CAMILO TELLAROLI ADORNO A ironia no romance Quase memória, de Carlos Heitor Cony Dissertação apresentada ao programa de Pós- Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara (Área de Concentração: Teoria e crítica da narrativa) Orientadora: Profa. Dra. Sylvia Helena Telarolli de Almeida Leite Araraquara 2006 2 3 Este trabalho contou com o apoio financeiro da CAPES 4 Aos meus pais, Antonio e Sonia. Ao Nivaldo. A Rita. Aos meus irmãos, Emerson, Fernando e João Henrique. A Mariana. 5 AGRADECIMENTOS A Deus e a Nossa Senhora, por tudo, simplesmente. Aos meus pais, pelo amor incondicional, pelos ensinamentos e pelo apoio para que eu pudesse chegar até aqui. Ao Nivaldo e a Rita, pela paciência e dedicação. Aos meus irmãos, pela amizade e companheirismo. A Mariana, que sempre se fez presente com seu carinho e amor. A minha vó Maria, por agüentar esses netos até hoje. Ao Sergio Tellaroli, pela paciência em ler, escutar e discutir a respeito deste trabalho, e pelo total incentivo nessa empreitada. As Profas. Dras. Karin Volobuef e Márcia Valéria Zamboni Gobbi, pela leitura atenta, pelos esclarecimentos e comentários precisos em meu exame de Qualificação. Ao Prof. Dr. Luis Gonzaga Marchezan, pela atenção e ajuda dispensada ao longo dos anos de faculdade. Ao Carlos Heitor Cony, pelos livros escritos e pela paciência ao colaborar com este trabalho. A Profa Dra Sylvia Helena Telarolli de Almeida Leite, pela orientação precisa, dedicação, estímulo, e por mostrar, nos momentos mais difíceis, os caminhos a seguir. A todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para que esta dissertação fosse concluída, seja pela palavra de incentivo, pela companhia ou, ainda, pelo simples fato de acreditar, mesmo que em silêncio, na conclusão deste trabalho. 6 So here I am, in the middle way, having had twenty years — Twenty years largely wasted, the years of l'entre deux guerres Trying to use words, and every attempt Is a wholly new start, and a different kind of failure Because one has only learnt to get the better of words For the thing one no longer has to say, or the way in which One is no longer disposed to say it. And so each venture Is a new beginning, a raid on the inarticulate With shabby equipment always deteriorating In the general mess of imprecision of feeling, Undisciplined squads of emotion. And what there is to conquer By strength and submission, has already been discovered Once or twice, or several times, by men whom one cannot hope To emulate — but there is no competition — There is only the fight to recover what has been lost And found and lost again and again: and now, under conditions That seem unpropitious. But perhaps neither gain nor loss. For us, there is only the trying. The rest is not our business. (East Coker V, T.S. Eliot) Assim, eis-me aqui na metade do caminho, e vinte anos se passaram - Vinte anos a rigor desperdiçados, os anos de l’entre deux guerres - Tentando aprender como empregar as palavras, e cada tentativa É sempre uma nova partida, e uma diversa espécie de fracasso Pois apenas se aprendeu a escolher o melhor das palavras Para o que não há mais a dizer, ou o meio pelo qual Não mais se está disposto a fazê-lo. E assim cada aventura É um novo começo, uma rápida incursão ao inarticulado Com equipamento imprestável e em contínuo desgaste Na desordem geral da imprecisão dos sentimentos. Indisciplinadas esquadrilhas da emoção. E o que há por conquistar, Por força e submissão, já foi descoberto Uma, ou duas, ou várias vezes, por homens com os quais não se pode Pretender rivalizar – mas não se trata da competição, E sim de uma luta para recuperar o que se perdeu E se encontrou e outras vezes se perdeu – e agora em condições Que não parecem favoráveis. Mas talvez nem ganho nem perda. Para nós, há somente tentativa. O resto não é de nossa conta. (East Coker V, T.S. Eliot. Tradução: Ivan Junqueira) 7 RESUMO Esta dissertação procura analisar o romance Quase memória, de Carlos Heitor Cony, com base em alguns tipos de ironia considerados relevantes para a compreensão da narrativa, bem como o modo como ela é utilizada pelo autor e qual a função desempenhada ao longo do texto, especialmente na relação entre as personagens principais da narrativa. Para tanto, faz-se, primeiramente, um levantamento acerca da ironia, levando-se em conta os tipos mais relevantes para a compreensão da narrativa: ironia socrática, ironia romântica, ironia como figura de retórica capaz de tornar ambíguo um determinado discurso, ironia e humor (especialmente sua capacidade de desmistificar uma situação ou pessoa), e o modo bastante acentuado da ironia nas relações entre os homens – característica bastante marcante no romance Quase memória. Essas características da ironia são utilizadas na análise dos elementos principais do romance – foco narrativo, personagem, tempo, memória e a idéia de duplo presente no texto. Além disso, tenta-se, também, contribuir, de alguma forma, ao estudo da obra de Carlos Heitor Cony, ainda insuficientemente trabalhada nos meios acadêmicos. PALAVRAS-CHAVE: ironia, Carlos Heitor Cony, foco narrativo, tempo, memória, personagem. 8 ABSTRACT The aim of this paper is to analyze Carlos Heitor Cony’s novel Quase memória. In order to gain access to this particular narrative and its variety of meanings different concepts of irony, as it has been defined along literary history, have been outlined and employed — ranging from the so-called Socratic irony to Romantic irony, as well as to irony as a narrative device aimed at producing ambiguity. How irony is employed by the author and the important role it plays throughout the book, particularly with regards to characterization, point of view and memory, are therefore the main concerns of this study, whose purpose it is furthermore to contribute to the still insufficient number of literary studies dedicated to the novels of Carlos Heitor Cony. KEYWORDS: irony, Carlos Heitor Cony, point of view, narrative time, character, memoir. 9 Sumário: Apresentação................................................................................................................. 10 1.Introdução.................................................................................................................. 15 2.Ironia........................................................................................................................... 25 3. Elementos do romance............................................................................................. 37 3.1. As personagens........................................................................................................ 37 3.1.2. As personagens centrais do romance.................................................................... 48 3.2. Foco narrativo.......................................................................................................... 59 3.3. O tempo................................................................................................................... 66 4. Memória? Quase....................................................................................................... 76 5.O duplo e as dualidades............................................................................................. 85 5.1.Dualidades................................................................................................................ 91 6. Considerações finais............................................................................................... 106 7. Referências bibliográficas...................................................................................... 110 Anexos 10 Apresentação: No quase-quase de um quase-romance de uma quase-memória, adoto um dos lemas do personagem central deste livro, embora às avessas: amanhã não farei mais essas coisas. Carlos Heitor Cony, Quase memória Quando o romance Quase memória foi escolhido para ser objeto de estudo, no ano de 2001, Carlos Heitor Cony havia, há pouco, tomado posse da cadeira número três da Academia Brasileira de Letras, ou seja, sua obra acabava de ter o reconhecimento pleno, pois Cony passava, a partir daquele instante, a ser um imortal. No entanto, não foi a nomeação de Cony para a Academia que fez com que um de seus romances fosse escolhido para a análise de um então aluno de graduação do curso de Letras. O que mais chamava a atenção em Cony era o modo singular de contar histórias, a maneira como eu, com os meus vinte e poucos anos já havia devorado – e essa é a palavra exata – boa parte de sua obra, obra que começou a ser escrita há quase meio século. Outro componente relevante na escolha do escritor foi, sem dúvida alguma, a beleza poética do Quase memória, o lirismo comedido, misturado com um humor irônico, sutil, que permeia a narrativa e toda a relação daquele pai imponente com o filho reservado e, sempre, admirado. Assim, tendo o romance como ponto de partida e, depois de um período de orientação, a ironia como a base para a análise, passei a desenvolver um projeto de iniciação científica que é, na verdade, o embrião desta dissertação de mestrado. Esse trabalho de iniciação foi de grande valia pois, mesmo sendo algo não muito aprofundado, mostrou, de certo modo, como era e o que era ser um pesquisador – ainda que totalmente incipiente e ingênuo (não muito diferente do atual); e, com essa maior imersão tanto no Quase memória como na vida e na obra desse escritor, fui ficando cada 11 vez mais entusiasmado não só pela pesquisa de iniciação mas, também, pelo autor e, já com o trabalho em sua fase final, resolvi tentar mostrá-lo ao Cony para, quem sabe, conseguir alguma palavrinha sobre o Quase memória. Desse modo, decidi escrever para o Cony me apresentando e lhe pedir, caso ele pudesse, uma pequena entrevista para anexar ao final da pesquisa. Cerca de um mês após o pedido, Cony me responde dizendo-se disposto a conceder a entrevista, pois havia lido o projeto e se sentia lisonjeado; ainda dizia que havia saído um livro (Perfis do Rio, de Cícero Sandroni), acerca de sua vida e obra e, caso eu quisesse, ele estava disposto a enviar-me. Algumas semanas após a entrevista, em uma sexta feira, recebo, em casa, um embrulho cujo remetente era Mila Produções Editoriais. Assim, pude ter em mãos um embrulho – se não perfeitamente ornamentado como aquele descrito no romance, ao menos um embrulho parecido com o famoso; e, do mesmo modo como a personagem de Carlos Heitor Cony faz no Quase memória, eu também fiquei, durante um determinado momento, admirando aquele invólucro. Não, infelizmente não havia um nó, nem mesmo barbante, também não havia letra – o nome do destinatário fora escrito em computador – mas havia, no entanto, o meu nome, ali, bem no centro do envelope (nesse momento sou obrigado a confessar que o embrulho não passava de um simples envelope, mas, ainda assim, era o meu envelope, o meu embrulho com endereço e tudo – acredito que nem mesmo em um romance uma correspondência chegaria a minhas mãos se contivesse somente meu nome). Porém, apesar das forçosas coincidências – que na verdade não existem – aquele era, e ainda é, pois o guardo até hoje, o meu embrulho; quem sabe daqui a muitos anos eu não me sente em frente a esse invólucro, trancado em um escritório, e comece a rememorar cada momento desse episódio, narrando a história de um jovem aluno que 12 em um determinado dia recebe um embrulho de seu escritor predileto e, a partir das evidências deixadas no invólucro, começa a reviver momentos de sua vida... Por fim, é preciso ressaltar que graças ao desenvolvimento desse projeto de iniciação científica achei interessante continuar a investir nesse caminho, e, ao final da minha graduação, decidi fazer o mestrado; esta dissertação é o resultado desses anos de pesquisa sobre o romance Quase memória. ... O presente trabalho busca apresentar uma leitura do romance Quase memória tendo a ironia como ponto de partida para a análise. Procurar-se-á enfatizar o modo como a ironia é trabalhada por Carlos Heitor Cony na construção da narrativa, bem como qual a função exercida pela mesma ao longo do texto. Além disso, esta dissertação visa, de algum modo, contribuir para o estudo da obra de Carlos Heitor Cony, uma vez que o material existente acerca desse autor é ainda escasso nos meios acadêmicos. Assim sendo, pode-se afirmar que este trabalho divide-se em cinco capítulos: o primeiro traça um breve panorama sobre Carlos Heitor Cony e sua obra, e apresenta, ainda, o tema a ser explorado ao longo deste estudo – a relação entre a ironia e o romance Quase memória; o segundo faz um breve panorama histórico da ironia, explicitando alguns tipos considerados relevantes para o desenvolvimento da análise proposta; o terceiro capítulo trabalha a análise de alguns elementos do romance - personagens, foco narrativo e tempo; o capítulo seguinte, Memória? Quase, avalia o modo como a memória se faz pertinente para a compreensão do texto, e procura mostrar, também, o quanto esse assunto é caro ao trabalho do autor; por último, a 13 dissertação debruça-se sobre a idéia do duplo e das dualidades decorrentes da relação entre o narrador e o pai, tendo como pano de fundo alguns aspectos da sociedade brasileira, como a imprensa, a cidade do Rio de Janeiro e o próprio país. Contudo, vale ressaltar ainda que a ironia foi sempre a base de sustentação para a análise de cada elemento proposto neste trabalho. 