UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS - RIO CLARO GABRIELA NAOMI DE SOUZA SANTOS IMERSÃO EM MIM: A CONSTRUÇÃO DA TRANSEXUALIDADE PARA UMA PESSOA TRANSEXUAL SOB O OLHAR DE UMA PESQUISADORA TRANSEXUAL - UMA AUTOBIOGRAFIA Rio Claro 2019 CIÊNCIAS BIOLÓGICAS Gabriela Naomi de Souza Santos IMERSÃO EM MIM: A CONSTRUÇÃO DA TRANSEXUALIDADE PARA UMA PESSOA TRANSEXUAL SOB O OLHAR DE UMA PESQUISADORA TRANSEXUAL - UMA AUTOBIOGRAFIA Orientadora: Prof.ª Dr.ª Célia Regina Rossi Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Câmpus de Rio Claro, para obtenção do grau de Licenciada e Bacharela em Ciências Biológicas. Rio Claro 2019 S237i Santos, Gabriela Naomi de Souza Imersão em Mim: : a construção da transexualidade para uma pessoa transexual sob o olhar de uma pesquisadora transexual - uma autobiografia / Gabriela Naomi de Souza Santos. -- Rio Claro, 2019 89 p. : fotos Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado e licenciatura - Ciências Biológicas) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências, Rio Claro Orientadora: Célia Regina Rossi 1. Transexualidade. 2. História de Vida. 3. Autobiografia. 4. Gênero. 5. Sexualidade. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Dedico a mim e a todas as pessoas transexuais e travestis, pessoas pretas, pessoas pobres - dedico aos corpos marginalizados. Mais intimamente, dedico à Manuela, que permitiu que eu nascesse. A tia vai te amar para todo o sempre. Agradecimento AGRADECIMENTOS O primeiro agradecimento vai a mim mesma, por toda a força, dedicação e teimosia em estar nesse espaço acadêmico, em me posicionar e em ter orgulho de ser, apesar de qualquer pesar. Às minhas amigas e amigos como um todo, a nova família que eu pude escolher e que me aceitam, respeitam e amam como eu sou. Aos meus amigos-irmãos e amores da minha vida todinha, Juliano Ferrarezi (Shelly) e Daniel Dovigo (Mini) por todo o amor incondicional, carinho e suporte dados - eu nunca vou poder agradecer por tanto! Vocês são os dois homens mais perfeitos que já andaram sobre a Terra e nada me convence do contrário. À Ariane Eleutério, Beatriz Helena, Brenda Moreira e ao Diogo Pereira, meus amigos mais antigos, persistentes, amados e queridos, e que vão me acompanhar para a vida toda! Obrigada por todos os momentos! Às minhas amigas e amigo da primeira república em que morei (Andréa Mesquita, Andréa Rösel, Iryna Miréia, Letícia Aurora (Yopa), Carol e Duda), a Vale, por todo o companheirismo e irmandade! Em especial, agradecer imensamente Camila Cavalheiro (Holy) e Everton Santos (Bolachinha) por todo o amor, carinho e paciência com a minha bagunça! Eu amo vocês!! Às minhas amigas e amigo e filhos da Bio que moram comigo atualmente - Aline Tajima (Feyuri), Júlia Leal (Xu) e Hudiny Oliveira (Ródney) por serem filhes, amigues e confidentes que eu poderia ter neste momento! À minha turma CBN12, em especial à Débora Minigildo, Graziela Balieiro, Bruna Fabiani, Elisangela Fernandes (Mandioca) e Iago Bueno (Molejo) pela amizade, companheirismo e união. Às poderosas mulheres filhas da luta que me inspiram: Laura Jimenez (Colômbia), Yasmin Palulian (Fiona), Aline Ferraz, Gabriela Klein (Coração), Jéssica Alves (Fofão), Larissa Carpigiani (Lila), Andréia Maressa, Catarina Cibim, Rita Ferrarezi, Márcia Dovigo, Eliana de Marco, Ana Paula Michi, Carolina Barros, Carla Magalhães Cortez. Às minhas filhotas da Bio, que são rainhas magníficas, em especial para Roberta Figueiredo (Robertinha), Isabel Oliveira (Seis), Verônica Knorre (Fica), Isabela Aroli (Isa), Giovana Souza, Júlia Ando (Cãimbra). Ao meu amigo André Estevam (Vésper), que é um grande parceiro artístico e um ótimo ombro para desabafos aleatórios. Aos amigos, pela jornada: Marcos Costa, Arthur de Lima (Fino), Rodrigo Rios, Lucas Sirico, Thiago Sirico, Matheus Silva (Chassi), Murilo Proni (Hermi), Às grandes artistas do cenário drag queen rioclarense Catarina Klein (Natã), Léa Tória (Yuri), Vanilla (Marcos), Arabella Del Tória (Kawe), Ágatha Merbeck (Marcos), Dior Dellamour (Lucas), Verônica Del Tória (Nicolas), Luís AfF, Ashilleyy, Vikky, Éliss, Lucas Caetano. Aos Coletivos que faço parte como membra e/ou colaboradora: Coletivo Calisto, Coletivo Transitando (Bernardo, Daniel e Thomas), Coletivo K.O. e Coletivo SobreViver. Aos meus lares/bares de DJ residente, Joaquina Lounge Bar (Felipe de Marco) e La Se7e (Nati, Poly e Gabi). Às minhas professoras e professores, da infância à vida adulta, em especial Nice, Sandra Carina, Regina, Tânia, Nancy, Nadir, Dona Ana, Pedro Rodrigues, Alessandra Coan, Fábio Pinheiro, Marina Turini, Maria Rosa, Goiten, Silvio, Rose Von. Às minhas duas professoras-amigas queridas do meu coração, por todo o amor e carinho trocados pelos semestres de Prática de Ensino e agora para a vida: Mariana Nardy e Thaís Degasperi. À minha orientadora Célia Regina Rossi, por ter topado esse projeto maluco mas que deu tão certo! À minha família, em especial minha mãe, irmãos, cunhada e sobrinha, pelo suporte. Ao Marco Aurélio Ferreira Martins de Oliveira. À deusa, Beyoncé. (Em) Resumo Como seria se pesquisar? Neste estudo profundo, há uma pequena imersão no interior da pesquisadora, que se torna o sujeito da pesquisa, numa busca pela compreensão de como foi a infância, a adolescência e o início da vida adulta de uma mulher transexual, preta e periférica, articulando assim não apenas questões de gênero e sexualidade, mas também como se correlacionam com raça/cor e classe, pois de um corpo marginal, não se pode afunilar a um único recorte, quando diferentes eventos levam esse corpo a se constituir como é/esta. Através de um estudo qualitativo, pautado na História de Vida e na Autobiografia, buscando no sujeito relatos de memórias e, criando assim, uma narrativa sobre os primeiros 26 anos de vida de Gabriela Naomi de Souza Santos. A força motivadora para esse trabalho começou de uma inquietação: onde estão as mulheres transexuais e travestis na Academia? Apenas OBJETOS de pesquisa ou pesquisadoras? E a partir dessa inquietação, surgiu uma nova (e para mim, maior) por que não me pesquisar? Assim, no decorrer desta pesquisa-estória, busca-se tanto informar quanto sensibilizar e aproximar pessoas leitoras no possível entendimento da vivência de pessoas transexuais, além do que é exposto na mídia e nas duras estatísticas - marginalizadas e excluídas dentro do seu desenvolvimento humano e da própria vida - dando enfoque nas fases da vida (e os questionamentos que acompanham) de uma pessoa transexual e como se deu essa des/re-construção, que é uma entre diversas possíveis e existentes, mas que traz em si a necessidade e a urgência da voz e da palavra de uma pessoa transexual, preta e pobre. Palavras-chave: Transexualidade; História de Vida; Autobiografia; Gênero; Sexualidade. SUMÁRIO 1. PRIMEIRO RETRATO ...................................................................................7 2. PASSOS INTRODUTÓRIOS .........................................................................9 3. GUIA DE CAMINHADA ...............................................................................14 4. OS CAMINHOS PERCORRIDOS ................................................................16 4.1. INFÂNCIA ..............................................................................................16 4.1.1. A boneca de vestido laranja ..........................................................17 4.1.2. Menino Deprimido ........................................................................18 4.1.3. O monstro do racismo ..................................................................19 4.1.4. A “menina” da casa .......................................................................21 4.1.5. Uma casa tóxica, um menino esquisito .........................................22 4.1.6. “Drag Steel” ..................................................................................24 4.2. ADOLESCÊNCIA ..................................................................................27 4.2.1. Os amores clandestinos ...............................................................27 4.2.2. Bicha marginal .............................................................................27 4.2.3. Na escola .....................................................................................28 4.2.4. A formiguinha operária .................................................................33 4.2.5. A cigarra artista ............................................................................35 4.2.6. Cada vez mais longe de casa .......................................................37 4.2.7. Passageiro na minha adolescência ..............................................39 4.3. O INÍCIO DA VIDA ADULTA ..................................................................41 4.3.1. A vida adulta e as armadilhas .......................................................41 4.3.2. A Universidade e a Travesti ..........................................................41 4.3.3. A Escola e a Travesti ....................................................................45 4.3.4. A Informalidade e a Travesti .........................................................47 4.3.5. A travesti que tentou ser acadêmica .............................................50 4.3.6. A rotina como um rolo compressor – Saúde, Família e a Travesti .........................................................................................................51 4.3.7. A Travesti, o Corpo-Travesti e o Amor Travesti ............................54 4.3.8. Eu me mudei e mudei – a Travesti no próprio luto .........................55 5. DAS MINHAS VERDADES ..........................................................................60 5.1. Emergir em mim: quem fui, quem sou e quem serei ..............................60 5.2. A criança viada criminosa, o jovem viado atarefado ...............................60 5.3. Nasce Gabriela ......................................................................................61 5.4. Afetividade: me sentir, sentir o outro ......................................................65 5.5. A família se foi e eu não quero voltar ......................................................66 5.6. Escolher estar sozinha e escolher estar junto – autonomia ....................69 5.6.1. A nova família ...............................................................................70 5.6.2. Os amores que não me amavam ..................................................71 5.7. A feminilidade que não me cabe ............................................................72 5.8. A estima em construção – da beleza ao valor ........................................74 6. (in)CONCLUSÕES ......................................................................................78 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................80 ANEXO - PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP .....................................86 7 1. PRIMEIRO RETRATO Meu nome é Gabriela Naomi de Souza Santos (figura 1), tenho 26 anos, sou estudante de Ciências Biológicas na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” campus de Rio Claro, ingressante do ano de 2012. Acredito ser Gabriela desde que nasci, mas me nomeei, de fato, em 26 de Agosto de 2017. Sou uma pessoa transexual, me identifico como tal desde o fim de 2015, mas a não adequação à masculinidade me acompanha há muito tempo, mas como acontece com outras pessoas transexuais, a falta de acesso à informação e as situações marginais em que as pessoas transexuais e travestis são apresentadas na mídia e na sociedade como um todo, acabam por afastar ou impedir que haja uma identificação com a sigla T. Figura 1 – foto-montage de Gabriela Naomi de Souza Santos, pesquisadora-pesquisada, aos 24 anos. Fonte: Roger Magrini, 2018. 