EMERSON PORTO FERREIRA CARNAVAL TEM QUE DAR SHOW! IDENTIDADE E ESPETÁCULO NAS ESCOLAS DE SAMBA DE SÃO PAULO (1998 – 2015) ASSIS/SP 2023 EMERSON PORTO FERREIRA CARNAVAL TEM QUE DAR SHOW! IDENTIDADE E ESPETÁCULO NAS ESCOLAS DE SAMBA DE SÃO PAULO (1998 – 2015) Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Câmpus de Assis, como requisito para a obtenção do título de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Cultura). Orientadora: Profa. Dra. Zélia Lopes da Silva. Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Número do Processo: 88887.514036/2020-00 ASSIS/SP 2023 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ana Cláudia Inocente Garcia - CRB 8/6887 F383c Ferreira, Emerson Porto Carnaval tem que dar show! Identidade e espetáculo nas escolas de samba de São Paulo (1998–2015) / Emerson Porto Ferreira. — Assis, 2023 266 f. : il. Tese de Doutorado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientadora: Profa. Dra. Zélia Lopes da Silva 1. Carnaval - São Paulo. 2. Espetáculo. 3. Escola de Samba Gaviões da Fiel. I. Título. CDD 394.25 AGRADECIMENTOS Os meses que se passaram entre agosto de 2019 e outubro de 2023 foram dos mais turbulentos. O processo pandêmico afetou essa pesquisa em diferentes maneiras. No contato mais aproximado com o objeto de pesquisa, nas relações com a orientação, e o principal, com o carnaval. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Por isso mesmo, o principal agradecimento é para a CAPES e a UNESP pelo auxílio e financiamento de pesquisa, mesmo que nesse percurso as trevas do bolsonarismo tenham tentado atrapalhar. Agradecimento à professora Zélia pela paciência em aguentar os desvarios deste orientando, que quase sempre fez o oposto, mas que no final sempre seguia o conselho original. Agradeço às professoras Tânia de Luca e Helenise Guimarães pelas pontuações e possíveis melhorias para o trabalho final entregue. Na medida do possível, tais conselhos e sugestões estão presentes ao longo das próximas páginas. Outro agradecimento ao professor Paulo Cesar Gonçalves e novamente à professora Tania pelo aceite e ensinamentos no estágio-docência, um período bastante confuso pelo distanciamento social, mas que gerou o desejo, quem sabe, de continuar no ramo da docência. Agradeço também ao professor Eduardo Moscon e todo o Departamento de Educação Política e Sociedade da UFES, pela confiança e apoio durante o cargo de professor substituto. Uma experiência marcada principalmente por cada um dos alunos das diferentes licenciaturas e os questionamentos e desafios que a educação básica no Brasil enfrenta. Um agradecimento aos meus familiares mãe, pai e irmão, por aguentar, mesmo sem entender, todo esse período. Aos meus gatos que se foram: Baguera e Jazz, e aos que ainda estão por aqui: Gorda, Sagwa, Walter Benjamin, Ramsés II, Iansã, Oxum e Champa. Um especial agradecimento aos Sambistas da Depressão, em especial ao Ângelo, Ewerton, Rodrigo, Victor e Mari, pelos momentos quase sempre duvidosos da cobertura de carnaval. À SASP pela confiança e parceria no tempo em que lá estive, mas um especial agradecimento ao Ronny, Godoi, Jacopetti, Dias, Cacá e Rica pelas conversas e trocas de experiências. Aos amigos da Rádio Arquibancada, pelas horas de discussão sobre o carnaval de São Paulo, em especial Miguel e Diney. Aos amigos de Minas, Marcella, Maria Fernanda, Regina, Tércio e Maycon. Aos de São Paulo, Laura, Jéssica, Bruna, Jefferson, Regiane e Naria. Ao dos Espírito Santo, Conrado e Luciano. Da Bahia, Gleice. Aos ouvintes do Podcast, um agradecimento pela confiança e parceria, algo essencial para pensar muitas das questões que este trabalho possui. Por último, a todos que ergueram no passado, no presente e os que virão no futuro manter de pé essa instituição chamada Gaviões da Fiel Torcida. Todos os compositores, ferreiros, marceneiros, costureiras, carnavalescos, passistas, ritmistas, baianas, casais de mestre de sala e porta bandeira e demais quadros que serviram não só como análise e fonte, mas como inspiração de toda a obra. RESUMO A Tese em questão, procura entender as relações entre identidade e espetáculo que ocorrem dentro do carnaval escola de samba de São Paulo, entre 1998 e 2015, observando como objeto de análise a escola de samba Gaviões da Fiel. A escolha por tal recorte, demanda das interferências que as agremiações passam a sofrer do setor midiático e econômico para o crescimento do espetáculo e seu gigantismo: em um primeiro momento, na reconfiguração dos dias de desfiles e divisão de verba, tempo e deslocamento, que se desdobra desde 1998 e se conclui em 2000. O segundo aspecto de tal recorte, ocorre nas sucessivas alterações no julgamento de desfiles, que possui sua ruptura enquanto modelo e punição, para o carnaval de 2015. A escolha da Gaviões da Fiel, decorre do seu protagonismo e pioneirismo na forma de conjugar espetáculo, poder e grandiosidade o que moldou sua identidade de desfile, entre 1998 e 2015, ocasionando momentos de imposição de seu modelo de desfile ou de se enquadrar às mudanças. Para realizar tal trabalho, utilizamos dois núcleos documentais principais: periódicos do O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, em suas versões impressa ou digital, e, os desfiles, sinopses e fotografias da Gaviões da Fiel. Palavras-Chave: Carnaval Paulistano, Espetáculo, Identidade, Gaviões da Fiel. ABSTRACT The Thesis in question seeks to understand the relationships between identity and spectacle that occur within the São Paulo samba school carnival, between 1998 and 2015, observing the Gaviões da Fiel samba school as an object of analysis. The choice for such a cut demands the interference that the associations begin to suffer from the media and economic sector for the growth of the spectacle and its gigantism: at first, in the reconfiguration of parade days and division of funds, time and displacement, which has been unfolding since 1998 and concluded in 2000. The second aspect of this focus occurs in the successive changes in the judging of parades, which has its rupture as a model and punishment, for the 2015 carnival. The choice of Gaviões da Fiel, arises from the its protagonism and pioneering spirit in combining spectacle, power and grandeur, which shaped its parade identity, between 1998 and 2015, causing moments of imposing its parade model or adapting to changes. To carry out this work, we used two main documentary sources: periodicals from O Estado de S. Paulo and Folha de S. Paulo, in their printed or digital versions, and the parades, synopses and photographs from Gaviões da Fiel. Keywords: Paulistano Carnival, Spectacle, Identity, Gaviões da Fiel. LISTA DE IMAGENS Imagem 01: Maquete do Sambódromo. Imagem 02: Alterações do Setor J entre 2009 e 2012. Imagem 03: Abre Alas do Império de Casa Verde entre 2005 e 2007. Imagem 04: Alegorias, a construção de um gigantismo (1999/2003/2009) Imagem 05: Fantasias casais de mestre sala e porta-bandeira Gaviões da Fiel. Imagem 06: Faixa no jogo Corinthians e Santos levantada por membros da Gaviões. Imagem 07: Correlação dentro da Gaviões da Fiel Imagem 08: Arquibancada do sambódromo nos desfiles da Gaviões da Fiel. Imagem 09: Construção da Sede no Bom Retiro e a sua faixada atual. Imagem 10: Museu e Loja da Gaviões da Fiel, ao lado da Sede. Imagem 11: Bandeiras da Torcida expostas em evento na quadra. Imagem 12: Bandeirões da Gaviões da Fiel em Estádios. Imagem 13: Pavilhões da Gaviões da Fiel enquanto escola de samba. Imagem 14: Escudos da Gaviões da Fiel. Imagem 15: A camisa preta símbolo da organizada Imagem 16: Primeira camisa e bandeira dos Gaviões, ao lado do Padroeiro São Jorge. Imagem 17: Camisas de enredo Gaviões da Fiel Imagem 18: Placa na entrada da sede principal da Gaviões da Fiel. Imagem 19: Apresentação do casal do Camisa Verde e Branco, na Gaviões da Fiel Imagem 20: Gaviões presentes em alegorias do Gaviões da Fiel Imagem 21: Casal de mestre sala e porta bandeira e traseira de alegoria da escola. Imagem 22: Membro da Gaviões se apresentando na época de bloco, na década de 70. Imagem 23: Abertura do Desfile de 1995. Imagem 24: Vista área do desfile da Gaviões da Fiel em 1998. Imagem 25: Abertura do desfile da Gaviões (Comissão de Frente e Abre-Alas). Imagem 26: Carros abre-alas de 1997 e 1998 respectivamente. Imagem 27: Alegorias e Tripé do desfile de 1998 Imagem 28: Comparação entre Abre-Alas e Última Alegoria em 1998. Imagem 29: Abertura do Desfile de 1999, detalhes do Abre-Alas. Imagem 30: Alegorias do Desfile de 1999. Imagem 31: Detalhes Comissão de Frente, MSPB e ritmista. Imagem 32: Abertura do Desfile de 2000 (Comissão de Frente e Abre-Alas). Imagem 33: Alegorias presentes no Desfile de 2000. Imagem 34: Carro Abre-Alas do Desfile de 2001. Imagem 35: Panorama do desfile de 2001 pelo alto. Imagem 36: Alegorias ao longo do desfile de 2001, sua altura e volume. Imagem 37: Abertura do desfile de 2002 (comissão de frente e abre-alas). Imagem 38: Alegorias no desfile de 2002 (Segunda e Terceira, respectivamente). Imagem 39: Alas do Desfile de 2002, em alusão ao xadrez. Imagem 40: Alas do Desfile de 2002, presentes no quarto e quinto setor. Imagem 41: As três últimas alegorias do Desfile de 2002 em sequência. Imagem 42: Abre Alas do Desfile 2003. Imagem 43: As alegorias em alusão as regiões Norte e Sudeste, no Desfile de 2003. Imagem 44: Vista aérea dos três primeiros setores, no Desfile de 2003. Imagem 45: Mudanças na evolução da escola (1998/2004/2007). Imagem 46: Detalhe da segunda alegoria, em que a fumaça era o aroma de café. Imagem 47: Detalhe da comissão de frente no Desfile de 2004. Imagem 48: Abre-alas de frente e as duas partes, a traseira e dianteira. Imagem 49: Detalhes do terceiro e quarto carros da escola. Imagem 50: Detalhes do terceiro e quarto carros da escola. Imagem 51: Alegorias do Desfile de 2003, da primeira à terceira, respectivamente. Imagem 52: Carro Abre Alas do Desfile de 2006. Imagem 53: As três alegorias subsequentes no Desfile de 2006. Imagem 54: Vista aérea do Desfile de 2006, começo do desfile. Imagem 55: Vista área do Desfile de 2006, visto pelo helicóptero. Imagem 56: Antes e depois da quebra do mastro de Ildely. Imagem 57: Capas dos álbuns da Superliga. Imagem 58: Alegorias no Desfile de 2008. Imagem 59: Alegorias no Desfile de 2008. Imagem 60: Abre-Alas e Comissão de Frente de 2009. Imagem 61: As cinco alegorias do Desfile de 2010. Imagem 62: Detalhes do Abre Alas e da segunda alegoria do Desfile de 2011 Imagem 63: Imagens do Desfile de 2012. Imagem 64: Representações do Corinthians associadas com Lula no Desfile de 2012. Imagem 65: Carro Abre Alas e de encerramento no Desfile de 2013. Imagem 66: Detalhe dos gaviões nos Desfiles (2009/2010/2012). Imagem 67: Tomadas e enquadramentos de imagem da transmissão da Rede Globo. Imagem 68: Uso do desfile para merchandising de patrocinadores. Imagem 69: Detalhes das comissões de frente entre 2009 e 2011. Imagem 70: Quadro comparativo da primeira e segunda alegoria (2013 e 2014). Imagem 71: Abertura da Gaviões da File no desfile 2015. Imagem 72: Comissão de frente e casal de mestre sala e porta bandeira. Imagem 73: Vista área do desfila da Gaviões da Fiel, em 2015. Imagem 74: Vista área comparativa entre Gaviões e Vai-Vai, em 2015. Imagem 75: Alegorias do desfile de 2015. LISTA DE TABELAS Tabela 01: Horário das transmissões do carnaval de São Paulo. Tabela 02: Valor dos Ingressos em relação ao Salário-Mínimo (1998-2015) Tabela 03: Quesitos na cidade de São Paulo. Tabela 04: Evolução do julgamento quesito samba-enredo Tabela 05: Evolução do julgamento quesito harmonia Tabela 06: Evolução do julgamento quesito alegoria Tabela 07: Evolução do julgamento quesito enredo Tabela 08: Evolução do julgamento quesito mestre sala e porta-bandeira Tabela 10: Modelo de desfiles até 1997. Tabela 11: Escalas comparativa de cores entre 1998 e 1999. Tabela 12: Modelo de desfiles 1998 até 1999. Tabela 13: Compositores de Samba-Enredo (2000-2006) Tabela 14: Lista de Enredos enquanto Escola de Samba (1998-2007). Tabela 