14 ... pour que l’événement le plus banal divienne une aventure, il faut et il suffit qu’on se mette à le raconter. C’’est ce qui dupe les gens: un homme, c’est toujours un conteur d’histoires, il vit entouré de ses histoires et des histoires d’autrui, il voit tout ce qui lui arrive à travers elles; et il cherche à vivre sa vie comme s’il la racontait. Mais il faut choisir: vivre ou raconter. Sartre, La Nausée ... para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver sua vida como se narrasse. Mas é preciso escolher: viver ou narrar. Sartre, A náusea, Tradução Rita Braga 15 1. Introdução: Não tenho nada com o adulto que substituiu a criança espantada diante do mundo, gostando e temendo o mundo. Fugindo e querendo ser do mundo. [...] Um dia voltaria para dentro de mim, farto dos outros, farto de mim mesmo. A busca transformou-se num retorno... Daí a pouca ou nenhuma importância que dou ao adulto que me sucedeu. É um farsante. Finge levar a vida com a seriedade possível mas está louco para que a missão acabe e ele possa voltar a ser o menino que cresceu contra a vontade. Carlos Heitor Cony, Auto-retrato. Membro da Academia Brasileira de Letras desde março de 2000, Carlos Heitor Cony começou sua carreira literária nos anos cinqüenta com a publicação do romance O ventre. A partir daí, a verve literária desse autor se fez presente por aproximadamente quinze anos na literatura brasileira, até a publicação de seu quase último romance, Pilatos, após o qual uma ausência de mais de duas décadas o afastou da literatura - retomada somente em 1995, com o lançamento de Quase memória. Nascido no bairro de Lins de Vasconcelos, em 14 de março de 1926, no Rio de Janeiro, ex-seminarista, escritor e jornalista, Carlos Heitor Cony é, hoje, um dos grandes nomes da literatura contemporânea brasileira. Autor de dezenas de romances, contos, novelas, crônicas, adaptações de grandes clássicos, narrativas infanto-juvenis etc., Cony é o tipo de escritor atuante (logo se vê pela multiplicidade de gêneros pelos quais transita), cujos livros agradam várias gerações, e continuam cada vez mais atuais. Após a já mencionada estréia literária em 1958 com O ventre, Cony lança, um ano depois, A verdade de cada dia, agraciado com o prêmio Manuel Antonio de Almeida. Já em 1960, Tijolo de segurança – também vencedor do mesmo prêmio. Estamos, pois, no início da década de sessenta, Cony tem trinta e poucos anos e começa a figurar como uma referência na literatura nacional da época. No entanto, a década de sessenta é marcada por grande turbulência política, que redundaria no golpe militar de 1964. Nesse momento, Cony passa a ser a voz dissonante em relação ao regime militar recém-instalado no país. Como cronista do jornal carioca Correio da 16 manhã, passa a fazer uma série de críticas contundentes à ditadura, em um momento em que a maioria se cala, pois os militares se mostravam dispostos a silenciar quem ousasse levantar qualquer tipo de ideal conflitante com o que eles tentavam estabelecer. O Cony [...] não tinha como saber o que seus artigos escritos durante o regime militar – ou durante o período depois de março de 1964 em que ainda se podia escrever contra um regime que se autodefinia como provisório – significavam para mim [Luís Fernando Veríssimo], só para usar o exemplo mais à mão. Lembro-me que naqueles tristes dias ler o Cony no Correio da Manhã era, ao mesmo tempo, um ato de rebeldia seguro, pois era o que todos estavam fazendo, e um tônico contra o sentimento generalizado de impotência. O Cony dizia o que queríamos dizer. O Cony era a nossa barricada moral. Foi através do Cony que não ficamos quietos. (Cadernos de Literatura Brasileira, 2001: p.30) Esse conjunto de crônicas políticas de Carlos Heitor Cony foi publicado, ainda em 1964, em um livro intitulado O ato e o fato e relançado em 2004, em virtude dos quarenta anos do golpe militar. Ainda assim, sua produção literária continua. Em 1961 escreve Informação ao crucificado - um romance escrito em forma de diário, que relata os últimos momentos do seminarista João Falcão. Vale ressaltar que Cony é um ex-seminarista e muito do que nos é contado no romance foi tirado das próprias experiências e angústias do autor. Em 1962 publica Matéria de memória, dois anos depois sai Antes, o verão, e em 1965, Balé Branco. No ano de 1967 escreve Pessach: a travessia, romance no qual Cony relata as experiências de um escritor de quarenta anos que se diz contrário à ditadura, assinando manifestos e coisas do gênero, mas que, apesar de assediado, sente-se incapaz de aderir aos guerrilheiros que buscam formas mais incisivas de combate ao regime militar. Esse romance consegue desagradar a gregos e troianos, à esquerda e à direita, pois, se por um lado mostra uma personagem que o acaso coloca na luta armada, por outro mostra a 17 mesma personagem sendo traída pelo Partido Comunista. Pessach foi sabotado dentro da própria editora em que Cony publicava suas obras, a Civilização Brasileira, reduto de comunistas históricos como Dias Gomes e Ferreira Gullar. Com as palavras de Cony pode-se ter uma noção do ocorrido após a publicação do romance: Foi em 1967, quando lancei Pessach: a travessia. O PCB, que aparece como traidor da guerrilha, me puxou o tapete. Mas eles não podiam fazer muita coisa, porque seria uma forma de chamar a atenção para o livro. Adotaram uma postura de desagrado contra ele e contra mim, mas ficaram quietos. Comecei a notar que estava sendo discriminado. (Playboy, 1995: p.34) Em 1974, Cony publica Pilatos e abandona, por mais de vinte anos, a literatura. Pilatos é originalíssimo. Não tem semelhança com nenhuma outra obra de arte da literatura brasileira. Talvez Carlos Heitor Cony fosse predestinado para escrever assim. Pois certos germes de Pilatos já se encontram em obras suas, anteriores. Mas esta vez, também é singular o estilo em que Cony escreveu. É um estilo altamente pessoal. Só podia ser ele. Mas o resultado, a obra, tem importância para todos nós. A leitura provoca gargalhadas. São inúmeros os trechos de humorismo abundante e irresistível [...] O humor abundante de Pilatos está cheio de símbolos, ou então, é o mesmo símbolo de uma tristeza desconsolada. Quem tiver lido Pilatos estará melhor informado: sentindo toda a infelicidade de nossa condição humana e desumana. E o que se pode esperar mais de uma obra de arte? (Carpeaux, O.M., 1975 In: Pilatos, 2001b: contracapa do romance) Assim é Pilatos, um romance singular, engraçado, cheio de absurdos, um texto que deixou grande parte dos leitores de Cony estarrecidos, sem conseguir compreender o que estava se passando, quando, na verdade, Cony estava, simplesmente, dando um basta, ainda que provisório, na vida de romancista e passando a se dedicar integralmente à vida pessoal. 18 Após a publicação de Pilatos, há um hiato na carreira literária de Carlos Heitor Cony. O autor, como já foi dito, passa mais de vinte anos sem publicar qualquer romance, mas esse silêncio é quebrado em 1995 com a publicação de Quase memória. Escrito em virtude da doença de sua cachorra Mila, “a mais que amada”, o romance Quase memória seria, originalmente, uma crônica, mas acabou se alongando muito e virou um romance, ou como define o próprio autor, um quase-romance. Nem pensava em publicar o livro. Ele foi escrito em condições especiais, acompanhando a fase terminal de Mila, a minha maior amiga e companheira. Iam saindo coisas que eu nem sabia direito o que era, farrapos de um passado que eu não vivi e pensei que tinha vivido. Um amigo, o Ruy Castro, leu o texto e encaminhou à editora. Pensei em mudar tudo, mas isso mudaria minha relação com o texto, que foi todo marcado pelo final de Mila. Havia inserções sobre ela durante todo o livro, inclusive o momento em que ela me deixou para sempre. Estas marcações foram tiradas, em comum acordo com o editor e o autor. (Anexo A: p.118) Portanto, Quase memória é um romance especial, “escrito em condições especiais”, e que tem, como uma característica mais do que especial, o retorno de Carlos Heitor Cony ao cenário literário nacional, após uma longa ausência. O romance Quase memória é considerado por muitos dos críticos como um dos mais belos livros de Cony; nele o autor conseguiu criar, com muito lirismo, toda a dubiedade dos sentimentos que envolvem as personagens centrais da narrativa. Com estas palavras do escritor Ruy Castro, pode-se ter uma noção da representatividade desse romance na obra de Carlos Heitor Cony: Qual é o maior romance de Carlos Heitor Cony? Para alguns é Informação ao crucificado, de 1961; para outros, é Pessach: a travessia, de 1967. E, para os mais radicais, o maior é Pilatos, o último que ele publicou, em 1974. Tudo isso terá de ser 19 revisto agora. Quase memória é a grande volta de Cony ao romance – e valeu a pena esperar. Quase memória é um romance de quase-ficção. É o mundo visto por alguém de calças curtas, no qual os adultos é que parecem infantis. O personagem central é seu pai, um homem que acreditava em tudo e que fazia os outros acreditarem. Cony também acreditou nesse pai e faz com que todos nós acreditemos. Com Quase memória Cony escreveu o seu Amarcord particular. É uma história cheia de episódios inesquecíveis, dos quais pelo menos um – o do balão que volta para morrer onde nasceu – sairá deste livro para as antologias da literatura brasileira. (Castro, R., 1995: In: Quase memória, contracapa do romance) Vencedor de dois prêmios Jabuti - melhor romance e, também, livro do ano, categoria ficção, em 1996 - o romance Quase memória, publicado em 1995, atingiu uma grande identificação com os leitores – somando, no primeiro semestre de 2005, 400 mil exemplares vendidos. Ainda em 1996, Cony receberia, da Academia Brasileira de Letras, o prêmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra. Narrado em primeira pessoa, Quase memória relata a vida da personagem Carlos Heitor Cony, tendo como ponto de partida as peripécias de seu pai – um homem que tem como principal característica a imensa capacidade de ser feliz, independente das situações vividas. Essas duas personagens vivem no limite entre a cumplicidade e o distanciamento, pois há um grande desconforto na relação entre ambas, gerado pelas diferenças de comportamento. Assim, temos um narrador autodiegético que conduz o leitor ao longo do texto. Todos os episódios são contados de acordo com a ótica desse personagem-narrador, o que torna a narrativa unilateral: caberá ao leitor confiar exclusivamente na memória que o narrador tem das peripécias do pai. No entanto, Ernesto Cony Filho, o pai, é a personagem que presentifica o narrador, é ela que permite ao leitor conhecer Carlos Heitor Cony. É por meio das aventuras de seu pai que a história de vida do filho nos é revelada. 