UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS GABRIELA PIRAJÁ CECILIO BUNHOLA POLÍTICAS PÚBLICAS E PLANEJAMENTO FAMILIAR À LUZ DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS FRANCA 2019 GABRIELA PIRAJÁ CECILIO BUNHOLA POLÍTICAS PÚBLICAS E PLANEJAMENTO FAMILIAR À LUZ DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de concentração: A Cidadania Participativa nas Políticas Públicas. Orientadora: Profa. Dra. Maria Amália de Figueiredo Pereira Alvarenga FRANCA 2019 B942p Bunhola, Gabriela Pirajá Cecilio Políticas Públicas e Planejamento Familiar à luz dos Direitos Fundamentais / Gabriela Pirajá Cecilio Bunhola. -- Franca, 2019 99 p. : tabs. + 1 CD-ROM Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientadora: Maria Amália de Figueiredo Pereira Alvarenga 1. Políticas Públicas. 2. Direitos Fundamentais. 3. Direito à Informação. 4. Políticas Públicas. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. GABRIELA PIRAJÁ CECILIO BUNHOLA POLÍTICAS PÚBLICAS E PLANEJAMENTO FAMILIAR À LUZ DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de concentração: A Cidadania Participativa nas Políticas Públicas. BANCA EXAMINADORA Presidente: ____________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Amália de Figueiredo Pereira Alvarenga – UNESP - FCHS 1° Examinador: ________________________________________________________ Profa. Dra. Kelly Cristina Canela – UNESP - FCHS 2° Examinador: ________________________________________________________ Prof. Dr. Acir Matos Gomes - UNIFRAN Franca, _______ de ___________________ de 2019. DEDICATÓRIA Aos meus filhos, Felipe e Júlia, seres iluminados, lindos de alma, que me permitiram viver a maior aventura, emoção e ato de desprendimento da vida humana: ser mãe. AGRADECIMENTOS Primeiramente, todo meu amor e gratidão a Deus, que, com muito cuidado e amor, tem guiado meus passos, e com sua imensa luz tem me abençoado para que eu possa, paulatinamente, vir a atingir meus objetivos profissionais e minha vocação da vida, mister que sempre sonhei e planejei na vida, desde meus 12 anos: exercer a docência. Agradeço a minha orientadora, Maria Amália de Figueiredo Pereira Alvarenga, pessoa iluminada, verdadeiro anjo que Deus colocou no meu caminho para, muito além de cumprir sua função técnica de orientação, me incentivar, me auxiliar na escolha de disciplinas do programa de mestrado, me ensinar a dar aulas com sua maestria, doçura, profissionalismo, pontualidade, e, acima de tudo, muito amor no coração. À UNESP, pela oportunidade, e aos excelentes professores da Pós-Graduação, pelos inúmeros e preciosos ensinamentos, muito obrigada! A meu marido Emerson, companheiro, incentivador; aos meus filhos, raios de sol da minha vida, dedico este trabalho e minha vida: vocês são luz e motivação para que eu sempre siga em frente; ao meu avô Sebastião de Almeida Pirajá, in memoriam, que sempre me incentivou, torceu por mim, seu amor é incondicional, e o laço que nos une é eterno: de onde estiver, que sua luz continue iluminando meus caminhos, e que eu possa lhe orgulhar e retribuir todo seu amor; à minha querida avó Mara, que sempre me amou e apoiou, de quem guardo as melhores memórias da infância, obrigada pela torcida e por tudo!; aos meus pais, aos quais palavras seriam insuficientes para descrever todo meu sentimento de gratidão, pela formação que me proporcionaram, pela estrutura emocional que me concederam, pelo apoio e amor incondicional de sempre, por serem pessoas honestas, de caráter inabalável e exemplos do bem; e aos meus irmãos queridos, Guilherme, Rodrigo e Pedro, que são o elo que representa a compreensão e entendimento dos laços do passado com as emoções e planos do futuro, muito obrigada pela amizade, apoio e carinho! Aos meus amigos queridos, toda minha gratidão e amor eterno: Ana Maria Toro Saez, que, nos momentos de angústia vividos por mim, foi porto acolhedor, que tanto tem me ajudado na caminhada profissional e pessoal, muito grata, minha irmã! Aos colegas de Mestrado, em especial à Maiara Motta, menina com multifacetadas virtudes, que se tornou, além de colega, amiga, a qual pretendo guardar para todo o sempre. À Sandra e à Rosana, que, muito mais que funcionárias, são amigas preciosas e acolhedoras: obrigada pelo apoio! BUNHOLA, Gabriela Pirajá Cecilio. Políticas Públicas e Planejamento Familiar à Luz dos Direitos Fundamentais. 2019. 106 f. Dissertação de Mestrado em Direito – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2019. RESUMO O tema central do presente trabalho tem como escopo abordar as especificidades do Planejamento das Famílias Brasileiras na realidade ora vigente, a partir dos novos conceitos e concepções gerados através da evolução no campo do Direito das Famílias, marcada positivamente pela constitucionalização desta disciplina, que trouxe a superação da hipocrisia, do preconceito e da ideia do homem como centro norteador das famílias. Na área específica do planejamento familiar, o arcabouço legislativo está contido no art. 226, §7° da Carta Magna, que preconiza que o planejamento familiar é livre, baseado nos princípios da dignidade da pessoa humana, reafirmando o art. 1°, III, da Constituição Federal de 1988, e deve ser direcionado pelo princípio da paternidade responsável, bem como pela lei n. 9.263/96, que, em suma, dispõe sobre ações e procedimentos a serem realizados pelo sistema público de saúde, distribuição de métodos contraceptivos, realização de cirurgias de esterilização, e instituindo programas amplos da saúde sexual da população. Esta lei, no entanto, pouco dispôs sobre garantias à população atinentes à concretização de políticas públicas estatais no sentido de trazer informação direcionada ao planejamento familiar. Dessa maneira, a insuficiência de informação direcionada à assistência e educação na seara do planejamento familiar vem acarretando problemas relacionados ao crescimento demográfico e à má-formação psíquica das crianças advindas de uma estrutura familiar por vezes frágil e carente de informações. Como solução apresentada, impõe-se que o Estado ofereça políticas públicas e estrutura de órgãos públicos que propiciem o amparo da população por profissionais da saúde, pautado pela aplicação do Princípio da Intervenção Mínima do Estado nas Relações Familiares de forma moderada e, cumprindo o primado inserto no art. 226, caput, da Carta Magna, que estatui que o Estado tem como dever proteger a família, que constitui a base da sociedade, enfatizando, no §7° deste mesmo dispositivo que o Estado deverá propiciar recursos educacionais e científicos voltados para a concretização e exercício do direito ao livre planejamento familiar. A legislação supramencionada, que aborda sobre o planejamento familiar, em que pese tenha avançado na regulamentação do controle de fecundidade, tem apresentado pouca efetividade social, considerando os níveis demográficos problemáticos atuais e os níveis de rejeição da prole, conforme apontam as pesquisas atuais. Faz-se necessário, pois, que Estado deixe de atuar de forma simplista e redutiva, visando apenas ao controle de fecundidade, e cumpra com o principal mandado de otimização que originou a previsão constitucional e regulamentação infraconstitucional do planejamento familiar e da paternidade responsável, quer seja, o princípio da dignidade da pessoa humana, tornando concreta a proteção especial da família pelo Estado (art. 226, caput, da Constituição Federal) e conferindo embasamento para a estruturação das famílias brasileiras. Palavras-chave: planejamento familiar; direitos fundamentais; políticas públicas; princípio da paternidade responsável; direito à informação. BUNHOLA, Gabriela Pirajá Cecilio. Políticas Públicas e Planejamento Familiar à Luz dos Direitos Fundamentais. 2019. 106 f. Dissertação de Mestrado em Direito – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2019. ABSTRACT The central theme of this present work aims to point out the specificities of the brazilian family planning in the reality currently in force, from the new concepts and conceptions generated through evolution in the field of Family Law posively marked by the constitucionalisation of this subject, which has bring the overcoming of hyprocrisy, preconception and the idea of the men as the middle guiding of the families. In the specific area of family planning, backed by the protective housing of brazilian constitucion law, inserted on the art. 226, §7º of the Brazilian Constitution/1988 and should be directed by the responsible paternity principle, such as the law n. 9.263/96, that, briethly says about actions and procedures that has to be taken by the public system of health, distribution of contraceptives methods, performing sterilization surgeries and istituting wide programs of population´s sexual health. This law, althogh, has little arranged about guarantees to the population about concretization of public politics in the sense to bring information to people directed to family planning. The insufficient information directed to assistance and education in the area of family planning has been carrying problems related to demographic growth and to the bad psiquic formation of child coming from a fragile and lacking of information familiar structure. As a solution presented, it is necessary that the State provides public politics and structure of its organs to propitiate the protecton of population by health professionals, guided by the aplication of the principle of minimun intervention of State at the family relationships, moderately, fulfilling the primate inserted at the art. 226 of magnum card, that disciplines that the State has the duty to protect the family, which forms the basis of society, emphasizing, at the §7° of this same article that the State should provide educational resources and scientifics turned to concretization and exercideof the right to free family planning. The above mentioned legislation, that discuss about family planning, in spite of having advancedin the regulation of fertility control, has show little effectiveness, considering the problematic demographic levels nowadays and the levels of rejection of childs, according to current research. It is necessary that the State stops acting in a simplistic and reductive way, aiming only the fertility control, and observe the principal optimization warrant which originated the constitutional forecast and infraconstitutional regulation of family planning and responsible patternity, namely, the principle of dignity of human person, making concrete the special protetion to family by the State (art. 226 of Brazilian Federal Constitution) and providind a foundation for the structuring of brazilian families. Keywords: family planning; fundamental rights; public politics; principle of responsible paternity; right for information. LISTA DE SIGLAS ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental CPC – Código de Processo Civil MP – Medida Provisória STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça CF – Constituição Federal PF – Planejamento Familiar IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística PIB – Produto Interno Bruto OMS - Organização Mundial de Saúde CNPD – Comissão Nacional de População e Desenvolvimento PAISM – Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher A menos que modifiquemos a nossa maneira de pensar, não seremos capazes de resolver os problemas causados pela forma como nos acostumamos a ver o mundo. Albert Einstein SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................19 1. O PLANEJAMENTO FAMILIAR COMO FORMA DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ............................................................................................22 1.1 Planejamento familiar: conceito e evolução histórica no Brasil........................................22 1.2 Controle de Natalidade X Planejamento Familiar: comparação e diferenciação conceitual..................................................................................................................................33 1.2 Previsão e análise constitucional dos princípios relacionados ao planejamento familiar ..................................................................................................................................................36 1.2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.....................................................................36 1.2.2. Princípios do Livre Planejamento Familiar e da Paternidade Responsável ..................38 1.2.3 Princípio da Intervenção Mínima do Estado........................................................................................................................................42 1.2.3 Princípio do Mínimo Existencial .................................................................................. ...45 1.3 Princípios Científicos do Planejamento Familiar........................................................... .....46 2 DO DIREITO À INFORMAÇÃO E SEU ACESSO À POPULAÇÃO PARA A CONSCIENTIZAÇÃO DO PLANEJAMENTO FAMILIAR RESPONSÁVEL ............ 51 2.1 Do Direito à Informação aplicado ao Planejamento Familiar: Educação em Planejamento Familiar.....................................................................................................................................51 3 A PROTEÇÃO DA FAMÍLIA PELO ESTADO: CONCRETIZAÇÃO DAS GARANTIAS LEGAIS POR MEIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS .................................63 3.1 O Planejamento Familiar no Brasil: panorama atual e legislação aplicável.......................63 3.2 Da importância do Planejamento Familiar diante de dados estatísticos populacionais............................................................................................................................ 70 3.3 Estudos comparativos em Planejamento Familiar e Controle de Natalidade em Outros Países ...................................................................................................................................................76 3.4 Do papel do Estado na garantia dos direitos positivados: políticas públicas promocionais, preventivas e educativas............................................................................................................85 CONCLUSÃO.........................................................................................................................97 REFERÊNCIAS....................................................................................................................101 19 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como escopo abordar o tema do planejamento familiar como direito fundamental consagrado no art. 226, §7º, da Carta Magna, sob o enfoque das políticas públicas voltadas à concretização de referida garantia, com ênfase no arcabouço jurídico e legislativo presente no ordenamento brasileiro. A importância do desenvolvimento de trabalho com o tema em tela repousa no fato de que atualmente existem diversos entraves econômicos, morais e existenciais ligados à ausência de políticas públicas em planeamento familiar, como o grande número de crianças abandonadas pelos pais, a ausência de recursos alimentícios, água, terra, decorrentes do grande número populacional, e diversas famílias sem qualquer estruturação ou planejamento, atrapalhando o desenvolvimento das crianças. Daí a relevância das pesquisas realizadas para a elaboração deste trabalho, apontando possíveis soluções a serem adotadas pelo Estado no desenvolvimento das políticas públicas no projeto parental. Para que o projeto parental se concretize de acordo com as garantias normativas que o amparam, e se faça valer o exercício livre do planejamento familiar, com apoio educativo do Estado, faz-se necessário priorizar as políticas públicas voltadas para o assessoramento da população, oferecendo-se a esta recursos informativos e educativos, através de palestras voltadas a um público maior e de atendimentos individuais, prestados por médicos e enfermeiros, que atendam às peculiaridades que se fazem presentes em cada família, além da distribuição de métodos contraceptivos e medicamentos para os que apresentam problemas de fertilidade. Nesse sentido, o tema do presente estudo está intimamente atrelado à linha de pesquisa escolhida para o seu desenvolvimento, que aborda sobre a cidadania participativa nas políticas públicas. Dessa maneira, é estipulada uma inter-relação entre as políticas públicas com os direitos fundamentais, notadamente o direito fundamental ao planejamento familiar responsável, organizado e orientado. Para que se atinja este ideal, será imprescindível, pois, a análise deste direito em conjunto com o princípio da paternidade e da maternidade responsável, bem como com outros princípios, como o da intervenção mínima do Estado nas relações familiares, mas sobretudo com o princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1°, III, da Carta Maior (todos abordados no primeiro capítulo desta pesquisa). Para que se compreenda o tema, é necessário analisá-lo em uma linha do tempo, na qual será verificado o ínterim de tempo transcorrido entre as primeiras discussões, passando pelo surgimento da matéria e chegando à efetiva implementação da matéria como garantia legal. Isso 20 é possível através do estudo sobre a evolução histórica e mundial do planejamento familiar, realizado no início do capítulo primeiro deste trabalho. Além disso, importante salientar que, em razão da existência de recorrente confusão, tanto por parte dos leigos, quanto até mesmo pelos estudiosos, entre as expressões “controle de natalidade” e “planejamento familiar” - visto que a doutrina, muitas vezes, trata do tema “planejamento familiar” nomeando-o de forma errônea de “controle de natalidade” e vice-versa – será tecida, no presente estudo, uma distinção completa entre as expressões, diferenciando seu conceito e conteúdo. Ainda no primeiro capítulo, também serão apresentados todos os princípios correlatos ao tema objeto da presente pesquisa, para complementar e esclarecer o estudo. Ato contínuo, no segundo capítulo, expõe-se a garantia constitucional do direito à informação, mas em sua vertente específica, voltada ao planejamento da prole familiar, consistente no estudo sobre a educação em planejamento familiar, ressaltando a importância de o poder público oferecer recursos educativos e informativos transmitidos através de equipe de profissionais treinados e qualificados, que servirão de base para que os cidadãos possam elaborar suas escolhas, de forma livre e consciente, sobre a formação de sua prole e acerca do exercício dos seus direitos reprodutivos. Apresentam-se também, no mesmo capítulo, os aspectos negativos presentes nos países onde não há ou estão mal estruturados os programas sobre planejamento familiar. O capítulo terceiro, por sua vez, consiste na aplicação prática dos conhecimentos teóricos sobre planejamento familiar tecidos nos capítulos anteriores. Será que na atualidade, verifica-se a implementação efetiva dos programas de planejamento familiar no Brasil? Para responder a essa questão, são apresentadas e analisadas as taxas de fecundidade brasileiras, bem como dados comparativos do crescimento populacional no Brasil e em outros países, tanto subdesenvolvidos quanto desenvolvidos, sendo ainda analisada a legislação infraconstitucional relativa ao tema, destacando e esmiuçando os principais artigos da mesma. Na sequência, são apontados os principais entraves que inviabilizam a observância da garantia constitucional do exercício livre, consciente e amparado por recursos educativos atinentes ao planejamento familiar, para os quais são apresentadas possíveis soluções. São, ainda, analisados dados estatísticos populacionais que demonstram os problemas advindos do crescimento populacional acelerado, como a diminuição da terra agriculturável e dos recursos naturais, notadamente da água potável. Para trazer uma compreensão mais ampla e completa sobre o tema em comento, também no terceiro capítulo, é apresentada uma análise comparativa do planejamento familiar em outros países, tanto nos marcados por uma política demográfica extremista, como a China, quanto nos 21 em que há incentivo ao crescimento populacional, como vários países europeus. E não são apenas apontadas as características populacionais desses países, mas verificado o motivo de sua existência: por exemplo, os países desenvolvidos praticaram política de incentivo ao aumento de suas populações visando a aquecer seus respectivos mercados financeiros e econômicos. Em seguida, é estabelecida a importância de o poder público agir de forma proativa, para fazer valer as garantias legais atinentes ao planejamento familiar, o que se dá principalmente através de políticas públicas educativas e informativas referentes ao tema, e através do fornecimento de métodos contraceptivos, bem como por meio de medicamentos que auxiliem em tratamentos contra a infertilidade, o que gera ações de obrigação de fazer contra o Estado buscando o cumprimento desse direito, tão atrelado ao direito à saúde. Cabe ressaltar que, neste trabalho, são apontadas decisões de casos concretos relacionados ao descumprimento do dever estatal de garantir a realização dos direitos reprodutivo e de projeto parental. Será que o aumento excessivo da população é um fator negativo? Questão interessante abordada na pesquisa em tela diz respeito ao questionamento, feito por parcela da doutrina, quanto à viabilidade da teoria a favor da contenção do crescimento populacional, e da participação ativa dos governos em programas senão de controle de natalidade, no mínimo de planejamento familiar. Essa fatia minoritária dos estudiosos rechaça as fundamentações estatísticas que sinalizam a escassez de recursos naturais e terra agriculturável com o aumento demasiado da população, e sustenta que o crescimento populacional é saudável para o fomento da indústria e economia dos países. Por fim, salienta-se que serão utilizados como métodos para o desenvolvimento da presente dissertação de mestrado, inicialmente o método dedutivo-bibliográfico, o qual será pautado nas conclusões obtidas após análise detida de levantamento bibliográfico ligado ao tema. Serão tecidos posicionamentos e apontamentos obtidos a partir de vasta leitura de material bibliográfico relacionado ao planejamento familiar, aos princípios gerais relativos à temática, bem como aos estruturantes do Direito de Família. Serão utilizadas, como base orientadora dos aspectos formais, as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) e, como referência metodológica, a obra Apontamentos de Metodologia para Ciência e Técnicas de Redação Científica.1 1 ALVARENGA, Maria Amália de Figueiredo Pereira; ROSA, Maria Virgínia de F. P. do Couto. Apontamentos de metodologia para a ciência e técnicas de redação científica: monografias, dissertações e teses. 