15: Lista de Enredos da Escola de Samba (1998-2007). Tabela 16: Escalas comparativa de cores entre 2000 e 2003. Tabela 17: Escalas comparativa de cores entre 2005 e 2006. Tabela 18: Modelo de desfiles 2000 à 2006. Tabela 19: Enredos da Gaviões da Fiel (2007-2014) Tabela 20: Lista de Enredos da Escola de Samba (2008-2015). Tabela 21: Modelo de desfile 2008 à 2012. Tabela 22: Comparativos dos principais carnavalescos da Gaviões da Fiel. Tabela 23: Setores do desfile de 2015 Tabela 24: Notas atribuídas pelo júri ao desfile da Gaviões no quesito enredo. Tabela 25: Modelo de desfile em 2015. LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 01: Valor médio dos Ingressos do Grupo Especial (1998-2015) Gráfico 02: Número de componentes nos desfiles da escola entre 1998 e 2006. Gráfico 03: Número de componentes nos desfiles da escola entre 2008 e 2015. LISTA DE SIGLAS CEP: Cidades, Estados e Países. CET: Companhia de Engenharia do Tráfego. COHAB: Companhia Metropolitana de São Paulo. FAAP: Fundação Armando Alvares Penteado. LIGA-SP: Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo MP-SP: Ministério Público de São Paulo. MSPB: Mestre Sala e Porta Bandeira. PCdoB: Partido Comunista do Brasil. PDS: Partido Democrático Social. PFL: Partido da Frente Liberal. PM: Polícia Militar. PMDB: Partido Democrático Brasileiro. PSDB: Partido da Social-Democracia Brasileira. PT: Partido dos Trabalhadores. SASP: Sociedade dos Amantes do Samba Paulista SPTuris: São Paulo Turismo. STJ: Segurança no Tribunal de Justiça TJ: Tribunal de Justiça. UESP: União das Escolas de Samba de São Paulo. LISTA DE ESCUTAS Para melhor compreensão do que se indica nas citações musicais ao longo do texto, indicamos a escuta das mesmas dentro de um aplicativo para web e smartphone no SoundCloud. Após a leitura do QRCode você será direcionado diretamente para o app. Escuta 01: Tristeza do Sambista, Geraldo Filme (Compositores: Osvaldo Arouche/Walter Pinho) Escuta 02: O presidente Jurou, Germano Mathias (Compositores: Germano Mathias/Sereno) Escuta 03: Hino da Gaviões da Fiel Escuta 04: Gaviões da Fiel 2002 (Compositores: José Rifai /Alemão do Cavaco). Escuta 05: Gaviões da Fiel 2010 (Compositores: Luciano Costa, Fadico, Araken, Flávio Rocha, Gustavo Henrique e Júnior Fionda). Escuta 06: Gaviões da Fiel 1995 (Compositor: Grego). Escuta 07: Gaviões da Fiel 1999 (Compositor: Grego). Escuta 08: Gaviões da Fiel 2004 (Compositores: Binho/Claudinho). Escuta 09: Gaviões da Fiel 2006 (Compositores: Ernesto Teixeira/Alemão do Cavaco). Escuta 10: Gaviões da Fiel 2009 (Compositores: Fabinho do Cavaco, João 10, Moraes e Juninho Mascarenhas). Escuta 11: Gaviões da Fiel 2011 (Compositores: Luciano Costa, Araken Fadico, Flávio Rocha, Tite e Wellington Gonçalves). Escuta 12: Gaviões da Fiel 2015 (Compositores: Caio Alves/ Danilo Garcia/ Dom Álvaro/ Eduardo Nery/ Gustavinho Oliveira/ Rafael Tinguinha/ Rodrigo Pezão/ Tadeu Paulista). Aponte o celular para leitura: Ou copie o link indicado https://soundcloud.com/emerson-carnaval-sp/sets/lista-de- escutas?si=7b5caec3a3fc4a4d8b50e72a488c1526&utm_source=clipboard&utm_medium=text &utm_campaign=social_sharing LISTA DE DESFILES Para melhorar sua experiência com nossas análises, deixamos abaixo a playlist com os desfiles analisados ao longo de toda a tese, a saber: 1998: Corinthians Meu Mundo é Você 1999: O Príncipe Encoberto ou a Busca de Dom Sebastião na Ilha de São Luís do Maranhão 2000: Um Voo Para a Liberdade 2001: Mitos e Magias na Triunfante Odisseia da Criação 2002: Xeque-Mate 2003: As Cinco Deusas Encantadas na Corte do Rei Gavião 2004: Ideias e Paixões: Combustível das Revoluções 2005: Renasce, sacode a poeira e dá a volta por cima 2006: Asas da Fascinação 2007: Anchieta, José do Brasil 2008: Nas asas dos Gaviões, rumo ao portal dos Sertões - Santana de Parnaíba, berço de Bandeirantes 2009: O sonho comanda a vida, quando o homem sonha o mundo avança. A fantástica velocidade da roda para evolução humana. É pura adrenalina! 2010: Corinthians... Minha vida, minha história, meu amor 2011: Do Mar Das Pérolas e das Areias do Deserto à Cidade do Futuro - Dubai, O Sonho do Rei Maktoum 2012: Verás que o filho fiel não foge à luta. Lula o retrato de uma nação! 2013: Ser Fiel é a alma do negócio 2014: R9 – O Voo Real do Fenômeno 2015: No jogo enigmático das cartas, desvendem os mistérios e façam suas apostas, pois a sorte está lançada! Aponte o celular para leitura: Ou copie o link indicado https://www.youtube.com/playlist?list=PL-x1Jd3T8- VQCYQ1EEhEYAHgExfwC6760 Sumário Introdução ............................................................................................................................... 16 Capítulo 01 – Sambista à venda? Cultura e espetáculo em Sampa. .................................. 28 1.1. Um espaço definitivo: o Anhembi. ..................................................................................... 30 1.2. O pós-moderno no carnaval: uma visão cultural. ............................................................. 41 1.3. O econômico na cultura .................................................................................................... 46 1.4. A carnaval dentro da estrutura cultural e econômica. ...................................................... 49 1.5. O julgamento e o cultural: organizar o espetáculo. .......................................................... 56 Capítulo 02 – Ser um Gavião: identidade e comunidade no espetáculo. ........................... 73 2.1. Um coletivo organizado: conexões e tensões. ................................................................... 75 2.2. A Gaviões da Fiel Força Independente. ............................................................................ 80 2.3. Identidades e memórias alvinegras em conflito. ............................................................... 88 2.4. Alvinegras tradições: conflitos cruzados .......................................................................... 94 2.5. Bom Retiro: um espaço, duas comunidades. ..................................................................... 99 Capítulo 03 – Os Gaviões em formação: de bloco à escola. .............................................. 108 3.1. As representações dos Gaviões: entre futebol e carnaval. .............................................. 109 3.2. O Bloco Gaviões da Fiel: Da arquibancada para a folia. .............................................. 122 3.3. A escola de samba Gaviões da Fiel: o despontar. .......................................................... 127 3.4. A elaboração de um projeto. ........................................................................................... 135 Capítulo 04 – O voo alto: glória e poder alvinegro. ........................................................... 151 4.1. – Consolidando o modelo alvinegro. ........................................................................................... 152 4.2. – A crise no ninho dos gaviões. .................................................................................................... 183 4.3. – Reflexões sobre o modelo de desfile. ......................................................................................... 205 Capítulo 05 – O voo baixo: crise e ruptura. ....................................................................... 207 5.1. A busca de se enquadrar ao novo. ............................................................................................... 209 5.2. Rompendo visões sobre sua identidade. ...................................................................................... 228 5.3. O julgamento frente ao engessamento. ........................................................................................ 237 Referências Bibliográficas. .................................................................................................. 254 16 Introdução Os caminhos que levam à criação de um trabalho acadêmico são os mais diversos, seja no sentido de percurso organizado do começo até o fim, ou de tantas reviravoltas que o produto final se torna imprevisível em todas as suas possibilidades. O caso dessa tese se direciona mais para a segunda opção. O trabalho em questão surge de dois aspectos: um é o percurso da pesquisa e o outro de ordem afetiva. Ao longo de todo o desenvolvimento, a ideia original era entender as mudanças do carnaval de São Paulo, a partir da observação de quatro agremiações da cidade. Entretanto, o processo foi se encaminhando para a preferência intencional de apenas uma escola de samba das escolhidas no princípio, que nos leva à ordem pessoal. Umas das primeiras lembranças que possuo de carnaval envolve o processo catártico da vitória de uma agremiação, que ocorreu em 2002 no tricampeonato da Gaviões da Fiel Torcida, em um momento de descoberta sobre a desigualdade social e do papel educacional no Brasil, pontos centrais do desfile em questão. No caso oposto, uma das lembranças mais traumáticas envolve o acidente que a escola passou em 2004, quando ainda criança, tive a real compreensão de como o carnaval também é competição, na primeira e única vez que uma escola campeã foi rebaixada no carnaval de São Paulo. Mas a escolha pela agremiação alvinegra vai além de um apego afetivo. Das quatro escolas de samba previamente selecionadas, a Gaviões da Fiel se coloca como a instituição que mais sente as nuances decorrentes das mudanças e rupturas que o carnaval paulistano passa no decorrer nesse século. Desde os aspectos econômicos até os visuais que envolvem o espetáculo, a escola foi modelo de desfile, e, ao mesmo tempo, foi uma das agremiações a ter que se enquadrar em um modelo de desfile. A Gaviões da Fiel Força Independente se origina em 1969, em uma oposição ao então presidente do Corinthians, o deputado e apoiador do regime militar Wadih Helu. Foi pelo protesto e reivindicação de um novo clube, que os torcedores liderados por Flávio La Selva construíram a primeira torcida organizada independente de São Paulo. Nesse período, entre protestos contra as gestões do clube ou até mesmo contra a ditadura militar, consolidou-se em rede de sociabilidades em torno do futebol. Em 1976 se torna bloco carnavalesco, e em 1989 uma escola de samba. Quanto a sua parte carnavalesca, a Gaviões da Fiel é dona da maior hegemonia de blocos carnavalescos da cidade, com 12 títulos no total. Enquanto escola de samba, possui uma discografia de sambas antológicos no carnaval brasileiro, enredos de posicionamento criativo, 17 crítico e inovador, colecionando quatro campeonatos do grupo especial, sendo uma das responsáveis pelo alto padrão técnico e de organização do carnaval de escola de samba deste século. Entre arquibancadas do sambódromo e do estádio, a Gaviões da Fiel sempre foi um ponto da cidade de São Paulo que me chamava a atenção desde a infância. Seja pelo amor ao Corinthians, seja pelas suas contradições ou luta política, a torcida que samba se coloca como um epicentro de diversos estudos e reflexões acerca da relação entre torcedor e futebol, principalmente no campo da antropologia e dos estudos sociais. Dois foram os trabalhos norteadores das nossas observações sobre a Gaviões: o primeiro, de Benedito Tadeu César, “Os Gaviões da Fiel e a águia do capitalismo: ou, o duelo”1, dissertação defendida em 1981 no campo da antropologia, que realizou um trabalho etnográfico com membros da torcida, mapeou os tensionamentos e organização na sede e arquibancada, revisando-os e discutindo-os constantemente, seja no estudo das torcidas organizadas no geral ou da própria Gaviões. Outro trabalho importante foi realizado por Vitor Hugo Haidar, intitulado “Gaviões da Fiel cultura de arquibancada contra o futebol moderno”2, na área de linguagens, em que o autor se baseou nas múltiplas narrativas que a Gaviões desenvolve sobre sua performance, nos cânticos, na estética do uniforme, nas bandeiras e na sua atividade carnavalesca, e como isso infere na sua realidade enquanto identidade. Em um plano geral, a torcida é única que possui um trabalho publicado, que organiza textos em diferentes frentes de observação e que foi intitulado “Os Gaviões da Fiel, ensaios e etnografias de uma Torcida Organizada de Futebol”3. Há uma presença muito forte de uma visão antropológica sobre o ato de torcer dentro da instituição. O trabalho mais específico sobre a parte carnavalesca da instituição foi realizado por Roberto Souza Junior, “Torcidas Organizadas entre futebol e Carnaval: uma etnografia sobre a materialização do torcer e do sambar nos Gaviões da Fiel”4, em um estudo de campo acompanhando os símbolos e tensionamentos do departamento de carnaval e com os setores 1 CÉSAR, Benedito Tadeu. Os Gaviões da Fiel e a águia do capitalismo: ou, o duelo.” 