8 Em 30 de Novembro de 2017, durante o IV Congresso Internacional Sexualidade e Educação Sexual: Olhares, Saberes e Fazeres em Sexualidade e Educação Sexual - CISES 2017 - que ocorreu na UNESP campus de Rio Claro, fui convidada a participar da mesa sobre transexualidade, que aconteceu ao final do primeiro dia. Na data, tínhamos oferecido nossa casa como hospedagem temporária aos participantes do congresso, pois eu morava perto da Universidade; quando um dos hóspedes, Murilo, chegou, me dispus a levá-lo para conhecer a UNESP. Ao passarmos de frente à sala onde ocorria a mesa “Diálogos (in)pertinentes”, fui convidada/convocada a compor a mesa, por ser uma mulher transexual e negra. Durante as falas, ouvi Angela Lopes, mulher transexual, advogada e ativista, dizer “Estou cansada de ver pessoas transexuais sendo pesquisadas por pessoas cisgênero! Eu quero ver pessoas trans dentro da Academia, fazendo pesquisa sobre transexualidade! ” e aquilo me tocou muito, profundamente. Estava em um período em que não sabia o que fazer, havia acabado de desistir de seguir com minha iniciação científica na área da Botânica, também havia deixado de lado um projeto na Educação Ambiental com Educação Botânica, e estava devastada. Transexual, preta, pobre, sem família, sem dinheiro e possivelmente sem um trabalho de conclusão de curso (TCC). Ouvir a Angela me fez despertar e refletir: eu sou uma mulher transexual, preta, pobre, sem família e sem dinheiro, eu como um todo sou um achado dentro de uma Universidade Pública, tenho que fazer da minha existência um marco! Eu vou me pesquisar! Com essa inquietação e esse brilho no olhar, contatei a Prof.ª Dr.ª Célia Regina Rossi, dizendo que eu queria fazer algo com essa existência, com esse propósito, falar de algo que vivo, que experiencio, que me enxergo e me sinto - e que de fato sou. Assim, ela me apresentou a abordagem metodológica e me ofereceu algumas literaturas. Além, me propôs escrever não apenas sobre minha situação atual, mas desde a minha infância. Assim, para a conclusão da minha graduação em Ciências Biológicas - Licenciatura e Bacharel, trago uma narrativa da minha infância, adolescência e início da vida adulta, com questionamentos e que levam a compreensão de quem eu sou hoje e a importância para muitas e muitos transexuais do que é existir dentro dessa premissa de ser uma pessoa transexual, que não é compreendida, nem ouvida, nem vista, nem querida, na maior parte das vezes. 9 2. PASSOS INTRODUTÓRIOS Dos questionamentos iniciais, quando se é transexual e se fala sobre transexualidade, surge: o que é transexualidade? E, para lançar luz sobre, é primeiro necessário compreender outro conceito: o que é Gênero. Portanto, para o leitor se apropriar dessa pesquisa, Gênero é uma peça chave para compreender toda a trajetória dessa pesquisadora/pesquisada. O Gênero é uma construção social - ou seja, uma série de costumes e valores que são atribuídos a machos e fêmeas da espécie humana, sendo associados a isso também toda carga histórico-cultural, estigmas e dogmas (MOORE, 1997; GROSSI, 1998; NICHOLSON, SOARES E COSTA, 2000; LANZ, 2014; FREITAS E CHAVES, 2016). Não havendo correlações médico-biológicas que de fato liguem e expliquem que seres humanos com pênis (e demais órgãos associados) e que produzem testosterona são homens de fato e que seres humanos com vulva e vagina (e demais órgãos associados) e que produzem estrogênio são mulheres de fato (ANDRADE E SOUZA, 2011; CYRINO, 2013; FREITAS E CHAVES, 2016; SENKVICS E POLIDORO, 2018) vamos então problematizar e questionar, o que é gênero? Dentro desses quadros que se desnudam e que foram colocados acima, compostos por “acordos invisíveis” sobre o que ser e o que não ser, e com a carga limitante do que se pode ser (ou não ser) única e exclusivamente baseado em um gênero criado e atribuído por terceiros, que nada contemplam a existência e individualidade da pluralidade de seres humanos (NICHOLSON, SOARES E COSTA, 2000; CAMPUZANO, 2008; CYRINO, 2013; LANZ, 2014; REIS E PINHO, 2016; OLIVEIRA, 2018), tenta-se justificar com uma visão médico-biológica, pautada nas alterações físicas que os hormônios sexuais dão aos corpos, como maior força muscular em adultos que produzem testosterona ou desenvolvimento das mamas em adultos que produzem estrogênio (ANDRADE E SOUZA, 2011; CYRINO, 2013; FREITAS E CHAVES, 2016) a ideia de gênero, única e cis-heteronormativa. Sabe-se que o desenvolvimento dos corpos vai muito além da produção ou não de hormônios sexuais, como causas ambientais e comportamentais, alimentação, suplementações e tratamentos medicamentosos e até mesmo alterações genéticas, como insensibilidade dos corpos a tais hormônios, sendo então que o corpo humano não se forma única e exclusivamente pela ação de hormônios e cromossomos sexuais 10 (DAMIANI, DICHTCHEKENIAN E SETIAN, 2000; CASTRO E ELIAS, 2005). Assim, ainda dentro da coerção biológica na busca de justificar a associação entre gênero e órgãos reprodutores, vem também da definição de que humanos machos possuem cromossomos sexuais XY e fêmeas possuem cromossomos sexuais XX. Isso até pode ser verdade, numa análise única e exclusivamente médica e biológica tradicionais, mas numa análise mais próxima, exclui pessoas com insensibilidade a hormônios sexuais, que geram corpos “femininos” mesmo tendo cromossomos XY e corpos “masculinos” em corpos com cromossomos XX, bem como alterações cromossômicas, como as “superfêmeas”, que possuem três cromossomos X, ou outras síndromes referentes a alterações nos cromossomos sexuais (DAMIANI, DICHTCHEKENIAN E SETIAN, 2000; CASTRO E ELIAS, 2005) ou ainda, os corpos intersexuais, que possuem genitália ambígua parcial ou total, ou seja, podem possuir pênis (e demais órgãos associados) e vulva e vagina (e demais órgãos associados) em diferentes fases de desenvolvimento e/ou funcionalidade (SANTOS, 2012). Como deixar de lado essas pessoas que não conseguem (nem querem) limitar suas ações, experimentações e vontades à pressupostos genéricos de gênero? Como colocá-las em única e exclusivamente duas caixas biológicas, sendo que a vida e experiência extrapola qualquer caixa? Desta forma, buscando fugir do conceito de “normal” (e do sentimento de anormalidade que todos aqueles que não se enquadram no “normal” sentem) (MOORE, 1997; SWAIN, 2001), os estudos sobre gênero, bem como a pressão das e dos militantes da causa LGBT+, trouxeram dois termos extremamente importantes, de definição ainda complexa: a Transexualidade (e suas trans-derivações) e a Cis- sexualidade (e suas derivações) (LANZ, 2014; BONASSI, 2017; OLIVEIRA, 2018). A transexualidade como termo surgiu antes, por nomear um evento que “fugia à normalidade” e por muito tempo, o termo cunhado para se referir a travestis e mulheres e homens transexuais era o “Transexualismo”, sendo o sufixo “-ismo” utilizado não apenas para tratar esses corpos como “Fora do normal”, mas também como corpos doentes, que precisavam de cura (OLIVEIRA, 2016). Porém, estudar apenas a transexualidade já não comportava mais todos os questionamentos, afinal, se um grupo é visto como diferente, tem que se ter um padrão de comparação, ou seja, o grupo “normal” (SWAIN, 2001; BONASSI, 2017; OLIVEIRA, 2018). E para esse grupo, se cunhou o termo “Cisgêneros”. 11 A explicação mais ilustrável para ambos os termos - transgênero e cisgênero - é que pessoas cisgênero tem sua construção de gênero alinhada com o que a sociedade espera de alguém que possui determinados órgãos reprodutivos externos, identificados ao nascimento, enquanto pessoas transgênero tem sua construção de gênero que difere do que a sociedade espera de alguém que possui determinados órgãos reprodutivos externos, identificados ao nascimento. Portanto, discutir transgeneridade e cisgeneridade se faz necessário, para evitar um entendimento de normal-anormal, buscando não apenas a inserção da temática da transexualidade, mas também a inserção na sociedade das pessoas trans e travestis (LANZ, 2014; OLIVEIRA, 2018). Emergindo nas transexualidades, abre-se um leque muito mais amplo do que a binaridade de gênero imposta pela sociedade - homem e mulher (CAMPUZANO, 2008; BENTO, 2009; REIS E PINHO, 2016; BONASSI, 2017; OLIVEIRA, 2018), afinal, se gênero é construção, por que não construir gêneros que de fato representem pessoas reais, ao invés de transformar pessoas reais em dados computacionais binários? Assim, surgem diversas nomenclaturas, como agênero - pessoas que não se atribuem a nenhum gênero, os gêneros fluídos (ou genderfluids) - pessoas que transitam entre gêneros, sem de fato se identificar com um único (SWAIN, 2001; REIS E PINHO, 2016). As próprias travestis são uma categoria de gênero natural da América Latina, que designa pessoas que são tratadas no feminino, porém não se definem como mulheres (CAMPUZANO, 2008). Neste ponto, é importantíssimo ressaltar: embora oficialmente e legalmente só sejam reconhecidos dois gêneros no Brasil, os demais gêneros são sim, válidos (CAMPUZANO, 2008; SANTOS, 2012; LANZ, 2014; BONASSI, 2017; OLIVEIRA, 2018). Afinal, se pessoas revogam esse direito para si e se identificam como tal, como se pode negar suas existências? Essas existências surgem, se desenvolvem, se conflitam, crescem e se findam, mas todas existem em corpos humanos, biológicos, que passam pela gestação, infância, adolescência, maturação, senescência (SILVA E OLIVEIRA, 2015) - e bem como todas as pessoas, têm suas histórias próprias, porém agravadas por seus trans- gêneros (CAMPUZANO, 2008; OLIVEIRA, 2016; SOUSA, ROCHA E BARROS, 2018). A inadequação ao gênero imposto, pode se perceber em diversas fases da vida (SILVA E OLIVEIRA, 2015): durante a infância, é caracterizada, principalmente, pela não identificação com o próprio nome, escolha por brinquedos e brincadeiras não 12 esperados socialmente para o gênero que foi designado à criança, dificuldade em se relacionar com crianças do mesmo gênero pressuposto à criança, introversão, vergonha (SILVA E MELO, 2015); na adolescência os incômodos tendem a aumentar, pois o corpo, com a ação dos hormônios sexuais, começam a tomar formas que não condizem com a auto identificação desse jovem, bem como a pressão por relacionamentos e inserção em grupos de amizades, que por vezes forçam-no a mentir e reprimir sua real personalidade e suas necessidades básicas de respeito e afeto (SILVA E MELO, 2015). Caminhando para a vida adulta, a sensação é retratada como um peso, uma série de frustrações, medos e anseios que não foram atendidos (SILVA E MELO, 2015; D’AQUINO E MUCELIN, 2017;), o que pode levar a transtornos, ou até mesmo suicídio (ANTRA, 2018). A falta de suporte social, incluindo aí o despreparo das famílias para lidar com a transição (SILVA E MELO, 2015; OLIVEIRA E PORTO, 2016), a ainda complicada ocupação e permanência de transexuais e travestis nos espaços educacionais (OLIVEIRA E PORTO, 2016), a dificuldade de inserção no mercado de trabalho (KAFFER et al, 2016) e as ainda políticas públicas ineficazes de inclusão da pessoa transexual na sociedade (ARAGUSUKU E LEE, 2015; KAFFER et al, 2016; D’AQUINO E MUCELIN, 2017; PAIVA, 2018), entre outros, dificultam a manutenção dessa pessoa na sociedade de forma digna, respeitosa e segura (OLIVEIRA E PORTO, 2016; D’AQUINO E MUCELIN, 2017) - em poucas palavras, o cis-tema falha em manter pessoas trans e travestis vivas. Neste cenário, vemos refletidos os fatos em dados estatísticos. A população transexual e travesti ainda é a que carrega maiores estigmas (CAMPUZANO, 2008; SOUSA, ROCHA E BARROS, 2018), sendo sub-representada no mercado de trabalho formal (KAFFER et al, 2016), e hiper-representada em locais marginalizados e em subempregos (GARCIA, 2008), sendo um de seus reflexos que 90% das travestis e mulheres transexuais no Brasil tem com única forma de renda a prostituição (ANTRA, 2018). Sobre trans-assassinatos e trans-mortes, o Brasil lidera com 52% dos óbitos de pessoas transexuais e travestis registrados no mundo (ANTRA, 2018). Enquanto em nível de escolaridade, esse grupo é ainda mais precarizado que outros grupos, onde apenas 0,02% da população se encontra no ensino superior, enquanto 72% e 56% não possuem o Ensino Médio e Ensino Fundamental, respectivamente, 13 concluídos (ANTRA, 2018). E isso pode aumentar, quando outro fator estiver atrelado a transexualidade: a negritude. O Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis, e quando se põe na balança a cor desses corpos exterminados, vê-se que 80% deles são pretos ou pardos (ANTRA, 2018). Corpos marginais e descartáveis - a expectativa de vida de uma pessoa transexual é de assombrosos 35 anos, sendo a média de idade entre as vítimas de aproximadamente 28 anos (ANTRA, 2018), ao passo que já é evidente o extermínio da juventude negra brasileira (FLORES, 2016), o que forma o perfil dos alvos: mulheres transexuais e travesti, jovens e negras. Portanto, evidencia-se a necessidade de se ter uma pesquisadora transexual que traga dentro de sua pesquisa suas vivências quanto pessoa transexual, bem como os recortes pertinentes sobre gênero, raça/cor e classe, utilizando um caminho metodológico que permita a apresentação do dilema ser, viver, experienciar e estar transexual, e sua discussão no campo acadêmico, sem perder a acessibilidade ao público, através de uma linguagem simples e direta, e também sem deixar de lado, toda a sensibilidade e as afetividades que esta história traz consigo. 