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 2003. p. 30 e s. 22 1 O PLANEJAMENTO FAMILIAR COMO FORMA DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 1.1 Planejamento familiar: conceito e evolução histórica no Brasil O Conceito de Planejamento Familiar vem sendo construído ao longo da evolução da humanidade e da ciência. Trata-se de um conceito médico-científico. Eis a definição dada pela doutrina especializada: Em sua expressão mais simples, Planejamento Familiar é a contracepção ligada à Saúde. É uma atividade de saúde que proporciona informações e meios, a fim de que os casais possam decidir livre, consciente e responsavelmente pelo número de filhos e época que desejarem ter, segundo a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS).2 O elemento conceitual traz importantes informações atinentes ao objetivo básico do planejamento familiar: trazer informações à população, isto é, o Estado, através de políticas públicas orientativas, deve proporcionar que toda a população se sirva de informação e orientação, através de palestras proferidas por profissionais especializados, e utilize os meios contraceptivos fornecidos gratuitamente pelo poder público. Além disso, referido conceito reafirma o previsto no art. 226, §7º da Carta Magna, que assim preceitua: §7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.3 Assim, temos que a definição apresentada segue os parâmetros determinados pelo texto constitucional, no que tange aos métodos informativos, bem como enfatiza a autonomia e liberdade de o próprio casal definir os rumos de sua família, sem qualquer intervenção dos órgãos públicos ou privados. Por sua vez, as obras literárias especializadas em planejamento familiar rotineiramente apresentam a distinção entre este instituto e o controle de natalidade. Senão vejamos: O Planejamento Familiar é uma política educativa que visa, sobretudo, a adequar o número de filhos para uma realidade sócio-econômica do casal. Já o controle de natalidade é uma imposição antinatalista, adotada em alguns países superpopulosos, com intuito de diminuir a taxa demográfica.4 2 ARAÚJO, F. F.; DI BELLA, Z. I. K. D. J. Anticoncepção e Planejamento familiar. São Paulo: Atheneu, 2014. v .4. p. 3. 3 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988. 4 VIEIRA, Luiz Barreto. Planejamento familiar. São Paulo: Mnêmio Túlio, 1995. p. 30. 23 A fonte supra referida ressalta o caráter educativo do instituto do planejamento familiar, e enfoca como pressuposto deste a condição econômica do casal, fator considerado determinante para as famílias decidirem o número de filhos que terão. Além disso, quando analisa a definição de controle de natalidade, baseia-se no termo imposição, por ser algo determinado, imposto, notadamente pelo Estado, com objetivo precípuo de diminuir a taxa demográfica, quer seja, o número de habitantes de dado país. Exemplo de país que, por ora5, adota o controle de natalidade é a China. É fundamental destacar, no entanto, que não apenas o fator econômico embasa as decisões dos casais acerca do planejamento familiar, mas outros fatores, citados pelos estudos atinentes ao planejamento familiar: O Planejamento Familiar visa a cada casal, particularmente, estudando suas condições psico-biológicas, sócio-economicas, ambientais, afetivas, morais e religiosa, e, se possível, suas relações com os demais membros da família. É um trabalho de responsabilidade que deve ser exercido, não só pelos órgãos do governo, como também pelas Associações de Bairro, de Casais, de Clube de Serviços, pelas Igrejas, Centros Espíritas e Associações Religiosas, sempre que possível com assistência médica.6 Ante o exposto, pode-se deduzir que são diversas as condições levadas em conta pelas famílias quando decidem o número da prole que formarão, além da questão financeira, as afetivas, morais (formação cultural de cada indivíduo), o histórico do casal no que tange ao seu relacionamento com os demais membros da família: por exemplo, se há uma boa relação da mulher com a mãe, se forma memórias afetivas positivas da maternidade, e se há vontade maior dessa mulher se tornar mãe Há ainda que ser citado como fator estruturante do projeto de parentalidade a formação religiosa do casal, como apontado pelos estudos especializados na temática: A consideração final que este art. nos permite fazer é que a religião é um fator importante em um programa que busque promover o planejamento familiar, principalmente quando o foco é dado no acolhimento da criança, ou seja, no planejamento para que filhos e filhas sejam amadas e acolhidas mesmo antes de sua concepção. Isso porque as religiões, ao apontar para a necessária harmonia do casal e sua responsabilidade para com os filhos, estão apontando para conteúdos específicos e práticos do planejamento familiar.7 5 Até a presente data, a China adota o controle de natalidade, mas, segundo o Jornal o Globo (https://oglobo.globo.com/sociedade/china-avanca-para-eliminar-totalmente-politica-de-controle-de-natalidade- 23018471, acesso em 28/12/2018), há indícios de que o Novo Código Civil do país, ao suprimir as referências à planificação familiar, estaria eliminando por completo a política de controle de natalidade, imposta há quatro décadas no referido Estado. 6 VIEIRA, op. cit., p. 30. 7 SANCHES, M. A. et al. Influência católica no Planejamento familiar: estudo sobre parentalidade responsável. Revista de Estudos da Religião, on-line, São Paulo, v. 18, n.2. p. 142, maio-ago, 2018. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/rever/article/view/38982/26442. Acesso em 29 jan. 2019. ISSN 1677-1222. https://oglobo.globo.com/sociedade/china-avanca-para-eliminar-totalmente-politica-de-controle-de-natalidade-23018471 https://oglobo.globo.com/sociedade/china-avanca-para-eliminar-totalmente-politica-de-controle-de-natalidade-23018471 24 Assim, é possível perceber que a formação religiosa exerce influência no planejamento familiar, na forma qualitativa, como citado acima, oferecendo maior estrutura para os casais darem amor e proteção à futura prole e também no aspecto quantitativo, quando, por exemplo, proíbe a utilização de métodos contraceptivos, contribuindo para famílias mais numerosas. Conforme salientado pelos estudos supra elencados, insta ainda acentuar que não cabe exclusivamente ao Estado instituir programas que auxiliem no projeto de parentalidade. É mister também das Associações, Clubes e Instituições Religiosas tratar do tema, ajudar a população, preferencialmente com auxílio médico, considerando que estes profissionais estão mais preparados e habilitados a tratar do tema e a oferecer apoio educativo na seara do planejamento familiar. Ainda traçando os elementos conceituais do planejamento familiar, este deve ser entendido no aspecto extensivo, não significando estritamente os programas que visem a evitar a prole, mas também o instituto que auxilia os casais que tenham problemas com a fertilidade. Nesse sentido, já afirmou a doutrina: Não se deve entender, por Planejamento Familiar, um programa unilateral para evitar filhos. Nele, também, se estuda a possibilidade de casais que não têm filhos, dito inférteis, de tê-los. E, caso não seja possível concebê-los por via biológica, trabalhar- se a possibilidade de adoção.8 Dessa forma, a implementação de políticas públicas na área do planejamento familiar, além de garantir que a população usufrua de forma digna do direito reprodutivo e de estruturação de sua família, possibilita que casais que não consigam procriar, nem mesmo por reprodução assistida homóloga ou heteróloga9, tenham acesso à formação de sua família através da adoção. É sabido que a ausência de planejamento familiar causa sérios problemas sociais. E temos, na realidade atual, uma população fértil, carente de meios educativos que forneçam amparo para a estruturação de um planejamento familiar responsável, conforme preconiza o texto constitucional no art. 226, §7°10, afirmação comprovada pelos dados estatísticos a seguir transcritos. Segundo estatísticas, 27 milhões de crianças brasileiras estão vivendo na miséria; em 95% das cidades do semiárido, a taxa de mortalidade infantil supera a média nacional, que é de 8 VIEIRA, Luiz Barreto. Planejamento familiar. São Paulo: Mnêmio Túlio, 1995. p. 31. 9 A reprodução assistida homóloga é aquela que utiliza apenas o material biológico (sêmen e óvulo) dos pais, submetidos à técnica de reprodução assistida. Por outro lado, a reprodução assistida heteróloga consiste na doação por terceiro anônimo de material biológico ou de embrião. 10 Ibid., p. 30. 25 33 mortes para cada mil crianças nascidas vivas, antes de completarem um ano de idade11; nessa mesma região, 46% das crianças são analfabetas, e 42% não têm acesso à água potável; de 80 a 100 mil crianças estão em abrigos à espera de adoção.12 E, ainda, de acordo com o Ministério da Educação, 1 milhão e 800 mil jovens entre 15 e 17 anos estão fora da escola.13 Além disso, conforme artigo extraído da Revista Eletrônica “Opinião e Notícia”: Cerca de 17% das mulheres brasileiras com idade entre 18 e 24 anos encerraram sua primeira gravidez em clínicas clandestinas de aborto. De acordo com uma pesquisa feita em parceria pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) com 4.634 jovens moradoras de Salvador, Rio de Janeiro e Porto Alegre, os fatores condição social e acesso à educação estão relacionados com a opção por interromper a gestação. Entre jovens com renda familiar superior a R$ 180, o número de abortos é quatro vezes maior do que as de menor renda e grau de escolaridade.14 Esses dados, que revelam os inúmeros problemas sociais acima relatados, como alta taxa de mortalidade infantil, exorbitantes índices de pobreza, más condições físicas e econômicas de desenvolvimento para as crianças e elevados números de abortos, notadamente entre as jovens mulheres, demonstram que, no Brasil, as garantias constitucionais e legais relacionadas ao Planejamento Familiar não vêm sendo observadas, ficando a população alheia ao direito fundamental, ao projeto parental estruturado e orientado. Se o planejamento familiar for de fato instrumentalizado e meios educativos sobre planejamento da prole disponibilizados para a população, os problemas sociais outrora elencados serão paulatinamente resolvidos. Esta é a conclusão das obras literárias especializadas no tema: O Planejamento Familiar é um direito básico, algo que as pessoas desejam mundialmente. Centenas de milhões de mulheres casadas manifestam o desejo de planejar suas famílias, mas não têm acesso à orientação, assistência médica e anticoncepcionais. Se atendermos o clamor dessas mulheres e incluirmos as centenas de milhões de homens e os quase 2 bilhões de jovens de 12 a 25 anos, que precisam urgentemente serem orientados e munidos de anticoncepcionais, teremos os seguintes benefícios: a) ao prevenir a gravidez repetida melhoraremos a saúde das mulheres. Hoje morrem 600.000 mulheres a cada ano de doenças relacionadas ao parto. Assim (...) reduziremos a mortalidade infantil em cerca de 25%, o que equivale a 3 milhões 11 ÉPOCA ONLINE. Miséria atinge 27 milhões de crianças brasileiras, diz relatório da Unicef. Disponível em: . Acesso em 29 jan. 2019. 