que admitir esse caráter não é deixar os rumos da política nacional sujeitos à 36 discricionariedade dos parlamentares, e defende que os crimes de responsabilidade venham sempre acompanhados de um requisito de grande gravidade da conduta. A partir desse entendimento, “é possível inclusive sustentar que fatos de relevância penal inequívoca podem não ter a necessária gravidade para implicar afastamento presidencial” (QUEIROZ, 2017, p. 240). Ou seja, mesmo um delito criminal inconteste pode ter sua gravidade questionada se para justificar a abertura de um traumático processo de impeachment. Por meio do direito comparado, Queiroz (2017) traz como exemplo o julgamento do ex- presidente norte-americano Bill Clinton, em 1999, acusado de obstruir a justiça ao mentir sob juramento, quando negou que tivesse mantido relações sexuais com uma estagiária da Casa Branca. Havia evidências convincentes do crime de perjúrio, mas para a maior parte dos juristas que analisaram o caso, “o fato de que a relevância penal da conduta de Clinton fosse incontestada não autorizava a conclusão de que ela era grave o suficiente para autorizar seu afastamento” (QUEIROZ, 2017, p. 241). Partindo desses argumentos, Queiroz (2017) conclui que o fato de a Lei 1.079 de 1950 prever diversas condutas caracterizadas como crime de responsabilidade não dispensa a análise da necessária gravidade da conduta em questão. (...) a Lei 1.079, que define os crimes de responsabilidade, tipifica crimes de modo quase convidativo a processos aventureiros de impeachment. É o caso de seu artigo 9º, que prevê ser crime de responsabilidade a conduta de “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Quem vivenciou crises políticas entre Poder Executivo e Poder Legislativo no Brasil não terá dificuldades para enxergar que um dispositivo como esse poderia ser invocado para promover a indevida interrupção de um mandato presidencial, ou mesmo para ameaçá-lo em troca de ganhos políticos de curto prazo (QUEIROZ, 2017, p. 242). O jurista Paulo Brossard de Souza (1965, apud SERRANO, 2015, p. 201), defende, igualmente, que “o impeachment tem feição política, não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, é instaurado sob considerações de ordem política e julgado segundo critérios políticos”, mas pondera que esse caráter político não exclui a adoção de critérios jurídicos no julgamento. Em consonância, Serrano (2015, p. 203) aponta que a configuração como um mecanismo de disputa política não isenta os atores envolvidos de seguirem o devido processo legal: 37 (...) quando se usa a expressão processo e julgamento políticos para tal forma de juízo não se quer dizer julgamento segundo a vontade integralmente autônoma e livre, inclusive com eventual dispensa do devido processo legal. (...) não podem ser desprezadas, na apuração do crime de responsabilidade, as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, consubstanciadas no art. 5º. Mafei (2021) também defende que o componente político dos julgamentos de crimes de responsabilidade não autoriza o Congresso a condenar um presidente a partir de sua bel vontade, devendo, antes, obedecer a ritos pré-determinados, permitindo que o acusado se defenda, rebata as teses acusatórias, produza provas e questione aquelas apresentadas pela acusação, sendo, ao fim, julgado a partir de uma interpretação minimamente razoável da lei. 38 4 CONTEXTO POLÍTICO-ECONÔMICO 4.1 Os governos Dilma Rousseff 4.1.1 Nova Matriz Econômica e recessão: a política econômica nos governos Dilma Dilma Vana Rousseff foi a primeira presidente brasileira, eleita em 2010 e reeleita em 2014. Filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT), Dilma já havia sido ministra nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) e se notabilizou pela atuação na resistência à Ditadura Militar brasileira, tendo, inclusive, sofrido tortura em interrogatórios conduzidos pelo regime. Se em 2010, na esteira da popularidade do então presidente Lula, Dilma foi eleita com 56,05% (ante 43,95% alcançados pelo segundo colocado, José Serra, do PSDB), em 2014 Dilma reelegeu-se com uma margem ainda mais