14 3. GUIA DE CAMINHADA A vida, por si só, merece ser registrada (ABREU, 2016). Por isso, temos a História de Vida como uma possibilidade de registro das singularidades que serão transportadas para esse texto, e também como cada sujeito (ou grupo) organiza os fatos de sua vida e assim permitir seu estudo (SANTOS, OLIVEIRA E SUSIN, 2014; SILVA E OLIVEIRA, 2015). Ao contrário do que se dá a entender, a História de Vida vai além de uma biografia (ABREU, 2016) – vê-se essa abordagem na forma de compreender como cada indivíduo, ou grupo, organiza seu passado e destaca fatos que possam levar a compreensão de sua situação atual (ABREU, 2016). Esta abordagem de estudo é normalmente associada e aplicada à história de vida de pessoas historicamente notórias (SILVA E OLIVEIRA, 2015; ABREU, 2016), porém pode – e deve – ser aplicada sobre a história de vida de pessoas tidas como comuns, mostrando a amplitude que a História de Vida, na possibilidade de se registrar e estudar a pluralidade que cada ser humano possui, independentemente do valor a ele atribuído (ABREU, 2016). E apresenta-se como um dos desafios da História de Vida a missão de produzir um registro que condiz com o que é expostos e projetado pelo entrevistado – afinal, nesta abordagem se entrevista o sujeito, ou os sujeitos, que se torna(m) o centro do estudo (SANTOS, OLIVEIRA E SUSIN, 2014). Assim, o pesquisador-entrevistador toma para si a responsabilidade de retratar o que é dito, seja verbalizado ou não, desenhado ou não, escrito ou não, silenciado ou não, e que nessa perspectiva seja olhado o que de fato foi “dito” (SANTOS E SANTOS, 2008). Gravações, transcrições e reavaliações do conteúdo é imprescindível, para garantir a fidedignidade dos escritos (SANTOS E SANTOS, 2008; SANTOS, OLIVEIRA E SUSIN, 2014). Mas, e se o pesquisador-entrevistador for o próprio entrevistado, isto é, e se o pesquisador for o seu próprio sujeito de estudo? Assim, a partir deste ponto, deixa-se de redigir na terceira pessoa do infinitivo e passo a ser a primeira pessoa do singular – me ponho como pesquisadora e sujeito pesquisado. Este trabalho tem perfil empírico, utilizando-se do referencial metodológico da História de Vida e da Autobiografia, tendo como referências impulsionadoras Tinoco (2004), Silva e Oliveira (2015), Abreu (2016) e Nogueira et al. 15 (2017), na forma de relato sobre a infância, adolescência e início da vida adulta e durante a discussão irei expor e debater as implicações sociais de ser uma mulher transexual preta e pobre, bem como dimensões que julgo importantes para a compreensão da construção da transexualidade como tema/evento que vai além das questões de gênero, permeando diversos campos da vida. Projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres humanos (CEP) em 12 de Junho de 2019, parecer nº 3.386.183, certificado de apresentação para apreciação ética (CAAE) nº 11431119.4.0000.5465 (parecer em anexo I). 16 4. OS CAMINHOS PERCORRIDOS A partir deste ponto, seguem três conjuntos de relatos, divididos por INFÂNCIA, ADOLESCÊNCIA e INÍCIO DA VIDA ADULTA. Trago os pronomes, inicialmente, no masculino e gradativamente mudando para o feminino, explicitando a mudança de gênero que passei pelo processo, permitindo a imersão até mesmo na forma de me pensar e me recordar. 4.1. INFÂNCIA Lembro pouca coisa da minha infância, de fato, mas tenho diversos “flashes”, que são bem nítidos, e deles poderei resgatar minhas próprias histórias infantis. Figura 2 – Fotografia minha com dois anos de idade, na casa dos meus pais, onde nasci e fui criada. Fonte: acervo pessoal, 1995. 17 4.1.1. A boneca de vestido laranja A primeira, mais antiga das minhas estórias, é o desejo por brincadeiras com bonecas. Essa boneca do meu registro de memórias em específico, tinha cabelos loiros, vestido laranja, com renda, sapatinhos vermelhos, coroa prateada – ela era uma princesa; tinha uma cama de madeira, pequena, um guarda-roupas, também pequeno e de madeira, e um fogão. Ficavam na penteadeira da minha mãe numa parte alta, para não mexermos. Eu, na época, só tinha o meu irmão mais velho, Júlio, para brincar. Não me recordo minha idade, mas era antes da pré-escola, então creio que tinha 4 ou 5 anos. Deste modo, minha mãe guardava esses brinquedos para que não estragássemos – mas também, para que os meninos não tivessem acesso aos “brinquedos de menina” que ela se permitia ter, apesar de já ser mãe. Porém, sempre que possível, eu subia na cama dela, e na ponta dos pezinhos, alcançava a boneca e me punha a brincar, escondida. Passava alguns minutos, seja quando minha mãe estava fazendo algum serviço doméstico longe de mim, seja quando ela ia tomar banho, assim, lá estava eu, com a boneca do vestido laranja. Quando minha mãe percebeu que alguém estava mexendo em suas coisas, deu uma bronca em mim e meu irmão, porque não queria que mexêssemos em seus objetos, mas também temendo que meu pai visse e brigasse conosco. Meu pai, desde sempre, foi uma figura que causava medo, por ser muito agressivo, beber muito e não ser uma figura presente em casa, mas esse medo não era suficiente para evitar que eu continuasse com minha vontade de brincar com a boneca, e assim, continuei brincando escondida. Quando minha mãe viu que era eu quem pegava os brinquedos, brigou comigo e me deixou de castigo, mas como eu insistia em pegar a boneca, permitiu que eu brincasse com ela, escondido, mas tinha que guardar a boneca antes que meu pai chegasse do trabalho. Concordei prontamente. Minha mãe compreendia que eu era um menino que gostava de brincar com bonecas, portanto uma criança diferente daquelas que ela tinha conhecimento. E isso durou por alguns meses, eu brincando quase que diariamente com a boneca, algumas horas por dia. Porém, um dia meu pai chegou mais cedo, sem avisar, e me flagrou brincando com a boneca. Ele ficou extremamente irritado, brigou comigo e com minha mãe. No outro dia, minha mãe deu a boneca e os brinquedos de madeira embora e nunca mais os vimos. Ela ficou ressentida comigo, mas ainda mais com o meu pai. Eu fiquei muito chateado, pois era minha diversão, em meio à atmosfera 18 masculina que pairava pela casa. E esse foi o princípio de uma relação conturbada que se estabelecia com o meu pai, que dura até hoje. 4.1.2. Menino deprimido Grande parte das falhas nas lembranças são devido a uma severa depressão que desenvolvi entre meus quatro e oito anos de idade, não apenas por não poder brincar com os brinquedos que eu queria, mas também pelos fatos que narrarei a seguir. Figura 3 – Eu, com seis anos, em uma viajem com meus tios, durante o período de festas de fim de ano, em Marília – SP. Fonte: acervo pessoal, 1999. Neste período de minha vida infantil, mais que em outras fases da minha vida, minha família passava por uma crise financeira muito grande, estávamos com a comida contada para os dias praticamente, vivendo assim com o mínimo dentro de casa. Meu pai estava ganhando muito mal, bebia muito, quase não ficava em casa. Minha mãe, nesse meio tempo, descobriu que estava grávida do meu irmão mais novo. 19 Quando meu pai ficou sabendo da gravidez, piorou muito seu comportamento, chegando a agredir minha mãe diversas vezes durante a gestação. Minha mãe entrou em trabalho de parto prematuro, pois estava tendo uma pré-eclâmpsia devido a hipertensão e quase faleceu na sala de parto. Ficou semanas internada no hospital, e meu irmão ficou quase dois meses na unidade de terapia intensiva (UTI) neonatal. Mesmo após o nascimento do meu irmão, as coisas continuaram muito ruins e só pioravam. Eu tinha crises de asma e bronquite, e meu pai, fumante na época, não parava de fumar dentro de casa dizendo que era “frescura” quando eu tinha crises de asma e bronquite, até o dia em que um pneumologista disse que se ele não parasse de fumar, eu morreria. Os surtos de raiva do meu pai continuaram, e lembro de um dia de puro terror, quando, ao chegarmos de viagem, ele que vinha dirigindo bêbado pela via bateu com o carro no portão, depois ficou irritado com todos nós e agrediu severamente minha mãe. Eu saí correndo, chorando em direção ao portão de casa, mas meu irmão mais velho foi atrás de mim, olhou nos meus olhos e disse “Se você correr, ele vai bater em você também!” e guardo essa sensação de medo, impotência e pavor dentro de mim até os dias de hoje. E paralisei, para não sofrer ainda mais. Assim, o processo de assimilar um irmão mais novo, que precisava de cuidados diferenciados por ser prematuro mais o pavor diário de conviver com um pai passivo/agressivo foram mexendo com a minha estabilidade emocional. Somado a isso (ou causado por isso), tive problemas escolares causados por situações de racismo e discriminação, que acabaram levando a um quadro de depressão que se arrastou até o diagnóstico, entre meus 5 e 8 anos de idade, mais ou menos, mas que me acompanha até hoje. 4.1.3. O monstro do racismo Na escolinha eu sempre fui o xodózinho das e dos professores. Nas primeiras séries eu era magrinho, carequinha (minha mãe nunca deixava meu cabelo ficar muito comprido, com receio de eu pegar piolho ou de que as outras crianças fizessem chacota comigo) e sempre muito sorridente, muito inteligente e comunicativo. Na pré- escola, no pré-II, fui convidado a ir direto para a primeira série do fundamental, sem precisar passar pelo pré-III, mas meus pais não deixaram. Na formatura, em 2000, fui 20 convidado a dançar a música “Brasileirinho” durante a cerimônia, com roupa temática de malandro, com chapéu e tudo (infelizmente as fotos ficaram com meus pais). Em um episódio, na primeira série do fundamental, minha professora estava irritada com o barulho da sala e quando eu, que estava fazendo os exercícios, me levantei e fui falar com ela, ouvi a seguinte resposta: “Cala a boca e senta lá, neguinho!”