12 MELLO, K.; YONAHA, L. O lado B da adoção. Revista Época. Editora Globo, nº 583, de 20 de julho de 2009. p.88 et s. 13 GOUVEIA, G. F. P. Um salto para o presente: a educação básica no Brasil. Revista SciELO, São Paulo, v. 14, n.1. jan.-mar., 2000. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102- 88392000000100003&script=sci_arttext>. Acesso em 29 jan. 2019. ISSN 0102-8839. 14 OPINIÃO & NOTÍCIA. Aborto clandestino é mais comum na classe média. Disponível em: . Acesso em 29 jan. 2019. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-88392000000100003&script=sci_arttext http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-88392000000100003&script=sci_arttext 26 de vidas a cada ano; b) estancaremos a disseminação da AIDS – diretamente, pelo acesso aos preservativos, e indiretamente, ensinando as mulheres a negociar o uso do preservativo pelo homem ou o uso do preservativo feminino pelas mulheres; c) reduziremos os abortos e as mortes resultantes de abortos realizados por pessoas não habilitadas (...); c) os países que investiram maciçamente ou aceitaram a ajuda de países ricos para o Planejamento Familiar, no início dos anos 60, sentem hoje seu efeito sobre a qualidade de vida. O crescimento populacional baixo ou quase zero desses países permite, hoje, que seus governantes tenham possibilidade de investir mais em educação e saúde per capita.15 O autor apresenta, supra, as vantagens obtidas pelos países que investem em políticas públicas na área do planejamento familiar: a paralização da disseminação do vírus HIV; a redução da mortalidade de mulheres e crianças no parto; a diminuição dos abortos e das mortes causadas por abortos, notadamente os realizados em clínicas clandestinas; o controle do crescimento populacional; e o aumento da qualidade de vida da população, sem contar com a redução da rejeição da prole, atenuando o número de menores abandonados. Evolução Histórica no Brasil O quadro demográfico brasileiro pode ser dividido em dois ciclos distintos: natalismo, conceituado como a ação característica de nascimento ou incentivo ao nascimento; e eunatalismo, que designa a boa conduta de nascimento ou nascimento equilibrado.16 O primeiro ciclo, natalismo, estende-se da posse do território brasileiro por Portugal, em 1500, até a década de 40. A mentalidade natalista desenvolvida no Brasil decorre de dois motivos principais: pelo fato de ser um país oriundo de herança de país colonizador, Portugal, e devido à extensão das costas brasileiras e à expansão para o interior, que tornou o país de dimensões continentais. Ademais, havia incentivo para o crescimento da população e a miscigenação com os povos conquistados, para fortalecer a posição do colonizador através dos laços sanguíneos. Era costume na época, também, a poligamia.17 No período compreendido entre 1500 e 1660, havia ameaça de outros países invadirem o Brasil; então, os lusitanos foram se apossando, progressivamente, de toda a extensão costeira do território brasileiro, e foi aumentando o povoamento da nova colônia, para afastar a cobiça de outras nações.18 15 NORT, Egon. Planejamento familiar: Solução Básica. Florianópolis: Ed. Do Autor, 2002, p. 23-24. 16 AGUINAGA, Hélio. A saga do Planejamento familiar no Brasil. Rio de Janeiro: Top Books, 1996. p. 19. 17 Ibid,, p. 19-20. 18 AGUINAGA, op. cit., p. 20. 27 A partir de 1800-1850, a população cresceu de forma moderada, devido à importação de escravos, que ocorria de forma crescente, do final do século XV até o final do século XIX. 19 No entanto, o advento de dois acontecimentos representou ameaça ao movimento pró- natalista: a Guerra do Paraguai (1864), que ceifara muitas vidas, e a abolição da escravatura (maio de 1888). Com o fim da mão de obra escrava, era necessário incentivar a natalidade e subsidiar a emigração europeia, o que, no último caso, foi feito com a utilização dos recursos provenientes do rendimento do café. Assim, chegaram ao Brasil, até o início da primeira guerra mundial, em 1914, cerca de 5 milhões de imigrantes de diversas nacionalidades, notadamente italianos, portugueses, alemães e poloneses. O primeiro recenseamento nacional, realizado no ano de 1872, apontou população de cerca de 10 milhões de habitantes.20 Até 1930, a população brasileira concentrava-se na orla marítima e a maioria nas capitais estaduais. A partir de então, o crescimento natural começou a aumentar, acentuando-se na década de 40 pela queda na taxa de mortalidade. A população brasileira passou de 41 milhões de habitantes, em 1940, para 140 milhões, em 1990.21 Ocorre que o governo não se sensibilizou com esse grande aumento populacional, não buscou medidas ligadas ao planejamento familiar: “não houve, por parte das autoridades governamentais, sensibilidade apreciável para sentir a premência de medidas preventivas para coibir o crescimento demográfico excessivo e desordenado que causava a deterioração da qualidade de vida da população". (AGUINAGA, 1996, p. 22). Em 1965, surgiu a Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar no Brasil (Bemfam), fundada por médicos, com o precípuo de diminuir o número de abortos provocados através do fornecimento de informações sobre os métodos anticoncepcionais. A Bemfam era apoiada pela Federação Internacional do Planejamento Familiar.22 O Presidente desta Instituição, Walter Rodrigues, assim escrevera sobre o Planejamento Familiar: O Planejamento Familiar é um instrumento da assistência materno-infantil e advém de um processo de informação e educação aos casais e à população em geral, sobre a reprodução, a família, a importância da família na comunidade, o papel da mulher, o papel do pai e do filho dentro desse contexto, e, finalmente, sobre as repercussões de tudo isso na comunidade.23 19 AGUINAGA, op. cit., p. 21. 20 Ibid., p. 21. 21 Ibid., p. 22. 22 ARAÚJO, F. F.; DI BELLA, Z. I. K. D. J. Anticoncepção e Planejamento familiar. São Paulo: Ateneu, 2014. v. 4. p. 7. 23 SOBRINHO, Délcio da Fonseca. Estado e população: uma história do Planejamento familiar no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 1993. p. 172. 28 É possível notar, através do elemento conceitual de Planejamento Familiar proposto pelo Presidente do Bemfam, que aparecem as primeiras referências sobre os métodos informativo e educativo, elementares ao conceito de Planejamento Familiar. Até meados dos anos 1970, havia a preocupação pró-natalista (a favor do aumento populacional) por parte do governo militar em ocupar os vazios demográficos do país, levando ao I Plano Nacional de Desenvolvimento, do ano de 1972. O contrário ocorria no exterior, onde a tendência era de contenção populacional, com fundamento nas teorias neomalthusianas, as quais ligavam a miséria ao alto crescimento demográfico.24 Questão contraditória ocorria nessa época (década de 70) porque, apesar de não haver programas governamentais de controle de natalidade ou políticas públicas na área do planejamento familiar, era permitido a entidades não governamentais aplicar medidas de controle demográfico, por meio de programas do governo que distribuíam anticoncepcionais orais e realizavam a laqueadura tubária em larga escala.25 A primeira vez em que o Brasil se preocupou com a questão demográfica e com o planejamento familiar, em 1974, restou inócua. Senão vejamos: A posição brasileira no I Congresso Mundial de População, em Bucareste, em 1974, que advogava o estabelecimento de política soberana para o controle da natalidade e as seguidas manifestações dos presidentes da República não resultaram em medidas capazes de tornar o planejamento familiar acessível a todos. Com mais objetividade, os antinatalistas tornaram-se aptos a oferecer os métodos anticonceptivos à população, com a ferrenha oposição de grupos ultrapassados.26 O governo brasileiro, em tal conferência, refutava o planejamento familiar com o argumento de que o Brasil não poderia ser incluído entre os países onde havia “excesso de população”, pois possuía “imensos territórios vazios” a ocupar.27 Assim, a vastidão territorial do país (critério físico) era o único fundamento de que se servia o governo brasileiro para justificar a desnecessidade da instituição de políticas públicas na área do planejamento familiar. No entanto, por outro lado, além de ter sido a primeira vez em que o governo brasileiro assumia o planejamento familiar como direito humano fundamental28, o Estado percebeu que 24 ARAÚJO, op. cit., p. 7. 25 Ibid., p. 7. 26 NORT, E. Planejamento familiar: solução básica. Florianópolis: Ed. Do Autor, 2002. p. 23-24. 27 SOBRINHO, D. da F. Estado e População: uma História do Planejamento familiar no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 1993. p. 136. 28 SOBRINHO, op. cit., p. 146. 29 tinha como dever prestar informações e oferecer métodos de contracepção às uniões familiares. Nesse sentido, advoga a doutrina especializada no assunto: O governo brasileiro, ao participar da Conferência Mundial de População, em Bucareste (1974), manteve-se ainda fiel à posição de que o Brasil não poderia ser incluído entre os países onde havia “excesso de população”, pois possuía “imensos territórios vazios” a ocupar. Mas admitiu, ao mesmo tempo, que fornecer às famílias informações e meios contraceptivos era dever do Estado.29 Após o surgimento da Bemfam, em 1965, advieram outras entidades, até que, em 1981, foi criada a Associação Brasileira de Entidades de Planejamento Familiar (Abef). Ocorre que, nessa ocasião, havia confusão pelas autoridades entre os argumentos controlistas de natalidade com os de planejamento familiar.30 Isto é, o conceito de planejamento familiar restringia-se, em referida época, exclusivamente a efetuar o controle de natalidade, sendo que aquele conceito é muito mais amplo, e transcende os métodos de controle populacional, como será visto mais adiante. O Presidente Figueiredo, cujo mandato deu-se no interregno entre 15/03/1979 a 15/03/1985, fez referência à questão populacional e à necessidade de ser estabelecida política clara do governo para contenção do crescimento demográfico, havendo dito, em reunião com o ministério: Nas atuais condições do Brasil, o sucesso dos programas de desenvolvimento social, depende, em grande parte, do planejamento familiar, respeitada a liberdade de decisão dos casais. Entretanto, os princípios e os métodos da paternidade responsável são bem mais conhecidos pelas classes de maior renda, mas são ignorados precisamente pelos economicamente menos favorecidos. Compete ao Estado, portanto, estender esse conhecimento a todas as famílias.31 O discurso presidencial já apresentara um avanço: reconhecer que o planejamento familiar deve respeitar o direito de escolha e a liberdade dos casais, e demonstrava a intenção do governo de levar os princípios e métodos da paternidade responsável às famílias de renda menor, democratizando o acesso aos métodos informativos. Foi apenas no ano de 1984, na II Conferência Mundial sobre População, realizada na cidade do México, que o governo brasileiro de fato assumiu o compromisso de fornecer meios de informações às famílias, para efetuarem livremente o seu planejamento familiar. Ato contínuo, fora criado o PAISM – Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher – atuando especificamente em Centros de Saúde em 1983, regulamentado em 1986, normatizado em 1988 29 SOBRINHO, op. cit., p. 136. 