1981. 200 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1981. 2 SILVA, Vitor Hugo Haidar da. Gaviões da Fiel: cultura de arquibancada contra o futebol moderno. 2018. 123 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. 3 HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; NEGREIROS, Plínio Labriola. (Orgs.) Os Gaviões da Fiel: ensaios e etnografias de uma Torcida Organizada de Futebol. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015. 4 SOUZA JUNIOR, Roberto. Torcidas Organizadas entre futebol e carnaval: Uma etnografia sobre a materialização do torcer e do sambar nos Gaviões da Fiel. 2022. 100 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) Universidade Federal de São Carlos, 2022. 18 diretamente relacionados ao futebol, porém sem uma grande análise dos modelos e das propostas de desfile que a escola produziu no passado. A escolha pela Gaviões da Fiel como foco desse trabalho passa por entender que há uma lacuna de estudos e aprofundamentos acerca do carnaval paulistano, principalmente das escolas de samba de torcida organizada, um fenômeno local que teve grande influência na estrutura carnavalesca da cidade. Diversos são os autores que produzem obras relevantes sobre a folia de momo em São Paulo, porém muito localizados em um temporalidade da pré ou pós oficialização, com o ponto final das análises na consolidação do sambódromo. A oficialização do carnaval de São Paulo ocorre no ano de 1968 e foi um importante marco de ruptura do carnaval da cidade, em interesses múltiplos dos sambistas da época, do poder municipal e da imprensa. Como contam Ieda Marques Britto5 e Zélia Lopes da Silva6, o carnaval antes da oficialização era marcado pela forte presença de redes comunitárias e da espacialidade da rua como palco central das apresentações, espalhadas pela cidade, que sedimentaram um saber carnavalesco local. No contexto posterior ao marco de reconhecimento público, Olga Von Simson7 e Bruno Baronetti8, destacam que a informalidade econômica e a instabilidade de investimento saem do livro de ouro e do incentivo da imprensa para uma realidade mais “segura” do poder público, principalmente quanto à organização e regulamentação dos desfiles. Era indiretamente também a oficialização de uma competição mais central entre as escolas de samba. Em sua obra que analisa o contexto posterior a 1968, Wilson Rodrigues de Morais9 destaca como o julgamento passaria a ser um importante espaço de conflito e de hegemonias a partir de então. Com um manual de julgamento exportado do Rio de Janeiro e remodelado em São Paulo, as escolas de samba da cidade remodelaram de forma gradual seu ritmo, sua dança e seu desenvolvimento visual. Atrelados a todas estas mudanças burocráticas, os espaços de apresentação mudam com o tempo: Avenida São João, Vale do Anhangabaú, Ibirapuera até chegar ao carnaval de 1977 na Avenida Tiradentes. Esse último palco de apresentações na rua da cidade vivenciou uma 5 BRITTO, Iêda Marques. Samba na cidade de São Paulo (1900-1930): um exercício de resistência cultural, São Paulo: FFLCH/USP, 1986. 6 SILVA, Zélia Lopes da. Dimensões da cultura e da sociabilidade [recurso eletrônico]: os festejos carnavalescos da cidade de São Paulo (1940-1964). São Paulo: Editora Unesp Digital, 2015. 7 SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes. Carnaval em preto e branco. Carnaval popular paulistano (1914-1988). São Paulo: Editora da Unicamp/Edusp/Imprensa Oficial, 2007. 8 BARONETTI, Bruno Sanches. Transformações na Avenida: história das escolas de samba da cidade de São Paulo (1968 – 1996). São Paulo: LibeArs, 2015. 9 MORAES, Wilson Rodrigues de. “Escolas de samba de São Paulo, Capital”. São Paulo: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1978. 19 reconfiguração na relação escola de samba, poder público, poder econômico e população paulistana. Tornou-se um grande espaço de memória e afetividade de uma carnaval orgânico, irreverente e com identidade local, algo que tem seu fim para os desfiles de 1991. Com o crescimento que o carnaval passa a ter no final dos anos 1980, principalmente com o interesse do setor econômico e da imprensa, o novo sambódromo fixo passaria a ser um espaço de cultura popular, mas acima de tudo de visibilidade e retorno, algo que já existia, porém ainda em uma realidade muito provinciana. O sambódromo passa a ser, na visão de Gleuson Pinheiro10 e Christian Dennys11 uma zona de crescimento e profissionalização do carnaval, mas ao mesmo tempo de alterações e apagamento das sedimentações de cada agremiação, principalmente nas escolas de profunda identidade e pertencimento negro. Ao longo de todo esse processo, os Gaviões da Fiel participaram e vivenciaram todas estas alterações. A relação do carnaval com o agrupamento começa ainda como ala do Vai-Vai, antes de se tornar um bloco. Embora como bloco tenha sido uma potência, seu alto investimento e número de componentes não causavam impacto na malha carnavalesca da cidade na força e estilo do desfile. No período de escola de samba, a escola alvinegra possuiu dois momentos importantes de consolidação: a quase extinção após sua primeira queda ao grupo de acesso, em 1990, e a sua afirmação dentro no especial após seu primeiro campeonato, em 1995. Mas seria na parte final da década de do século passado que de fato a escola iria encontrar uma estabilidade dentro da folia. Nosso recorte de análise perpassa duas mudanças que ocorrem na estrutura dos desfiles, por intermédio da Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo (LIGA-SP). Visando uma nova realidade de competição e atração de investimentos, bem como o interesse da Rede Globo de Televisão, detentora dos direitos de imagem de forma exclusiva para o ano de 1998, a competição passaria a estruturar um novo grupo especial, passando de 10 agremiações em uma única noite de apresentações para 14 escolas de samba a partir de 2000. Com dois anos sem rebaixamento e o enchimento do principal grupo, houve uma mudança nos grupos menores, que passariam a ter que se adequar à nova realidade da elite do carnaval, mesmo que isso não gerasse de forma efetiva um aumento de investimento nos grupos de acesso. Essa reconfiguração que atendia apenas aos interesses das escolas do primeiro grupo 10 SILVA, Gleuson Pereira da. “As Escolas de Samba Negras da periferia e a hierarquia do carnaval paulistano: difíceis acessos”. Pós-FAUUSP, [S. l.], v. 28, n. 53, 2021. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/posfau/article/view/173321. Acesso em: 29 maio. 2023. 11 OLIVEIRA, Christian Dennys M. de. “Geografia do turismo na cultura carnavalesca: o sambódromo do Anhembi”. São Paulo: Ed. Paulistana, 2007. 20 demonstrava uma realidade de interesses e preocupação individual, principalmente na parte de investimento e visibilidade, que passa a ser reconfigurada em 2000. Dessa maneira, no contexto de comemoração dos 500 Anos de Brasil, data em que os desfiles do Grupo Especial tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo tiveram um tema fixo de enredo, a transmissão da folia paulistana sofre uma ruptura estrutural, econômica e de divulgação nacional de sua marca. A partir desse ano, a narrativa empregada pela emissora e a liga gestora se direciona para um Carnaval que “estava crescendo”, “que era o marco de crescimento” ou “esse ano será o divisor de águas”, repetido pelos âncoras de transmissão e os comentaristas ao longo dos desfiles. Parecer grandioso e que tudo estava em crescimento foi uma maneira de, indiretamente, propor a necessidade de que as agremiações saíssem de um modelo provinciano e ainda dentro das dimensões de Avenida Tiradentes para se enquadrarem ao novo espaço que era o sambódromo, aprofundando desigualdades e privilegiando agremiações com boa infraestrutura financeira e de confecção do carnaval. O discurso modernizante e de avanço da festa assume uma aproximação pós-moderna que entende o carnaval em um gradual distanciamento e ruptura com aquilo que representa uma ordem não modernizante. O desmantelamento do que já existe contribuiu para reconfigurações frente ao público e em sua relação com as escolas de samba e o próprio consumo do carnaval, tornando-se um espectador passivo do evento. Acima de tudo, há uma descaracterização de identidades, seja nos desfiles ou nas comunidades. Nesse momento de consolidação da marca dos desfiles das escolas de samba, tornar-se uma escola-empresa dentro da produção carnavalesca era uma forma de se manter competitiva pelo título e se afastar do rebaixamento, e consequentemente, da perda de vigor econômico e visibilidade. O Carnaval de 2000 modelaria efetivamente e sem possibilidade de retorno uma realidade de desfile que passaria a privilegiar o espetáculo visual, suprimindo de forma gradual as identidades de cada agremiação. Com a novas formas de investimento e transmissão integral dos desfiles, o julgamento vai passar constantemente por alterações na profissionalização dos quadros e setores de uma escola de samba, bem como nas exigências que cada quesito possuía. Como apontam Leila Blass12 e Clara Assunção13, o princípio desse século ocasionou uma nova reconfiguração na 12 BLASS, Leila Maria da Silva. “Desfile na avenida, trabalho na escola de samba: a dupla face do carnaval”. São Paulo: Annablume, 2007. 13 AZEVEDO, Clara de Assunção. “Fantasias negociadas: políticas do carnaval paulistano na virada do século XX”. 2010. 221 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. 21 ordem de trabalho de cada agremiação, seja na contratação dos melhores artistas do mercado carnavalesco ou na gestão do carnaval como um todo, ocasionando um aprofundamento burocrático e das relações de poder entre as escolas e a LIGA-SP e da liga com a prefeitura, setor econômico e televisão. Progressivamente, a festa teria que também dar lucro e entreter, como um grande espetáculo de investimento e retorno. Dessa maneira, em alterações e melhorias, o espetáculo reconfigura o manual do julgador, documento oficial da liga, organizado e discutido anualmente entre os presidentes e as direções das escolas do grupo especial. Tal regulação serve de limitador e orientador a cada jurado, para dar a cada quesito em julgamento uma nota justa e isenta de subjetividade. Ao dar cada nota, há a justificativa de cada julgador sobre a perda de décimos ou sobre a nota máxima. Quando o carnaval foi ficando caro e direcionado ao show que cada agremiação deveria executar, o manual foi se modificando e se tornando técnico e podador dos quesitos. Entretanto, na transição do carnaval de 2014 para 2015, houve a primeira grande ruptura quanto ao manual do julgador: se anteriormente cada jurado daria uma nota a partir de alguns apontamentos sobre o quesito e seus balizamentos, começando nesse ano, além de haver o direcionamento, cada julgador precisaria seguir à risca o balizamento. A partir de então, a disputa do carnaval passava de forma incessante a encontrar uma técnica de punição, interferindo de forma direta em cada uma das agremiações. Ao longo de nosso trabalho de análise de fontes, observamos que nessa realidade de mudanças, uma agremiação se destaca, primeiro como um modelo a ser seguido enquanto infraestrutura e visual, e depois como um reflexo das rápidas mudanças que o julgamento e o espetáculo exigiam, o que nos faz chegar na Gaviões da Fiel