apertada: recebeu 51,64% dos votos válidos, ante 48,36% do também tucano Aécio Neves. Sua popularidade já estava desgastada, e o resultado já prenunciava que a polarização viria a se agravar no país. Em 31 de agosto de 2016, pouco mais de um ano e meio após assumir seu segundo mandato, o processo de impeachment contra Dilma era concluído no Senado e a presidente era deposta do cargo. O impeachment de Dilma é um dos episódios mais controversos da história recente brasileira: há quem defenda a legitimidade do processo e veja no afastamento da presidente evidência clara do funcionamento das instituições democráticas e do respeito à Constituição; e há quem questione a tipificação dos crimes de responsabilidade que embasaram o processo, e, por conseguinte, caracterize o impeachment como um golpe parlamentar cometido contra a presidente. No presente capítulo, será feita uma contextualização dos governos Dilma, destacando a política econômica, apontada por diversos autores como o elemento central para compreender a deposição da presidente, bem como as questões políticas associadas. Para esse fim, no entanto, convém inicialmente olhar para os primeiros governos do PT, sob o comando de Lula. 39 Bastos (2016) aponta que a postura inicial do governo Lula foi de precaução, após ter assumido, durante a campanha eleitoral de 2002, um compromisso de respeitar o tripé macroeconômico estabelecido durante o governo Fernando Henrique Cardoso: Tal regime institucional caracteriza-se por i) livre mobilidade internacional de capitais com câmbio flutuante; ii) política monetária baseada no regime de metas de inflação (com elevação de taxa de juros, em tese, sempre que haja expectativa dos agentes do mercado financeiro de que a inflação vá superar o centro da meta); e iii) superavit primário estimado de modo que a economia de recursos fiscais compense, pelo menos em parte, os custos sobre a dívida pública associados à elevação de taxas de juros e à desvalorização cambial (BASTOS, 2017, pg. 9). Para Bastos (2017), tais regras atuaram como filtros para futuras políticas econômicas, pois diminuíram a margem de manobra na condução econômica através de decisões fiscais. A partir de 2004, há uma inflexão na política econômica austera do governo Lula, puxada pela expansão da economia mundial, notadamente dos Estados Unidos e Ásia, bem como o boom das exportações industriais para a América do Sul e de commodities para a China, iniciado em 2003 (BASTOS, 2017). Ganha força, neste momento, um conjunto de políticas públicas voltadas à distribuição de renda, que também incentivam a expansão do mercado interno brasileiro. Adicionalmente, Lula veta novas privatizações e busca incrementar a capacidade de investimento das empresas estatais; usa os bancos públicos para executar políticas de desenvolvimento produtivo; e implementa uma nova política salarial, com elevação do salário mínimo real em 70% entre 2004 e 2014 (BASTOS, 2017). Quando Dilma assume, precisa enfrentar a segunda fase da crise financeira internacional, que explode nos Estados Unidos em 2008 e cujo epicentro desloca-se para a Europa no segundo semestre de 2011, como aponta Singer (2015, p. 42): Em 4 e 5 de agosto [de 2011], os mercados ao redor do globo revivem os dias agitados de 2008. Fuga em massa para títulos norte-americanos e alemães, rebaixamento da dívida pública dos Estados Unidos pela Standard & Poor's, turbulência nas principais bolsas e pânico nas mesas de operação financeira do planeta. Desta feita, no entanto, o epicentro desloca‑se para longe de Wall Street, indo parar no meio do continente europeu. Em resposta à crise, os países europeus devedores (Grécia, Portugal, Espanha, Itália) adotam uma conduta recessiva, o que provoca redução geral das atividades na Zona do Euro, e em 2012 40 a China opta por voltar-se a seu mercado interno. Como consequência, há uma retração do crescimento mundial: de 4,1% em média ao ano, entre 2000 e 2008, a taxa cai para 2,9% de 2009 a 2014 (SINGER, 2015). A resposta do governo Dilma à crise, mesmo antes e, então, diante de seu recrudescimento na Europa, foi a chamada Nova Matriz