30 ARAÚJO, F. F.; DI BELLA, Z. I. K. D. J. Anticoncepção e Planejamento familiar. São Paulo: Atheneu, 2014. p. 7. 31 AGUINAGA, H. A saga do Planejamento familiar no Brasil. Rio de Janeiro: Top Books, 1996, p. 134-135. 30 e com duas revisões em 1992 e 1994. Dessa forma, o governo assumiu a assistência social e a assistência integral à saúde da mulher.32 O PAISM, ligado ao Ministério da Saúde, apresentava como escopo oferecer, na rede de serviços públicos de saúde, informações e meios contraceptivos às mulheres e aos casais que os necessitassem.33 Os objetivos do PAISM são: Atender a mulher, através de atividades de assistência integral clínico-ginecológica e educativa, voltadas para o controle pré-natal, do parto e do puerpério; a abordagem dos problemas presentes desde a adolescência até a terceira idade; o controle das doenças transmitidas sexualmente, do câncer cérvico-uterino e mamário e a assistência para a concepção e a contracepção.34 Assim, após a implantação do PAISM, as teorias, esboços e mera vontade governamental em implementar programas voltados ao planejamento familiar tornaram atos práticos, concretizaram-se. Esta é a conclusão apontada pela doutrina: O Surgimento do PAISM foi seguido de importante decisão do INAMPS – Instituto de Assistência Médica e Previdência Social, que, em 1986, assumiu implantar, em sua rede nacional de atendimento, serviços e orientações sobre contracepção, priorizando os métodos anticoncepcionais considerados naturais. A partir daí, a maioria das Secretarias Estaduais de Saúde, em convênio com o INAMPS, passou a buscar formas de colocar em prática o que havia sido formalmente decidido.35 No contexto evolutivo em análise, o próximo marco histórico importante para a concretização do direito fundamental ao planejamento familiar adveio com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que tratou de forma completa e satisfatória da temática em voga, notadamente nos seus arts. 196 e 226, §7°: Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.36 Art. 226, §7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado 32 ARAÚJO, op. cit., p. 8. 33 SOBRINHO, D. da F. Estado e população: uma História do Planejamento familiar no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 1993. p. 21. 34 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Nacional de Assistência à Saúde. Assistência ao Planejamento familiar. Brasília, DF, 1992. 35 SOBRINHO, op. cit., p. 21. 36 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília,1988. 31 propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.37 O art. 196 da Carta Magna prioriza o direito à saúde, estendendo-o a todas as pessoas da população, e transferindo ao Estado o dever de garanti-lo, através de políticas públicas. O dispositivo 226, §7º, por sua vez, representa o principal fundamento do tema do planejamento familiar, que se sustenta nos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, CF) e da paternidade responsável, e determina que o Estado disponibilize recursos educacionais e científicos para o exercício do livre planejamento familiar, sendo que, ao mesmo tempo, proíbe qualquer tipo de ingerência estatal ou de órgãos públicos ou privados nas decisões das famílias acerca do planejamento de sua prole. Até o ano de 1996, a esterilização cirúrgica era considerada ilegal, por se enquadrar no art. 129 do Código Penal. Entretanto, ela difundia-se de forma acelerada a partir da década de 1970. Não havia na lei brasileira proibição expressa à esterilização, mas esta era considerada como lesão corporal grave com inutilização de função. Tal cirurgia passou, então, a ser realizada de forma velada concomitantemente com as cesáreas.38 Essa prática, ocorrendo indiscriminadamente, levou à criação de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), a qual trouxe posterior regulamentação legislativa. São estes os ensinamentos apontados pelos estudos voltados ao tema: Entretanto, a alta prevalência da esterilização no Brasil motivou a instauração de uma outra Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), em 1991, para investigar as causas da “esterilização em massa” das mulheres brasileiras e se existia maior probabilidade de esterilização das mulheres negras. Os trabalhos da CPI mostraram que não existia discriminação racial – já que as mulheres brancas tinham maior probabilidade de estarem esterilizadas – mas apontou para a necessidade da regulamentação da prática de esterilização feminina e masculina.39 Referida necessidade de regular a prática de esterilização feminina e masculina culminou também com a regulamentação do art. 226, §7°, da Carta Maior, o que ocorreu com o advento da Lei n. 9.263/96: 37 BRASIL, Constituição 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado. 1988. 38 ARAÚJO, F. F.; DI BELLA, Z. I. K. D. J. Anticoncepção e Planejamento familiar. São Paulo: Atheneu, 2014. v. 4. p. 9. 39 CAVENAGHI, Suzana. Female sterilization and racional issues in Brazil. Thesis – University of Texas at Austin. Austin, 1997. 100 f. passim. 32 Finalmente em 1996, o Estado brasileiro assume a tarefa de promover o planejamento familiar gratuito, por meio da Lei n. 9.263/96, e diminuir a prática indiscriminada da esterilização, permitindo ao casal obter todas as informações sobre os diferentes métodos anticonceptivos para optar pelo mais adequado.40 De forma resumida, a legislação supracitada conceitua o planejamento familiar, no art. 2°; veda o controle demográfico (art. 2°, parágrafo único); transfere ao Estado o dever de prestar informação na área do planejamento familiar (art. 5°); estipula requisitos e impõe vedações relacionadas à esterilização cirúrgica (art. 10); dentre outras determinações, que serão analisadas mais adiante no presente trabalho. No dia 11 de fevereiro de 1999, foi editada a Portaria n. 48, visando a democratizar o acesso da população menos favorecida economicamente aos métodos de regulação de fecundidade, constituindo objetivo de referido ato estabelecer normas de funcionamento e mecanismos de fiscalização para a execução de ações de planejamento familiar pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Assim, o Governo Federal passou a se comprometer com o oferecimento de métodos contraceptivos para os Estados e Municípios.41 Durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff, que perduraram de 2002 a 2016, não foram conquistados grandes avanços nas políticas públicas voltadas à saúde no Brasil. Embora, no governo Dilma, houvessem sido cogitadas propostas que visassem ao fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), muitas delas não foram efetivadas, podendo ser citado como único avanço em referida seara o programa “Mais Médicos”, caracterizado como programa de incentivo à vinda de médicos do exterior para o Brasil, para suprir a ausência do serviço médico nos municípios interioranos e nas grandes cidades do país.42 No contexto atual, há uma preocupação do governo em implementar e apoiar as políticas de planejamento familiar. Antes de ser eleito Presidente, Jair Bolsonaro, em entrevista, afirmou: Não estou autorizado a falar isso, que botei na mesa, mas eu gostaria que o Brasil tivesse um programa de planejamento familiar. Um homem e uma mulher com educação dificilmente vão querer ter um filho a mais para engordar um programa social. (Jair Bolsonaro, Presidente, 63 anos).43 40 ARAÚJO, op. cit., p. 9. 41ALVES, José Eustáquio Diniz. O Planejamento familiar no Brasil. Disponível em: . Acesso em 11 fev. 2019. 42 SILVA, Camila Vitória da. Direitos sexuais e reprodutivos da mulher: o Planejamento familiar em questão. 2017. Dissertação (Trabalho de Conclusão de Curso em Serviço Social) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. p. 47. 43 BOLSONARO, Jair. Jair Bolsonaro: depoimento [jun. 2018]. Entrevistador: Ranier Bragon. Entrevista concedida ao Jornal Folha de São Paulo online. Disponível em: . Acesso em fev. 2019. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/06/bolsonaro-defendeu-esterilizacao-de-pobres-para-combater-miseria-e-crime.shtml https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/06/bolsonaro-defendeu-esterilizacao-de-pobres-para-combater-miseria-e-crime.shtml 33 Infelizmente, interpretando as palavras do Presidente, entende-se que, para o mesmo, a importância do programa de planejamento familiar tem como objetivo precípuo economizar os recursos do governo com planos implantados para a população, como por exemplo o Bolsa Família. Diminuindo a população, os gastos seriam reduzidos. Mas, excepcionando-se o fator motivador de implementação das políticas públicas em planejamento familiar, espera-se que essa promessa governamental seja posta em prática, viabilizando não apenas métodos contraceptivos à população, como já determinado pela Portaria n. 48/99 (já mencionada anteriormente), mas disponibilizando recursos educativos à população que instruam e auxiliem no projeto parental dos brasileiros. 1.2 Controle de Natalidade X Planejamento Familiar: comparação e diferenciação conceitual O controle de natalidade é uma política extrema, que visa a reduzir os níveis populacionais, incentivando o uso indiscriminado de diversos meios contraceptivos, inclusive a esterilização e o aborto: É uma filosofia de contenção da natalidade com o intuito de diminuir a taxa demográfica. É uma exigência política que alguns países adotam, como medida extrema para conter a taxa de nascimento. Para alcançar esse objetivo quaisquer meios anticoncepcionais são válidos, inclusive o aborto e a esterilização em massa do homem e da mulher.44 Referida política representa uma afronta e ameaça aos direitos fundamentais do ser humano, sobretudo o direito de escolha (ter filhos ou não, a quantidade de filhos desejada), atrelado ao direito à liberdade, preconizado no art. 5°, caput, da Carta Magna. Além disso, há ofensa direta ao princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1°, III, da CF, por ferir a autonomia reprodutiva da pessoa humana. A doutrina a seguir citada comunga do mesmo entendimento acerca do controle de natalidade: Na prática, é um programa que fere um direito de família tirando a liberdade dos pais na opção de escolherem livremente, com responsabilidade, o número de filhos que desejarem. Além disso, não se faz o controle de população com sacrifício de vidas humanas.45 44 VIEIRA, L. B. Planejamento familiar. São Paulo: Mnêmio Túlio, 1995. p. 29. 45 VIEIRA, op. cit., p. 29. 