. Eu lembro de ficar sem reação por alguns instantes e depois comecei a chorar, chorar muito. Fui encaminhada para a diretoria, porque não parava de chorar, ligaram para minha mãe e ela veio me buscar, sem saber o que houve e o que fazer. Fomos para casa, com ela me questionando o que houve, e eu não conseguia por em palavras - ainda estava acometida pela depressão, então era relativamente “comum” ter crises de choro sem explicação a qualquer momento. Mas no outro dia eu não queria ir para a aula de jeito nenhum e isso nunca acontecia - lembro de um episódio que minha mãe sempre contava de que no primeiro dia de aula da pré-escola todas as crianças estavam chorando que não queriam ir para a escola, enquanto eu olhei para ela e disse “Tchau, mãe” todo sorridente - aí foi que ela sacou que algo aconteceu dentro da sala de aula e foi me investigando, até que eu contei que a professora havia me xingado de “neguinho”. De imediato minha mãe me vestiu e foi à escola conversar com a diretora e com a professora, pois era inadmissível o que ocorreu. A professora foi afastada e eu fui trocado de sala, para uma turma que a professora era preta também. Mas infelizmente esse acontecimento não foi o primeiro nem o último. Dentro da escola, diversas situações ocorriam entre mim e as outras crianças, ou até mesmo com as e os professores, devido à eu ter a pele escura e os traços negróides bem marcados. Por diversas vezes lanchei sozinho durante o intervalo, tive meu cabelo puxado quando tentei deixar ele crescer, fui xingado e apelidado de diversas formas horríveis, acusada de furto e até mesmo agredido por outras crianças. Em casa, por vezes ocorriam algumas situações que me colocavam em situação de angústia e tristeza. Dos meus irmãos, eu sou quem tem a pele mais escura e os traços mais marcados - nossa família tem grande influência preta e indígena e menor influência europeia, e na aleatoriedade dos genes, eu saí a mais preta de casa. Apelidos me eram dados – Buiu, Negão, frases racistas me eram atribuídas, como “Que serviço de preto”, “Preto quando não caga na entrada, caga na saída”, “Para de pretisse”, “Parece que é baiano”, ou até mesmo uma maior desumanização com 21 minhas necessidades e carências, como aconteceu dentro da minha trajetória e ainda acontece comigo em outros espaços. 4.1.4. A “menina” da casa Outra memória, que começou bem no início da minha infância, e durou até eu sair da casa dos meus pais, em 2015, foi a de ser a responsável por tarefas da casa. Eu sou a irmã do meio de três filhos, até então todos lidos como “homens”. Meu irmão mais velho tem 7 anos a mais do que eu e o caçula é cinco anos mais novo do que eu, tendo então uma diferença de doze anos entre ambos. Minha mãe sempre fez questão de que aprender as atividades domésticas era obrigação de todo mundo, para que, como ela sempre dizia “Não morram de fome quando não tiverem uma mãe para fazer as coisas”. Assim, nós aprendemos desde cedo a cozinhar, limpar a casa, fazer pequenos consertos em eletrodomésticos e na casa em geral. Porém, tínhamos um péssimo exemplo que era nosso pai, o estereótipo completo do homem troglodita, machistas, que não compreende a casa como parte de sua vida cotidiana, portanto não participava de nenhum afazer doméstico. Ele não colocava as roupas no cesto para serem lavadas, não servia sua própria comida ao almoçar ou jantar, nem se quer cortava as próprias unhas, quem diria fazer outras atividades domésticas. Assim, quando eu tinha 9 anos, meu irmão mais velho já estava fazendo cursos e trabalhando, e o mais novo era bem criança ainda, então quem atuava junto com a minha mãe nas atividades domésticas era eu. Nessa idade eram coisas pequenas, como tirar pó dos móveis, varrer meu quarto ou o tapete da sala, lavar pratos e copos, mas já eram atividades do meu cotidiano. Quando maior, já com treze anos e o caçula com oito, percebi que a simetria não era a mesma - ele não tinha que exercer as mesmas funções que eu exercia na idade dele. E esses eventos foram se sucedendo, gradativamente. Eu, estudando e trabalhando, aos dezesseis anos, ainda tinha que realizar minhas atividades em casa, enquanto o irmão já não tão pequeno, com onze anos, também não precisava - ele não se servia no almoço ou ao jantar, minha mãe era quem montava seus pratos para as refeições, e assim como o meu pai, ele não realizava nenhuma atividade doméstica, diferente de mim. Já Júlio estava morando com sua noiva (atual esposa), e eu sobrecarregada, estudando, trabalhando e realizando ainda atividades domésticas, me vi nos mesmos enredos que muitas 22 amigas cisgênero minhas relatavam: trabalhavam o dia todo fora de casa, e ao chegar, tinham que fazer os trabalhos doméstico, pois seus pais/irmãos/companheiros eram incapazes de fazer ou cooperar. Foi quando me dei conta: eu sou a filha mulher da casa! Isso ecoou em mim muitas outras coisas, e como o machismo, que está impregnado na sociedade - e não diferente, na minha família - fazia com que diversos adjetivos e comportamentos machistas que são associados à figura da mulher, me fossem associados. Por exemplo, minha opinião nunca contava, por mais que eu soubesse do que se falava, tivesse tido uma experiência ou já executado a tarefa - eu não sabia nunca de nada. E era assim que me falavam “Você não sabe de nada, fica quieto”. Ou sobrava para mim as atividades de limpeza, mesmo que eu fosse forte e pudesse fazer o serviço braçal de levar peças de carro, ou fosse inteligente e pudesse ajudar a calcular e furar uma parede com uma furadeira. Como era obrigação minha realizar as atividades domésticas, enquanto para os meus irmãos era facultativa, e quando faziam, eram louvados; quando eu fazia, era criticada - “Podia ter feito melhor, mais rápido.”. E era tudo muito contraditório: ao mesmo tempo que dentro de casa eu não era boa em nada, ao falarem de mim para familiares e amigos, era sempre diferente. Inteligente, boas notas na escola, sem reclamações dos professores. Entrou no curso, passou na universidade, ganhou prêmio, sempre elogios fora de casa. Assim, quando eu ia reclamar que estava sendo emocionalmente agredida dentro de casa, as pessoas diziam “Imagina! Seu pai mesmo estava falando bem de você esses dias! Para de procurar pelo em ovo! ”. Assim, o rótulo de “maluca”, que várias mulheres recebem ao denunciarem as agressões que sofrem, também foi me dado. E até o direito de relatar e denunciar essas pequenas agressões me foi tirado. 4.1.5. Uma casa tóxica, um menino esquisito Das coisas que sempre me destaquei foram nos meus dons artísticos e gosto muito deles. Sempre gostei de escrever, desenhar, pintar e dançar, sendo sempre muito elogiada por professoras/es e amigas/os da família. E essas eram minhas diversões, passar horas e horas sentada, desenhando, pintando e criando diversas histórias, tantas que nem consigo contar. Cheguei até a usar um cômodo inutilizado 23 da casa (mais um dos projetos inacabados do meu pai) como ateliê, aonde eu guardava meus livros, passava muitas horas por lá, desenhando e escrevendo. Estar próxima de tanta arte me fazia ser uma criança muito sensível, muito humana, muito gentil, e quem via de fora achava sensacional, uma criança que não dava trabalho. Só que dentro de casa era diferente. Os olhares de reprovação, as conversas por trás das portas, a desvalorização das minhas criações. Eu ainda consigo lembrar dos olhares de reprovação do meu pai, sempre que me olhava sentada desenhando ou pintando. Ele sempre falava de como se orgulhava de meus irmãos, esportistas, bons jogadores e como eles o faziam lembrar da própria infância/adolescência, mas comigo não. Era sempre um desgosto, um amargor, um nojo. Uma criança estranha. Um menino menos menino do que os outros. Não importava o quanto era bom, eu era sempre menos. Figura 4 – eu dançando em uma festa de aniversário na escola de EMEIF “Prof.ª Maria Madalena Vasconcelos da Silva”, em Limeira, durante a festa de aniversário de uma amiga da turma. Fonte: acervo pessoal, 2003. Você não consegue, você é fraco, você não é inteligente, você não é bom o bastante. São frases que eu ouvia constantemente, sobre todas as atividades que eu 24 me propunha a fazer ou para as quais eu era convidada ou desafiada a fazer. Eles foram me limitando, desde muito criança, como por exemplo: você nunca vai ser bom em esportes. Não me deixavam jogar futebol, porque eu não sabia (mas esse estigma até que me ajudou, eu nunca gostei de futebol), enquanto em outros esportes que eu me destaquei, como dança, vôlei ou natação, não me deixavam fazer, pois eu não me encaixava, segundo eles. 4.1.6. “Drag Steel” Outras de minhas brincadeiras preferidas, e até então permitidas, eram com bonecos de ação. Sempre gostei muito de filmes de ficção científica, e quando cansava de desenhar, pegava meus bonecos de ação, meus animais de plástico e construía um cenário por toda a sala de casa. Os sofás eram montanhas, o tapete era uma planície, as faixas de piso que margeavam o tapete eram mares e rios, e os demais móveis da sala formavam cavernas, esconderijos, quartéis generais, dormitórios, oficinas. Houve uma vez em que a imaginação foi tão fértil que, para encenar um conflito entre um personagem e uma serpente gigante que o desmembrava, usei um pote de tinta guache vermelha, que fez uma grande sujeira - e verdade seja dita, foi muito divertido! Mas, de todas essas brincadeiras, a que eu mais gostava era com meus bonecos que apelidei como “Drag-Steel”. Impedido de brincar com bonecas, eu sentia falta principalmente de mexer nos cabelos e fazer penteados, que sempre foram minha paixão. Como sempre fui extremamente criativa, criei um meio de resolver esse entrave. Minha madrinha sofreu um corte químico nos cabelos, causado por muitos alisamentos e tinturas em seus fios, e por isso, começou a usar extensões capilares. Quando fiquei sabendo, e tive conhecimento sobre a técnica, eu pensei “Por que não fazer isso nos meus bonecos?”, e logo dei um jeito. Eu pegava um novelo de linha para crochê, que é mais grosso do que a linha de costura normal, e fiz diversas voltas em torno da minha mão, depois retirava, prendia o meio com um fio da própria linha, cortava a extremidade oposta, e virava um tufinho de linhas; daí, eu prendia esse tufinho de linhas com fita adesiva ou cola-tudo na cabeça dos bonequinhos de ação, em especial de um boneco fortão que eu tinha, da linha “Max Steel” (falsificado, porque era muito caro para minha família pagar $80,00 em um boneco), que tinha um coletinho verde e uma bermuda azul e 25 verde-limão; o outro, que era seu parceiro de lutas, até então, passou a ser seu parceiro de atividades domésticas, e não tinha a “extensão de cabelos”. Nessa idade, com dez ou onze, não me recordo, eu já juntava as moedas que minha mãe me dava, e comprava algumas coisas escondida, como pequenos utensílios de cozinha, pequenos móveis, e esses tipos de brinquedos que não são considerados “de menino”, e os guardava, sempre no fundo do meu armário de brinquedos, atrás dos meus animais de plástico, minhas peças de montar, dos meus robôs da série “Power Rangers” e da minha coleção de tampinhas de garrafas. Alí era meu forte, e eu só tirava esses brinquedos de lá quando não tinha ninguém em casa, estava sempre com eles, encantada. Depois de um mês, mais ou menos, que eu criei meu primeiro “drag steel”, meu pai começou a trabalhar fora, viajando, e voltava para nossa casa a cada quinze dias, ou mensalmente, dependia da escala. Assim, minha mãe ficava muito menos nervosa ao longo dos dias, e senti confiança em brincar com meus bonecos e meus brinquedos “de menina”, e ser feliz por alguns dias, livre para criar e brincar, sem recriminações. Minha mãe, num primeiro momento, ficou muito brava, jogou algumas coisas fora e me pôs de castigo. Eu, muito sorrateiramente, recolhi tudo de volta do lixo, limpei e guardei. Insisti em brincar, várias vezes, e ela, vendo que não tinha jeito, novamente cedeu, mas assim como antes, me avisou para esconder toda vez que meu pai chegasse. E assim foram vários e vários dias brincando com o boneco e seu parceiro, que ora dividiam a mesma cama, ora eram inimigos, tudo de acordo com a trama, mas sempre vivendo na mesma casa. Minha mãe ou meus irmãos nunca questionavam o porquê deles ficarem na mesma casa, ou por quê dormiam na mesma cama, mas creio que eles já haviam aceitado que eu não era um menino “normal”. Porém, um dia meu pai foi procurar folhas sulfites para fazer uns rascunhos e saiu mexendo nos meus armários, e viu os bonecos e os demais brinquedos da casinha deles escondidos. Ele ficou extremamente nervoso, agressivo, brigou comigo e com a minha mãe, me fez jogar tudo fora e por pouco não me bateu. Passei dias chorando, e me questionando a respeito de muitas coisas que se passavam dentro de mim, como o por quê eu não podia ser um menino igual aos outros. Mas, já diz o ditado, com a noite vem a tristeza, mas pela manhã o Sol sempre estará no céu, eu logo voltei a minha resistência e comecei o processo de aceitação de que eu realmente não era o que eles esperavam de mim, mas era real minha identidade e ela 