20 Uma das principais marcas de Ernesto Cony Filho é, como já dissemos, a capacidade de gozar a vida, de ser feliz – felicidade que muitas vezes parece incomodar o narrador. Uma tal alegria diante da vida é percebida claramente pelo leitor ao longo do texto; Ernesto Cony Filho é uma personagem surpreendente, capaz das atitudes mais inesperadas – como a criação de galinhas no quintal, a fabricação de perfumes etc. – e que tem como lema a frase: “Amanhã farei grandes coisas”. O ponto-chave do romance está na conturbada relação entre pai e filho – relação essa pautada na ironia. Ao rememorar os fatos mais marcantes desse relacionamento, o narrador demonstra toda a sua dubiedade de sentimentos, mostra o incômodo que a presença daquele pai lhe causa desde a infância até os dias atuais – mesmo após a morte dele –, e essa ambigüidade só se torna clara, compreensiva para o leitor, pelo viés irônico. A ironia que permeia a relação entre pai e filho será elemento central na explicitação do conflito entre ambos. Vale ressaltar que Carlos Heitor Cony é um autor que procura implantar tal característica em suas obras, tendo em vista que, de acordo com as palavras do próprio autor, a ironia é parte integrante da nossa literatura. A ironia é a uma das constantes da nossa literatura. Meus autores preferidos, Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto, foram mestres na ironia e, em alguns casos, até mesmo do deboche, como no caso do Lima Barreto. Desde o meu primeiro livro incluí este lado bem carioca na minha literatura. (Anexo A: p.116) Recurso bastante utilizado na literatura, a ironia conta com uma grande quantidade de estudiosos e admiradores. Desde Sócrates – que a utilizava para desmascarar um rival –, na Antigüidade, até os dias atuais, passando por pensadores 21 como Freud, a ironia tem despertado constantemente o interesse de pesquisadores e teóricos, especialmente no campo da lingüística, da psicanálise e da literatura. Para se tentar avaliar as características da obra de Cony à luz da ironia, esta dissertação debruçar-se-á de uma maneira mais atenta às obras que procuram revelar alguns dos modos de utilização da ironia, tendo sempre como referência sua relação com a literatura. No entanto, não se tem a pretensão de dar uma visão definitiva à obra de Carlos Heitor Cony e, muito menos, de propor um novo modo para se entender ou trabalhar a ironia. O que se procura, de fato, é revelar uma visão determinada – e não única – das características irônicas presentes na narrativa de Cony. Para isso, busca-se em fontes teóricas uma linhagem do conceito de ironia - suas características e variações. Um outro aspecto que chama bastante a atenção do leitor no decorrer do texto é a presença de dois tempos distintos na narrativa. Ao presente da narrativa – momento em que tem lugar a rememoração do narrador em primeira pessoa -, contrapõe-se um passado composto da matéria lembrada, marcado pelos vários episódios que muito oscilam. Desse modo, tem-se uma narrativa em flash-back, cujo tempo é ordenado de acordo com as lembranças de quem escreve, conduzindo o leitor por um constante vai- e-vem. Entre outros motivos, Quase memória pode ser considerado um romance bastante emblemático da obra de Carlos Heitor Cony, porque nele estão presentes alguns elementos marcantes do escritor: uma constante presença do ceticismo, da busca por algo que não mais existe, de um tempo já perdido, ou desperdiçado. Em Cony, o tempo é ‘desperdiçado’ por causa do ceticismo, da sensação de tédio, cansaço de existir. Esse é um movimento de consciência presente tanto nos 22 textos de memória predominantemente autobiográfica (como Quase memória) quanto em ficções que apenas esporadicamente assumem cunho autobiográfico, como Romance sem palavras. (Bueno, 2002: p.70) A memória, de fato, é uma constante nos romances de Carlos Heitor Cony. O autor tem uma forte ligação com essa busca pelo passado - os romances Quase memória e Matéria de memória, por exemplo, trazem essa indicação logo no título; há, ainda A casa do poeta trágico, que também demonstra essa busca, essa tentativa de reconciliação com o tempo perdido. Além disso, Cony possui uma capacidade extrema de retratar a realidade da classe média urbana brasileira, em especial a burguesia carioca – uma habilidade que, de resto, não se aplica apenas ao cenário fluminense, mas, partindo dele, ganha contornos universais (400 mil cópias vendidas podem não ser garantia de universalidade, mas, de certo, são um belo indício). A relação familiar também se faz presente nos romances de Cony: essa parece ser uma das grandes marcas do escritor, pois ele sente-se muito à vontade para narrar as vicissitudes familiares, mostrar a degradação dessa instituição, como faz, por exemplo, em O ventre e A verdade de cada dia. Nas palavras do próprio autor: Há aquela frase: escreva sobre tua aldeia e descreverás o mundo. Escrever sobre a família é descrever a humanidade. Ela é o núcleo de tudo. A humanidade é a família amplificada até certo ponto. E literariamente, é uma fonte de acesso fácil. (Anexo A: p.119) 23 Temos aí, pois, em resumo, os elementos centrais sobre os quais se apoiará este trabalho. A seguir proceder-se-á uma exposição dos conceitos de ironia, dos elementos do romance, memória, o duplo e as dualidades presentes na narrativa. Quanto a Cony, ele publicaria ainda O piano e a orquestra, em 1996, ganhando o prêmio Nestlé de literatura desse ano; A casa do poeta trágico, em 1997, vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance no ano de 1998; Romance sem palavras, em 1999, também vencedor do mesmo prêmio no ano seguinte; O indigitado, em 2000; e, finalmente, em 2003, o romance A tarde da sua ausência. Atualmente, Cony escreve crônicas diárias para o jornal Folha de São Paulo, além de participar, juntamente com os jornalistas Heródoto Barbeiro e Artur Xexéu, do Jornal da CBN, pela rádio CBN. 24 TThhee ccoonncceepptt ooff iirroonnyy aatt aannyy oonnee ttiimmee mmaayy bbee lliikkeenneedd ttoo aa sshhiipp aatt aanncchhoorr wwhheenn bbootthh wwiinndd aanndd ccuurrrreenntt,, vvaarriiaabbllee aanndd ccoonnssttaanntt ffoorrcceess,, aarree ddrraaggggiinngg iitt sslloowwllyy ffrroomm iittss aanncchhoorraaggee.. DD..CC.. MMuueecckkee,, IIrroonnyy aanndd iirroonniicc OO ccoonncceeiittoo ddee iirroonniiaa aa qquuaallqquueerr tteemmppoo éé ccoommppaarráávveell aa uumm bbaarrccoo aannccoorraaddoo qquuee oo vveennttoo ee aa ccoorrrreennttee,, ffoorrççaass vvaarriiáávveeiiss ee ccoonnssttaanntteess,, aarrrraassttaamm lleennttaammeennttee ppaarraa lloonnggee ddee sseeuu aannccoorraaddoouurroo.. DD..CC MMuueecckkee,, IIrroonniiaa ee iirrôônniiccoo TTrraadduuççããoo GGeerraallddoo GGeerrssoonn ddee SSoouuzzaa 25 2. Ironia: CChhoorreeii ppeellaa pprriimmeeiirraa vveezz ppoorr mmoottiivvooss aalléémm--ffííssiiccaa.. PPeennaa ddee mmiimm mmeessmmoo,, ee iissssoo éé hhoorrrríívveell nnaa eessccuurriiddããoo ddee uumm ddoorrmmiittóórriioo eessttrraannhhoo.. MMeemmóórriiaa ttrraabbaallhhaannddoo,, cceennaass ee ffeerriiddaass eessqquueecciiddaass,, aallii nnaass ppaarreeddeess.. OOss oollhhooss pprroojjeettaannddoo nnoo tteettoo eessccuurroo,, ccoommoo uumm cciinneemmaa,, ttooddaa aa iinnffâânncciiaa iinnúúttiill.. NNaaqquueellaa nnooiittee ddeessccoobbrrii aa ttrriisstteezzaa.. MMiinnhhaa nnaammoorraaddaa ttrriisstteezzaa.. NNaammoorraaddaa,, ddeeppooiiss aammaannttee vviittaallíícciiaa.. EEllaa ppeenneettrroouu ddeennttrroo ddee mmiimm.. AAss lláággrriimmaass,, ttrraannssbboorrddaammeennttoo bboobboo ddaa aallmmaa,, qquuee eennttrraassssee aa ttrriisstteezzaa,, ssee ffiizzeessssee sseennhhoorraa.. TTaallvveezz aa mmiinnhhaa ttrriisstteezzaa ffoossssee ssaauuddaaddee ddee nnããoo ssaabbiiaa oo qquuêê.. AAqquueellaa nnooiittee mmaarrccoouu oo ffiimm ddaa mmiinnhhaa iinnffâânncciiaa.. EE oo iinníícciioo ddee uummaa mmaattuurriiddaaddee pprreeccooccee ee ddeesseessppeerraaddaa.. OOss ttrriisstteess ssããoo sseemmpprree mmaadduurrooss.. NNaaqquueelleess ddeezz oouu qquuiinnzzee mmiinnuuttooss vviivvii ee cchhoorreeii,, sseemm ssaabbeerr,, ttooddaa aa mmoocciiddaaddee.. DDeeiittaarraa--mmee ccrriiaannççaa,, aaccoorrddaarriiaa hhoommeemm.. OO jjoovveemm nnaasscceerraa ee mmoorrrreerraa aallii,, ddiilluuííddoo nnoo pprraannttoo mmaacciioo qquuee mmoollhhoouu ooss ttrraavveesssseeiirrooss,, ddeeiixxaannddoo eemm mmiinnhhaass ffaacceess uumm ggoossttoo eessttrraannhhoo qquuee ààss vveezzeess pprrooccuurroo,, iinnuuttiillmmeennttee,, rreennoovvaarr.. CCaarrllooss HHeeiittoorr CCoonnyy,, OO vveennttrree De acordo com Massud Moisés, a ironia consiste, de um modo genérico, em dar a entender o que se pensa por intermédio de seu contrário, estabelecendo assim um contraste entre o modo de enunciar o pensamento e o seu conteúdo. (Moisés, 1974: p. 294-5) Essa é a definição clássica da ironia e, em outras palavras, afirma que a ironia é utilizada para se dizer o contrário do que se está realmente pensando, ou querendo dizer. No entanto, tal definição é incapaz de abranger o termo em todas as suas acepções, pois não explicita plenamente a capacidade de expressão da ironia. Só o sentido especializado de ‘ironia’ se apresenta bem definido: é o processo de expressão per contrarium, a figura de retórica que consiste em atribuir às palavras sentidos opostos aos que normalmente exprimem. Este caso, porém, representa apenas uma particularização, uma manifestação típica, se se quiser, de uma atitude interior que se manifesta de muitas outras maneiras. (Paiva, 1961: p.3) Pode-se afirmar, portanto, que o conceito de ironia não se deixa precisar, não se consegue apreender suas significações como um todo, o que se por um lado, torna “escorregadio” o terreno da ironia, por outro faz com que seja intrigante o estudo desse expediente aparentemente inapreensível. 26 A palavra “ironia” sofreu – e ainda sofre – uma crescente variação semântica, não apenas com o passar dos séculos e as mudanças na história das idéias, mas também em relação às diferentes culturas nas quais tem sido utilizada. A evolução semântica do vocábulo foi acidental; historicamente, nosso conceito de ironia é o resultado cumulativo do fato de termos, de tempos em tempos no decurso dos séculos, aplicado o vocábulo ora intuitivamente, ora negligentemente, ora deliberadamente, a fenômenos que pareciam, talvez erroneamente, ter bastante semelhança com alguns outros fenômenos aos quais já vínhamos aplicando. (Muecke, 1995: p.22) O termo ironia tem a sua origem no grego eironea, significando dissimulação. Nas comédias, o eiron é o pobre coitado que triunfa sobre o valentão e, para isso, vale- se de sua astúcia em fazer perguntas tolas, para as quais o valentão não possui respostas. (Nestrovski, 1996: p. 10) O primeiro registro do termo eironea aparece na República de Platão, aplicado a Sócrates, e parece significar uma maneira sutil de enganar as pessoas. Segundo Demóstenes, o eiron era aquele que, alegando uma certa incapacidade, conseguia fugir de suas responsabilidades como cidadão. Para Teofrasto, era um ser evasivo e reservado. Já Aristóteles dava a eironea um sentido de dissimulação autodepreciativa, superior ao seu oposto: alozoneia. Para Cícero, o vocábulo ironia não possui os significados atribuídos pelos gregos; ele o utiliza como uma figura de retórica ou como um recurso para uma pretensão amável; assim, quando o utilizamos no sentido dado por Sócrates – que assegurava ter esperança de aprender com seu interlocutor o que é santidade ou justiça – estamos empregando o termo ironia de acordo com um conceito romano e não grego. (Muecke, 1995: p.31-2) 27 A ironia era utilizada por Sócrates como um mecanismo de perguntas e respostas mediante o qual o filósofo grego, após obter resposta para uma primeira questão, prosseguia de pergunta em pergunta obtendo respostas variadas que lhe permitiam mostrar a incoerência do interlocutor até que este admitisse sua ignorância. Dessa forma Sócrates era capaz de confundí-lo, levando-o à dúvida e deixando assim evidente as falhas presentes no discurso. (Sage, 1980: p. 206 apud Brait, 1996: p. 25) Pode-se, assim, afirmar que a idéia de ironia existe há séculos e, ainda hoje, tem aplicação variada e ampla em razão da multiplicidade de alternativas que oferece ao plano da expressão, e isso explica sua presença nas mais diversas manifestações do pensamento humano. ... Na literatura mais recente, a ironia torna-se um recurso mais utilizado a partir do Romantismo, no século XVIII. Nesse momento histórico, o indivíduo passa a manifestar a sua rebeldia, o seu descontentamento e as suas angústias por meio da poesia e, para tanto, a ironia oferece uma poderosa arma, porque permite ao poeta um afastamento, um exercício distanciado e dissimulado da crítica em suas obras. No romantismo, ela passa a ser utilizada também para aliviar a tensão existente entre o sujeito e o mundo ao seu redor, nesse instante o sujeito reavalia a concepção de obra de arte, deixando de vê-la somente como mímesis, e passando a ver na literatura uma maneira de demonstrar o seu descontentamento em relação à sociedade em que vive ou também em relação a outros temas como, por exemplo, a brevidade da vida, Deus, o destino etc. 28 [Para os românticos, a ironia passa a ser] uma forma de pensar muito sutil e específica que, no seu caráter oblíquo e cindido, reflete as complexas circunvoluções mentais de gente extremamente crítica, sensível e refinada, individualista e anárquica, afeita ao trato diuturno do espírito e das letras...”