34 O planejamento familiar, por outro lado, resta bem definido no art. 2° da Lei n. 9.263/96 como o conjunto de ações de regulação de fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal. O mesmo artigo, no parágrafo único, proíbe que as ações para regular a fecundidade sejam utilizadas como forma de controle demográfico. Isto é, o governo e nenhuma instituição pública ou privada podem, jamais, compelir as mulheres a realizarem cirurgia de esterilização, ou a fazer abortos, pois esses atos seriam voltados ao controle de natalidade, política extremista notadamente rechaçada no Brasil. Reforçando a diferenciação entre os dois conceitos, a doutrina já teve a oportunidade de se posicionar: O Planejamento Familiar é uma política educativa que visa, sobretudo, a adequar o número de filhos para uma realidade sócio-econômica do casal. Já o controle de natalidade é uma imposição política antinatalista, adotada em alguns países superpopulosos, com intuito de diminuir a taxa demográfica. 46 Assim, enquanto o controle de natalidade, que já foi adotado em países como a China, Índia e Irã, denota uma forma coercitiva, do Estado, de controlar o aumento populacional, entrando numa esfera particular protegida pelos direitos humanos e fundamentais, e inclusive os violando, o conceito de planejamento familiar, por outro lado, implica em uma atitude de abstenção do Estado, de não intervir na decisão sobre o número de filhos e sobre ter ou não filhos, respeitando o direito individual de escolha, e em uma atitude proativa, no sentido do dever do Estado de oferecer à população recursos educativos, métodos contraceptivos e prestar informações, através de palestras e cursos ministrados por pessoal capacitado, isto é: colocando em prática as políticas públicas voltadas ao exercício desse direito. A seguir, transcrevemos uma diferenciação conceitual mais detalhada entre o planejamento familiar e o controle de natalidade. Senão vejamos: Ao nos referirmos ao planejamento familiar, o entendemos como o exercício do direito da mulher ou do casal à informação, à assistência especializada e ao acesso a todos os recursos que lhes permitam a opção livre e consciente por ter ou não filhos, pelo espaçamento e número de gestações e pelo método anticoncepcional mais adequado aos seus desejos e condições orgânicas, sem coação de qualquer origem. Ao nos referirmos a controle de natalidade, o entendemos como a interferência do Estado sobre a vida da mulher, induzindo-a a controlar sua capacidade reprodutiva pela diminuição da prole, por razões de ordem política, social, econômica ou demográfica, quer através de uma política oficial de população, quer por mecanismos indiretos, tais como: interferência externa por pressões políticas; atuação de ONGs (Organizações- Não-Governamentais); interesses eleitoreiros.47 46 Ibid., p. 30. 47 COELHO, E. A. C. et al. O Planejamento familiar no Brasil no contexto das políticas públicas de saúde: determinantes históricos. Rev. Esc. Enf. USP, on-line, v. 34, n.1. p. 37-44, mar. 2000. Disponível em: . Acesso em 13 fev. 2019. ISSN 1980-220x. 35 Dessa forma, o planejamento familiar é uma política ampla, não intervencionista, garantidora de direitos fundamentais, calcada no direito à informação, que exige ação estatal, mas ao mesmo tempo delega à mulher, ao homem, e ao casal, o direito de escolha, fundado na autonomia, sobre os moldes de formação da família. O controle de natalidade, por outro lado, resta em um ato de retrocesso, que visa a conter o crescimento populacional, tolhendo o direito de escolha do casal, da família, violando os direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana destes sujeitos. Os termos planejamento familiar e controle de natalidade são muitas vezes confundidos e utilizados como sinônimos, pois confere-se ao primeiro instituto um caráter repressor às atividades reprodutivas, o que é uma inverdade. Assim, vejamos: Muito se tem falado sobre planejamento familiar utilizando-se de uma linguagem repressora às atividades reprodutivas. Isto pois, a reprodução vem sendo tratada como uma ameaça sócio-econômica e, há quem atribui ao controle de natalidade, a característica de principal solução para deter o avanço demográfico. A diferença entre ambas se deve à sua finalidade última. Enquanto o controle de natalidade visa uma ação puramente controladora sobre o crescimento demográfico, o planejamento familiar alia-se à autonomia da pessoa, na medida em que esta detém subsídio para o exercício pleno de seus direitos reprodutivos, através de uma paternidade responsável.48 Outra autora apresenta de forma bem clara e didática a distinção entre controle de natalidade e planejamento familiar, sustentando que: A denominação “controle de natalidade” vulgarizou-se, como se fosse o rótulo para a ação de uma pessoa para controlar sua capacidade reprodutiva, mas, pouco depois, considerou-se que tal termo seria inadequado politicamente, porque sugeriria o caráter compulsório de definição de quantos filhos um casal pode ter. Optou-se, assim, pela denominação planejamento familiar, que evidenciaria o aspecto positivo de que a pessoa – individualmente – definiria com soberania a época do nascimento dos filhos e o seu número. Além disso, seria importante estabelecer que planejamento familiar seria uma atividade de saúde, que existiria para melhorar as condições de vida das pessoas, o que elimina, ao mesmo tempo, a impressão negativa de que alguém está interferindo no comportamento reprodutivo das pessoas.49 Diante do exposto, podemos concluir que o planejamento familiar está intimamente atrelado ao exercício da paternidade responsável e da autonomia de vontade humana. Esse 48 NASCIMENTO, Marcio Muniz. Controle de natalidade como violador da dignidade humana. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, ano XXI, n. 172, maio 2018. Disponível em: . Acesso em 14 fev. 2019. ISSN 1518- 0360. 49 RODRIGUES, G.C. Planejamento familiar. São Paulo: Ática, 1990. p. 34-35. 36 direito implica deveres prestacionais por parte do Estado, de oferecer recursos educativos voltados para o assessoramento e educação da população, criando bases estruturais para que esse exercício seja pleno e desempenhado de forma responsável. Por sua vez, o controle de natalidade tem um caráter mais estrito, considerando que seu único objetivo é estagnar ou diminuir o crescimento populacional. 1.3 Previsão e análise constitucional dos princípios relacionados ao planejamento familiar: 1.3.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto no art. 1°, III, da Constituição Federal, considerado “superprincípio” ou “sobreprincípio”, pelo fato de anteceder e orientar os demais, tem como cerne proteger o ser humano como um todo, garantir sua integridade física e psíquica, honra, intimidade, liberdade de escolha. Sobre a superioridade deste postulado, discorreu de forma clara Rodrigo da Cunha Pereira: A dignidade é um macroprincípio sob o qual irradiam e estão contidos outros princípios e valores essenciais como a liberdade, a autonomia privada, cidadania, igualdade e alteridade. É, portanto, uma coleção de princípios éticos. Isso significa que é contrário a todo nosso direito qualquer ato que não contenha como fundamento a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa e o pluralismo político (...). É a noção de dignidade e indignidade que possibilitou pensar, organizar e desenhar os direitos humanos.50 O princípio da dignidade humana é hoje um dos esteios de sustentação dos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Não é mais possível pensar em direitos desatrelados da ideia e conceito de dignidade. Embora essa noção esteja vinculada à evolução histórica do Direito Privado, ela tornou-se também um dos pilares do Direito Público, na medida em que é o fundamento primeiro da ordem constitucional e, portanto, o vértice do Estado de Direito.51 É, pois, um princípio amplo, que abrange e tem aplicação em diversos espectros jurídicos. No tema do presente estudo, este postulado instrumentaliza-se no sentido de conferir às famílias a liberdade de constituir suas proles, delimitando o número de filhos que desejar, 50 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 112-113. 51 CUNHA, Alexandre dos Santos. Dignidade da pessoa humana: conceito fundamental do direito civil. In: MARTINS COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 260. 37 com auxílio das políticas públicas informativas direcionadas ao assessoramento do planejamento familiar. Representa dignidade possibilitar à mulher dispor de seu corpo conforme entender, ter o número de filhos que desejar, utilizar dos métodos contraceptivos que melhor atender suas necessidades. Em suma, a liberdade de escolha no planejamento familiar é a concretização viva do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. O fato de o ser humano ser considerado um ser racional, pensante, e dono de sua própria história lhe confere o poder de escolha, de decisão sobre o rumo que deseja traçar sua vida, decidir se quer ou não ter filhos, limitar a prole conforme seu livre poder decisório. Esta é a face do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana aplicável ao Livre Planejamento Familiar. A dignidade da pessoa humana está tão atrelada ao planejamento familiar que a própria Constituição Federal, em seu art. 226, dispõe, no § 2°, os referidos princípios e direito de forma conjunta: § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. No que tange à importância da promoção do Princípio da dignidade humana pelo Estado no planejamento familiar, doutrina de forma muito oportuna Maria Amélia Belomo Castanho: Pensando o conteúdo da dignidade a partir das discussões suscitadas neste capítulo, observa-se que, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado assumiu o compromisso formal de respeitar a pessoa e evitar a violação de direitos decorrentes da dignidade da pessoa humana. Nesse contexto insere-se o planejamento familiar, direito que guarda íntima relação com a dignidade da pessoa humana, e é justamente nela que o Estado encontra limites e deveres.52 Instrumentalizando-se de forma responsável o planejamento familiar, garante-se, consequentemente, o direito à dignidade da pessoa humana do menor, que, nascendo em uma família estruturada (que pensou em fatores educacionais, econômicos, antes da decisão da maternidade), na qual tenha havido planejamento anterior ao seu nascimento, terá resguardada sua dignidade humana. Nesse sentido, ensina-nos Valéria Silva Galdino Cardin: A dignidade do menor também deve ser preservada e pode ser descrita como um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico precisa assegurar. Decorre do direito que todo ser humano tem de ser respeitado em sua integridade física, psicológica e espiritual, assegurando-se assim os direitos da personalidade. Estes se apresentam como um conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa.53 52 CASTANHO, M. A. B. Planejamento familiar: o Estado na construção de uma sociedade inclusiva e a participação social para o bem comum. Curitiba: Juruá Editora, 2014. p. 60. 53 CARDIN, Valéria Silva Galdino. Do Planejamento familiar, da paternidade responsável e das políticas públicas. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/223.pdf>. Acesso em jun. 2018. http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/223.pdf 38 Do exposto, é possível concluir que a eficiência nas políticas públicas voltadas ao planejamento familiar possibilita que se garanta a dignidade humana tanto dos pais, genitores, quanto dos filhos. Isto é, o Estado, através de políticas públicas efetivas voltadas a oferecer à população suporte na educação e informação em planejamento familiar, propiciará que as famílias se estruturem de forma digna. 1.3.2 Princípios do Livre Planejamento Familiar e da Paternidade Responsável Avançando na análise dos princípios que importam para o estudo do presente tema, serão esmiuçados os Princípios do Livre Planejamento Familiar e da Paternidade Responsável, que serão tratados de forma conjunta, considerando inclusive que sua interdependência restou fixada no § 7° do art. 226 da Carta Magna, quando este dispõe que o postulado do livre planejamento familiar é fundado no da paternidade responsável. Nesse sentido, reza expressamente o Texto Maior: “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”. (§7º, art. 226, CF). Nota-se que o legislador preocupou-se com a questão do planejamento familiar, em razão do alto crescimento demográfico do país e da verificação do grande número de famílias brasileiras que surgem à tona sem qualquer planejamento, demandando custos dispendiosos ao Estado e implicando na formação de famílias sem base estrutural e carente de condições econômicas e culturais para criar a prole. Nesse sentido, o propósito do planejamento familiar é, sem dúvida, evitar a formação de núcleos familiares sem condição de sustento e de manutenção. Há de se levar em conta, ainda, os problemas que decorrem, naturalmente, do crescimento demográfico desordenado e, por isso, ao Poder Público compete criar recursos educacionais e científicos para a implementação do planejamento familiar.54 A decisão sobre os critérios e modo de formação familiar, sobre ter ou não filhos, sobre o número de filhos que constituirão a família, compete exclusivamente ao casal. É, pois, matéria que cabe à família decidir. No entanto, como disposto no art. 226 da Carta Magna, incumbe ao 54 ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 42. 39 Estado propiciar meios para que este direito ao livre planejamento familiar seja devidamente exercido. O Princípio da Paternidade Responsável, por sua vez, antecede ao nascimento da criança. Isto porque, como dito alhures, ele é fundamento e base na qual se estrutura a liberdade do planejamento familiar. A conscientização dos ônus e deveres oriundos da maternidade e paternidade devem se fazer presentes antes da decisão final de procriação: trazer uma criança ao mundo é fato que demanda, além de sensato planejamento, imensa responsabilidade e cuidados. Ser mãe e pai hodiernamente representa tarefa árdua, que exige dedicação, tempo, cuidados, gastos financeiros, e uma série de deveres morais, educacionais e de conduta, a serem repassados à prole. Diante de todos esses encargos e condições, a paternidade exige o adequado planejamento familiar. O Princípio da Paternidade Responsável também encontra guarida no art. 229 da Carta Maior, que preleciona: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Nas linhas a seguir transcritas, Rodrigo da Cunha Pereira apresenta uma análise interessante do tema, entrelaçando o postulado da paternidade responsável com outros valores e princípios: A paternidade responsável é um desdobramento dos princípios da dignidade humana, da responsabilidade e da afetividade. Na verdade, ela está contida nesses outros princípios norteadores e a eles se mistura e entrelaça. Merece ser considerada um princípio destacado e autônomo em razão da importância que a paternidade/maternidade tem na vida das pessoas. A paternidade é mais que fundamental para todos nós. Ela é fundante do sujeito. A estruturação psíquica dos sujeitos se faz e se determina a partir da relação que ele tem com seus pais. Eles devem assumir os ônus e bônus da criação dos filhos, tenham sido planejados ou não. Tais direitos deixaram de ser apenas um conjunto de competências atribuídas aos pais, convertendo-se em um conjunto de deveres para atender ao melhor interesse do filho, principalmente no que tange à convivência familiar.55 Assim, exercer a pater e maternidade responsáveis transcende o campo de competências dos genitores, constituindo-se em verdadeiros deveres a serem observados no exercício de tais funções, para assim ser observado o princípio do melhor interesse da criança, insculpido nos arts. 1° e 227, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Insta ainda salientar, quanto ao princípio em tela, que ele transcende as relações privadas, atingindo interesse estatal, “[...] na medida em que a irresponsabilidade paterna, 55 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 251-252. 40 somada às questões econômicas, tem gerado milhares de crianças de rua e na rua. Portanto, é um princípio que se reveste também de caráter político e social da maior importância”.56 Os reflexos do descaso do Estado em fomentar políticas públicas voltadas ao planejamento familiar gerou graves consequências sociais, como o alto e desordenado crescimento demográfico e o surgimento de famílias em lares despreparados e desestruturados, fatores que ocasionam como consequência, entre outras, desemprego e falta de preparo emocional dos futuros adultos. Em decorrência dessas mazelas, houve a preocupação do legislador em prever que o Estado deva agir proativamente com ações que propiciem e auxiliem o livre exercício do planejamento familiar. Há que ressaltar ainda, neste ponto, a íntima interligação entre a doutrina da proteção integral à criança, o princípio da paternidade responsável e o planejamento familiar: No campo do planejamento familiar, logicamente que o princípio do melhor interesse da criança ganha relevo, diante da priorização dos seus interesses e direitos em detrimento dos interesses de seus pais, a impedir, assim, que a futura criança venha a ser explorada econômica ou fisicamente pelos pais, por exemplo [...] Pode-se considerar que no espectro do melhor interesse da criança não se restringe às crianças e adolescentes presentes – na adjetivação normalmente adotada na legislação brasileira – mas abrange também as futuras crianças e adolescentes, fruto do exercício consciente e responsável das liberdades sexuais e reprodutivas de seus pais. Trata-se, como já dito, de uma reformulação do conceito de responsabilidade jurídica.57 Esta conclusão pode ser extraída do fato de que os direitos oriundos da doutrina da proteção integral da criança, recepcionada pela Carta Magna, explicam a razão da previsão do princípio da paternidade responsável como fundamento do direito ao exercício do planejamento familiar. O referido postulado tem como função cumprir com o princípio do melhor interesse da criança, resguardando os direitos físicos e psíquicos desta antes de sua própria concepção. Uma vez que a paternidade responsável exige consciência e responsabilidade por parte dos genitores, demanda planejamento, cuidados, concessões, abstenções e assunção de riscos: Não se pode perder de vista que a família é a primeira instituição a ser convocada para satisfazer as necessidades básicas da criança, incumbindo aos pais a responsabilidade pela sua formação, orientação e acompanhamento. Como núcleo principal da sociedade, a família deve receber imprescindível tratamento tutelar para proteger sua constituição, pois é no lar que a criança ou adolescente irá receber a melhor preparação para a vida adulta. À evidência, se os pais não forem orientados e preparados, serão poucas as possibilidades de se proporcionar às crianças e adolescentes um ambiente adequado para seu crescimento normal.58 56 Ibid., p. 250. 57 GAMA, G. C. N. da. O biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 462. 58 LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao estatuto da criança e do adolescente. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 102-103. 41 Com o nascimento dos filhos, nascem também os pais, que adquirem uma faceta importante da personalidade e essência: a paternidade e a maternidade. Há, por conseguinte, uma mudança brusca na vida e nos anseios das pessoas que desejam exercer tais funções. Daí a importância de uma reflexão profunda, anterior à decisão de trazer ao mundo um novo ser humano, sendo que, dessa situação, decorre a atuação estatal na promoção da paternidade responsável e no auxílio ao planejamento familiar. No que concerne ao princípio da Paternidade Responsável, insta salientar uma última faceta deste postulado, atinente ao dever de afeto ínsito a ele: O princípio jurídico da paternidade responsável não se resume à assistência material. O amor – não apenas um sentimento, mas sim uma conduta, cuidado – é alimento imprescindível para o corpo e a alma. Embora o Direito não trate dos sentimentos, trata dos efeitos decorrentes desses sentimentos. Afeiçoar, segundo o Dicionário Aurélio, significa também instruir, educar, formar, dar feição, forma ou figura.59 E, como dito alhures, o efeito decorrente da ausência de amor e afeição na esfera materno-paterna traz à tona o abandono afetivo e a consequente responsabilização em decorrência deste ato ilícito. Não se pode negar que o abandono paterno ou materno (omissão) não cause dano psíquico ou até mesmo material – casos em que há tratamentos psicológicos/psiquiátricos e isso significa gastos financeiros. Não há como negar também a relação entre a conduta paternal e o dano causado ao filho, caracterizando assim o nexo de causalidade.60 Pela análise jurisprudencial, pode-se observar que, no início, a maioria dos pedidos de indenização por abandono afetivo eram indeferidos, sob o fundamento de que não havia como impor aos pais o dever de afeto. Este posicionamento foi adotado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quando do julgamento da Apelação AC 70044341360 RS, cujo acórdão segue abaixo transcrito: Apelação Cível. Ação de Obrigação de Visita Paterna com Conversão em Indenização por Abandono Afetivo. Extinção do processo por impossibilidade jurídica do pedido. A paternidade pressupõe a manifestação natural e espontânea de afetividade, convivência, proteção, amor e respeito entre pais e filhos, não havendo previsão legal para obrigar o pai a visitar o filho ou manter laços de afetividade com o mesmo. 59 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 253. 60 PEREIRA, op. cit., p. 256. 42 Também não há ilicitude na conduta do genitor, mesmo desprovida de amparo moral, que enseje dever de indenizar.61 Mas, com o passar dos anos, o olhar do julgador fora sendo transformado, ressaltando- se a dignidade humana do filho carente de laços afetivos paternos/maternos, e o ordenamento jurídico concedendo guarida nesses casos, acolhendo os pedidos de indenização por abandono afetivo, questão demonstrada no acórdão a seguir exposto: Responsabilidade civil. Abandono afetivo. Pai e filho que, em apenas duas oportunidades, em 13 anos, tiveram contato pessoal. Ação julgada procedente para condenar o genitor a pagar indenização por dano moral (R$ 10.000,00). Ausência de relações pessoais e afetivas ou familiares em tentativas de aproximação por parte de ambos.62 Assim, é fato inconteste que a indenização por abandono afetivo representa novidade no Direito Pátrio, e que tem como fundamentação os princípios da paternidade responsável, aplicados conjuntamente com o da dignidade da pessoa humana, do melhor interesse da criança, da afetividade, da solidariedade e o da responsabilidade. 