e escolhê-la como recorte temático de análise. O carnaval de 1998 da escola alvinegra foi uma ruptura da sua forma de organização de desfile em duas frentes: a primeira delas na gestão de carnaval, que passa a ter maiores investimentos e organização como uma empresa, em uma tentativa de mudar a imagem da torcida. A segunda frente perpassa a imponência visual e a centralidade artística no controle central do carnavalesco. Dessa maneira, entre 1998 e 1999 a escola alvinegra coleciona bons resultados e um apreço do público e imprensa pelo impacto gerado em um projeto pessoal de ser potência. Essa realidade da busca de um modelo tem seu aprofundamento entre 2002 e 2006 no refino destas frentes, vencendo no período citado três campeonatos e ocasionando uma influência visual e de gestão nas demais agremiações da cidade, no que podemos chamar de modelo alvinegro de 22 desfile. Seus pilares eram: o samba-enredo, o centro conceitual do carnavalesco e um projeto de comunidade enquadrada nessa realidade. Porém, com rebaixamentos e crises internas e externas, a Gaviões da Fiel, em um período curto de tempo, deixa de ser o modelo e passa a ter que se enquadrar em uma outra realidade de carnaval, onde seus pilares não eram mais vitais para conseguir o título. Dessa maneira, entre 2007 e 2014, a escola alvinegra vive altos e baixos da identidade de desfile, que tem na mudança geral de regulamento em 2015 uma acentuação da crise. Acima de tudo, a torcida que samba pode ser vista como um termômetro desse carnaval voltado ao espetáculo, que ativamente contribuiu para erguer. Três são as encruzas dessa relação entre a mudança no carnaval e a Gaviões. A primeira delas se coloca nos tensionamentos e contradições de sua identidade, afinal: como uma torcida de futebol se coloca como um modelo de escola de samba na cidade de São Paulo? Embora pareça haver uma ambiguidade nessa questão, o fato é que um agrupamento majoritariamente voltado ao Corinthians e que se estrutura na apropriação de sua história e formação conseguiu, de alguma forma, abrir espaço para outro setor oposto à sua origem. As identidades gaviãs são várias. Dos bandeirões, cânticos e protestos em prol do corinthianismo ou da fiscalização de seus dirigentes. Ao mesmo tempo, esse agrupamento tem uma força política e de penetração em sociedade, que marcou movimentos em prol da anistia ou em confronto com a extrema direita. Nessa conjunção de realidades, muitas são as cristalizações acerca de machismo, homofobia e um senso comum que contradiz a própria instituição enquanto ambiente democrático. Nesse caldeirão de realidades, surge de forma concomitante e com tensionamentos, desde os anos 1990, a comunidade carnavalesca da Gaviões da Fiel, que não necessariamente faz parte ou coabita com os mesmos interesses de seu agrupamento principal e do topo da hierarquia da instituição: primeiro o Corinthians, depois a Gaviões e por último o carnaval. Como se subverte essa ordem ou como se equaliza esse relacionamento é uma área importante desse trabalho. Na mesma década de consolidação da marca carnavalesca na identidade da torcida, eclode no âmbito da justiça devido à violência e ao confronto entre as torcidas e o Estado, a proibição e limitação da organizadas, afetando de forma indireta o carnaval, em uma proibição que começa em 1995 e tem seu fim em 1998. Dessa forma, o investimento e organização da Gaviões da Fiel tem no carnaval uma possibilidade de reposicionamento de sua marca na sociedade. 23 A partir do carnaval de 1998, a entidade gera alto investimento no setor carnavalesco, consolidando-se como uma das potências do carnaval paulistano. O espetáculo que a agremiação gera vai além do visual de suas alegorias e fantasias luxuosas, atingindo também a sensação e vibração do torcedor com fogos, sinalizadores e bandeirinhas, transformando as arquibancadas do sambódromo em arquibancadas de estádio. Dessa maneira, nosso questionamento central perpassa por entender dois questionamentos: como a realidade interna da Gaviões da Fiel começa a interferir na sedimentação carnavalesca das escolas de samba de São Paulo? Ao mesmo tempo, como a estrutura externa burocrática, regulamentar e de julgamento age nas escolhas e modos de desfilar da escola alvinegra? Podemos inferir de forma empírica que as modificações que a escola de samba passa enquanto modelo em contato com a competição foram moldando a sua comunidade e desfile para se adaptarem ao título, o que gerou como resultado inverso sua própria crise, uma vez que no momento em que não tinha mais condições e poder de ser um centro de influência, enfraqueceu sua organização interna. Ao mesmo tempo, no campo individual a agremiação alvinegra sofreu alterações, o carnaval paulistano criou seu próprio estilo de dar espetáculo, e outras agremiações substituíram o estilo e identidade artística da Gaviões. Para compor a análise, os procedimentos de pesquisa encontram-se alinhados à ideia do objeto principal: examinar, a partir das mudanças que ocorrem no campo econômico e midiático, as possíveis mudanças na forma de julgamento e estrutura de organização, bem como as estratégias de composição de um espetáculo visual para o título, em uma visão de avanço intrínseca com a de modernidade. Embora o campo de pesquisa de Escolas de Samba seja escasso em fontes escritas, acreditamos, de acordo com Marc Bloch14, que aquilo que o homem diz, escreve, o que fabrica e o que toca deve ser considerado como documento. E portanto, o samba-enredo, uma quadra de Escolas de Samba e as fantasias/alegorias serão consideradas fontes no cruzamento com documentos escritos. O documento, a partir das ideias do autor, expressa, portanto, uma mudança na concepção de fonte. Para viabilizar essa análise, realizamos a pesquisa no acervo da Sociedade dos Amantes do Samba Paulista (SASP) e do Acervo Digital do jornal Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo; especialmente no caso da Gaviões da Fiel, em que foram levantados 142 matérias de 14 BLOCH, Marc Leopold Benjamin. A observação histórica. In: Apologia da história, ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. 24 jornais, além dos desfiles que acontecem entre 1998 e 2015, todos na direção e condução da Rede Globo de Televisão. Como aponta Tania de Luca15, o papel que as fontes possuem não pode ser o de meros artigos que expressam subjetividades de quem escreve. O uso dos periódicos não deve ser visto como pré-concebido. Utilizá-los requer uma análise cuidadosa, e “historicizar a fonte requer ter em conta, portanto, as condições técnicas de produção vigentes e a averiguação, dentre tudo que se dispunha, do que foi escolhido e por quê”16. Trabalhar com fontes de periódicos é, portanto, trabalhar com o que se tornou notícia, o que nos mobiliza a pensar a respeito da linha editorial de tais jornais, quem produz a matéria, sua localização dentro do jornal. O que a autora destaca é que a fonte periódica possui valor de análise, já que possui marcas e visões de uma época: “os discursos adquirem significados de muitas formas”17. No caso nas matérias de periódicos sobre o Carnaval, existe um tempo e um espaço nos jornais que não é fixo, assim como não existe um grupo próprio para sua cobertura. Olhar o periódico requer um trato arqueológico, realizar uma desconstrução do que compõe a fonte, que se torna um importante recurso cruzado com outras fontes. O uso de fontes de arquivos de jornal configura uma pesquisa em um amontoado de informações, interesses e disponibilidade pública que na maioria das vezes refletem múltiplas perspectivas de linha editorial ou do jornalista envolvido. Para Ângela Maria de Castro Gomes, o uso de tal fonte “procura analisar os acontecimentos, dando ao seu leitor o maior número de informações possíveis sobre os mesmos”18. Nesse contexto de análise, para a autora o manuseio ainda envolve o posicionamento político existente, bem como o contexto empregado pela veiculação. No caso dos periódicos aqui analisados, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, a cobertura se desdobra em dois pontos de vista: um relacionado ao Carnaval, que observa a folia paulistana com um olhar comparativo e limitado a observar São Paulo em uma comparação ao Rio de Janeiro. Entretanto, fora do âmbito Carnavalesco e na Gaviões da Fiel especificamente, existe uma construção que fomenta uma narrativa de combate à violência da torcida nas arquibancadas, com a construção de quadros comparativos e análises das mais diversas para 15 LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: Fontes Orais, Org. PINSKY, Carla Bessanezi. São Paulo: Contexto, 2008. 16 Ibid., p. 232. 17 Ibid., p. 140. 18 GOMES, Ângela de Castro. Notas sobre uma experiência de trabalho com fontes: arquivos privados e jornais. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 1, nº 2, set., p. 259-283. 25 entender o fenômeno, que na transição dos anos 80 e 90 viveria o seu ápice de violência e proibições. Nesse sentido, as informações referentes ao caso da torcida organizada exclusivamente se localizam no caderno de esporte de ambos os jornais, o que inclusive decorre na autoria de alguns jornalistas, enquanto as informações sobre o Carnaval oscilam no caderno de cidades, cotidiano, e a depender do ano de cobertura, em um caderno exclusivo de Carnaval, onde muitas das vezes não há uma assinatura de autoria. Dessa forma, observar o uso dessa fonte recai em uma tensão entre os interesses da população, e nesse caso, da cobertura de um evento que passa ser maior nos Anos 70 e possuir maior demanda nos Anos 80 e 90, quando não existiam entrevistas periódicas, quadros com os enredos e sambas-enredo e um detalhamentos dos desfiles e apuração. Dessa forma, para Maria Capelato19, cabe ao historiador observar como se desenvolve ou se mescla o interesse editorial (privado) com o público (que divulga a informação lida). No aspecto imagético, para Martine Joly20, a elaboração da imagem perpassa produção e confecção, que incluem sensações, como uma mimesis do que existe, o que em nosso caso passa pela imagem fixa e em movimento. O processo de compreensão das imagens é complexo e exige de quem analisa saber compreender sua natureza. Por mais que criem uma série de imagens de um momento, as lembranças só ocorrem sobre aquele instante reproduzido. Por mais que somente os vídeos representem a mimese do ocorrido, outros aspectos fixos podem compor elementos, como vestuário, dança ou alegoria, mas com limitações. Para a autora, o que é imagem se associa com a concepção de representação, dado que “desvia da verdade ou, ao contrário, leva ao conhecimento. Para o primeiro, seduz as partes mais fracas de nossa alma, para o segundo, é eficaz pelo próprio prazer que se sente com isso”21. É, portanto, uma força que impulsiona nossa compreensão da sociedade, seja de comunicação ou da lembrança que age sobre nós. Essa concepção faz do carnaval um conjunto de sensações que orbitam em várias frentes, tal qual uma alucinação visual, onde se imprime uma lembrança sensorial e visual como um sonho que possui narrativa pelas imagens que nós construímos, ou seja: “a lembrança visual 19 CAPELATO, Maria Helena Rolim. A imprensa na História do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988. 20 JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Tradução de Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1996. 21 Ibid., p. 19. 