Econômica (NME). Tratava-se de uma política anticíclica, que buscava alavancar o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) para garantir as graduais reformas petistas. Singer (2015) apelida a NME de “ensaio desenvolvimentista” e enumera as principais ações delineadas: 1) redução de juros para baratear o custo do crédito; 2) uso intensivo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com linhas de crédito subsidiadas para empresas; 3) aposta na reindustrialização, com o Plano Brasil Maior, com redução do imposto sobre bens de investimento e ampliação da formalização de microempreendedores; 4) desonerações fiscais para reduzir os custos do investimento privado; 5) plano para infraestrutura, que previa concessões de rodovias e ferrovias; 6) reforma do setor elétrico, que buscava baratear o preço da eletricidade via alterações nos contratos com as empresas concessionárias; 7) desvalorização do real para favorecer a competitividade da indústria nacional; 8) controle de capitais estrangeiros para evitar a apreciação do real; 9) proteção ao produto nacional, com a elevação de impostos sobre importação de diversos produtos, dentre eles veículos automotivos; e 10) o lançamento de um programa de compras governamentais que favorecia a produção nacional. Bastos (2017, p. 18) resume a lógica da NME a partir das relações entre o investimento privado produtivo e o rentismo: O cerne do plano era, portanto, mudar os preços relativos que induziam decisões de investimento privado, colocando-o no protagonismo da estratégia de desenvolvimento. Nada menos do que modificar três décadas de rentismo curto- prazista e deslocar capitais em larga escala para investimento de longo prazo em infraestrutura e diversificação industrial. Com isso, assegurar o crescimento do emprego, a geração de receitas tributárias e a redução da vulnerabilidade externa. Bastos (2017) também destaca a centralidade da redução dos juros na NME. Além do barateamento do crédito, tal medida visava diminuir o custo fiscal da dívida pública e, assim, possibilitar uma maior liberdade fiscal para a execução de políticas sociais, investimentos 41 públicos e subsídios ao investimento privado. Além disso, buscava estimular o investimento produtivo, uma vez reduzida a rentabilidade de aplicações financeiras de baixo risco. Singer (2015, p. 47) admite uma continuidade programática entre Lula e Dilma, mas ressalta, justamente, a inflexão promovida por Dilma em relação à condução da política fiscal: “Enquanto Lula não foi confrontacionista, Dilma decide entrar em combates duros. Ao reduzir os juros e forçar os spreads para baixo, tensionou o pacto estabelecido com o setor financeiro.” Teixeira, Dweck e Chernavsky (2017, p. 2) defendem, inclusive, que é nessa inflexão que residem as bases para o posterior processo de impeachment da presidente: A tentativa de Dilma de aprofundar em alguns aspectos um modelo econômico de desenvolvimento com inclusão social, em um contexto de desaceleração econômica, acabou por levar a tensões com grupos e frações da classe capitalista que foram paulatinamente abandonando seu apoio à presidente, sem que houvesse em contrapartida o apoio de outros grupos sociais, em particular das classes menos favorecidas. Ainda em 2012, o ambiente geral mantinha-se favorável ao desenvolvimentismo, o que se refletiu, inclusive, nas eleições municipais de São Paulo. Singer (2015) destaca a baixa taxa de desemprego, que estava em apenas 4,6%, e a alta na renda dos trabalhadores como fatores determinantes para a eleição de Fernando Haddad, do PT, para a prefeitura. Com o BNDES capitalizado e disponível para financiar a produção a juros mais baixos, certo controle sobre o fluxo de capitais, o real menos valorizado, a desoneração da folha de pagamentos em curso, a obrigatoriedade de conteúdo local em setores estratégicos e encomendas da Petrobras, compras governamentais e tarifas alfandegárias voltadas para a produção nacional, programa de investimento em infraestrutura lançado, aumento do limite de endividamento dos estados e juros mais acessíveis nos bancos comerciais, o ensaio desenvolvimentista chegava ao auge (SINGER, 2015, p. 49). No entanto, já no início do ano seguinte, 2013, a base do ensaio desenvolvimentista rompia-se. Alexandre Tombini, então presidente do Banco Central, diz publicamente que a inflação demonstrava forte resistência — o que foi suficiente para que o mercado financeiro passasse a apostar na alta dos juros, quando a redução promovida anteriormente apenas começava a chegar à população tomadora dos serviços bancários, em um processo que Singer (2015, p. 50) qualificou como “(...) simplesmente desmontar o recém-concluído”. 