26 deveria ter sido respeitada. Eu era incrível em diversas outras coisas, e não seria isso que ia me abalar. Juntei dinheiro e comprei dois bonecos de ação dos “Power Rangers - Perdidos no Espaço”; eram a ranger amarela e o ranger vermelho, e fiz o mesmo procedimento para colocar cabelos na ranger amarela. Como não tinha mais dinheiro, comecei a improvisar objetos que se tornariam os móveis e demais objetos da casa de ambos. Assim, formavam um casal mais normal, “heteronormativos”. Porém, algum tempo depois, o boneco vermelho quebrou, e só fiquei com a amarela. Minha mãe, vendo minha tristeza, comprou outro, mas esse não era oficial, então vinha com as roupas do ranger preto, que era um personagem masculino, mas com corpo de uma ranger feminina. Assim que ganhei, vi a oportunidade de formar outro casal não- convencional, que embora eu não soubesse explicar o porque, me deixava mais alegre em brincar. Assim, sempre juntava as duas na mesma casa, e elas faziam de tudo juntas, desde assaltar bancos até serem super-heroínas que salvavam o mundo. Esses são momentos que me lembro com carinho, mas que, novamente, eram cercados de medo, principalmente do meu pai descobrir novamente sobre os meus brinquedos e me agredir, medo de que outras crianças soubessem e me agredissem na rua ou na escola. Novamente, uma infância cercada de medo, de angústias, inseguranças. Era como ser uma criminosa, uma imigrante ilegal no meu próprio mundo infantil. Para evitar que meu pai descobrisse, principalmente porque ele começou a voltar para casa todo fim de semana, e não mais quinzenal-mensalmente, passei a guardar meus brinquedos na casa de minha vizinha, que tinha três filhas. Eu falei com ela, e como ela tinha um carinho muito grande por mim, deixou que eu os guardasse em sua casa, em um lugar onde suas filhas também não pegassem - ela foi uma grande amiga e aliada para minha identidade se fortalecer. Assim, toda sexta eu ia pra casa dela, com minha mochilinha azul, vermelha e amarela, cheia de brinquedos, cheias de sentimentos, e escondia no guarda-roupas dela. E assim foram por uns dois ou três meses. No fim, eu estava cansada de ter que me esconder, e decidi deixar todos os brinquedos com as filhas dela, exceto os bonecos de ação, que eu dei para o meu irmão mais novo. Eu já estava com quase treze anos quando fiz isso, e passei a me dedicar aos desenhos e escritos novamente, fase que fiquei muito introspectiva, principalmente porque comecei a me apaixonar por meninos na escola, e isso se tornou mais um problema que tive que lidar - os amores clandestinos. 27 4.2. ADOLESCÊNCIA 4.2.1. Os amores clandestinos O meu campo de afetividades românticas sempre foi minado. Desde muito cedo eu percebia que gostava de meninos, não como amigos, porque eu quase não tinha amigos meninos, mas de uma forma diferente e isso sempre me deixava confuso, afinal, nenhum outro menino gostava de meninos de uma forma romântica, mas como eu era muito criança, isso ainda não me afetava. Porém, com a chegada da pré- adolescência, com as amigas e amigos começando a dar os primeiros beijos, sofrendo pelos primeiros amores - ficou evidente que tudo estava mudando em nós e em mim mesmo, me deixando extremamente ansioso para me apaixonar. Via todo aquele frenesi, namoradinho pra cá, namoradinho pra lá, e, novamente, me vinham questionamentos sobre minha sexualidade. Se sou eu, menino, por quê não me apaixono por meninas? Lembro de, antes dos doze anos, ter gostado de alguns meninos. Um menininho lindo da primeira série, que era meu xodó; o menino atleta da quarta série. Mas aí veio meu primeiro “crush”. Ter me apaixonado por um menino no começo da adolescência foi um marco, porque mudou minha forma de me ver e me compreender. As situações que vinham a partir disso também moldaram quem sou hoje. Não eram com todas as amigas que eu podia conversar sobre; não podia chorar minhas mágoas com a minha mãe ou com outra pessoa da família ou até mesmo falar com uma professora ou pessoa mais velha. Meus irmãos não podiam imaginar, nem ver nada suspeito. Tudo o que eu escrevia e criava a partir disso tinha que ser secreto. Desenhos, poesias, crônicas, histórias - era como se tudo fizesse parte de uma vida secreta. Com o passar do tempo, fui aprendendo a lidar com essa situação, usando minha criatividade como principal aliada. Quando queria desabafar com minha mãe, eu criava uma história como se fosse sobre o meu melhor amigo (que aos 13 anos já era abertamente gay e minha mãe gostava muito dele), contando das paixões que eu mesmo queria dividir, ou trocava o gênero do moço, para que eu pudesse contar alguma história onde eu fosse o protagonista. Eu e minha mãe tínhamos um ótimo convívio e me doía muito ter que ficar inventando meios e histórias para não contar a verdade. Até o momento que eu desisti de contar. Nunca mais falei sobre nada disso, 28 e para ela e para as demais pessoas era algo normal da idade - e de certa forma eu via um alívio no olhar dela. 4.2.2. Bicha marginal Todo esse cenário colaborou para uma marginalização da minha existência, dos meus sentimentos e das minhas necessidades, e fazia crescer em mim a sensação de desvalorização e não pertencimento. Assim, desenvolvi alguns problemas de auto-estima e me vi forçado a fazer coisas para que “compensasse” o fato de eu ser um jovem queer, esquisito, anormal, para que, assim, as pessoas não me desprezassem. Como esse era um meio que era familiar, afinal, por ser uma criança viada e preta já sofria diversas discriminações e ser mais educado, simpático e inteligente era uma forma de fugir disso, como se eu pudesse ouvir da sociedade “ele é preto, gay e pobre, mas é legal”. Criei altos padrões comportamentais, morais e intelectuais para mim, para que de fato me destacasse dentro dos grupos e que fosse de alguma forma valorizado, tentando fazer com que deixassem de lado os rótulos “negativos” que eu carregava comigo e vissem majoritariamente o lado bom. Mas isso também fez com que eu levantasse novos questionamentos: as pessoas gostam de mim pelo que eu sou ou pelo que eu tenho a ofertar a elas? Sem contar que essa auto-cobrança acabavam me limitando, pois eu tinha que passar mais tempo estudando que outros jovens, me cobrava não me envolver em brigas ou entrar em discussões, mesmo que eu estivesse certo, o que aos poucos foi me ficando caro e pesado. No fim, era como se eu me punisse para que pudesse ser falsamente aceito dentro dos espaços que frequentava. 4.2.3. Na escola Ao ir para o Fundamental II, em 2005, mudei para a escola estadual “Prof. William Silva”. Nessa escola nova, que era maior e com muito mais estudantes, foi onde mais me destaquei. Nela cursei da 5ª série do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio, que concluí em 2011. Já no primeiro bimestre me tornei o queridinho da professora de Ciências, pois era minha área de conhecimento favorita, mas também fui bem em outras disciplinas, 29 inclusive nas mais difíceis, como Matemática. Na 6ª série fui eleito presidente do Grêmio Estudantil, participei de diversos projetos da escola e batia ponto na biblioteca, tendo acesso quase que livre. Na 7ª série fui novamente presidente do Grêmio Estudantil, também fui eleito como vereador júnior da escola, parte de um projeto da Câmara Municipal, onde eu representava o bairro onde a escola estava (e seus arredores) na Câmara Municipal de Limeira e tinha a possibilidade de levar as demandas da população aos vereadores que nos apadrinhavam durante um ano. Participei das Olimpíadas Nacionais de Geografia e Física (nas fases regionais). Nesse período tive um grande estreitamento de laços com a coordenação e direção da escola, e tive um grande desenvolvimento social dentro da escola. Ía muito bem em todas as disciplinas, sendo constantemente elogiado por meu comportamento e determinação. Na 8ª série, todas as expectativas cresceram. Em Limeira, é comum estudantes das oitavas séries prestarem vestibulares para as ETECs do município, bem como projetos sociais profissionalizantes. Eu queria cursar o Colégio Técnico de Limeira - COTIL/UNICAMP, que oferecia o Ensino Médio e Técnico dentro do campus da UNICAMP de Limeira, mas meus pais não autorizaram. A opção que eu tinha era prestar a prova para o projeto social profissionalizante, o Centro de Aprendizado Metódico e Prático de Limeira - CAMPL (ou “Patrulheiros”), projeto que nasceu junto à Polícia Civil, mas que se tornou independente e atendia jovens de famílias com baixa renda. No mesmo ano, fui indicado ao Prêmio “Troféu Fumagalli” como aluno destaque no município de Limeira, representando a minha escola; embora eu não tenha sido o vencedor, a menção por si só foi extremamente honrosa. E, para completar um período de muito prestígio, fui premiado pelo jornal Gazeta de Limeira com um prêmio de literatura, ficando com o primeiro lugar, competindo com estudantes de outras cinco cidades da região de Limeira. No fim do ano, mais uma boa notícia: passei no vestibular do CAMPL e tinha um futuro promissor pela frente. Porém, para estudar no Ensino Técnico, teria que passar para o período noturno durante o Ensino Médio, o que foi uma nova aventura. Durante o primeiro e metade do segundo semestre do 1º ano do Ensino Médio eu estudei durante a manhã no curso técnico em secretariado e auxiliar administrativo oferecido pelo CAMPL, e durante a noite no ensino regular. Dentro do curso técnico, também me esforcei para ganhar destaque, enquanto na escola eu vinha mantendo 30 meu comportamento e minha auto-cobrança. Com a mudança de período, conheci novas pessoas e pude vivenciar novos eventos na minha vida pessoal, como meu primeiro beijo homossexual que aconteceu com um amigo da turma, com meus 16 anos. Também foi a primeira vez que “enforquei aula”, como dizíamos, para ir à outra escola participar de um evento cultural (ou seja, a primeira vez que eu fugi da escola foi para ir para outra escola). No ensino regular, recebia um grande apoio e também uma maior cobrança das e dos professores, principalmente sobre possibilidades de ir para o ensino superior, pois poucos estudantes da nossa escola davam continuidade nos estudos após o Ensino Médio e as e os docentes . Foi assim, com esse suporte e essa cobrança que me dediquei ainda mais nos estudos e, novamente, fiquei em primeiro lugar no concurso de literatura da Gazeta de Limeira, sendo o primeiro a alcançar o primeiro lugar dois anos seguidos. Nas últimas semanas para a conclusão do curso técnico, consegui um estágio remunerado como estagiário arquivista no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) de Limeira, onde fiquei por dois anos. Concluí essa fase com grande alegria, principalmente por ter conseguido alcançar objetivos dentro da escola e também por ter conseguido meu primeiro emprego formal. 