26 e a impressão de uma completa semelhança com a realidade”22. Conjuga-se com elementos que identificamos no momento que guardamos posteriormente. De forma aproximada, Erwin Panofsky23 conceitua que a relação que o espectador possui com a arte e sua materialidade se coloca em uma interpretação em perspectiva pelas suas simbologias e significantes, se distanciando de uma realidade de imitação de sua visualidade e materialidade artística. Embora o autor escreva e teorize acerca da obra de arte convencional, podemos compreender que a observação de qualquer obra de arte se coloca nas condições históricas existentes no contexto de análise do sujeito e do artista, que transporta para sua execução o que o envolve, principalmente na sua iconografia e simbologia. Auxiliam em nossa análise visual o pensamento de Ernst Gombrich24, onde, a construção artística está envolvida com diversas sensações da constatação do lugar do artista e o seu mundo, onde, a ilusão que a obra possui envolve uma correlação entre o que é criado e o que os sujeitos observam, seja na construção obvia ou no jogo de ícones e símbolos que são reposicionados para provocação do espectador. Embora seja de uma outra corrente de percepção da estética da arte, Walter Benjamin25 defende que a obra de arte deve está envolta em uma percepção de aura e singularidade do seu criador, sendo portanto, uma construção de arte que é singular e que não se direciona para uma produção de interesse do hegemônico. Para compreendermos tais questionamentos e inquietações, essa tese se divide em cinco capítulos. O primeiro deles se dedica a uma incursão teórica acerca de três aspectos: a ideia complexa de modernidade e pós modernidade, e de como tais pressupostos atingem a concepção popular de cultura. O segundo nos direciona à interação e aos interesses em torno do poder público, das escolas de samba e da televisão para as alterações de regulamento, julgamento e do espaço de apresentações. Por fim, como o setor econômico coabita com essa realidade de cultura, lucro e espetáculo. No segundo capítulo iremos compreender aspectos basilares da formação da Gaviões da Fiel. Seja no aspecto histórico ou identitário, o principal objetivo é compreender as tramas e fios que emaranham a formação do agrupamento: primeiro na sua dimensão futebolística e segundo na sua compreensão carnavalesca. Dessa maneira, aspectos de identidade, tradição e comunidade são questionados na escala de violência, espetáculo, estereótipos e posicionamentos políticos em sociedade. 22 Ibid., p. 20. 23 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2007. 24 GOMBRICH, Ernst. Arte e ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 25 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1987. 27 No terceiro capítulo, nosso foco será observar como essas realidades que formam a identidade do grupo e sua dualidade convergem nas representações visuais e musicais da arquibancada nos estádios ou no futebol. Em um segundo momento, veremos como tais iconografias desaguam na época de bloco e de afirmação da escola, dando foco ao surgimento do modelo de desfile e organização entre 1998 e 1999. No quarto capítulo abordaremos o voo alto que os gaviões dão sobre o carnaval de São Paulo, destacando entre 2000 e 2006 a construção do modelo alvinegro de desfile, baseando- nos na produção artística da escola em todas as suas esferas. O tópico visa entender como a agremiação se adaptou às realidades econômicas e regulamentares que o período exigia, e ao mesmo tempo como influenciou as demais escolas da cidade, enquanto gestão e espetáculo. No quinto capítulo, observamos o voo baixo desses gaviões, quando após sucessivas crises e quase extinção, entre 2007 e 2015, a escola alvinegra passa correr para se enquadrar a uma nova realidade de competição. Dessa maneira, observamos como sua produção artística vai se enquadrando e se tornando padronizada em uma realidade de supervalorização da competição e do espetáculo pelo espetáculo, mesmo que isso ocasione rusgas em sua identidade. 28 Capítulo 01 – Sambista à venda? Cultura e espetáculo em Sampa. O carnaval de São Paulo sempre esteve em contato com a ideia de espetáculo e interesse econômico, desde o seu processo de oficialização, que ocorre em 1968. Do período em questão até a construção definitiva de um sambódromo, as realidades, interesses e visões sobre o carnaval como espetáculo mudaram. Com uma construção bastante conturbada, o sambódromo foi um espaço que observou a transição de um carnaval semiprofissional para um segmento organizado com uma ideia de empresa. Se notarmos a construção historiográfica a respeito do carnaval paulistano, muitas foram as observações acerca desse direcionamento de espetáculo e de suas alterações. Para Zélia Lopes da Silva26, o que é importante observar dentro do carnaval em São Paulo é a existência de um desenvolvimento que começa nas ruas e se espalha para as outras vertentes existentes. Dessa maneira, o carnaval pré-oficialização preserva uma realidade menos espetacular, em que a “organização dos desfiles de rua de suas agremiações, foram protagonistas (na qualidade de foliões ou espectadores) nos desfiles públicos (oficiais ou não), nos bailes e nas brincadeiras”27, o que configura redes de sociabilidade para construção primordial das comunidade existentes. Ainda dentro do carnaval pré-oficialização, para Ieda Marques Brito28 existe dentro da formação dos grupos antigos da cidade um tensionamento entre os espaços de samba e de batuques em associação com o crescimento que a cidade passava no começo do século passado. No seu trabalho que oferece um grande enfoque aos cordões, em especial o Grupo da Barra Funda, a região do Largo da Banana ocupava centralidade importante na constituição enquanto centro musical e comunitário, algo que se perde com o tempo no avanço de cidade e na dispersão pela metrópole, na busca de um novo lugar de batuque e formação carnavalesca. Em uma análise direta sobre o carnaval enquanto escola de samba, Olga Von Simson29 pontua que as primeiras buscas de uma construção de investimento para as manifestações ocorriam dentro da esfera privada, como em rádios e televisão. Somente para os desfiles de 1968 que existe de fato um incentivo público no reconhecimento e oficialização do desfile das escolas de samba. A partir de tal investimento, há na visão da autora o capital como elemento 26 Silva, 2015. 27 Ibid., s/p. 28 Brito, 1986. 29 Simson, 2007 29 fundamental que se coloca como oficialmente importante para gerar o espetáculo que o regulamento exigia30 e para se enquadrar no proposto. Essa realidade, portanto, ocorre porque há uma “intensificação do processo de enquadramento do folguedo, através do qual os traços ‘perigosos’ foram sendo depurados, e imposições do gosto da classe média branca foram sendo aceitos”31, porém esse processo para a aceitação ampla é lento e gradual, principalmente dentro da cidade de São Paulo. Para Simson, esse carnaval que se inclina para a espetacularização busca um novo status e direcionamento para o gosto externo, deixando de lado a expertise do asfalto por uma experiência técnica em todos os quadros que formam um desfile. Desse contraste, portanto, é que se projeta o começo de uma visão comercial, ou nesse caso, a inserção do carnaval de escola de samba como elemento lucrativo e capitalizado do turismo da cidade de São Paulo. Completando com a autora, “essas formas de criatividade popular passaram a ser vistas como algo que pode ser consumido pelas classes superiores, sob a forma de uma mercadoria muito relutável”32, e por isso mesmo há a necessidade crescente de se tornar moderno dentro de um circuito crescente de globalização. Em busca dessa forma estruturante, afasta-se de características próprias da folia paulistana, como a batida grave e mais agressiva da bateria ou a pouca preocupação com o impacto do visual por si só, e pode assim ser um produto mais facilmente consumido e difundido. Em uma última incursão historiográfica, Bruno Sanches Baronetti33 aponta que o palco de apresentações para fazer ver os desfiles da cidade de uma forma grandiosa não rompe de maneira imediata com o modo de desfile até então existente e que se formou na Avenida Tiradentes. A construção do sambódromo do Anhembi, que ocorre em passo lento enquanto inserção do concreto, arrasta ainda um jeito de entender o carnaval de maneira “espontânea” enquanto evolução, harmonia e no conjunto de samba-enredo e bateria. Indiretamente, o sambódromo coloca novos desafios para cada escola de samba, que dentro de suas culturas e identidades precisavam agora aliar tradição ao gigantismo que representava o sambódromo. Isso nos faz pensar, por um lado, que a década de 1990 se tornou um marco de redirecionamento do samba-enredo e dos enredos de cada escola de samba, ocasionando mudanças e dificuldades nas agremiações mais antigas em se manterem dentro de 30 O regulamento do carnaval de São Paulo foi literalmente copiado do que era exigido no Rio de Janeiro. Estamos falando de um carnaval no final dos Anos 60, que já era sinônimo de espetáculo e conhecimento nacional, o que impunha um modelismo carioca ao carnaval paulista. 31 Ibid., p. 27. 32 Ibid., p. 28. 33 Baronetti, 2015. 30 um modelo mais imagético, mas possibilitando que escolas com maior aporte financeiro cresçam e ocupem o topo da competição. 1.1. Um espaço definitivo: o Anhembi. O sambista Geraldo Filme escrevia em Tristeza do Sambista34 (♫ Escuta 01) que a maior tristeza de um folião é a possibilidade de não ter condições de se apresentar e se consagrar no desfile da ilusão, que é o desfile de escola de samba. Além dessa composição, o sambista colocava suas posições em canções, os dramas que o “progresso” ocasionou dentro do carnaval desde os anos 80. Se a tristeza se direciona ao desfile, indiretamente estamos falando do espaço de tais apresentações, que em São Paulo ganha uma construção definitiva a partir de 1991. Mas como também narra Germano Mathias, em O Presidente Jurou35 (♫ Escuta 02), para que o novo espaço fosse posto em voga, as agremiações não mais poderiam improvisar em suas apresentações. O lugar exigia, como canta em sua canção “fardamento novo, alegoria e samba”, para que fizesse frente à nova realidade que se apresentava. Tanto em Filme como em Mathias, era visível que as mudanças que já ocorriam no carnaval eram um fenômeno que iria permanecer em progressão em São Paulo. Para Gleuson Pinheiro36, essa realidade que se apresenta dentro do novo espaço de apresentações ocasionou de forma acelerada e progressiva um apartamento dos desfiles, distanciando o sambista da realidade e consumo do carnaval para além da apresentação. Este afastamento do público ocorre em uma ordem classista, onde aqueles que não possuem condições de adentrar o sambódromo agora nem poderiam mais acompanhar a armação das escolas, como ocorria na Avenida Tiradentes37. Agora uma fortificação de concreto impossibilita até mesmo observar o que as escolas irão levar. Nesse direcionamento, para o referido autor “os componentes vêm em ônibus cedidos pela prefeitura e desembarcam dentro do complexo do Anhembi, o qual, por sua vez, no período carnavalesco é cercado de tapumes que impedem toda a visão da montagem e preparação dos 34 Música composta por Osvaldo Arouche e Walter Pinho e interpretada por Geraldo Filme no álbum “Geraldo Filme”. 35 Música composta por Germano Mathias e Sereno, e interpretada por Germano Mathias no álbum “Ginga no asfalto”. 36 Silva, 2023. 37 O carnaval da Avenida Tiradentes aconteceu de 1977 até 1990. Localizado entre a Estação Armênia e a Estação da Luz, o carnaval da Tiradentes foi uma tentativa de ampliar e dar mais conforto às escolas de samba pertencentes aos principais grupos da cidade. Por ser um espaço “afetivo”, os anos de carnaval na referida avenida se colocam como contraponto a muitos baluartes do carnaval de São Paulo, em uma visão de maniqueísmo, representa espontaneidade e público caloroso, em oposição ao engessado e regulamentar do novo sambódromo. Portanto a Avenida Tiradentes se tornou um lugar de memória do carnaval áureo paulistano, muito em função da difusão de discos com os sambas-enredo e a transmissão local das festividades. 