(Rosenfeld & Guinsburg,1978: apud Brait, 1996: p. 32) Se na Antigüidade a ironia era utilizada basicamente como uma figura de retórica, com o Romantismo ela ganha feições mais filosóficas, refletindo acerca do modo de representação da literatura e do modo de ser e agir do homem. Friedrich Schlegel é quem apresenta uma teoria romântica de ironia para a literatura, dando ao escritor uma maior liberdade de estilo e conferindo uma individualidade ao poeta. Para Schlegel, a ironia romântica surge a partir do entendimento do mundo como um local repleto de contradições e incoerências, cabendo à literatura o papel de refletir acerca dessas desarmonias, em busca de uma melhor compreensão do cotidiano. (Welleck, 1967: p.13 apud Volobuef, 1998: p.90) A partir daí, o poeta adquire importância ainda maior no fazer literário, pois seus ideais passam a ser tão respeitados quanto a obra em si. No Romantismo, o autor assume uma voz na narrativa, representando-se como sujeito implicado na história. Essa atitude resulta em uma maior valorização do leitor, tendo em vista que o autor necessita de uma mais completa compreensão do seu texto, isto é, deixa de lado o caráter autoritário de senhor do mundo – que tudo sabe e tudo pode ensinar – e começa a se preocupar em convencer, em seduzir o leitor com a narrativa. E na busca dessa persuasão a ironia desempenha papel bastante importante. (Duarte, 1994: p.56) No entanto, os românticos – em especial Friedrich Schlegel - não defendem apenas uma predileção pelo autor em relação à obra, mas sim a valorização do indivíduo como ser pensante, capaz de refletir sobre a literatura e sobre si mesmo. A arte deixa de 29 ser mero instrumento de contemplação e ganha um status transformador, capaz de criticar a si mesma e à sociedade. (Volobuef, 1998: p.93) Não foi apenas Friedrich Schlegel que trabalhou com o conceito de “ironia romântica”; na obra de Joseph von Eichendorff, por exemplo, também há um tipo de discurso irônico. Um recurso muito ao gosto desse romântico é o narrador que em dado momento interrompe o andamento da história para dirigir-se ao leitor – um expediente, aliás, que com freqüência visita as páginas dos românticos brasileiros... Muitas vezes, Eichendorff lança mão dessa estratégia a fim de envolver o leitor e granjear sua simpatia para com os personagens e seus infortúnios [...] ou em outros casos, utiliza-a para criar um clima de confidência, em que narrador e leitor se irmanam nas mesmas impressões e sensações. (Volobuef, 1998: p.94) A ironia, decerto, não se esgota ou se consolida somente nessa interrupção do narrador que se dirige ao leitor; ela é muito mais, configurando-se como um recurso que procura estimular reflexões acerca da literatura e dar ao leitor uma participação forçosa nessa discussão. Tal participação ocorre na medida em que o autor destrói a ilusão de verossimilhança e mostra o caráter ficcional da narrativa, chamando a atenção daquele que lê para como o texto foi elaborado. (Volobuef, 1998: p.99) Na ironia romântica não apenas as narrativas podem ser consideradas irônicas, também o autor e os leitores, como vimos, assumem um papel mais relevante na compreensão do novo modo de se pensar e fazer literatura. O reino da ironia começa portanto quando o artista perde a certeza da totalidade clássica, quando o homem se reconhece e ao seu mundo como fragmentado, incompleto, incongruente. A consciência disso aparece na obra através da emergência de uma voz enunciadora, procedimento irônico com que, de certa forma, destrói-se a ilusão de espontaneidade da criação artística, isto é, 30 revela-se o trabalho em que se empenha o criador do texto, num esforço de que resulta a sua obra. (Duarte, 1994: p. 63) Schlegel, ao escrever a respeito da ironia romântica, procura diferenciá-la das caracterizações de ironia até então predominantes, apresentando novos conceitos e novas particularidades. Entre essas, pode-se destacar a marcante presença do idealismo alemão - postura filosófica que trabalha a questão das relações existentes entre o eu e o mundo, e que procura demonstrar a capacidade criadora do sujeito pensante por meio de situações irônicas, que buscam romper a “seriedade” ou a complacência frente à vida em sociedade. Para além de Schlegel, a ironia continuou despertando o interesse de muitos teóricos e pensadores ao longo dos séculos. Entre esses que se sentiram fisgados pela variedade presente na ironia, podem-se citar Kierkegaard, Heine, Baudelaire, Nietzsche e Thomas Mann. 1 Como vimos, a ironia foi extensamente estudada ao longo dos séculos XVIII e XIX, mas isso não significa que ela tenha sido esquecida no século XX. Nesse último momento, a ironia se apresenta de uma maneira mais relativa e menos reservada, como “uma visão de vida que reconhecia ser uma experiência aberta a interpretações múltiplas, das quais nenhuma é simplesmente correta, que a coexistência de incongruências é parte da estrutura da existência” (Hynes apud Muecke, 1995: p.48) ... 1 Há, ainda, dois outros nomes que merecem ser ressaltados acerca de seus trabalhos sobre ironia: August Wilhelm Schlegel (1767 - 1845) e Connop Thirlwall (1797 - 1875). Para o primeiro, a ironia é capaz de restaurar ou manter um equilíbrio; já para o segundo, é aplicada a um conceito tipicamente inglês de ironia dramática, na qual a fala das personagens atinge uma dupla referência, mostrando não apenas a situação como ela lhe parece naquele momento mas, também, o modo como ela realmente é. 31 Se já vimos o papel da ironia na prática socrática e a conceituação da ironia romântica em Schlegel, também Bergson e Freud apresentam contribuições importantes ao estudo da ironia no plano da linguagem. Em Bergson ela é analisada a partir da maneira como se insere no discurso atualizando diferentes elementos de acordo com o contexto e o receptor. Em Freud, por outro lado, o discurso irônico – dizendo o contrário do que quer realmente dizer – busca transmitir de maneira oblíqua ao receptor as reais intenções do enunciador. O ironista pressupõe certa dificuldade do receptor na compreensão do discurso irônico, e é desse jogo de “contradições” que o narrador extrai o seu trunfo - da inicial incapacidade do receptor em decodificar o discurso irônico. Freud, aliás, relaciona a ironia à mentira. Na mentira o enunciador desqualifica o receptor, porque o engana; já a ironia o qualifica, pois parte do pressuposto de que o receptor será capaz de percebê-la e, conseqüentemente, participar ativamente dela. Mas, enquanto na mentira o enunciador procura encobrir, por meio de um significante, sua verdadeira intenção, na ironia ele deixa pistas para que a dissimulação seja percebida. Deste modo, Freud também traz a ironia para o plano da linguagem, uma vez que o autor de um discurso irônico vale-se muito do uso de antífrases para atingir o seu real objetivo. Contudo, enquanto na mentira o enunciador procura encobrir, por meio de um significante, sua verdadeira intenção, na ironia há pistas para que essa dissimulação seja percebida, permitindo assim uma interação entre o emissor e a sua vítima. Essa cumplicidade existente entre o ironista e o receptor também pode ser vista na definição dada por Lausberg sobre ironia, na qual ele a subdivide em “retórica” e “tática”. A primeira visa atingir o seu receptor por meio de um determinado discurso que dá a reconhecer a não credibilidade do texto; já “tática” é um complemento da 32 “retórica”, consistindo na substituição de um pensamento, que se quer transmitir, por um outro que é, na verdade, contrário. Pode-se afirmar que para a ironia atingir o seu objetivo é necessário uma interação entre o enunciador e o receptor e, para que isso ocorra, esse receptor deve ser capaz de compreender e de decodificar a real intenção do ironista - daí a ironia qualificar o receptor, supondo-o capaz da necessária operação de decifração, pois ela não é entendida diretamente, sua mensagem não é explicitada. Na ironia, a compreensão da vítima do jogo irônico é fundamental para o sucesso do recurso – sem esse entendimento a ironia simplesmente deixa de existir, não atinge o seu objetivo. Ou seja, a ironia só tem o seu real efeito quando as pessoas envolvidas no processo de produção e recepção do discurso irônico compartilham certo conhecimento de mundo ou um juízo de valor. Um texto só produz um efeito irônico quando o interpretador consegue decodificar a linguagem, isto é, está apto a entender a real intenção do ironista. Os principais participantes do jogo da ironia são, é verdade, o interpretador e o ironista. O interpretador pode ser – ou não – o destinatário visado na elocução do ironista, mas ele ou ela é aquele que (por definição) decide se a elocução é irônica (ou não) e, então, qual sentido irônico particular ela pode ter. Esse processo ocorre à revelia das intenções do ironista [...]. É por isso que a ironia é um negócio arriscado ; não há garantia de que o interpretador vá captar a ironia da mesma maneira como foi intencionada. (Hutcheon, 2000: p.28) Assim, a ironia é um modo de destruição indireto e implícito de um esquema predeterminado. Exatamente por ter esse caráter desmoralizante, confrontador, a ironia está tão presente na literatura - especialmente na modernidade, que a utiliza como forma de expressão apta a tornar ambíguo o próprio discurso. Ela faz com que os leitores não 33 aceitem passivamente a narrativa, incitando o receptor à reflexão - seja fazendo-o sorrir ou simplesmente pensar sobre o discurso. Não por acaso, a contradição é uma marca da ironia. ... O humor também possui uma forte relação com a ironia. A ironia não é, necessariamente, engraçada, mas, em alguns momentos, ela pode adquirir, se revestir desse matiz - atingindo seus receptores por meio do humor. Contudo, a relação entre humor e ironia é discutível, uma vez que nem todas as ironias são engraçadas e nem todo tipo de humor é irônico. Ambos acabam envolvendo relações complexas entre enunciador e receptor pois dependem de uma perfeita decodificação do destinatário para atingir seus objetivos. Além disso, tanto o humor quanto a ironia variam de acordo com o contexto social no qual estão inseridos, sendo esta a chave para leitura e compreensão desses recursos. Na verdade, a ironia, mesmo quando engraçada, busca desmascarar, desmistificar uma determinada situação ou uma determinada pessoa. Como elemento estruturador de um texto cuja força reside na sua capacidade de fazer do riso uma conseqüência, o interdiscurso irônico possibilita o desnudamento de determinados aspectos culturais, sociais ou mesmo estéticos, encobertos pelos discursos mais sérios e, muitas vezes, bem menos críticos. (Brait, 1996: p.16) 34 A ironia e o riso – embora constituindo formas de expressão distintas – são capazes, em alguns momentos, de demonstrar certa superioridade por parte do enunciador em relação à vítima do jogo irônico. O ironista acentua a sua superioridade, utilizando como trampolim os temas que foca, rebaixando a realidade para fazer sobressair a sua altura, promovendo a insatisfação que o caracteriza a índice de um nível mental acima do comum. Os que riem colocam-se implicitamente numa situação de cumplicidade, dignificam-se por reflexo. Por isso a ironia é céptica e hipercrítica, por isso se recusa à toda atitude de encantamento; por isso se encaminha na direção do difemismo. (Paiva, 1961: p.18) De tal modo, fica bastante evidente que a ironia nunca perde de vista o comportamento humano, buscando “defeitos” nos próprios homens, fazendo com que nos preocupemos com as nossas falhas; quando um autor faz uma observação irônica ele está, também, ironizando a si mesmo, ainda que, de alguma forma, a ironia procure demonstrar sua superioridade, pois, ao se afastar do objeto da ironia, o autor esteja se distanciando, e todos aqueles que porventura concordarem com suas reflexões estão tendo semelhante atitude; isso ocorre também quando o autor faz o inverso, ou seja, coloca-se numa posição inferior. Essa interação ou cumplicidade (autor-leitor) ocorrida no uso da ironia não acontece, da mesma maneira, na sátira. Ao satirizar alguém ou alguma determinada situação, o autor procura, de modo explícito, repreender e reprovar o objeto da sátira e, dessa forma, afasta-se dele. A ironia, no entanto, procura demonstrar simpatia pelo objeto do jogo irônico, pois o ironista se sente parte da própria crítica. A ironia pressupõe um maior grau de familiaridade, de solidariedade entre emissor e receptor, demonstrando, assim, sua grande capacidade pedagógica. Enquanto a sátira procura destruir, tendo sempre como alvo o seu objeto, a ironia tenta ensinar, buscando em si 35 mesmo sinais daquilo que reprova nos demais e evidenciando, assim, uma afinidade entre o ironista e o ser ironizado. (Jolles, 1976: p.211-12) … A ironia desempenha importante papel no desenvolvimento da literatura brasileira. Esse papel adquire maior relevância a partir do século XIX, com os escritores Manuel Antonio de Almeida e Machado de Assis. Machado de Assis, o grande mestre no uso da ironia em nossa literatura, fez com que as novas gerações de escritores nacionais se apropriassem, de alguma maneira, desse expediente, com repercussões em todo o período moderno. Escritores como Lima Barreto, Monteiro Lobato, Hilário Tácito, dentre vários outros, já no século XX, fizeram da ironia uma forma de transformação da literatura preexistente. No próprio centro do modernismo, Oswald de Andrade fez uso do discurso irônico. Assim, também a literatura contemporânea tem muito do viés irônico e Carlos Heitor Cony é um dos escritores atuais que a utilizam como um modo de expressar seus sentimentos e sua visão de mundo. Vale ressaltar que Cony tem entre seus autores preferidos justamente aqueles que procuraram trabalhar com a ironia, como os já citados Manuel Antonio de Almeida, Machado de Assis, e Lima Barreto. Cony, de fato, apropriou-se da ironia de um modo particular e fez desse recurso uma constante em sua obra. Em suas próprias palavras: Não compreendo escrever sem apelar para a ironia, o duplo sentido, a insinuação. Um livro sem ironia, para começo de conversa, não me agrada, embora possa ser uma obra-prima. (Anexo A: p.116) 36 De tudo ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro. Fernando Sabino, O encontro marcado. 37 3. Elementos do romance: 3.1 As personagens: De repente tive vontade de escrever sobre um gigante que vinha todas as noites e me trazia bombons e balas. Um gigante que fazia coisas terríveis que me amedrontavam mas que eu gostava dele porque, no final de tudo, ele sempre tirava de um alforje de couro um brinquedo, e me mandava brincar. Um gigante que morava longe, onde moram o vento e as coisas do mundo, que apesar de morar tão longe nunca deixava de chegar, em horas estranhas, mas sempre chegando, porque sabia que eu precisava dele. Carlos Heitor Cony, Quase memória Um romance tem a sua formação, a sua construção em grande parte pautada nas personagens, são elas que permitem um desenvolvimento satisfatório ou não para o enredo do romance. O enredo existe por meio das personagens, pois elas vivem esse enredo, ambos – enredo e personagem – exprimem os intuitos do romance, a visão da vida que dele decorre, seus significados e valores. (Candido et al, 2002: p.53-4) A personagem pode ser considerada o elemento central de uma narrativa, ela faz com que o leitor se envolva com o texto, identifique-se com ele e, conseqüentemente, com o próprio romance, tornando o enredo e as idéias do autor “vivos”, reais para aquele que lê. Anatol Rosenfeld afirma que é pelo modo como o autor direciona o olhar do leitor por meio de determinadas situações, da aparência física e do comportamento, que uma determinada personagem vai se tornando, a cada novo episódio, inesgotável e insondável. (Candido et al, 2002: p.35-6) Durante um longo período as personagens da narrativa foram vistas como imitação das pessoas “reais”. Essa idéia reflete o conceito aristotélico de mímesis – entendido como imitação da realidade. 38 Assim como Aristóteles, Horácio também contribuiu de maneira significativa para a continuidade dessa concepção de personagem como simples imitação da natureza e dos seres humanos. ... vamos encontrar tanto na Idade Média quanto na Renascença o florescimento da concepção de personagem herdada dos dois pensadores [Aristóteles e Horácio]. A natureza da literatura produzida na Idade Média e o imperialismo dos princípios cristãos propiciam a identificação da personagem como fonte de aprimoramento moral. (Brait, 2000: p.35-6) Essa concepção de personagem vigora até o século XVIII, quando, já em sua segunda metade, tal idéia começa a entrar em decadência. A partir dessa época, uma visão mais psicologizante passa a integrar as reflexões acerca da personagem de ficção: elas agora são representações do mundo psíquico do autor. Nesse momento, a obra como um todo passa por grandes transformações - o surgimento da burguesia como o mais novo público -, especialmente no século XVIII, quando o romance começa a se preocupar em analisar os sentimentos dos homens por meio de sátiras sociais e políticas. Com o Romantismo, surgem, ainda, os romances psicológicos - atingem seu apogeu no Realismo e no Naturalismo - que procuram esmiuçar as mais diversas emoções dos homens. (Brait, 2000: p.37-8) No entanto, mesmo com essas mudanças ocorridas a partir do século XVIII, a personagem ainda permanece sendo vista e entendida como um ser antropomórfico (Brait, 2000: p.38), ou seja, uma representação dos seres humanos. Já no século XX, com escritores como Marcel Proust e James Joyce, o romance sofre outras importantes mudanças, alterando o modo como a narrativa era antes entendida. Nessa mesma época, Lukács, com a obra Teoria do romance, propõe uma 39 análise das personagens de acordo com o meio social no qual se encontram – mas, ainda assim, o modelo antropomórfico persiste. (Brait, 2000: p.39-40) Contudo, uma concepção mais “ousada” acerca das personagens da obra de ficção será apresentada somente na década de 30, pelos Formalistas Russos. Para estes, a construção da personagem de um romance está diretamente relacionada com a linguagem e não mais com o homem; é essa teoria que rompe com a tradição secular de personagem como representação dos seres humanos. Os formalistas preocupam-se com elementos que concorrem para a composição do texto e com os procedimentos que organizam esse material. [...] Finalmente no século XX [...] a concepção de personagem se desprende das muletas de suas relações com o ser humano e passa a ser encarada como um ser de linguagem, ganhando fisionomia própria.(Brait, 2000: p.43-4) Todavia, independente das transformações ocorridas ao longo dos séculos, a personagem é, ainda, um dos mais relevantes pontos de um romance, pois são elas que procuram transmitir ao leitor o que o autor pensa, sente ou simplesmente imagina. ... No romance Quase memória, a discussão acerca das personagens é fundamental, considerando-se que elas são apresentadas, logo nas primeiras páginas da narrativa, com nomes coincidentes com os das pessoas reais ali retratadas. Porém, antes de se debruçar inteiramente sobre essa “semelhança” é preciso lembrar que um recurso muito utilizado para a construção das personagens de um romance é a memória; ao desenvolver as personagens de uma narrativa, o autor vale-se de todo o seu arsenal memorialístico, isto 40 é, todo o seu conhecimento de mundo e toda a sua vivência são levados para o seu trabalho – personagens fictícias já existem, previamente, na cabeça do escritor, essas não correspondem a pessoas reais, mas nelas se inspiram. As personagens centrais do romance Quase memória são baseadas em pessoas reais, mas Carlos Heitor Cony faz uma (re)invenção das características mais marcantes dessas pessoas e, juntamente com as lembranças, insere elementos ficcionais, fazendo a narrativa ainda mais atraente para quem está lendo. Desse modo, há uma profunda distinção entre as personagens Carlos Heitor Cony e Ernesto Cony Filho e as pessoas reais que representam, tendo em vista o fato do livro ser um romance - não tem uma preocupação com a verdade - e não uma autobiografia. Portanto, nesse caso, não cabe, por mais tentadora que possa ser, uma comparação entre a relação existente entre as personagens do romance e a relação entre pai e filho da vida real, ao menos para a análise literária. Isso posto, procurar-se-á analisar a seguir o modo como Carlos Heitor Cony constrói as personagens e, posteriormente, a conflituosa relação existente entre filho e pai, uma das principais características do romance. O Quase memória se desenvolve tendo como eixo central duas personagens; tudo o que se passa ao longo do romance tem alguma relação com elas – seja com uma, seja com outra, ou mesmo com ambas. Essas duas personagens que monopolizam a narrativa são: o narrador (o jornalista Carlos Heitor Cony) e o pai (o também jornalista Ernesto Cony Filho). Porém, além deles, há, no decorrer da história, outras personagens que contribuem para o andamento do texto, ainda que de uma maneira menos decisiva. Entre essas personagens pode-se destacar as seguintes: 41 •Padre Cipriano: Professor do narrador durante o período no seminário, Padre Cipriano é uma figura importante na trajetória de Carlos Heitor Cony, principalmente durante sua formação juvenil. Em um determinado momento do romance, Padre Cipriano é associado ao pai, o que demonstra o grande poder de influência do padre na vida do narrador. Alguns dos episódios presentes no livro têm a participação de Padre Cipriano, como, por exemplo, quando Carlos Heitor Cony leva ao seminário um pote de brilhantina, ou ainda, no relato sobre o campeonato de futebol de botão realizado no seminário. O pai comprou muitas coisas para completar o enxoval com as miudezas que um aluno interno necessitaria. [...] Nem sequer me avisou que havia colocado, no pequeno baú onde guardaria esses apetrechos da vaidade humana, um pote de brilhantina igual ao que usava... [...] O pote de brilhantina causou escândalo. Se a sobrepeliz foi considerada suntuosa para um seminarista, se a argola de prata era a vaidade de todas as vaidades, a brilhantina era um emblema de luxúria, quase de pecado. Padre Cipriano, que inspecionou meu enxoval, segurou o pote com a ponta dos dedos, como se fosse um inseto maligno, um germe transmissor de cólera-morbo, um treponema-pálido pinçado de uma gota de sangue apodrecido pela sífilis. [...] Como a vida costuma dar voltas, tempos depois, já no quinto ano do Seminário, o mesmo padre Cipriano pediu-me para apanhar a bola de vôlei que ele havia comprado para um novo torneio que promovia. [...] A bola estava num canto empoeirado, cercado de objetos que ele confiscava dos alunos por isso ou aquilo. Canivetes, fotografias de primas, um ou outro livro suspeito. No meio desse arsenal de coisas proibidas, lá estava o vidro de brilhantina, só podia ser a minha, via-se ainda o rótulo dourado, Émeraude, com a indicação do fabricante: de Coty. O vidro estava vazio. [...] Não é essa a primeira vez - nem será a última – que, inconscientemente ou não, associo o pai ao Padre Cipriano. Um continuou o outro e, apesar das diferenças e contrastes, eram mais que semelhantes. (Cony, 1995: p.20-2) [...] Houve outro lance em que o pai e padre Cipriano estiveram unidos, um em cada ponta da corda, corda que me sufocava de raiva contra o mundo, não contra eles. 42 Padre Cipriano havia feito caprichada mesa de futebol de botão. E como tinha a mania organizar campeonatos (até campeonato de odes latinas ele fez, foi meu professor durante seis dos oito anos que passei no Seminário), estabeleceu que cada aluno arranjasse um time completo, o que equivalia a dez botões, sem contar o goleiro, que podia ser