42 Em abril de 2013, o Banco Central iniciou um novo ciclo de aumento de juros por conta da elevação da inflação, da pressão do mercado financeiro e de instabilidades externas (notadamente os rumores de uma mudança na política monetária norte-americana, que havia depreciado ainda mais o real) (BASTOS, 2017). Nos meses seguintes, somam-se a essas outras medidas: corte no investimento público, aumento na taxa de retorno das concessões e a diminuição dos mecanismos de controle do capital especulativo (SINGER, 2015). Os resultados econômicos prejudicaram a continuidade da NME: em 2012, o PIB cresceu apenas 0,9%. Em 2013, o resultado seria melhor, com crescimento de 2,3%, reflexo dos estímulos dos anos anteriores e dos investimentos para a Copa do Mundo, mas as sucessivas elevações da taxa de juros colocavam em risco o crescimento em 2014 (SINGER, 2015). Singer (2015) destaca também o aumento das críticas ao “ativismo estatal” feita por agências de risco internacionais, instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial etc., e de personagens frequentes nos meios de comunicação brasileiros. Centenas de articulistas e editoriais, milhares de reportagens em veículos nacionais e estrangeiros, milhões de minutos de rádio e TV foram dedicados a mostrar o quanto era preciso cortar os gastos ineficientes e “descontrolados” do governo e deixar o mercado funcionar para reordenar o país e retomar o crescimento (SINGER, 2015, p. 51). Como consequência, houve queda do investimento de 4,4% em 2014, atribuída por Singer (2015) à política monetária e fiscal contracionista e à profunda desconfiança da burguesia; como consequência, caiu também a arrecadação do Estado, deixando-o vulnerável às propostas de ajuste fiscal. Apesar dos estímulos, a produção industrial manteve-se praticamente estagnada no nível de 2008, por conta da desaceleração da demanda e também da cooptação de parte dessa demanda pelas importações, com o fim das medidas para a depreciação do real (BASTOS, 2017). Teixeira, Dweck e Chernavsky (2017) apontam que a tentativa de recomposição dos lucros industriais por meio de desonerações não se traduziu, na maioria dos casos, em aumento da capacidade produtiva, mas sim em aumento da margem de lucro. Bastos (2017) também pontua que o encarecimento do dólar, em um primeiro momento, aumentou os custos das empresas (dependentes de serviços, insumos e máquinas importadas) e não assegurou, a curto prazo, nem a substituição das importações, nem o aumento das exportações. 43 Mesmo com o recuo na NME, a previsão se confirmou e a economia voltou a desacelerar em 2014. Bastos (2017) atribui o movimento à própria desaceleração de um longo ciclo de ampliação do consumo e do investimento residencial, além do comportamento da demanda externa e dos preços das commodities. O nível de comprometimento da renda das famílias subiu, e “Como o consumo tem um peso de 62,5% no PIB, a desaceleração cíclica impactou fortemente na desaceleração da renda e do emprego” (BASTOS, 2017, p. 25). Ao analisar a correlação de forças alterada pela NME, Singer (2015) levanta a hipótese de que haveria duas coalizões contrapostas da burguesia: a “rentista” (capital financeiro e classe média tradicional) e a “produtivista” (empresários industriais e classe trabalhadora organizada). Enquanto os rentistas teriam por objetivo “(...) manter o Brasil alinhado ao receituário neoliberal, bem como na órbita do grande capital internacional e da liderança geopolítica dos Estados Unidos” (SINGER, 2015, p. 54), para os produtivistas “a meta primordial seria