31 desfiles”38. Dessa maneira, a construção que começa a ser idealizada no final dos anos 80 se tornaria um mecanismo de separação entre os componentes e as escolas de samba, que passariam a ter que constantemente buscar inovações e formas de se manter nos grupos principais. No caso, são aqueles realizados no sambódromo do Anhembi, e isso foi sufocando e tirando foco e protagonismo dos outros sambódromos que existiam na cidade39. Dessa maneira, o Anhembi seria um espaço “renovado” para o desejo de modernidade que o carnaval de São Paulo almejava. Assim, para o carnaval de 1990, a então prefeita Luiza Erundina (PT), indicava em reportagem em plena Avenida Tiradentes, que a partir de 1991 o carnaval de São Paulo ganharia um novo palco para o espetáculo das escolas de samba40, quando se efetiva o desejo de financiar e custear a construção de uma espaço próprio de desfiles: um sambódromo. Algumas questões de sua construção chamam atenção, como expressa reportagem da Folha de S. Paulo41. Uma delas era que a promessa inicial seria para o mês de janeiro, teria como arquiteto Oscar Niemayer, e diferente do sambódromo carioca, ficaria em uma área no espaço do Anhembi, na Zona Norte da cidade. Dessa maneira, o sambódromo seria deslocado da Avenida Tiradentes, em um ponto mais eficiente para o deslocamento por transporte público, para uma zona com pouca densidade demográfica, em uma área militar com pouco acesso e infraestrutura. Como podemos observar na maquete abaixo, o projeto para o sambódromo possui arrojo em seu feitio, com uma cobertura na parte central da passarela (Imagem 01), além de um monumento ao fim da pista, algo muito similar ao projeto do sambódromo carioca. Outro detalhe dessa empreitada se encontra no campo da administração pública, que não seria a única encarregada da construção. A prefeitura era uma das responsáveis pelo aditivo de verba e o restante do dinheiro viria da iniciativa privada. 38 Ibid., p. 187. 39 Além do sambódromo do Anhembi, a partir do final dos anos 1990 a União das Escolas de Samba de São Paulo passaria a administrar os demais grupos da cidade, em específico, da 3ª divisão até as escolas pleiteantes e blocos carnavalescos. Dessa forma, a UESP passaria a realizar seus desfiles na Vila Esperança e Butantã, porém outros espaços serviram de palco de apresentações, como por exemplo o autódromo de Interlagos. 40 Visando maior espaço para a folia, em 1977 os desfiles ocorrem na espaçosa Avenida Tiradentes, a primeira grande mudança no palco dos desfiles, que anteriormente ocorriam na Avenida São João. Essa mudança ocorre também devido ao crescente interesse do paulistano pelos desfiles, o que demandou maior espaço para concentração e locação dos espectadores. 41 REDAÇÃO. Sambódromo paulista deve sair em janeiro. Folha de S. Paulo, ano 70, n. 22338, 31 de maio de 1990, editoria Cidade, p. C1. Disponível em: https://acervo.folha.com.br/digital/leitor.do?numero=10980&anchor=4905904&origem=busca&originURL=&m axTouch=0. Acesso em: 11 nov. 2023. 32 Imagem 01: Maquete do Sambódromo. Fonte: Acervo do Anhembi. Em outra reportagem do mesmo jornal42 temos dois dados, que se projetados na atualidade evidenciam alguns aspectos sobre estatização e desestatização: um deles é que os dois projetos que surgem no governo de Erundina, o Autódromo de Interlagos e o projeto do Anhembi, são postos como construções custosas e desnecessárias, e para seu sucesso ocorrer deveriam ser custeados de alguma forma pela iniciativa privada. O segundo ponto seria o mais lógico, baixar o custo elevado que o “sambódromo” de rua causava a cidade, como o que levou a ser inaugurada a Marquês de Sapucaí em 1984, narrativa semelhante empregada em São Paulo. Como contrapartida para a justificativa de uma construção “inútil”, o gabinete da prefeita Erundina evidenciava que não seria apenas um sambódromo, mas também uma área de eventos e shows para a cidade43. Uma nota importante era que, diferente de Interlagos, na construção do sambódromo havia um processo de licitação para as obras, diferente do que 42 NERI, Emanuel. Erundina quer fazer sambódromo para Carnaval no Campo de Marte. Folha de S. Paulo, ano 70, n. 22338, 31 de maio de 1990, Cidade, p. C1. Disponível em: https://acervo.folha.com.br/digital/leitor.do?numero=10980&anchor=4905904&origem=busca&originURL=&m axTouch=0. Acesso em: 11 nov. 2023. 43 Existia o projeto de construção da Escola Municipal Avenida dos Desfiles, onde sete mil alunos estudariam em quatro escolas diferentes, uma do município outras três pela gestão do Estado. Entre estas escolas, uma para alunos com necessidades especiais, a arquibancada central teria uma cobertura para servir de abrigo a peças e shows. 33 ocorreu no autódromo. Assim, para o presidente do Anhembi, o projeto sairia de qualquer forma, uma vez que os interesses subtrairiam as diferentes visões sobre o projeto. Em relação aos sambistas, a reportagem supracitada indica que existia um clima de bastante otimismo sobre a construção do sambódromo: foi vista como algo valoroso, uma vez que nas palavras de Leandro Alves, presidente da LIGA-SP e da escola de samba Leandro de Itaquera “todo mundo aprovou a ‘ideia’, porque sabe que não dá para continuar desfilando na avenida Tiradentes”44, como conta para matéria citada. Isso evidencia outro ponto que devemos ter em consideração, a relação entre o setor público e as escolas de samba, que foi se estreitando década após década desde o surgimento das escolas de samba e cordões. Outro aspecto é o caráter semiprofissional das escolas, que já demonstravam a necessidade de mudanças, mas que ao mesmo tempo estavam distantes de possuírem tal feitio: o sambódromo respondeu a uma necessidade de investimentos financeiros e de estrutura. “É muita gente desfilando sem nenhuma infraestrutura. A mudança para o Campo de Marte vai resolver o problema e facilitar o acesso do público, que vai ter o metrô para chegar ao local do desfile”45, afirmava Leandro Alves em entrevista à mesma reportagem. Porém os desfiles na Tiradentes já eram abastecidos pelas estações da Luz, Tiradentes e Armênia, enquanto o novo sambódromo ficaria a uma distância considerável da estação mais próxima, Portuguesa-Tietê, o que mostra certa ponderação do presidente46. Já o presidente da Vai-Vai, o Chiclete, coloca outro olhar, onde seria possível sim o carnaval mudar de espaço, bastando apenas boa vontade da prefeitura, como no autódromo de Interlagos. Isso nos indica como a construção de um espaço para a cultura carnavalesca enfrentou desconfiança e resistência em sua construção e efetivação de fato. O que podemos observar dentro do processo de construção e na sua consolidação é que as escolas eram vistas como elemento de lucro para os envolvidos, que em contrapartida não representou um aumento de verbas para as escolas. Mas no campo das decisões os sambistas foram pouco ouvidos. Se formos comparar a oficialização dos desfiles pela prefeitura e o sambódromo, realmente os sambistas não são consultados sobre questões de obra, especificações do projeto e etc., o que fica expresso na fala do Presidente da Peruche, descrita na referida matéria: “era essencial sair da avenida Tiradentes, 44 NERI, Emanuel. Erundina quer fazer sambódromo para Carnaval no Campo de Marte. Folha de S. Paulo, ano 70, n. 22338, 31 de maio de 1990, Cidade, p. C1. Disponível em: https://acervo.folha.com.br/digital/leitor.do?numero=10980&anchor=4905904&origem=busca&originURL=&m axTouch=0. Acesso em: 11 nov. 2023. 45 Ibid., p. C1. 46 Ainda no tempo presente, apenas três linhas de ônibus passam em frente ao sambódromo de São Paulo, em deslocamento entre as estações Barra Funda e Santana do metrô. 34 mas era necessário que fôssemos ouvidos. Acho que o tamanho da pista é muito pequeno, deveria ter pelo menos 600 metros de comprimento”47. Fica a entender que a prefeitura fez a construção apenas considerando o corte de gastos, como se as escolas fossem apenas contratadas para se apresentarem no sambódromo. A situação se aproxima da visão de uma arquitetura que pouco dialoga com quem a utiliza. Em outras palavras, a estrutura era posta, mas o investimento ainda era incipiente dentro da realidade das escolas, principalmente as que possuíam recursos precários. No campo político48 e dos arquitetos49, o descontentamento com as obras mostrava que o interesse cultural não era um ponto importante para o projeto de cidade na época. Por mais que existisse um interesse importante da gestão municipal, essa realidade estava distanciada do interesse de parte da sociedade, o que também se evidencia no recorte e no modo como os jornais da época abordaram o assunto. Depois de variados entraves, desde um interesse de “organização” do samba paulistano, que visava apenas retorno financeiro, passando por uma gestão pública que levou o projeto no mais profundo profissionalismo de conjugação de interesses, até setores de oposição contra a obra, o sambódromo, que a princípio deveria ser entregue no dia do aniversário da cidade, 25 de janeiro, foi entregue faltando apenas oito dias para os desfiles. Estava bem longe do que se 47 NERI, Emanuel. Erundina quer fazer sambódromo para Carnaval no Campo de Marte. Folha de S. Paulo, ano 70, n. 22338, 31 de maio de 1990, Cidade, p. C1. Disponível em: https://acervo.folha.com.br/digital/leitor.do?numero=10980&anchor=4905904&origem=busca&originURL=&m axTouch=0. Acesso em: 11 nov. 2023. 48 As reações acompanharam a realidade, o interesse da oposição e a situação. Para o vereador do PSDB, Arnaldo Moreira, o sambódromo poderia ser construído de fato, porém tal iniciativa não deveria ser um “gasto” por parte da prefeitura, uma vez que a iniciativa privada deveria se encarregar do projeto. Já para Andrade Figueira (PFL), os interesses estavam muito mais voltados à sua ligação com a Unidos do Peruche, da qual era diretor, do que outro aspecto de administração pública. Para Antonio Caruso (PMDB), o empreendimento não deveria ter nem iniciativa de construção, nem o sambódromo deveria ser pauta, já que os desfiles poderiam ocorrer no autódromo de Interlagos. Já Aldo Rebelo (PCdoB) desconhecia qualquer iniciativa do projeto. Essa realidade evidencia várias visões de partidos acerca da construção do sambódromo, como a visão empresarial e liberal que ainda existe no PSDB e PMDB. Outro elemento importante é a relação entre a política e as escolas de samba, como no caso do vereador do PFL. Mesmo sendo oposição ao PT, seu interesse estava na relação política existente como diretor da Peruche. Para mais informações, consultar ABREU, Noralmi Ferreira. Lei de Zoneamento impede o Sambódromo no Anhembi. O Estado de São Paulo, ano 111, n. 35398 ,10 de julho de 1990, Cidade, p. 27. Disponível em: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19900710-35398-nac-0001-999-1-not. Acesso em: 11 nov. 2023. 49 O maior motivo de descontentamento estava na contratação de Oscar Niemayer como responsável pelo desenvolvimento do projeto. Na visão dos arquitetos tal escolha ia de encontro ao acordo preconcebido a respeito de concursos públicos em projetos de urbanização. Mais ainda, a escolha do carioca Niemayer seria “ignorar solenemente os demais arquitetos qualificados para projetarem obras significativas para a cidade. E ainda sobre optar pelo modelo do sambódromo carioca, assumir que, a priori, o projeto apresentado corresponde às características e necessidades do Carnaval paulistano”. Para mais informações, consultar REDAÇÃO. Os concursos públicos de projeto e o sambódromo. Folha de S. Paulo, ano 111, n. 35412, 26 de junho de 1990, Cidades (Urbanismo), p. C-7. Disponível em: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19900626-35386-nac-0001-999-1- not. Acesso em: 11 nov. 2023. 