uma caixa de fósforos. Quando o pai soube da nova e inesperada necessidade do filho, tratou de se virar. [...] Comprou-me um jogo de botões de plástico, enormes, já com o escudo do Fluminense (meu time) na parte de cima. Diante dos times que apareceram no campeonato, o meu era até covardia. De tão grandes e altos eles bloqueavam o campo de tal maneira que seria impossível o adversário fazer gol contra mim. Mas nem cheguei a estreá-los, embora padre Cipriano não tivesse, apesar de seus três doutorados na Gregoriana de Roma, um argumento válido para confiscá-lo em nome do Eclesiastes, que garantia ser tudo vaidade das vaidades. Ele mandou que guardássemos os botões num armário que havia nos fundos do recreio e cuja chave ficava em seu poder. [...] No dia seguinte, quando padre Cipriano abriu o armário, todos os botões lá estavam, todos os times, menos o meu. Alguém os roubara. Havia um empregado do Seminário que morava numa pequena casa... [...] Ele tinha um filho, não me lembro se era ele ou o filho que tinha o apelido de Bem-Te-Vi. Para todos os efeitos, o Bem-Te-vi-filho era inconteste filho desse Bem- Te-vi-pai, e ambos, pai e filho, foram acusados de terem roubado os botões. Padre Cipriano assumiu o papel de Grande Inquisidor, acusando-os pública e genericamente, mas aconselhando a que nada comentássemos, pois monsenhor Lapenda, como reitor, teria de chamar os Bem-Te-vis ambos às falas, Bem-Te-vi-pai poderia perder o emprego, e a caridade cristã, como pregava são Paulo, tudo devia perdoar. [...] No dia em que fui apanhar a bola de vôlei no quarto do padre Cipriano, não foi só o pote de brilhantina que lá estava: lá estavam, também, meus botões de plástico, enormes, inúteis, com o escudo do Fluminense coberto pela Estrela Solitária do Botafogo – padre Cipriano, quando jogava futebol conosco, fazia questão de usar por baixo da batina a camisa do Botafogo. Seu grande ídolo, naquela época, era um beque chamado Nariz. (Cony, 1995: p.23-5) Como se observa nos excertos acima, Padre Cipriano é, assim como o pai, uma personagem inquieta, isto é, foge dos padrões em busca de coisas novas, diferentes, e, mesmo sendo uma personagem periférica - aparecendo somente em um determinado momento da narrativa e não sendo muito desenvolvida -, Padre Cipriano é uma personagem importante na formação de Carlos Heitor Cony; isso é notado principalmente na comparação feita pelo narrador entre o pai e o padre, pois, sendo o 43 pai a mais importante figura na formação desse filho, tal comparação demonstra a relevância de Padre Cipriano para o desenvolvimento de Cony. Outro ponto interessante a respeito da descrição feita pelo narrador sobre essa personagem é a ambigüidade presente nas atitudes do padre. O narrador deixa bastante evidente a incoerência vivida pelo seu professor, uma vez que o padre procura dizer uma coisa para os seus alunos, mas não segue à risca o comportamento que impõe, ou seja, manda os alunos terem um determinado tipo de conduta, mas é incapaz de ter a mesma. O episódio da brilhantina é marcante, pois demonstra a total incoerência das atitudes do padre em relação às suas palavras, bem como, por outro lado, comprova um caráter mais “humano”, isto é, passível de falhas e contradições por parte daquele que deveria obedecer a preceitos incorruptíveis. Pode-se notar, ainda, que Cony vale-se da ironia para descrever a personagem, mostrando – de um modo bem evidente – a ambivalência do padre, pois em um momento ele é descrito como um nobre eclesiástico, fluente em várias línguas e doutor por várias universidades; em outro, é capaz de confiscar os objetos dos alunos e utilizá- los para o próprio divertimento ou distração. Além disso, o trecho acima mostra, ainda, um outro componente irônico: ao nomear de “Bem-te-vi” os supostos autores do delito, Cony parece preparar o leitor para uma sentença indubitável; no entanto, ao término do episódio, comprova-se que na verdade os “Bem-te-vis” não tinham qualquer ligação com o roubo. Ao contrário do que parecia, a dupla de “Bem-te-vis” foi, injustamente, mal-vista pelos demais colegas de seminário. 44 •O irmão mais velho: A personagem do irmão também pode ser vista como periférica, uma figura menos importante – menos que a do próprio padre – mas, ainda assim, ela aparece em alguns momentos decisivos da narrativa. O seu nome não nos é revelado – o que comprova uma situação secundária -, mas sua participação acaba esclarecendo alguns relevantes detalhes acerca da figura do narrador e do pai. Isso ocorre, por exemplo, no episódio em que Ernesto Cony Filho sofre uma isquemia – vale lembrar que o irmão é médico -, ou, ainda, quando Carlos Heitor Cony descobre que o pai está ajudando a família de um amigo procurado pelo governo militar, momento em que o narrador também fica sabendo da existência de um sítio do pai em Corrêas, onde Ernesto Cony Filho iria viver, após a morte da mãe do narrador, com sua segunda mulher. A escolher um destinatário, ele o teria deixado com meu irmão mais velho, que era o preferido dele, o mais próximo de suas necessidades e de seu interior. (Cony, 1995: p.88) [...] Meu irmão apareceu, vestido com avental verde da sala de cirurgia. Foi ele o primeiro a perguntar pelo pai. Quando soube que eu também tinha a mesma pergunta e a mesma suspeita, ficamos apavorados. Ele sabia que a mulher e a filha do Cardoso estavam lá em casa... Nossos problemas não eram os mesmos. Eu queria saber onde o pai estava. Ele queria saber com quem o pai estava. [...] Foi então que, pela primeira vez, fiquei sabendo da existência do futuro sítio Tudo Azul em Corrêas. [...] Meu irmão levou-me ao café, que funcionava no subsolo, embaixo do centro cirúrgico. Estava aborrecido, pois de alguma forma se comprometera a nunca revelar aquele segredo. Contou-me a história do sítio, da casa em construção, da mulher bem mais jovem que largara o marido para ficar com ele, da idéia de ter um recanto onde pudessem passar os dias da semana, uma vez que o pai jamais deixaria de ficar ao lado de minha mãe nos sábados e domingos. [...] 45 O importante era saber se ele estava em Corrêas e se tinha levado para lá o líder sindical que os jornais acusavam de ser um dos mais exaltados na campanha para instalar uma República Sindicalista – um dos principais pretextos para a quartelada de abril. Às vezes me vinha vontade de pegar o carro e ir atrás dele, ver se tudo estava bem, avaliar o risco que corria, se eu podia fazer alguma coisa. Mas logo desistia. Afinal, eu sempre fora sua platéia preferida, ele se produzia, se fabricava para mim. Se desejasse minha presença, ele teria tido uma técnica, um modo muito seu de me chamar, me convocar, ou, simplesmente, ele próprio aparecer no meu caminho, como quem não quer nada. Se se metera nessa embrulhada e dela fizera segredo, era sinal de que não me queria perto, ou para me poupar, ou porque achasse que sua obrigação era fazer segredo. Com meu irmão era diferente. Ele influía no pai, não era a platéia submissa, deslumbrada que eu sempre fora. Meu irmão subiu no dia seguinte, foi a Corrêas, voltou à tardinha... [...] No Domingo, indo visitar meus pais, não encontrei a mulher e a filha do sindical. Tinham ido embora... Encontrei o pai na rede, conferindo uns selos no grosso Yvert que era sua bíblia filatélica. [...] Para falar a verdade, eu estava chateado com ele. Deixara-me de fora daquele lance. Perdera grandes acontecimentos, grandes gestos que ele espalhou por aí, para platéias outras que não a minha. Eu servia na hora dos balões, das mangas roubadas, das encrencas na Sala de Imprensa. Num episódio em que ele lidara realmente com o perigo, que poderia colocá-lo numa situação sem retorno, sendo obrigado também a fugir, nesse episódio que por semanas consumiu-lhe energia, sonho e discurso, ele me quis longe, evitou- me. De duas uma: ou queria poupar-me, receando que o perigo também me ameaçasse, ou me julgou de menor valia, platéia insuficiente para assistir a sua loucura e ao seu gesto. (Cony, 1995: p.176-9) Os excertos acima demonstram que, mesmo tendo uma participação pequena ao longo da narrativa, a personagem do irmão revela o modo como o narrador sente e pensa. A situação mais evidenciada pelos trechos apresentados é a “disputa” entre os irmãos pela atenção do pai. Na verdade, essa disputa é do narrador em relação ao irmão; é a personagem de Carlos Heitor Cony que se sente preterida pelo pai em função do irmão mais velho, e chega a afirmar que o outro era o preferido de Ernesto Cony Filho. A figura fraterna revela as angústias, o ciúme provocado no narrador por aquele pai tão singular; o irmão faz emergir uma situação de briga pelo espaço ao lado do pai – uma briga natural, saudável, sem maiores conseqüências para o narrador. Entretanto, 46 em meio a essa disputa, um fator faz com que Carlos Heitor Cony supere o irmão: o fato dele ser o narrador do romance, pois, assim, é-lhe permitido colocar a figura do irmão somente em alguns momentos, relegando-o apenas a um coadjuvante momentâneo – vale ressaltar que o narrador nem mesmo nomeia o irmão, evidenciando o desejo de evitar concorrentes, isto é, no romance somente ele pode ter papel de destaque na relação com o pai. •A mãe: Das personagens secundárias ou periféricas que foram destacadas, a mãe é a que aparece mais ao longo da narrativa. No entanto, ela não é figura das mais relevantes, pelo contrário, pode ser considerada a menos explorada pelo autor ao longo do texto. Do mesmo modo como ocorre com a personagem do irmão mais velho, a mãe também não é nomeada pelo narrador; ainda assim, sua presença é significativa em alguns momentos do romance, como, por exemplo, no episódio em que ela resolve pedir ajuda a Carlos Heitor Cony para fazer o pai ir a Minas Gerais visitar um padre que, diziam, fazia milagres e talvez pudesse ajudá-lo com um problema motor; ou, ainda, quando repreende o marido por acordar o filho tarde da noite para que ambos começassem os preparativos para a confecção dos balões das festas de junho. Sabendo que era uma festa, ele me acordava, embora minha mãe reclamasse, acordar uma criança por causa tão boba, os balões demorariam a ser feitos, haveria tempo para aproveitar aquilo tudo, ela não entendia que eu tinha pressa, e o pai também. Se tínhamos de ser felizes, queríamos ser felizes já. (Cony, 1995: p.96) [...] 47 Minha mãe morreu em fevereiro de 1973. Nos últimos anos, tivera uma sucessão de gripes, algumas fortes, outras nem tanto. De tal maneira que estávamos habituados às gripes dela – e ela mesma se habituara a estar gripada – que a sua morte nos pegou de surpresa. Daquela vez, a gripe se transformara em pneumonia, meu irmão achou melhor interná-la no hospital Evangélico, onde logo se recuperou. Quando passou o segundo dia seguido sem febre, o médico que a atendia deu-lhe alta. [...] Eu próprio, sabendo que ela estava curada da pneumonia, não fui naquele dia visitá-la. [...] Quando fui chamado ao hospital, pensei que não fosse sério. [...] Quando entrei em seu quarto, ela dizia meu nome, na cadência de uma respiração difícil. No único instante em que voltou a si, perguntou se o pai já tinha chegado, se tudo estava bem com ele, que havia deixado o frango com as batatas coradas que ele gostava, e que também tinha sopa de ervilhas com bacon na geladeira, era só esquentar, que ele não esquecesse de fechar as janelas porque podia chover e tomasse o remédio antes de dormir. Voltou a respirar com dificuldade e a dizer o meu nome, numa cadência cada vez mais funda. Não parecia sofrer, apenas sentir. Quando meu irmão abaixou a cabeça e se afastou do leito, percebi que ela acabara, serena, segurando minha mão. (Cony, 1995: p.180-1) As passagens destacadas anteriormente demonstram como a mãe aparece na narrativa e o que ela representa, principalmente o último excerto, que apresenta uma mulher voltada para a família, preocupada com os filhos e com o esposo, cuja vida foi dedicada à casa, à família; mesmo no leito de morte sua apreensão é com o marido. Um outro fator que ratifica a função secundária da mãe na narrativa é o seu posicionamento marginal em relação às lembranças do narrador, pois, ao rememorar sua vida, Carlos Heitor Cony se detém somente no conflituoso relacionamento com o pai, deixando a figura materna de lado, dando a ela