31 Figura 5 – Imagem publicada no jornal Gazeta de Limeira, após a premiação do primeiro lugar no “Prêmio Gazeta de Limeira de Literatura”, junto à minha professora de Língua Portuguesa, Marlene, com o título da redação vencedora “Há males que vem para o bem”. Fonte: Jornal “Gazeta de Limeira”, 2009 32 No 2º ano do Ensino Médio, fui remanejada de turma, para uma sala considerada “melhor”, para que eu pudesse me desenvolver melhor. Nessa turma, conheci novas pessoas e consegui formar novos laços. Também nesse ano, poucos eventos estudantis aconteceram, foi um ano até que normal, onde dei muito enfoque nos meus estudos, o que se refletiu nas notas. Também nesse período consegui um segundo estágio, trabalhando no programa “Acessa Escola” do estado de São Paulo, sendo estagiária na sala de computadores da escola. Com essa oportunidade, consegui dedicar mais tempo à escola, tendo grande proximidade com todo o corpo docente e com grande parte do corpo discente dos três períodos. Com os dois estágios, consegui ter dinheiro para investir em coisas que eu gostava, como atividades artísticas, sendo a mais marcante a entrada no curso técnico de teatro. O 3º ano do Ensino Médio foi o mais determinante e que me trouxe a certeza de minhas capacidades. Já no primeiro bimestre, fui convidado a fazer 6 horas de estágio no INSS, e aceitei, ao mesmo tempo que fazia 4h no estágio da escola, ou seja, trabalhei 10h diárias, e ainda ia pra escola à noite. Aos fins de semana eu estava firme no teatro e ainda, aos domingos, comecei a estudar sozinho para o vestibular. Na escola, os professores me incentivavam muito a prestar vestibular e continuar os estudos, mas não tinha tempo para fazer cursinho, então fiz um pacto comigo mesmo: não faltar em nenhuma aula, estudar em todo tempo livre e focar meus domingos livres nos estudos. Assim, eu era aluno assíduo, sentava na carteira de frente a mesa dos professores, sempre tirando dúvidas, participando, questionando. Lembro de diversas vezes ser o único aluno da minha turma a ir para a escola em dias de chuva ou véspera de feriado, e ficar na biblioteca estudando ou na sala dos professores tirando dúvidas e resolvendo exercícios e questões de vestibulares anteriores. Tamanho esforço me fez ser indicado, novamente, ao “Troféu Fumagalli” como representante da minha escola (mas novamente não ganhei), bem como tomei posse novamente como vereador júnior da escola. Assim, além da já desgastante rotina, assumi outros compromissos, o que foram me deixando muito sobrecarregado. Com o encerramento do contrato com o INSS em Outubro de 2011, me desliguei do estágio na escola também e passei dois meses estudando os dois períodos do dia para o vestibular e a noite no ensino regular para concluir o Médio. No fim, decidi prestar Ciências Biológicas na UNESP de Rio Claro, por ser próxima da minha cidade e ser minha grande área de interesse desde a infância, e também prestei o curso técnico em 33 Enfermagem, pelo COTIL/UNICAMP de Limeira. Saí vitorioso, pois passei nos dois curso (45ª posição na UNESP e 5ª posição no COTIL) e como última decisão acadêmica no que defino ter sido minha adolescência foi: vou cursar os dois! O rótulo de aluno inteligente e sempre prestativo, fosse ajudando amigos, fosse passando “cola” para o pessoal da sala, me fez escapar de situações de racismo, gordofobia e LGBTfobia dentro dos espaços escolares. Nem sempre dava certo, principalmente com estudantes que não eram da minha turma, mas com muito jogo de cintura, conseguia reverter estes momentos a meu favor. Além disso, o apoio e carinho da equipe gestora da escola e dos docentes sempre me fizeram sentir em casa, o que me faz ter muitas boas memórias do ambiente escolar e da minha vida de estudante. Tantos momentos bons que sobrepõem os ruins. 4.2.4. A formiguinha operária O trabalho em casa sempre foi regra quando chegávamos à adolescência; foi com meu irmão mais velho, foi comigo, foi com meu irmão mais novo. Conforme íamos vendo que nossas amigas e amigos ganhavam roupas novas ou compravam eletrônicos modernos, éramos incentivados a começar a trabalhar. Limeira se destaca muito na produção de bijuterias e semi-jóias, e grande parte dessa produção é feita em galpões e locais improvisados, ou até mesmo de casa em casa - faz até parte da cultura dos limeirenses de baixa renda, é difícil encontrar alguém que não tenha trabalhado “fazendo joia” em casa ou na casa de alguém da vizinhança ou parente. Meu irmão mais velho trabalhou por um bom tempo com esse tipo de serviço e eu, com dez ou onze anos, às vezes ajudava ele e conseguia algumas moedinhas ou ele me comprava algo de comer, e eu achava o máximo. Logo, vi que gostava de trabalhar, porque trabalhar contribuía para minha autonomia, característica que gostei de cultivar na minha personalidade. Pouco tempo depois, minha avó paterna sofreu um acidente dentro do ônibus e ficou um tempo sob observação na casa dela e como morávamos muito perto, eu e minha mãe fazíamos visitas frequentes. Quando ela ficou fora de perigo, minhas tias e tios decidiram que era bom algum dos netos passar um tempo acompanhando-a, só para garantir. Eu me voluntariei, e depois de um tempo, meu pai começou a me dar 34 $1,00 por tarde que eu ficasse com a minha avó, até o entardecer, quando algum tio ou tia passava por lá. Com isso, tive meu primeiro “emprego”, na época com onze anos, e segui sendo acompanhante da minha avó por quase seis meses. Depois de um tempo ela já não fazia mais questão de que eu fosse todos os dias, e eu estava assumindo outros compromissos dentro da nova escola, então deixei minha função de cuidador. Com 14 anos voltei a trabalhar, agora em uma linha de produção de bijuterias na garagem de uma senhora, em um bairro próximo da casa do meus pais. Voltava da escola ao meio dia, almoçava e ia para o trabalho, às 13h, voltando às 18h. Não era muito produtivo, porque tinha o costume de fazer devagar para fazer bem feito, mas acabava ficando atrasado quase sempre. Trabalhei por oito meses, entretanto, depois de um tempo, parei com a atividade para estudar para o vestibular do curso técnico. Ainda por um tempo fiz pinturas em tecido, como panos de prato e camisetas, e vendi para vizinhas, algumas tias e minha mãe,que era minha cliente fiel, mesmo que às vezes ela também era quem comprava os materiais para fazer os panos de prato. Com a conclusão do curso técnico, em 2009, consegui o estágio no INSS, com carga horária de 4h diárias, 20h semanais. Eu era estagiário arquivista, trabalhava no segundo andar do prédio, arquivando e desarquivando processos de aposentadoria, além de dar baixa no sistema, tirar cópias sempre que necessário (o que era muito chato, porque sempre eram processos enormes e antigos) e repor os materiais de papelaria na sala. Era um trabalho que eu gostava muito, pois em pouco tempo me sobressai aos outros estagiários e até mesmo ao meu chefe (por ele ter sido efetivado depois de mim no setor, eu tinha mais experiência de busca do que ele). Ninguém era melhor do que eu para achar processos, fosse no arquivo novo, do segundo andar, ou no arquivo velho, no porão. No meio do meu primeiro ano de estágio, comecei por conta própria a organizar o porão onde haviam processos muito antigos, alguns até danificados pelo mal estado de conservação que eram submetidos. Em seis meses revitalizei todo o arquivo velho (com ajuda de um outro amigo, estagiário na época), feito muito elogiado pelos superiores (mesmo eu não recebendo nenhuma bonificação ou honraria). Lembro uma vez de ter achado um processo que estava perdido a mais de 10 anos no arquivo antigo, o que foi meu auge nos arquivos. Foi um trabalho que me trouxe muita alegria, pois era algo que eu gostava muito e também algo que eu 35 me saia bem, e ao me sair bem, estava ajudando outras pessoas, no encaminhamento de seus processos de aposentadoria. Em 2010 comecei o outro estágio, também de 20h semanais, como estagiário no programa Acessa Escola. No início, mesmo tendo a formação que o próprio projeto oferecia, eu trabalhava em uma outra sala de computadores, secundária, que não a específica para a função, onde tinham computadores mais velhos e as e os estudantes podiam usar para fazer pesquisas escolares e também para entretenimento (o que era mais comum). Após um tempo, fui remanejada para a sala que de fato havia sido oferecida pelo projeto, com computadores novos, cadeiras novas, todo um sistema de monitoramento e controle do que as e os estudantes estavam acessando. Esse era um trabalho relativamente mais tranquilo, mas que muitas vezes me deixava mais estressado, pois era muito complicado lidar com as e os professores, com muitos estudantes, principalmente porque eu tinha a mesma idade que eles e era muito difícil ter alguma autoridade sobre o espaço. Por fim, precisei encerrar o contrato antes do previsto, para me dedicar aos estudos para o vestibular. Ainda, por algumas semanas, fiz um “bico” com divulgação da escola de teatro em que eu participava, indo de escola em escola, da rede municipal e estadual, levar banners e flyers da companhia, por volta de um mês, mas depois parei de vez para os estudos. Mesmo assim, no meio de Dezembro de 2011, comecei a trabalhar como repositor em uma rede atacadista de supermercados, ficando no setor de grãos, farinhas e açúcares, que foi um dos trabalhos mais pesados que já enfrentei. Uma rotina exaustiva, num setor onde os itens eram extremamente pesados e a rotatividade era muito grande, pois tinham muita saída. No meio do período de experiência, recebi a notícia que havia passado nos dois cursos que havia prestado e, com a decisão de cursar os dois, precisei me desligar. Ainda recebi a proposta de desistir do curso de Biologia e prestar algo voltado para Logística, que a rede me efetivaria e ainda havia chances de promoção, mas neguei. Queria seguir o sonho de ser professor! 4.2.5. A cigarra artista Mesmo com muita resistência da minha família, sempre gostei muito do meio artístico: desenhar, cantar, dançar, pintar, esculpir, atuar - o pacote completo das 36 artes. E mesmo sendo muito bom no que me propunha a fazer, não recebia apoio, e pouquíssima ajuda para comprar materiais. Muito raramente me compravam lápis ou materiais para desenho; me compravam alguns materiais de pintura para meus tecidos, mas sempre sob protesto- mas ainda assim, resisti. Eu acho que minha teimosia sempre me fez muito resistente e resiliente, e a arte me fez viva. Quando comecei com meus primeiros empregos, consegui ter maior autonomia, e como um dos primeiros feitos, me matriculei na escola de teatro que minhas amigas me recomendavam, a Companhia Espaço Núcleo de Artes, em Limeira. Fazer teatro era um grande desejo e de certa forma um dom; sempre fui recomendado para atividades teatrais nas disciplinas de Educação Artística, pois desde criança era muito desenvolto, falante, participativo e também extremamente criativo, características que foram muito aproveitadas no teatro, tanto que participei da mesma companhia por cinco anos, de 2010 a 2015. Me recordo com grande carinho desse período, mesmo que turbulento. Lembro que meus pais e irmãos foram a poucas apresentações. Na maioria delas, não podia contar com a presença deles, sempre com compromissos ou sem dinheiro, mas também me recordo de que meus pais sempre davam um jeito de ir ver meu irmão mais novo jogar aos domingos, o que me magoava, mas aprendi a transformar esse incômodo em arte. Em todo o tempo que estive lá, o teatro foi minha casa e minha família, uma rota de fuga da realidade. Por vezes ficava o período da manhã e da tarde na companhia, criando, ensaiando, produzindo arte. Nas férias, ia durante a semana, ficar nos espaços da escola. Cheguei a trabalhar na recepção escola, fiz trabalho voluntário, como auxiliar nas mudanças e nas reformas, trabalhei nas peças como produção e contrarregra. Sempre um grande lar, de portas abertas para minhas estranhezas. Ainda nesse período, criei uma série de desenhos da franquia “Pokémon” autorais, ou seja, eu mesma criei meus monstrinhos de bolso. Como referencial, entre os anos de 1999 e 2019, a Nintendo, detentora dos direitos, lançou por volta de 900 pokémons, e eu criei, sozinha, mil pokémons. Essas são minhas relíquias, que guardo desde muito jovem, e que pretendo redesenhar e de alguma forma publicá-las. Além deles, mais outras diversas histórias foram criadas, desenhadas e/ou escritas. 37 Uma forma que eu tinha para desabafar um pouco sobre meus sentimentos, sobre minhas incertezas, sobre minhas esquisitices, era escrevendo. Diversos cadernos com histórias surreais, com poemas, músicas, crônicas, quadrinhos. Personagens com superpoderes, bruxas, fantasmas - todas e todos os personagens voltavam a mim, voltavam às minhas necessidades de falar e ser ouvido. Sempre haviam romances impossíveis, ou um personagem que estava em eterna fuga ou que era perseguido onde quer que estivesse - um esquisitão. Era sempre eu. E quase todas aquelas produções se perderam. Algumas intencionalmente, outras só sumiam, outras ainda foram dadas embora. Por fim, pouco me resta, em minha “caixa de memórias”, um baú que guardo lembranças, e algumas delas são essas produções artísticas. 