35 esperava, com obras sem começar e zoneamento da área construída, barrado em discussões políticas. Em suma, o novo sambódromo nascia antigo, ou seja, as arquibancadas antigas só foram colocadas em uma área diferente, com difícil acesso e problemas de locomoção. As escolas e blocos que desfilariam no local improvisado enfrentaram no dia da inauguração um cenário de caos, com obras ainda em andamento, alagamento em pontos da pista e acúmulo de barro na entrada do sambódromo. Essa última informação era preocupante devido ao fato de alegorias e desfilantes acessarem o local por essa entrada. Apenas o asfalto estava intacto, aliás, a única entrega de fato da obra prometida50. Todo o empreendimento do sambódromo, indiretamente, gerou um novo start do carnaval paulistano. Se em 1968 a oficialização possibilitou melhores recursos e uma infraestrutura econômica e de desfile mais confortáveis, o sambódromo marca em 1991 o início de uma técnica diferente do desfile que acontecia da Avenida Tiradentes. No lugar de cobras que serpenteavam a Tiradentes51, o sambódromo ano após ano começava a enfileirar seus componentes. Se antes as alegorias sofriam para execução e locomoção, o espaço fixo na Zona Norte passa a exigir que elas cresçam para melhor dimensão do espaço e atrativo para o público. Somente no carnaval de 1996 que de fato o sambódromo se encontraria completo, com a construção do último lance de arquibancadas, em escala maior que as demais, substituindo a ideia original de uma cobertura52. Para Christian Dennys M. de Oliveira53, mesmo que o sambódromo de São Paulo se estruture como o grande espaço da folia paulistana, sua real utilidade se diluiu no tempo presente a uma lógica turística e econômica. Torna-se importante entender e discutir tal ambiente para além do físico, pois “construir um espaço fixo para os desfiles televisivos das Escolas de Samba representou a metropolização de uma cultura provinciana”54, ou seja, algo que era local passa ser visto como um espetáculo incluído no campo nacional, principalmente na consolidação da Rede Globo como monopólio de transmissão, em 1998. Ocasionou 50 REPORTAGEM LOCAL. Erundina inaugura sambódromo em obras e com alargamentos na pista. O Estado de S. Paulo, ano 112, n. 35573, 2 de fevereiro de 1991, Cidades, p. C-1. Disponível em: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19910202-35573-nac-0001-999-1-not. Acesso em: 11 nov. 2023. 51 A evolução do carnaval da Tiradentes era reconhecida pelas “cobras” que performavam na avenida, em um movimento que gerava leveza e maior espontaneidade aos componentes e uma estratégia de ocupação do espaço da pista. 52 O projeto como um todo teve alterações nos números de arquibancadas, na retirada do espaço multi eventos e na colocação de torres para avaliação, o que gerou um descontentamento do próprio Oscar Niemayer, que renegou ao projeto final de sua autoria. 53 OLIVEIRA, Christian Dennys M. de. “Geografia do turismo na cultura carnavalesca: o sambódromo do Anhembi”. São Paulo: Ed. Paulistana, 2007. 54 Ibid., p. 18. 36 investimento e profissionalismo que não acompanharam a realidade orgânica das mudanças na folia. Atrair o público para consumir o carnaval se torna um fator preponderante para que as formas artísticas que as escolas levam ao sambódromo se aproximem mais de uma técnica e gigantismo, como um produto que deve ser explorado para que consiga o impacto desejado. Nas transmissões televisivas, a narrativa que se fixa do carnaval de São Paulo se associa a um crescimento anual, em que os narradores da transmissão e comentaristas ressaltam sempre os interesses da emissora, como: a diminuição do número de escolas, pontuações de que ano a ano se torna mais gigante e organizado e comparações de qualidade com o carnaval carioca quanto a forma e estilo. Essa necessidade de empreendimento cultural para o autor se tornou uma moeda de troca, onde a produção das escolas da cidade foi conduzida para atrair pelo seu caráter externo e não nas identidades e tradições que as escolas compõem dentro de si, em uma padronização. Essa ideia de enquadramento a um modelo formaliza uma realidade que se coloca em cada agremiação da cidade, especialmente as pertencentes ao grupo especial, que possuem maior visibilidade e aporte financeiro. Essa remodelação, entretanto, possui projeto de realização desde 1968, indiretamente endossada pelas agremiações mais fortes do período, quando podemos indicar que existe um modelismo carioca: primeiro o regulamento oficial, em consequência o estilo de cortejo e toque de instrumentos, e por último o espetáculo, concretizado e incentivado com as mudanças de regulamento em 2000. A consolidação do espaço físico favoreceu, nas palavras de Gleuson Pinheiro, “a cobertura dos desfiles, principalmente quando realizada pela televisão, pois a iluminação, por exemplo, pode ser regulada de acordo com as necessidades de filmagem. Podem ser construídas estruturas permanentes para instalação de câmeras, equipamentos, sons e etc.”55. A partir de 2000, ocorre uma “virada de chave” do carnaval de desfile enquanto estrutura e organização do espetáculo nesse palco recém construído para um festival de carnaval, atendendo os anseios de uma modernidade. Assim os dias de espetáculo passam a ser dois. Com um novo sambódromo e a virada do milênio, a mudança para dias de desfile objetivava o crescimento. Envolveu a LIGA-SP e a própria TV Globo, em um arranjo de interesses. Em matéria56 anunciando tal empreitada, o clima era de que São Paulo estava pronta 55 Silva, 2015, p. 186 56 DONIZETTI, Wandick. No ano 2000, São Paulo terá desfiles em dois dias. O Estado de S. Paulo, ano 120, n. 38474, 18 de fevereiro de 1999, Cidades, p. C-4. Disponível em: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19990218-38474-spo-0023-cid-c4-not. Acesso em: 11 nov. 2023. 37 para ter duas noites de desfiles, tal como o Rio de Janeiro. Acima de tudo, era a quebra de uma tradição antiga, onde o grupo principal deixava de desfilar apenas em um dia e passava a ter que se ajustar. Dessa forma, no Contrato fechado entre a Liga Independente das Escolas de Samba e a TV Globo para o carnaval dos próximo 3 anos, a emissora deve transmitir o desfile do domingo para São Paulo (por conta da audiência em todo o Estado) e do Rio para todo o país. Existe ainda a possibilidade de mudança, menos provável, para sexta-feira e sábado, no ano 2000, já que ambos os desfiles serão temáticos, ou seja, cada escola retratará uma época do País57 O que podemos observar dentro dessa realidade são dois momentos: o alinhamento entre o privado – representado pela TV Globo – e as escolas de samba, algo que já era presente nos anos 90, mas que se tornou ainda mais forte com a extensão do contrato para três anos, realidade que permanece até o tempo presente, e o interesse nas cotas comerciais58 que aumentam de forma considerável dentro desse modelo. O segundo momento diz respeito aos dias, são escolhidos a sexta-feira e o sábado de carnaval, em uma mudança que atingiria toda a estrutura das escolas, uma vez que os desfiles passariam a ser transmitidos em outro horário, com concentração e armação menor que as anteriores, com aumento de alegorias na concentração. No aspecto da experiência de assistir os desfiles, agora para ver as 14 agremiações seriam necessários dois ingressos, aumentando ainda mais o custo de assistir as principais escolas da cidade, algo que reflete as condições de acesso à festa, seja pelo preço ou data. Para o presidente da LIGA-SP na época, a mudança seria importante para o crescimento do carnaval de São Paulo, principalmente na questão do tempo de desfile, que quando condensado em um único dia era longo e cansativo “[incompatível] com o espetáculo”. O interessante é que na interpretação do presidente, mesmo que o espaço fosse novo (o sambódromo), a realidade dos desfiles da cidade não acompanhou tal novidade, ou seja, não existiu um discurso de “grandeza” sobre o carnaval paulistano, onde a TV Globo foi uma aliada desse processo de enquadramento para que o espetáculo fosse atrativo e moderno. Era indiretamente o começo de uma dependência da emissora e a busca do espetáculo pelo espetáculo. 57 Ibid., p. C-4. 58 O contrato existente entre as escolas de samba e a TV Globo envolve o investimento nos desfiles em dinheiro e a promoção da marca nas transmissões, seja em comerciais ou durante a apresentação das escolas. As cotas são nacionais, tanto para São Paulo como Rio de Janeiro, o que ficou facilitado com o monopólio da emissora. Além disso, a própria LIGA-SP possui seus contratos próprios, que não podem ter publicidade durante a transmissão. 38 O processo de interesse televiso no carnaval de São Paulo ocorre desde 1986, quando se iniciam as primeiras transmissões, na época em realidade local pela TV Gazeta, Rede Bandeirantes, Rádio Jovem Pan, e com maior mercado e alcance Rede Globo e Rede Manchete. Mas seria a partir de 1994 que a Rede Globo passaria a transmitir nacionalmente e internacionalmente. A estrutura que o carnaval televisionado tem até hoje começa em 2000, quando para ajustar o carnaval em sua grade são criados dois dias de desfiles e maior cobertura e atenção na grade, onde, a partir de 1998, começa o não rebaixamento das escolas do grupo principal, para atender o número esperado para 2000. Como aponta Clara de Assunção Azevedo59, hoje a estrutura dos festejos se direciona para uma complexidade. Se formos olhar a receita, esse investimento vem do setor público, do privado, de concessão de imagens pela Rede Globo de Televisão, de ingressos e venda de discos com sambas, e em escala individual de eventos e outras atividades dentro de cada uma das agremiações. Essa arrecadação que ocorre anualmente enseja uma organização burocrática em administração e publicidade. Do poder público, essa organização passa pela São Paulo Turismo (SPTuris), órgão que representa as escolas de samba: Os subsídios públicos aprovados para o Carnaval são repassados integralmente a São Paulo turismo, que executa, por meio de contratos, os respectivos repasses às agremiações e ao comitê gestor eleito por elas, e com outra parte da verba, administra diretamente os gastos com a infraestrutura do Sambódromo e do evento sob sua responsabilidade. A empresa busca também apoio de patrocinadores privados para somar na composição dos gastos com a organização.60 De forma gradual, a burocratização fez com que as agremiações tivessem que se enquadrar ainda mais para estar dentro deste cenário espetacularizado, o que para Azevedo fez o Carnaval de São Paulo de fato se aproximar da gestão de infraestrutura e organização do evento em si. O ano de 1999 é um marco no sentido da representação das escolas de samba a partir da liga gestora no processo de discussão do evento. Nesse mesmo ano, a TV Globo adequa o carnaval de São Paulo a sua grade de programação, medida que passa a ser implementada para os desfiles de 2000, atingindo uma abrangência nacional. 59 AZEVEDO, Clara de Assunção. “Fantasias negociadas: políticas do carnaval paulistano na virada do século XX”. 2010. 221 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. 60 Ibid., p. 86. 