uma função de simples coadjuvante, platéia dos dois. Sua característica é não atrapalhar o envolvimento de ambos, tendo em vista que a mãe é incapaz de despertar aquela mesma magia no filho. ˜ 48 3.1.2 As personagens centrais do romance: Então o menino descobriu que ali estava um caminho, um destino. Deveria escrever tudo o que pensasse, seria finalmente igual aos outros. Nem se tratava de ser aceito – ele já não dava importância a isso, adquirira o vício da solidão e gostava de ser só. E quando quisesse, poderia escrever o que sentia e até o que não sentia – escrever era coisa fabulosa. Melhor do que falar, porque quando se escreve é como se a gente falasse diversas vezes, primeiro consigo próprio, depois com os outros. Se houvesse outros. [...] Gostaria de ser impessoal e intransitivo. Simples como a chuva que chove. Para isso, precisaria ser uma terceira pessoa e acredito que é em busca dela que escrevo. Terceira pessoa que ainda não encontrei. Mas insisto em continuar procurando. Carlos Heitor Cony, O fogão e a chuva Escrito, pois, em primeira pessoa, com um narrador autodiegético, o romance Quase memória retrata a vida de Carlos Heitor Cony de uma maneira bastante singular. Para contar a própria história, o narrador relata a história de seu pai, ou melhor, suas lembranças acerca de alguns episódios vividos por Ernesto Cony Filho. A princípio, essa idéia parece um pouco controversa, afinal, se o livro conta a vida de Carlos Heitor Cony, por que a figura paterna aparece de maneira tão contundente, tão constante? No entanto, mesmo dando um enorme destaque ao pai, colocando-o em cada momento descrito na narrativa, é a trajetória do filho que nos é apresentada ao longo do romance. Ao buscar em suas lembranças distantes os momentos mais marcantes de sua relação com o pai, ele não nos apresenta somente àquela personagem, mas, na verdade, a si mesmo, aos seus pensamentos, sentimentos, anseios e angústias. Assim sendo, fica, de fato, bastante evidente na narrativa que o relacionamento entre pai e filho é muito forte, muito marcante para o narrador; as duas personagens se misturam, se confundem e se completam, isto é, uma se mostra por meio da outra. O romance Quase memória pode ser definido, de acordo com Artur Nestrovski, como “... a biografia de si, pela vida do outro. É a biografia, ou vida, de um escritor, mais que de um mero pai”. (Nestrovski, 1995: p.12) 49 Desse modo, tendo como ponto de partida a personagem de Carlos Heitor Cony – e dando-lhe status de protagonista – procurar-se-á nas próximas páginas deste trabalho analisar o modo como é construída essa conturbada relação, permeada por momentos de tensão e de grande lirismo e que tem a ironia em sua base. Ernesto Cony Filho, o pai, é a personagem que é conduzida ao longo da narrativa, são suas peripécias que são descritas a cada momento pelo narrador; esse é o modo encontrado pela personagem Carlos Heitor Cony para retratar as próprias memórias. Cony Filho é apresentado ao longo do texto como jornalista – mesma profissão que será exercida pelo narrador. Porém, não são as características profissionais que fazem de Ernesto Cony Filho uma personagem cativante, mas, sim, sua inabalável capacidade de viver, de gozar a vida. A personagem do pai tem essa qualidade singular de transformar tarefas ordinárias em grandes acontecimentos; nas mãos do pai, pequenas coisas se transformam em fatos únicos e mágicos, sempre com grande alegria e enorme entusiasmo. O pai é, acima de tudo, feliz, capaz de demonstrar esse sentimento nos mais variados episódios e, sem dúvida alguma, essa felicidade toda, esse jeito folgazão de ser, incomoda o narrador. A Era das Galinhas! A expressão pejorativa pertencia a minha mãe: ela se casara com um professor e jornalista, um rapaz que fazia versos e gostava de discursar em qualquer ocasião que desse sopa. Da noite para o dia [...] descobrira que estava casada com um criador de galinhas. Até hoje, considero que o pai vivia satisfeito naquele tempo. Sempre vivera satisfeito, era do tipo que recebia um bom-dia como homenagem, de tudo em que se metia dava um jeito de extrair prazer pessoal, era o sujeito que todo dia, ao dormir, pensava consigo mesmo: ‘Amanhã farei grandes coisas!’. (Cony, 1995: p.71) 50 O trecho acima demonstra bem claramente a principal característica de Ernesto Cony Filho. Sua inabalável capacidade de aproveitar a vida, de ser feliz mesmo nos momentos mais adversos é o grande adjetivo do pai, mas, ao mesmo tempo, é – como procuraremos mostrar mais a frente - o tormento do filho. Além disso, há uma outra característica, explorada em menor grau, mas que também corrobora a idéia de que Ernesto Cony Filho consegue se sobressair mesmo nas adversidades. Desde os tempos de rapaz, ele adquirira o tique nervoso que o acompanhou pela vida, até mesmo, embora com menor freqüência, em seu leito final. Na família dele, e mais tarde na de minha mãe, atribuía-se àquele tique o fato de não ter ele atingido os altos cargos que todos esperavam dele. Era, na verdade, um tique tremendo, espalhafatoso, que assustava as pessoas: ele parecia perder o controle do braço direito que se agitava desgovernado, indo para a frente, com a mão em gancho, como se espantasse ou afastasse alguma coisa que fosse bater em seu peito. Quando o conheci, já tinha esse tique, que também chamavam de cacoete. Havia fases moderadas, outras violentas, que nada tinham a ver, aparentemente, com o seu estado de saúde ou ânimo. Pelo contrário, em momentos difíceis, de tensão ou aborrecimento, ele até se esquecia do tique, ficava horas sem entrar na convulsão deprimente que espantava os estranhos e constrangia os conhecidos. Em casa, nunca se falava naquilo. Raríssimas vezes minha mãe aludia a um tratamento que, ainda solteiro, ele havia feito sem resultado. Bem verdade que o tique não o impediu de ganhar a vida, de realizar coisas, algumas maravilhosas, outras banais, como fazer a própria barba, curativos (uma de suas perícias eram os curativos). (Cony, 1995: p.41-2) Essa descrição acerca de um problema motor vivido pela personagem de Ernesto Cony Filho enfatiza duas coisas aparentemente contraditórias: a primeira é a capacidade ímpar do pai de não se entregar em momentos de adversidades, pois, do modo como o problema é descrito, poderia vir a se tornar bem mais penoso do que realmente foi; a segunda é o rebaixamento da personagem, ou seja, com essa descrição, o narrador humaniza o pai, mostra ao leitor que aquela figura, muitas vezes descrita como “mágica”, é passível de desilusões, de problemas comuns, ordinários, aproximando-o do 51 leitor. Há ainda um caráter irônico nessa descrição: ao tratar de uma deficiência do pai, mesmo que de uma forma sutil, sem exagero, Carlos Heitor Cony também se coloca nessa situação, também se humaniza junto com ele, pois quando ironiza a personagem de Ernesto Cony Filho, o narrador também se coloca nesse jogo irônico. Um outro ponto irônico acerca da personagem de Ernesto Cony Filho é justamente o seu nome. O pai chama-se “Filho”, e “filho” remete à família, ao vínculo familiar, algo que, de certa forma, o pai sempre busca manter, e, por outro lado, a personagem de Carlos Heitor Cony não consegue aceitar muito bem. O narrador não aceita esse vínculo, não abre o pacote enviado pelo pai – a presença da ironia no discurso do filho é a forma encontrada pelo narrador para manter o distanciamento entre ele e o pai. Sendo assim, pode-se definir o pai como uma personagem surpreendente, ou, de acordo com a denominação de Edward M. Forster, redonda (Forster, 1998: p.75), uma vez que as suas atitudes não são previamente adivinhadas pelo leitor e, em muitos casos, essas atitudes surpreendem quem está lendo o texto. Como já foi frisado, o romance Quase memória conta a trajetória de Carlos Heitor Cony por meio dos episódios envolvendo a figura do pai, Ernesto Cony Filho. Assim, o narrador pode ser definido como a personagem principal do texto, porque é sua vida que está ali retratada. Além disso, por ser uma narrativa em primeira pessoa, o narrador conduz a trama de acordo com a própria vontade, os acontecimentos narrados fazem parte da sua memória, confirmando a condição de principal personagem da obra. Vale ressaltar ainda que a memória não é uma fonte confiável, e que ao relatar a própria vida de acordo com suas lembranças, Carlos Heitor Cony leva o leitor por caminhos imprecisos que somente ele conhece e, assim, apenas o seu modo de encarar os acontecimentos descritos é sabido. 52 Isso posto, passemos agora a focalizar de uma maneira mais aprofundada o narrador. Carlos Heitor Cony não tem as características explicitadas ao longo do romance, uma vez que muito do que o narrador conta a respeito de si mesmo advém das atitudes do pai, ou seja, para entender a personagem de Carlos Heitor Cony é preciso, primeiramente, tentar compreender a figura de Ernesto Cony Filho. Porém, há no romance uma característica física do narrador, descrita de maneira mais detalhada, que revela os sentimentos contraditórios nutridos por aquele filho em relação ao pai. Essa característica é um problema de dicção enfrentado por Carlos Heitor Cony logo na infância e que o impede de freqüentar normalmente o colégio, pois dificulta a pronúncia de determinadas palavras, irritando professores e colegas. Por isso, ele tem as aulas ministradas pelo pai, e essa atividade foi o primeiro grande acontecimento na vida dos dois, visto que o narrador já começa a observar e a admirar aquele que o marcaria de maneira intensa para o resto da vida. Tudo por causa do diabo da minha dicção. Eu não pudera, até então, freqüentar regularmente os colégios. Além de criar problema com os colegas – que caíam em cima de mim, maltratando-me, fazendo com que eu me habituasse à solidão que no fundo eu ainda não desejara, os professores desanimavam de me ensinar a pronunciar certos ditongos, perdiam a paciência, chamavam o pai, aconselhavam a que me arranjasse outro colégio. Depois de várias experiências malsucedidas, o pai deixou-me ficar em casa, vez ou outra me passava uns exercícios, explicava alguma coisa de história ou de geografia, mas sem método, sem finalidade, acho que adiava o problema, sem saber exatamente o que faria comigo. Minha idéia de entrar para o Seminário foi providencial. [...] Até então eu não tivera escolaridade normal. Aprendera a ler e a escrever – e só. Fazia contas nos dedos – e geralmente erradas. Com nove para dez anos, já era um retardatário na vida. Havia agora o desafio. Os exames exigiam um nível igual ou superior ao do curso primário completo. [...] Até que o pai chegou em casa com um quadro-negro sob braço. [...] Trouxe também uma caixa de giz e alguns livros, uns cadernos de caligrafia, um apagador, um compasso. Comunicou-me que, a partir do dia seguinte, eu acordaria sempre às sete horas e teria aulas até as dez. Ele precisava sair às onze. Depois do almoço, das duas às cinco, eu deveria estudar e fazer os deveres de casa. Aos 53 domingos, quando ele não ia ao trabalho, as aulas seriam da hora em que eu acordasse à hora em que fosse me deitar. [...] Como sempre, ele nada faria sem antes apelar para a diversidade de seus truques. O quadro-negro, o giz, o apagador, os cadernos, tudo fazia parte de uma técnica especial e inédita até para ele: ‘De como ensinar em casa um filho retardado a fazer exames’. Era, na vida dele, a primeira experiência no gênero, mas parecia que nunca fizera outra coisa – tantas regras ditou para mim e para ele. [...] Como nada sabia fazer sem entusiasmo, logo nos primeiros dias começou a ficar empolgado com o ofício. E tinha idéias, que infelizmente, pelo resto da vida, nunca mais encontrei em outros professores que passaram pelo meu caminho. (Cony, 1995: p.103-6) A longa citação mostra alguns interessantes aspectos acerca da personagem de Carlos Heitor Cony; ao narrar como o pai o ajudou a estudar para o ingresso no Seminário, o narrador mostra bem como é a relação entre ambos. Essa é a mais distante lembrança que o protagonista nos apresenta, e mesmo assim, mesmo sendo antiga, da infância, ela dá sinais evidentes da forte cumplicidade entre as personagens. O pai é mostrado, como em toda a narrativa, como alguém empolgado, capaz de extrair prazeres das coisas mais diversas – como, no caso, preparar o filho, inclusive aos domingos, para o exame do Seminário. Em meio a essa avalanche de felicidade e entusiasmo, aparece a figura do narrador de duas formas distintas: ainda criança, no momento do aprendizado, e já adulto, no momento da recordação. Essas duas “pessoas” se misturaram – e ainda se misturam – e fazem de Cony um espectador encantado das artimanhas preparadas pelo pai. Ao afirmar: “E tinha idéias, que infelizmente, pelo resto da vida, nunca mais encontrei em outros professores que passaram pelo meu caminho”, demonstra toda a sua admiração pelas atitudes do pai, pela capacidade dele de se entregar de maneira plena àquela causa. 