4.2.6. Cada vez mais longe de casa Segundo os meus irmãos eu sempre fui o filho preferido da minha mãe. Se era verdade eu não sei, mas minha mãe sempre mostrou grande preocupação comigo, o que cresceu muito com a chegada da adolescência. Creio que, até o momento, ela ainda tinha esperanças que eu me tornasse um jovem normal como os outros meninos se tornariam, mas eu só ficava mais esquisito. Mesmo assim, sempre estávamos juntos, conversando sobre coisas do dia a dia, brigando ou fazendo atividades da casa juntos. Eu e minha mãe sempre fomos uma ótima dupla. Porém, os constantes conflitos com o meu pai deixavam ela na saia justa. Sempre disse e ainda hoje repito: meu pai é exemplo de uma pessoa que eu não quero ser, alguém que tem uma vida dupla, que é um ator nos espaços; em casa agia de forma agressiva e dura, fora de casa fazia o papel de pai amável e preocupado. Com a adolescência, mais ainda me irritava as atitudes que ele tinha, pois comecei a ter um contato crítico com as famílias das pessoas que me cercavam e refletir sobre o papel dos diferentes pais, sobre como pais podiam e deveriam ser - e como ele era. Avaliei toda minha trajetória com meu pai, por diversas vezes, e estar crescendo e ficando parecido fisicamente com ele me deixava frustrado e triste. Será que eu me tornaria como ele? Lembro de sempre que meus pais discutiam, eu falava com a minha mãe sobre o porquê ela não se separava dele. Nós já estávamos crescidos, poderíamos ajudá- 38 la e ela nunca mais precisaria ver ele. Ela sempre se mostrava favorável a isso, mas recuava. Receio de ficar sem nada, receio de não ter como nos manter, receio de tudo. Reflexo de uma vida difícil, de muito abuso psicológico, de muitas agressões acumuladas. E isso sempre me machucou muito, não poder ajudar a mulher que era o amor da minha vida inteira. Com o passar dos anos, meu pai foi ficando menos agressivo, saindo menos com os amigos, ficando mais “caseiro”. Para meus irmãos, era uma grande vitória: nosso pai havia mudado e deveríamos fingir que nada havia acontecido e que ele sempre foi um excelente pai. Na minha cabeça isso não existia, nunca existiu e nunca vai existir; não se apagam vinte anos de medo, angústia e tristezas em meses. Não me interessa se agora ele é uma pessoa menos pior do que era, eu precisava de um pai amoroso, de um pai que me incentivasse, que acreditasse em mim quando eu era criança. Depois que eu construí por mim mesmo todo esse poder que trago até hoje em minha essência, não quero que alguém me roube as honras, como se ele fosse meu super herói. Não, não é assim. Ele teve o papel dele, como provedor, mas foi minha mãe que fez todo o resto. Meu pai era o bicho papão que me espreitava, de dia e de noite. Ele nunca pode me amar, não do jeito que ele pôde amar todas as outras crianças da família, não do jeito que eu precisava ser amado. E tudo bem, mas não posso me obrigar a fingir que minha história nunca existiu para criar uma imagem de pai perfeito. E não vou. Meus irmãos eram muito bons como irmãos e amigos. Embora brigássemos muito, sempre tivemos uma boa relação, sem mágoas. Eles se davam melhor entre eles do que comigo, por terem mais coisas em comum. Eu e meu irmão mais velho éramos mais distantes, até ele começar a se relacionar com minha atual cunhada. Meu irmão mais novo era mais próximo de mim, sempre brincávamos juntos, mas acabávamos brigando porque éramos muito diferentes. Começávamos brincando, terminávamos brigando ou cada um indo brincar de outra coisa, até ele ficar mais velho e poder sair para brincar com os próprios amigos, daí fomos nos afastando. Mesmo assim, ainda me procurava para que eu ajudasse em trabalhos escolares ou para contar coisas do dia a dia, como acontecimentos na escola. Eles sempre diziam que eu era o irmão mais inteligente e o mais “fresco” com as coisas; também diziam que eu era “metido”, no sentido de ser arrogante ou coisas do tipo, mesmo que eu fosse o mais simpático e extrovertido da casa. O ponto chave sempre foi que meus 39 gostos sempre foram muito diferentes dos dois, e acabava por não termos muitas afinidades ou atividades que poderíamos fazer os três juntos em pé de igualdade. Com os anos, meus irmãos e eu fomos naturalmente nos afastando, seguindo os caminhos que cada um construiu para si, sendo que os caminhos dos dois sempre estiveram mais próximos entre si do que com o meu. Aos poucos eu fui me afastando da minha mãe, porque com a maior presença do meu pai em casa, ele exigia mais atenção dela, como se ele tivesse ciúmes de nós, filhos, e para evitar brigas, eu acabei procurando cada vez menos minha mãe para conversarmos ou só ficar deitado do lado dela sem fazer nada, ou lendo juntos. Vivendo em uma casa como se fosse cada dia mais estranho lá dentro, comecei a ocupar todo o meu tempo, indo para a casa dos meus pais só para dormir ou comer. Cada vez mais eu ficava fora de casa, cada vez mais longe, cada vez mais sozinho. 4.2.7. Passageiro na minha adolescência Minha adolescência toda passou como um raio. Tudo aconteceu muito rápido, pois a cada ano fui acumulando mais e mais funções. Entre 2005 e 2011, o tempo se distorceu, e eu me tornei um jovem rapaz sem uma história. Eu passei por todos os anos, mas sempre vendo por fora. Agindo da melhor forma, fazendo as melhores escolhas, sempre sendo prudente, obediente, calmo, centrado e controlado. Eu era um adolescente fora da média - assim como criança, fui um adolescente que não deu trabalho. No fundo, eu fui um adolescente frustrado. Dentro de um corpo que me incomodava, com sentimentos que me deixavam confuso, com uma demanda sentimental que não podia ser atendida nem romanticamente, nem fraternalmente. Soterrei tudo com mil e uma atividades e, como reflexo disso vieram os problemas para dormir, disfunções alimentares, dificuldade de concentração e momentos de recaída com a depressão. Ainda assim, sobrevivi à adolescência. Em 2009, com 16 anos, dei meu primeiro beijo. Entre minhas amigas e amigos, era um absurdo, pois todos eles já estavam na fase de ter as primeiras relações sexuais, e eu ainda não tinha nem dado um beijo. Beijei um amigo, que era abertamente homossexual, e lembro que me senti muito bem. Mas que também não 40 era uma preocupação que eu queria ter naquele momento, e embora sempre estivesse sofrendo por uma paixão diferente, nunca deixei que isso afetasse meu desempenho. E essa ainda era uma questão que me trazia agonia nas reflexões antes de dormir: será que alguém algum dia se apaixonaria por mim? Durante a adolescência toda a resposta foi não. Lembro de ter muitos sentimentos conflituosos, de ir dormir chorando diversas noites, com um incômodo frequente em relação ao meu corpo. Era minha voz, era meu cabelo, era minha barriga, eram meus genitais. Um incômodo frequente, que gerava uma não aceitação de quem eu era. Até então eu não me aceitava como uma pessoa preta e já me dava muito desgosto me pensar como homem. Eu me via como gay, sem problemas nenhum, mas não conseguia me enxergar quanto homem. Em 2011 tive minha primeira experiência sexual, tida como “minha primeira vez”, mas que não se concluiu. Lembro de ter uma grande aversão ao meu corpo e a alguém tocá- lo, mesmo que de forma consensual. Me recordo principalmente da aversão a que tocasse no meu pênis, incômodo que já me acompanhava por toda adolescência, até mesmo ao meu toque, como se fosse algo sujo e errado. E me era incômodo ter esse tipo de sentimento sobre meu próprio corpo, mas eu simplesmente ocupava minha mente com outras coisas, como os estudos e com a arte. Não havia tempo para ser desperdiçado com isso, a vida que eu vinha construindo cobrava tempo, e eu não podia desprender toda essa energia com incômodos - o homem de sucesso que eu queria ser precisava de foco, não de amor. 41 4.3. O INÍCIO DA VIDA ADULTA 4.3.1. A vida adulta e as armadilhas A surpresa e o status (falso) de estar em duas universidades públicas foram muito importantes para a construção da minha estima atual, principalmente como validação dos meus esforços acadêmicos, mesmo que eu tenha negligenciado diversos aspectos da minha adolescência. Dentro da minha família também foi muito apreciado, principalmente por parte da família paterna, onde tenho uma tia que é professora em uma universidade pública, mas não se compreendia de fato, do que era estar numa universidade pública. Por exemplo, em minha família paterna, eu fui o segundo neto, de mais de 20 primas e primos com idades entre 18 e 40 anos, a cursar uma universidade pública; da minha família materna, de mais de 10 primos entre 18 a 30 anos, eu fui o primeiro a cursar o ensino superior e numa universidade pública. Para meus pais, que não tem o Ensino Fundamental completo, era algo importante, mas não se compreendia a complexidade - e as dificuldades - de se estar na universidade. Isso deu corpo ao início de alguns transtornos mentais. 4.3.2. A Universidade e a Travesti Me lembro de que me avisaram que a Universidade era um espaço elitizado, que provavelmente eu sofreria algum tipo de hostilização, fosse por classe, cor ou orientação sexual, além dos “trotes universitários” que eram muito comuns na época - no ano de 2012 um estudante havia falecido durante um trote em uma universidade e chocou muito minha mãe, que fez questão de me acompanhar no dia da matrícula para conhecer as e os estudantes e o campus. O que percebi foi que as estruturas burocráticas da universidade hostilizam mais do que a recepção das e dos estudantes veteranos que estavam no dia da matrícula e nos primeiros espaços de acolhimento de ingressantes. Já na matrícula, quase fui impedida de concluí-la por ter trazido uma declaração ao invés do documento, que não havia sido emitido ainda pela escola - se não fosse a insistência e a astúcia da minha mãe, que foi falar com a coordenadora de curso e deu um jeito da escola mandar o documento via fax, eu não estaria concluindo esse curso nesse ano. 42 Nos três primeiros anos, sendo os dois primeiros concomitantes com o curso de Enfermagem, eu fiz o curso de Biologia indo e voltando de van diariamente. Nesse período, tive que aprender muitas coisas “na marra”, pois percebi o quanto o Ensino Público é defasado, pois nos dois primeiros semestres, com matérias tidas como simples, tive muita dificuldade devido a falta de alguns conteúdos no Ensino Médio e Fundamental. Mesmo assim, encerrei o primeiro ano com apenas uma reprova, o que para mim foi uma grande vitória. No curso técnico, tive grande desempenho, tanto conceitual quanto prático, principalmente porque a partir do segundo semestre do primeiro ano nós já começávamos a fazer os estágios supervisionados em hospitais e postos de saúde. Terminei esse primeiro ano de maratona acadêmica com sentimentos positivos, pois estava me dando bem. Ainda não tinha pretensões de áreas de pesquisa para iniciação científica ou estágio, mas não queria ir para a Educação, sentimento que gradualmente foi se modificando. No segundo ano, 2013, tive mais facilidade nas disciplinas, principalmente no segundo semestres, onde tive uma disciplina que dava uma introdução à função educadora do biólogo, na Prática como Componente Curricular (PCC) IV. Nesse momento, relembrei o encanto por educar e decidi cursar a Licenciatura. Ainda nesse ano, me envolvi com o Movimento Estudantil (ME) durante uma greve estudantil, e comecei a me interessar pelos movimentos sociais, principalmente quando dei início às leituras sobre o tema, participar e ser incentivado a falar nos espaços que a greve estudantil oferecia. Cheguei a participar de oficinas de cartazes, “panelaços”, piquetes e ocupações. Nesse período não tive nenhuma reprova, mas fiquei de exame em uma disciplina. No curso técnico, concluí o curso com tranquilidade, mas com a nítida noção que não atuaria no mercado de trabalho como técnico em Enfermagem, principalmente pela grande responsabilidade que era cuidar e ser responsável por diversas vidas dentro dos hospitais Entretanto, a formação que recebi foi fundamental para a construção da noção de humanização dos espaços de saúde, que