39 Tabela 01: Horário das transmissões do carnaval de São Paulo. Até 1999 Durante os Anos 1990, as apresentações das escolas começavam por volta de 19:30 e 20:00 da noite, portanto os desfiles eram televisionados após os programas do “horário nobre” da emissora, como Jornal Nacional e a novelas das 21 horas. Entre 2000 e 2003 No ano do primeiro contrato de relevância econômica e midiática de três anos, as escolas passaram a ter que se enquadrar ao horário da emissora, onde a transmissão da primeira escola era intercalada com os programas da emissora, em especial entre 2001 e 2002, com a apresentação do Big Brother Brasil, que ocasionou o começo dos desfiles na sexta-feira a partir de 23:30 e no sábado por volta de 22:00. Porém o tempo de desfiles e número de alegorias não foi mudado. Entre 2004 e 2006 Devido à virada de mesa, o carnaval passou a ter 16 escolas, um descontentamento com o desejado pela emissora, que era ter 13 agremiações para em 2005 passar 12 escolas. Assim, as apresentações nesse período passam por redução de tempo e alegorias, bem como a primeira agremiação era transmitida já na execução de seu desfile. Entre 2007 até atualidade Os desfiles voltam ao padrão entre 2000 e 2003, entretanto existe o estabelecimento de que os desfiles ocorrem em horário “confortável” para transmissão na íntegra, tanto na sexta-feira como no sábado Fonte: O Estado de S. Paulo – Tabela elaborada pelo autor. Durante os anos 1990, mais especificamente a partir de 1994, as transmissões dos desfiles das escolas de samba de São Paulo ocorriam com os desfiles em desenvolvimento, ou seja, não existia quebra da programação corrente da emissora, em especial dos programas de maior audiência no horário nobre, como o Jornal Nacional e a novela da 21 horas. Portanto, não se tornava interesse ou obrigação contratual transmitir as escolas ao vivo, o que muda a partir de 2000, porém as agremiações tiveram que se enquadrar à grade horária da TV Globo. Era assim uma interferência não só nos dias de desfiles, mas na própria gestão de tempo, espaço e deslocamento na cidade. Esse quadro permanece até a atualidade, os desfiles se iniciam quase na madrugada de sexta e no sábado também tarde da noite. De maneira acentuada, os anos iniciais do século 21 promoveram a necessidade de modernização das escolas de samba, para se inserirem nesse quadro que se formava. A ideia de uma escola de samba como empresa exigia das agremiações agora um modelo organizado e de saúde financeira estável, em que “cada agremiação dos grupos Especial e de Acesso deveria apresentar sua própria documentação para o repasse direto correspondente à produção do 40 desfile”61, exigência que entrou em vigor em 2007 e ainda está em atividade na liberação de verbas O ambiente construído do sambódromo, portanto, ficou alheio ao poder público e às próprias escolas de samba, como um espaço sem finalidade para além de uma ideia lucrativa. Essa percepção coloca o ambiente de apresentação e suas ações artísticas como se nunca houvessem sido terminadas ou realizadas para a valorização das identidades, memórias e comunidades existentes, estabelecendo-se como apenas contratadas com cachê e cobrança. O risco desse direcionamento pode resumir o carnaval a uma festa ou megaevento, dentro de um espaço controlado para um objetivo técnico e frio. Novamente, o maior risco não se encontra em ser uma empresa ou em adotar essa realidade, mas em negar o impulsionamento dessas diversas culturas e realizações orgânicas. Esse movimento é conceituado como uma involução62, em um contexto de assimetria no processo profissional (ou na consolidação igualitária dessa realidade dentro do espaço territorial das cidades e das escolas de samba), quadro que torna a produção carnavalesca “um processo de desenvolvimento negativo de realidade cultural, cuja característica de repetição venha superar a de inovação”63. Dentro dessa realidade, todo o quadro existente em uma agremiação não possui mais um aperfeiçoamento natural da realidade ao seu entorno, para o que Leila Blass64 coloca a quebra da experiência como fator determinante. Dessa forma, o sambódromo e as escolas de samba passaram gradualmente a ter um único objetivo ritual, ou seja, a supervalorização da técnica necessária para competir. Tornar-se um carnaval grandioso causou uma modernização acelerada no modo de produção da festa, onde o processo de organização dos desfiles e das escolas tem como único anseio o sucesso. A involução carnavalesca dos desfiles no “sambódromo e seu desperdício ocupacional eram subprodutos da involução de seus principais apoiadores”65. Nesse processo, temos uma transição do que foi pelo que pode ser, do desfilar para sobreviver ou do desfile como um dos motivos da escola existir. Completando com Oliveira, “os contratos garantem o desfile, mas não comprometem as entidades com nenhum trabalho sistematizado no campo 61 Ibid., p. 121. 62 Conceito empregado por Christian Dennys Oliveira, segundo o qual ocorre no carnaval paulistano um processo de avanço retrógrado do manejo das escolas de samba e seu potencial cultural, havendo apenas o interesse na competição como um todo. 63 Oliveira, 2007, p. 91. 64 Blass, 2007. 65 Oliveira, 2007, p. 99. 41 cultural ou turístico, o que reitera de um lado a artificialidade, e do outro, o isolamento do evento carnavalesco”66 que necessita se padronizar. Por mais que existam tentativas de outras formas de fazer carnaval, a experiência carnavalesca que o sambódromo promove colocou uma artificialidade no modo como se interage com a folia “o processo de transformação turística do carnaval paulistano forjou, em tempo recorde, um espaço de grande visibilidade externa” que não necessariamente colocou o carnaval como um espaço de atividade cultural e de valorização das identidades e das comunidades existentes. Diretamente, a junção dos interesses políticos, econômicos, midiáticos e de poder ocasionaram uma perspectiva de engrandecimento e procura de modelos distintos de gerar o espetáculo, afasta-se de uma espontaneidade e, cada vez mais, gera o técnico pelo técnico, em um espaço que acelerou ou gerou um modelismo carioca e uma involução dos desfiles para se enquadrar aos interesses externos. O sambódromo configurou uma nova etapa na relação da escolas de samba de São Paulo com o espetáculo. A partir do advento e da materialidade de uma nova arena de eventos, as agremiações passariam a ter que se adequar à realidade, estabelecendo no campo artístico alterações quanto ao crescimento de alegorias, maior dimensão e “entretenimento” ao telespectador com a transmissão nacional e internacional, bem como arrecadando recursos ainda mais voluptuosos para permanecerem competitivas nessa realidade. 1.2. O pós-moderno no carnaval: uma visão cultural. A concepção de moderno indica uma visão abstrata de oposição a algo velho ou tradicional dentro de um contexto, que no caso do carnaval se coloca em um processo constante de interesses por mudanças. Esse moderno foi observado por Jürgen Harbemas67 como “aquilo que proporciona a expressão objetiva a uma atualidade do espírito do tempo que espontaneamente se renova. A assinatura de tais obras é o novo, que se ultrapassa e desvaloriza mediante a novidade do próximo estilo”. Esse direcionamento ao moderno implica um deslocamento complicado de resultados, em que a modernidade impulsiona uma sensação de passado a mudar, uma pós-modernidade como uma anti-modernidade. A arte dentro do processo de modernidade, para o autor, absorve os processos de mudança e de discurso que ocorrem em sociedade, o que se aproxima tanto do aspecto 66 Azevedo, 2011, p. 105. 67 HABERMAS, Jürgen. “Modernidade: um projeto inacabado”. In: ARANTES, O.; ARANTES, P. Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense. 1992. p. 101. 42 burocrático quanto do econômico. No caso do Carnaval, esse conflito é aproximado em um ponto de vista técnico do que é produzido, porém em uma realidade distante de seu aspecto popular e que atende a um outro grupo, que passa a ser mais presente dentro da estrutura do carnaval. A concepção de mudar, no contexto de pós-modernidade, não implica porém um aceleramento de transformações que não sejam em ordem orgânica dos fatos68, o que se complexifica com a noção de pós-moderno. Segundo as reflexões de Andreas Huyssen69, o maior problema do pós-modernismo é a imposição de um modelo único sobre o correto ou um desmantelamento do que existiu anterior a ele para a construção de algo legitimamente novo, como “parte de uma transformação cultural que emerge lentamente nas sociedades ocidentais, uma mudança da sensibilidade”70. Essas mudanças, seja no espetáculo frio ou nas transgressões de paradigmas, promovem outros olhares e entendimentos do contato com as artes ou em sociedade. O resultado pode ser de um aceleramento e desnorteamento do que é a identidade, em outro sentido, um apreço à tradição modelada de acordo com seus próprios interesses, o que ocasiona por parte dos membros um filisteísmo, tanto para quem adere ao movimento ou para quem é contrário. Em outras palavras, para Huyssen, o movimento pós-moderno não propõe necessariamente algo novo, e portanto não pode apontar direcionamentos de novidade estilística. Isso quebra a falsa sensação de que a arte se torna um mero produto destinado ao seu próprio sentido de existência. O que devemos questionar é o uso e intenção deste jogo, que nos arrasta “a uma comercialização de massas, diferenciada e especializada para todos os tipos de consumo cultural a diversos níveis de procura, expectativa e complexidade”71. Essa visualidade se aproxima de uma concepção mercadológica, e dentro de uma lógica de burocracia que não necessariamente indica o enquadramento total destas instituições. De forma aproximada a Huyssen, porém em outro contexto, Hannah Arendt72 pontua que a cultura de massa cria um movimento “teleguiado”, que embora seja fortemente popular, 68 A primeira é a formação de dimensões padronizadas que criam espaços vazios ou que se encaixam dentro do contexto de uniformidade e saindo de uma particularidade. Um segundo ponto é o lugar espacialmente racionalizado que organiza esses padrões burocratizando o espaço. E por fim se estabelece usar partes da história na Constituição de um futuro presente que justifique tais mudanças, o que pode gerar alterações sobre o espaço. 69 HUYSSEN, Andreas. Mapeando o pós-moderno. In: HOLANDA, Heloísa Buarque. Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. 70 Ibid. p. 20. 71 HUYSSEN, Andreas. “Políticas de memória no nosso tempo.” Lisboa: Universidade Católica Editora, 2014. p. 126. 72 ARENDT, Hannah. “A crise na cultura: sua importância social e política”. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1979. 43 não necessariamente é uma cultura popular. Isso talvez desenvolva um problema de compor a compreensão de que há uma sociedade alta, que sabe os limites da cultura, e indiretamente do que seria qualificado, o que estabelece que exista uma cultura apontada como sem valor e que precisa, portanto, de modificações. O que não pode ocorrer é a concepção de ausência de valor da produção popular de cultura, posta como algo rebaixado e sem valor, algo diferente de uma produção massificada e sem uma construção orgânica de entender a cultura. A questão que parece bastante complexa na abordagem de Arendt é comensurar o que se tornou a sociedade. Existe nesse contexto de massificação um filtro, onde certos recursos seriam mais válidos que outros. Deste modo, o único indivíduo que consegue permanecer nessa realidade da sociedade de massas é o artista, que acentua um jogo de um único jogador em uma realidade de choque entre a sociedade e a cultura (onde o próprio artista torna-se um possível antagonista da sociedade na qual está inscrito). O direcionamento da autora corresponde à criação de uma realidade que cliva a experiência, em que se fecha a possibilidade de compreensão do que há além do massificado. Cria-se um único objetivo, direcionado apenas para a massificação ou grandeza, tal qual Huyssen critica na elaboração de um objeto globalizante, o que indiretamente interfere nas redes de conexão e autorreflexão da cultura popular, que se encontra externa à massificada. Consequentemente, a questão não seria necessariamente uma perda no interesse das artes ou a consumação de algo fácil. O problema é a perda de qualquer apreciação e o surgimento de uma manipulação ou de inculcação de uma única realidade recriada. No espaço do sambódromo em sua realidade atual, boa parte de seu público busca apenas consumir o evento, sem grandes preocupações com as agremiações, que são apenas pano de fundo. Elas por outro lado têm na postura de agremiações a busca individual de uma ótima técnica de desfile, para garantir uma boa colocação, sem necessariamente interagir com o público. A “sociedade de massas, ao contrário, não precisa de cultura, mas de diversão, e os produtos oferecidos pela indústria de diversões são com efeito consumidos pela sociedade exatamente como quaisquer outros bens de consumo”73, o que se aproxima de ir ao sambódromo como entretenimento ou por status, ocasionando um desapego em entender o que é o carnaval como prática cultural para além do desfile74. Nas escolas de samba, encontra-se um apego forte ao se apresentar bem, independente de interação popular. 73 Arendt, 1979, p. 257. 74 Dentro das ambientações e trabalhos em escolas de samba em São Paulo, se torna comum a percepção que o público se afastou das quadras e eventos que as agremiações produzem em suas áreas de identidade. O afastamento do público além da comunidade, indiretamente,