54 Em contrapartida, ao relatar que o pai estava “ensinando um filho retardado”, o narrador se mostra como o oposto do pai, incapaz de acreditar em si mesmo, alguém que admira as atitudes do pai, mas que julga não possuir a mesma competência. Além disso, ao se intitular um “retardado”, Cony está se ironizando, pois fica bastante evidente durante o romance que ele não é nem de perto um retardado, sua vida é repleta de feitos que podem não ser grandiosos, mas não são irrelevantes. Por fim, uma outra característica – a mais marcante – a respeito do narrador apresentada nesse trecho é a sua necessidade de permanecer à margem, isolado: “... fazendo com que eu me habituasse à solidão que no fundo eu ainda não desejara”. Assim é o narrador, uma pessoa que se retrai, que foge do outro (assim como deixa fechado o pacote). Se naquele momento Carlos Heitor Cony ainda não desejava essa solidão, depois ela vai ser sua grande companheira. Mas não será uma solidão ruim, nefasta, e sim uma parceira que dará oportunidade ao protagonista de se distanciar um pouco do pai e apenas observá-lo, analisá-lo e, também, aceitá-lo. Além disso, essa solidão permite a Cony relembrar, graças à chegada do embrulho, sua vida junto ao pai, no que pode ser considerado seu maior e mais solitário exercício. Nos episódios narrados, essa capacidade de contemplação do narrador em relação ao pai é muito evidente. Carlos Heitor Cony não permite que nada escape, nenhum detalhe de Ernesto Cony Filho é perdido, tudo é registrado pelo olhar daquele que se mostra infantil perante a magnitude do pai, ou ainda, pelo jovem – mesmo pelo adulto – que se posiciona à margem dos acontecimentos, procurando sempre o melhor ângulo para observar a mais nova aventura de seu pai. E, em meio a todas essas façanhas, o narrador vai mostrando ao leitor sua própria condição, demonstrando toda a força daquele pai em sua vida, vida essa que está diretamente ligada a Ernesto Cony Filho, pois cada pequeno episódio, cada simples transformação do narrador, tem a 55 “presença” do pai. Mesmo quando ele parece atrapalhar a caminhada do filho. Não há, no decorrer da história, uma dissociação entre as personagens: pai e filho estão sempre juntos, mesmo quando buscam coisas diferentes. Dessa forma, pode-se notar que há uma forte tensão entre as personagens, tensão essa que é notada em um trecho, logo no começo do livro, no qual o narrador, acerca da capacidade de seu pai aparecer ao seu lado nos mais variados e inesperados momentos, afirma: Era ele, ELE mais uma vez e sempre, querendo ser útil e necessário, querendo agradar mas conseguindo apenas embaralhar meu caminho – e digo ‘embaralhar meu caminho’ para ser isento comigo e delicado à sua memória. (Cony, 1995: p.11) Esse desconforto vivido pelo narrador em relação ao seu pai pode ser comprovado nos trechos a seguir: O pai [...] tinha uma técnica desenvolvida de sempre dar um jeito de me ver, de estar próximo. Sabendo da morte do pai do padre Motinha, e intuindo que os alunos do Seminário iriam ser solidários com o luto do diretor espiritual, foi cedo para o cemitério Santa Cruz... Eu estava habituado a esbarrar com o pai nos mais estranhos e inesperados lugares, nas cerimônias ou eventos externos da comunidade. [...] No dia em que morreu o cardeal Leme, ele soube que os seminaristas iriam velá-lo no Palácio São Joaquim. Deu um jeito de passar a noite lá dentro [...] E durante o velório tratou de ir ao botequim da esquina da rua do Catete com a rua Santo Amaro, buscar as coisas de que eu gostava – ele e eu. [...] O pior, como sempre, não vem antes nem durante: vem depois. Foi na hora de maior comoção, quando padre Motinha, filho e oficiante, encomendava a alma de seu pai a Deus, junto ao jazigo perpétuo dos Mota de Santa Cruz. [...] Ouviu-se um baque de um corpo que caía. O estrondo fez o pranto parar, emudeceram os gritos, calaram-se os gemidos. O oficiante interrompeu os salmos, os 56 responsórios. Todos olharam na direção de onde viera o estrondo. Temendo pelo pior, fui dos últimos a olhar. Havia uma mangueira, vasta e verde mangueira ao lado do jazigo perpétuo dos Mota de Santa Cruz. Estava carregada de mangas, embora ainda verdes [...] Aproveitando a unção do enterro de um Mota de Santa Cruz, alguém subira na árvore e tentara cutucar os frutos que ameaçavam amadurecer. Apesar de dominar a técnica para momentos que exigiam equilíbrio e sangue-frio, o pai cometera algum erro fatal: caiu em cima da carroça que trazia as coroas que seriam depositadas no jazigo perpétuo dos Mota de Santa Cruz. Houve solidariedade: todos correram para socorrê-lo, escová-lo, abaná-lo, ouvia o pai dizer que não fora nada, apenas o susto, que ninguém se incomodasse, ele não queria atrapalhar o enterro, padre Motinha, olhos avermelhados, logo recomeçou os salmos, os responsórios, eu olhava o chão, querendo ser enterrado também, ali mesmo, com minha vergonha. Quando olhei para o lado, sabendo que o pai ainda devia estar ali, vi o que esperava ver: ele catava as mangas maduras no chão. (Cony, 1995: p.28-31) No entanto, ao mesmo tempo em que o pai “embaralha” o caminho do filho, a chegada desse pai, ou simplesmente a presença dele junto ao filho é motivo para uma grande alegria. Todo esse desconforto, toda essa vergonha vivida pelo narrador surge lado a lado a uma admiração, a um amor tão forte quanto esse acanhamento - como no episódio em que o narrador descreve, com grande lirismo, a chegada do mês de junho, temporada das festas e dos balões. Tão inevitavelmente como as chegadas dele em casa, em inevitáveis noites de junho, trazendo debaixo do braço o rolo de papel de seda para fazer os balões de Santo Antônio. Eu sabia que aquele dia sempre chegava, não ansiava pelos Natais, pelos Carnavais, pelas férias em Rodeio ou Paquetá. Eram acontecimentos que gostava quando aconteciam, mas não sofria esperando que acontecessem. Podiam vir ou não vir, pertenciam a todos, não eram meus exclusivamente, não me fariam falta, não criariam aquele clima de estar com ele, de participar com ele da formidável seqüência de dias e noites fazendo balões [...] A chegada daquele rolo, pesado, protegido por papel mais grosso era um acontecimento. [...] Ele nunca avisava que ia trazer as resmas de papel fino, me pegava desprevenido, eu olhava o calendário, suspeitava que a grande noite estava próxima, mas nunca tinha a certeza da data. Nesse dia ele vinha mais cedo e me pegava acordado. (Cony, 1995: p. 95-6) 57 Como pôde ser notado anteriormente, há no romance uma grande dubiedade de sentimentos por parte da personagem Carlos Heitor Cony em relação ao pai. Pai e filho, ou melhor, filho e pai, vivem no limite entre a cumplicidade total e o distanciamento absoluto. O pai não passa despercebido em momento algum por esse filho; a figura de Ernesto Cony Filho nunca é “invisível” (nem mesmo quando o filho torce para que seja), tendo em vista que a sua presença, suas atitudes são muito marcantes para o narrador que está, sempre, admirando as peripécias de seu pai – concorde ou não, goste ou não delas. Desse modo, tem-se um conflito por parte do filho em relação ao pai, e ele se torna, pois, ainda mais evidente se analisarmos o fato de Ernesto Cony Filho não ter voz na narrativa – o que impossibilita uma visão isenta dos acontecimentos narrados, uma vez que tudo o que o leitor conhece do pai é fruto da memória do narrador e nos é contado de acordo com seu modo de enxergar o mundo. Ao se narrar uma história pela perspectiva de uma única personagem e, também, baseada na memória, fica bastante difícil se fazer uma narrativa não tendenciosa. Porém, com o recurso da ironia, a narrativa consegue ser mais neutra, menos exagerada. A ironia tem no romance a função de amenizar a relação entre filho e pai, porque o narrador sente, ao mesmo tempo, muita vergonha e muita admiração pelo pai e, sem esse artifício, a narrativa tenderia ou à execração da figura paterna, ou ao seu enaltecimento, o que tornaria o texto, no mínimo, piegas. Todavia, isso não ocorre com Quase memória, pois por meio da ironia o autor consegue suavizar o antagonismo vivido pelo narrador ao rememorar fatos marcantes de sua vida ao lado do pai, mostrando toda a ambigüidade dos sentimentos que aquele pai folgazão transparece para o filho, mesmo após a morte do pai. 58 Valendo-se da ironia, o narrador busca “resolver” todas as suas angústias, as suas aflições. É a ironia que evidencia o quanto o pai “incomoda” o filho. Quando a personagem Carlos Heitor Cony afirma, como já foi frisado anteriormente, que a presença da figura paterna “embaralha seu caminho”, ele mostra não conseguir, em hipótese alguma, nem mesmo dez anos após a morte do pai, passar incólume à lembrança paterna, já que sempre, desde a infância até os dias de hoje, a presença desse pai provoca grande ebulição de sentimentos (quase sempre dúbios) no filho. Desse modo, pode-se afirmar que a ironia exerce um papel fundamental no romance Quase memória, pois é ela, e especialmente ela, que permite ao leitor um entendimento, uma compreensão da dificuldade sentida pelo narrador ao remexer em fatos marcantes da sua vida junto ao pai. A narrativa não é uma simples recordação dos momentos bons que o filho guardou, nem dos maus, mas, sim, uma demonstração da dificuldade e do encanto que é conviver com o pai, principalmente quando esse pai é alguém especial, diferente, capaz de realizar tarefas ordinárias como se fossem grandes feitos; ao filho cabe observar e rememorar. ˜ 59 3.2. O foco narrativo: Eu restei só. Só, como sempre procurei estar esses últimos dias. [...] Não sei o sonho que visitará seus olhos. Eu velarei. Gastarei esta última noite horrivelmente lúcido, esbarrando em meus próprios escombros, flagelados pelos meus próprios fantasmas. Se eu gritar mais forte – não há o que temer: é que os fantasmas ou os escombros feriram mais fundo, e irreparavelmente. Carlos Heitor Cony, Antes, o verão. Em um romance, o foco narrativo é, sempre, de grande importância, porque é por meio dele que o autor - de maneira planejada, trabalhada – condiciona a leitura do texto. Ao escolher um determinado ponto de vista, o autor dá a chave para o entendimento do romance. Em Quase memória a questão do foco narrativo se faz ainda mais especial, visto que Carlos Heitor Cony nos apresenta não só uma mistura entre realidade, ficção e memória, mas, também, um narrador que se confunde com o próprio autor. Há, na narrativa, um “jogo” entre as personagens principais do romance, pois ao colocar a figura de Ernesto Cony Filho, seu pai, no romance, o escritor acaba invertendo os papéis, isto é, de criatura ele passa a criador, o autor torna-se “pai” das personagens, inclusive da de Ernesto Cony filho – o menino vira pai do homem. Na verdade, Carlos Heitor Cony, astuta e conscientemente apresenta mais uma armadilha ao leitor. É certo que, se cotejarmos dados biográficos seus com os da personagem, encontraremos aproximações. Mas não é isso, efetivamente, que preocupa o autor. O que ele quer é propor uma chave antecipada da leitura. (Hohlfeldt, 2001: p.88) É nessa mistura de nomes, personagens, realidade, ficção e memória que o romance Quase memória se desenvolve. ... 60 Ao se começar a ler o Quase memória, logo nas primeiras linhas já se percebe uma narrativa construída em primeira pessoa, o que, a priori, parece tornar a discussão a respeito do ponto de vista no romance pouco interessante. Acabara de almoçar com minha secretária e alguns amigos, descêramos a escada em curva que leva do restaurante ao hall da recepção. Pelo menos duas ou três vezes por semana cumpro esse itinerário e, pelo que me lem