acelerar o ritmo de crescimento por meio de uma intervenção do Estado que levasse à reindustrialização, permitindo tornar mais veloz a distribuição de renda”. Apesar de utilizar-se dessa contraposição, Singer (2015) admite suas limitações. A dinâmica entre as coalizões são mais complexas do que o modelo esquemático dá conta de exprimir: empresas produtivas também mantêm investimentos rentistas; há de se considerar, também, para além de interesses industriais e financeiros, os interesses nacionais e internacionais (e se soma a essa ponderação uma camada extra de complexidade, já que o capital nacional está, muitas vezes, associado ao internacional). Nesse contexto, a proposta da NME era criar as condições em que “o investimento privado assumiria o protagonismo na sustentação do crescimento” (BASTOS, 2017, p. 21), representando um aceno à coalizão produtivista e atendendo a várias reivindicações do setor. Apesar disso, Singer (2015) pondera que os industriais que antes reivindicavam as mudanças foram progressivamente se afastando do governo e se alinhando ao bloco rentista, oposicionista. “Cresceu entre eles a ideia de que se tratava de mandato ‘intervencionista’, que inviabilizava os investimentos e não criava confiança. O irônico é que a intervenção, que de fato houve, visava atender aos próprios industriais” (SINGER, 2015, p. 55). Esse desembarque da coalizão produtivista seria a explicação da virada do governo Dilma na condução da NME: a presidente teria feito recuos sucessivos, buscando, sem sucesso, reconquistar o apoio perdido. 44 Parte da mudança na postura dos industriais pode ser explicada a partir da demanda pela flexibilização da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) decorrentes dos ganhos salariais obtidos durante os governos petistas. Teixeira, Dweck e Chernavsky (2017) explicam que acordos coletivos com ganhos reais para os trabalhadores, mais o aumento real do salário mínimo (que norteia os demais salários, mesmo os do setor informal) e o baixo desemprego permitiram um aumento da participação dos salários na renda — e, consequentemente, um aumento nos custos de produção, afetando a capacidade de concorrência da indústria nacional e diminuindo suas margens de lucro. O apoio do empresariado ao governo pode ter se dado apenas enquanto acreditava que o crescimento dos salários poderia ser compensado com subsídios, incentivos fiscais e outros elementos de política industrial e comercial de cunho desenvolvimentista. Ao perceber que, com a piora da situação fiscal, o conflito distributivo havia aumentado e o governo talvez não tivesse mais fôlego fiscal para seguir com políticas que mantivessem suas margens de lucro sem elevar impostos, os empresários industriais resolveram abandonar o barco (TEIXEIRA; DWECK; CHERNAVSKY, 2017, p. 21). Para além do eventual desembarque produtivista, Bastos (2017) ressalta que outro problema enfrentado pela NME foi ter sido iniciada com uma primeira fase de austeridade, em 2011, cujo objetivo era garantir as condições para as medidas que seriam adotadas depois, por meio de uma elevação inicial da taxa de juros e de impostos sobre o consumo. O resultado foi que “(...) antes mesmo de reduzir o custo de capital, ela deprimiu as expectativas de demanda futura. Isso não foi um resultado da NME, mas sim da desaceleração cíclica e do aguçamento sem precedentes da ‘velha matriz econômica’ em 2011” (BASTOS, 2017, p. 19). Na linha do tempo proposta por Bastos (2017), o fato de a NME ter sido antecedida por uma fase contracionista conduziu à estagnação do PIB entre o segundo semestre de 2011 e o primeiro de 2012; a NME só atenuou a desaceleração cíclica da economia a partir do segundo semestre de 2012, mas não a reverteu e já começou a ser abandonada no segundo trimestre de 2013. Bastos (2017) acredita que as alterações na gestão das políticas monetária e fiscal deveria ter sido acompanhada de uma ampla campanha em defesa das medidas adotadas. Como não foi esse o caso, quando surgiram os primeiros desafios a cartilha neoliberal defendida pelos representantes do capital financeiro “(...) apresentou-se como mera