eu trouxe e apliquei em minha vida e em todos os demais espaços que frequentei, principalmente durante minha prática profissional. O ano de 2014 seguiu-se sem muitas surpresas na vida acadêmica, exceto pelo início das disciplinas da Licenciatura, em especial a “Didática: Campo investigativo e de formação”, que foi uma disciplina com um formato diferente do ensino tradicional que ainda é seguido dentro das universidades, o que me maravilhou tanto pela prática 43 docente quanto para a pesquisa em Educação. Ainda nesse ano comecei a dar aulas como professor voluntário em um cursinho comunitário em Limeira, e também a dar aulas como professor eventual na escola pública onde estudei, o que novamente me inseriu numa rotina desgastante. Por todos esses anos, ainda estive inserida no curso de teatro, e com o tempo fui assumindo mais compromissos com a companhia, o que também sobrecarregava a mim e minha rotina. Neste ano, perdi minha sobrinha, evento que desencadeou diversas mudanças em minha vida. Em 2015, no meu quarto ano, me mudei para Rio Claro, encerrando meu ciclo de trabalho e estudos em Limeira. Na universidade, comecei a participar de diversas atividades acadêmicas, dando também início a uma iniciação científica no Departamento de Botânica, com biologia reprodutiva. No curso, consegui ter um bom desempenho, principalmente por ter mais tempo para estudar e ter acesso no tempo integral à biblioteca e também aos professores, para tirar dúvidas e participar durante o dia de atividades acadêmicas e não-acadêmicas. Em 2016 e 2017 comecei a ter diversos problemas psicológicos, o que se refletiu no meu desempenho acadêmico. Algumas reprovações, notas baixas, dificuldade em trabalhar em grupo, muitas faltas nas aulas, abandono de projetos, afastamento do ME, principalmente com a conclusão do meu mandato como vice- presidente do Centro Acadêmico da Biologia (CAB), e da iniciação científica. Desisti do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) com as orquídeas, comecei um projeto de PCC que também seria meu novo TCC no Departamento de Educação, na área de Educação Ambiental, com educação botânica, mas no final também desisti. Nesse período me mudei bastante de casas, o que me deixou deslocada espacialmente, além de ter me envolvido romanticamente com uma pessoa que me fez muito mal, tudo culminando em uma crise, que atrasou todo meu processo de formação. Devido a todos esses problemas, pensei algumas vezes em desistir do curso, principalmente no final de 2017, período em que rompi laços familiares e aceitei minha transexualidade, conjunto de eventos que me levaram a uma grande vulnerabilidade socioeconômica, pois sem a bolsa de iniciação científica e sem o auxílio dos meus pais, eu não tinha como me manter. Com muito esforço, consegui encontrar um trabalho informal como garçonete e também uma bolsa emergencial socioeconômica oferecida pela universidade. 44 Em 2018 enfrentei adversidades, principalmente porque havia perdido o prazo para solicitar a dilação do prazo de conclusão do curso, o que poderia me fazer perder o curso. Recorrendo ao Conselho de Curso da Biologia e à direção do Instituto de Biociências (IB), consegui solicitar essa dilação e ter mais um ano para me formar. Este processo veio muito a calhar, pois no ano de 2018 concluí todas disciplinas que me faltavam, incluindo a conclusão das PCC’s, onde desenvolvi parte do projeto que agora desenvolvo como TCC. Indo de encontro com meus estudos sobre cor, corpo, gênero e sexualidade e classe, comecei a fazer diversas palestras e participações em rodas de conversas e seminários, o que expandiu meus laços acadêmicos e fraternos, mas que acabou me distanciando do coletivo que fazia parte desde 2015, o Coletivo Calisto. Nas disciplinas desse ano eu não tive muito destaque, principalmente por estar sobrecarregada e tendo que fazer diversos trabalhos para complementar renda, mas ainda assim consegui encerrar os dois semestres de forma positiva, sem nenhuma reprova e ainda refazendo as disciplinas que havia reprovado. Em 2019 não haviam mais disciplinas para eu cursar, apenas faltavam as horas complementares, o estágio obrigatório e o TCC, entretanto, foi um ano de estudos intensos, devido ao TCC, mas também a diversos convites para palestras, principalmente com assuntos que envolvem a negritude e a transexualidade. Ainda assim, um ano cheio de desafios, principalmente devido a problemas financeiros, com atraso de bolsas e poucos trabalhos como freelancer. Assumi duas monitorias junto ao Departamento de Botânica, o que me ajudaram tanto com as horas complementares quanto com as bolsas, e também de me manter na área que eu gosto desde o início da graduação. Dentro desse período todo eu fui extremamente desafiada, não apenas no sentido construtivo da palavra, pelos conceitos e conhecimentos, mas também de uma forma negativa, com a universidade, a família e a sociedade sutilmente (ou nem tão sutilmente) me dizendo que aquele não era meu lugar. Por muitas vezes, estar em espaços acadêmicos me custou o dinheiro que eu não tinha, o conhecimento que precisei adquirir na marra, o tempo que me era escasso e laços interpessoais que se desfizeram, mas também me permitiu conhecer universos completamente novos e que eu definitivamente não acessaria se estivesse fora da academia, como eventos científicos, rodas de conversa e até mesmo o próprio conhecimento científico, fato que me faz refletir mais ainda sobre o quanto o conhecimento científico é elitista. Por 45 diversas vezes topei com questões que para muitos eram corriqueiras, como as fórmulas de química orgânica ou conceitos de física, mas para mim eram completamente novos, não apenas por termos vindo de lugares diferentes, mas também por sermos de classes sociais tão desiguais. Saio nova desta aventura de saberes, mais rica, mais capaz, mais afiada, e também com uma missão: transformar toda essa dificuldade e todo esse incômodo - de me sentir uma estranha em um espaço que deveria ser público - em força para modificar as estruturas onde me for possível (e onde não for também!). 4.3.3. A Escola e a Travesti Estar dentro da escola como professor em 2014 foi uma viagem - rumo à escola onde havia estudado, às memórias afetivas do espaço escolar, à rotina de trabalho na Educação, ao cotidiano de diversos jovens e ao encontro de mim mesmo. Tudo isso com 21 anos de idade, no início do meu terceiro ano de graduação e recém formado com técnico em Enfermagem - e logo após chegar à conclusão de que, embora eu houvesse me dedicado muito ao curso e tivesse me saído muito bem, com vários elogios das professoras, de amigas e amigos e também de pessoas que atendi ao longo dos estágios, eu não estava pronto para lidar com a responsabilidade de ser diretamente responsável por outras vidas. Ouvi muitas críticas, principalmente da minha família, sobre como eu havia desperdiçado tempo e dinheiro estudando para no final, não ir para o mercado de trabalho - mas eu já havia me decidido e ponto. Até porque o enriquecimento que a Enfermagem me ofereceu foi gigantesco, principalmente na esfera da humanização das minhas práticas e da necessidade do cuidar para além da “vocação”, e sim como profissão. Creio que minha prática profissional atual foi completamente balizada por esses conceitos e por essa visão. Dentro da sala de aula, como professor, foi quando recebi as maiores lições. Cheguei com muita sede de querer ensinar, querer mudar, querer fazer, um querer gigantesco, mas aí me deparei com a realidade. Eu fui contratado sob regime emergencial, na categoria V (segundo outros professores, a categoria mais inferior de professores no Estado); dava até nove aulas por dia, parte delas sem prévio aviso - me ligavam, avisando que eu tinha uma aula em 20 minutos, e eu tinha que dar um jeito de me materializar dentro da escola, fora as vezes que ficava por lá mesmo, 46 esperando me chamarem. Dei aulas de todas as disciplinas, para todos os anos do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio. Houveram dias que eu dei aulas de manhã, tarde e noite. Fui assediado sexualmente por alunas e alunos dentro da sala de aula. Fui agredido por um grupo de alunos dentro da sala de aula, com um “mata-leão”. Fui xingado por alunas e alunos verbalmente, em pichações e bilhetinhos. Viado, preto. Mas também fui muito amado. E são esses os momentos que me guiaram e me guiam até hoje. Ser o professor preferido na escola, ser o eventual que as e os estudantes comemoravam quando chegava na sala de aula, programar atividades que davam mais que certo. Ser o professor que as e os estudantes procuravam para contar sobre a vida, porque se sentiam confortáveis. Ser o professor que dava incentivo e que torcia até o fim. Em um ano e meio no ensino público, eu vivi muitas situações que poderiam ter me desestimulado de continuar na profissão, mas na verdade eu vi a necessidade de estar lá, de poder fazer algo diferente e de perseverar dentro desse espaço. Mas antes mesmo de entrar no Estado, eu já vinha dando aulas em um cursinho pré-vestibular comunitário independente, o Aprimorando, em Limeira, aos fins de semana. Era professor auxiliar, ia a cada 15 dias no cursinho para tirar dúvidas e solucionar exercícios. Depois de receber muitos pedidos das e dos estudantes, fui convidado para fazer parte da equipe fixa de professores. Era um trabalho não remunerado, sem certificação - não tínhamos nenhum tipo de registro - mas era extremamente gratificante. Nós delimitávamos o que seria ensinado naquele ano, dando prioridade para as matérias que cairiam no vestibular, mas com uma grande liberdade. Assim, dentro dos 5 anos que fui professora em cursinho pré-vestibulares comunitários (3 anos em Limeira e 2 anos em Rio Claro, no “Oriente-se”), consegui desenvolver um trabalho extremamente satisfatório dentro das salas de aula, por ter a liberdade mas também a responsabilidade de educar. No meu último um ano e meio no cursinho foi um período onde não tinha mais um professor e sim uma professora. A turma que passou pela transição, que correu um pouco depois da metade do ano letivo, teve pouca dificuldade em aceitar uma professora e não mais um professor, principalmente porque havíamos feito um grande trabalho com as e os estudantes sobre sexualidade e gênero, dado o fato de que grande parte das e dos professores eram do movimento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT+). No ano seguinte, alguns estudantes se repetiram na turma, mas outros eram completamente novos e eu era o primeiro contato deles com 47 uma pessoa transexual, o que gerou alguns desconfortos no inicio, mas com muita calma, seriedade e conversa, conseguimos dar continuidade na disciplina. Contei com alunas que, por muitas vezes, me defenderam dentro da sala, principalmente quando haviam risadinhas ou piadinhas que eu fingia não escutar. Atitudes como essas me fizeram ter ainda mais vontade de estar dentro das escolas e poder ensinar diversidade para além do conteúdo de Biologia, para cor, gênero, orientação sexual e culturas - aplicar a Biologia para além do Currículo. Reflexões tardias me mostraram que, embora eu não tenha assumido trabalhos na área da Saúde, a Educação também traz a mesma responsabilidade em cuidar de vidas, mas por um outro ângulo. A professora e o professor são figuras de extrema importância para as e os jovens, principalmente para aqueles mais vulneráveis socioeconomicamente. Atuar dentro dos espaços escolares, agir, intervir em situações de conflito, o modo de tratar e lidar com eles como pessoas e não como “alunos” faz toda a diferença, não apenas pela ética, que é extremamente necessária em nossa prática profissional, mas também para a construção de cidadãs e cidadãos. Educar é uma profissão e um ato político, e saber disso é usar a sua força de trabalho em prol de uma sociedade mais equitativa - o que pode parecer utópico, mas, se não formos um pouco utópicos, o que vai nos tirar da dura realidade que se mostra mais pessimista a cada dia? 4.3.4. A Informalidade e a Trave