1.3.3 Princípio da Intervenção Mínima do Estado Por derradeiro, antes de finalizar o capítulo em voga, cumpre analisar o Princípio da Intervenção Mínima do Estado nas Relações Familiares, postulado de extrema importância para compreensão do tema do Planejamento Familiar. A Constituição Federal de 1988 estabelece de forma clara o papel subsidiário, auxiliar e complementar do Estado nas relações familiares. O art. 226, §7º do referido dispositivo, já transcrito anteriormente, na sua parte final, estabelece: Reza expressamente o Texto Maior: “(...), o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”. 61 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Acórdão na Apelação nº 70044341360 - RS. Relator: André Luiz Planella Villarinho. Publicado no DJe: 23 nov. 2011. Disponível em: < https://tj- rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20917939/apelacao-civel-ac-70044341360-rs-tjrs>. Acesso em jun. 2018. 62 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Acórdão na Apelação nº 00050818720158260297 SP. Relator: Fábio Quadros. Publicado no DJe: 3 maio 2018. Disponível em: . Acesso em jun. 2018. 43 Há uma privatização dos núcleos familiares. Quando se estatui que o planejamento familiar é livre decisão do casal, o constituinte transfere para as famílias a liberdade para planejar sua prole. E o mesmo dispositivo limita a atuação estatal no tema do planejamento familiar, quando determina que é vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. O Estado passa, assim, a ocupar uma posição de escanteio quando o assunto for atinente ao planejamento e à estruturação das famílias. Por sua vez, os órgãos estatais, em razão dessa proposição, não se eximem de garantir recursos educativos, dispor métodos contraceptivos gratuitos, orientar a população de forma informativa sobre o planejamento familiar. Mas há uma barreira, um limite para sua atuação. Diogo Leite de Campos traz esse ensinamento, exatamente nos termos acima assinalados: Havendo no interior da família afetividade suficiente para vencer os embates e as divergências que naturalmente surgem da união de experiências distintas de cada membro, a família permanecerá unida. Caso contrário, dissolver-se-á, dando nova oportunidade aos seus ex-membros. É por esta razão que a família “privatiza-se” e se coloca longe de “ataques” e “invasões” do Estado que não ostenta mais o poder de impor constrangimentos aos cônjuges.63 Assim, o elemento estruturante e que define, hodiernamente, se o casamento persistirá ou não é a afetividade, não mais a determinação legislativa, como o era nas Constituições anteriores a 1988, de que o casamento era vínculo indissolúvel, no qual prevaleciam a vontade e interesses estatais na manutenção do elo conjugal. Todos os direitos e garantias previstos em numeroso rol elencado no art. 5° da Carta Constitucional trouxeram igualdade e, sobretudo, felicidade ao indivíduo considerado per si e também no núcleo familiar, destacando as composições familiares do Estado e deslocando-as para a sociedade: “a família é entendida não mais como uma célula do Estado, como se fosse elemento constitutivo deste, mas como uma célula da sociedade”.64 Esta ideia está bem retratada no excerto que se segue: Fica muito claro que a Constituição Federal procurou unir a liberdade do indivíduo à importância que a família representa para a sociedade e para o Estado. Garantindo liberdade ao indivíduo – através do extenso rol de direitos e garantias individuais do art. 5° e de outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte -, 63 CAMPOS, D. L. de. Lições de Direito da Família e das Sucessões. Coimbra: Livraria Almedina, 1990. p. 37. 64 OLIVEIRA, José Sebastião de. Fundamentos constitucionais do direito de família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 282. 44 consequentemente, o texto constitucional garantiu felicidade dentro da família, e a sua existência como célula mantenedora de uma sociedade democrática.65 Importante constar a divisão do Estado em três fases históricas diferentes, para situar a fase na qual o Estado atual brasileiro se situa, conforme ensina Paulo Luiz Netto Lobo: Se costuma dividir o Estado em três fases histórias distintas: absolutista, liberal e social. O Estado absolutista é marcado pela vontade soberana do monarca. O liberal, pela mínima intervenção estatal, justificável pela ascendência da burguesia ao poder e à defesa da cidadania, do respeito à dignidade humana e da liberdade de aquisição, domínio e transmissão de propriedade. O Estado social retomou o processo intervencionista do Estado absolutista e a família não ficou ao largo dessa mudança, tanto que as Constituições liberais não tratavam da família e as do Estado social a tratam como base da sociedade, como ocorre no Brasil.66 Temos, assim, que o ordenamento jurídico brasileiro, orientado pela Carta Constituinte de 1988, é baseado no Estado social-liberal, que promove importantes valores, conferindo liberdade aos indivíduos e abstendo-se de intervir nas relações privadas. Conclui referido jurista que: É tão notável a influência do Estado na família que já se fala em substituição da autoridade paterna pela estatal. O Estado providencia, do bem-estar social, patrão, assume, também, a função de pai. Mas há um certo exagero nessa perspectiva. O sentido de intervenção que o Estado social vem assumindo é antes de proteção do espaço familiar, de sua garantia, do que de substituição. Até porque a afetividade não é subsumível à impessoalidade da res publica.67 Assim, o papel ocupado pelo Estado nas relações familiares atualmente é o de conferir liberdade aos membros da família, garantindo condições mínimas à sua manutenção. Por outro lado, a dosagem, o equilíbrio entre os interesses concernentes à família e os do Estado foram bem delimitados no art. 226, §7° da Constituição Federal, já transcrito, quando analisa o planejamento familiar e a paternidade responsável. O interesse em regular o mencionado direito advém de uma crise demográfica, conforme assinala José Sebastião de Oliveira: Nas últimas décadas assistimos a uma explosão demográfica de dimensões alarmantes, porque o crescimento ocorreu em ordem inversamente proporcional às condições sanitárias, higiênicas, assistenciais, enfim, às condições mínimas que eram oferecidas para os recém-nascidos. Demais, a miséria e a recessão do mercado de 65 GAMA, G. C. N. da. O biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 462. 66 LOBO, P. L. N. A repersonalização das relações de família: o direito de família e a Constituição de 1988. Coord. Carlos Alberto Bittar. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 57-58. 67 LOBO, op. cit., p. 58. 45 trabalho nos grandes centros têm levado a caminhos desastrosos as novas gerações: marginalidade, drogas, prostituição, etc. Foi premido pela urgência de estabelecer limites à procriação que o constituinte guindou entre as normas-princípios do direito de família a paternidade responsável aliada ao planejamento familiar. 68 Dessa forma, diante da realidade obscura e dos problemas decorrentes do crescimento demográfico desordenado, o constituinte atuou, prevendo o papel promocional do Estado, no papel orientador, educativo, para incutir à população que efetivasse em seus núcleos familiares o planejamento familiar responsável. Mas o espaço e liberdade do casal ficaram bem delineados, quando o mencionado dispositivo determina que o casal terá liberdade para decidir sobre o planejamento familiar. Como destaca Maria Helena Diniz: “o constituinte veio a garantir a democratização do planejamento familiar, dando ao casal a livre decisão sobre o assunto, coibindo interferências de qualquer entidade, inclusive religiosa”.69 De todo o exposto, há de se concluir que: “é condição básica de convivência social que tenhamos uma sociedade consciente de como efetuar seu planejamento familiar, fator coerente com a ordem democrática e com os limites instransponíveis do Estado”.70 Concluindo o raciocínio, importante destacar que, analisando a atual conjuntura de participação acessória e não intervenção do Estado nas relações familiares, às famílias é conferida autonomia. “A aplicabilidade do princípio da mínima intervenção estatal vincula-se à questão da autonomia privada, que vai muito além do direito patrimonial, e tornou-se, na contemporaneidade, uma das questões mais relevantes”.71 Essa é a conclusão do jurista Rodrigo da Cunha Pereira, quando inter-relaciona família, dignidade humana e aplicação do princípio da intervenção mínima do Estado. Diante dos argumentos apresentados, é possível aduzir que há íntima inter-relação entre o princípio da intervenção mínima estatal com o planejamento familiar, constituindo dever do Estado promover garantias à população, especificamente, no que tange a tal direito, atuar através das esferas educativa-informativa, proporcionando, por órgãos públicos, cursos e assessoramento sobre o planejamento familiar à população. No entanto, deve certamente respeitar o espaço da autonomia privada das famílias atinentes à decisão livre do casal para constituição e planejamento de suas famílias. 68 OLIVEIRA, J. S. de. Fundamentos constitucionais do Direito de Família. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 286-287. 69 DINIZ, M. H. Curso de Direito Civil Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 18. 70 OLIVEIRA, op. cit., p. 288. 71 PEREIRA, R. da C. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 184. 46 1.3.4 Princípio do Mínimo Existencial Não poderia deixar de ser elencado também, com nítida pertinência ao tema, o Princípio do Mínimo Existencial, que a doutrina considera a segurança básica que deve ser garantida a todo ser humano, através da proteção de sua integridade física e psíquica em todas as dimensões, mediante a oferta de uma assistência social, permitindo a todos os indivíduos que usufruam de sua vida de forma digna, autodeterminada e livre.72 Assim, o postulado em análise constitui-se em uma faceta do princípio da dignidade da pessoa humana, já tratado alhures, representando um aspecto mais específico deste, no sentido de que todo ser humano tem direito ao mínimo de condições materiais e morais para sua sobrevivência digna, quer seja, quando se fala em aspectos materiais, os homens tem direito à alimentação, à moradia, ao vestuário, e em se tratando de aspectos morais, pode-se citar o direito à saúde, à integridade física e psíquica, etc. Sobre a interligação entre os princípios do mínimo existencial e da dignidade da pessoa humana, ressalta Häberle: “o mínimo existencial possui, assim, uma relação com a dignidade humana e com o próprio Estado Democrático de Direito, no comprometimento que este deve ter pela concretização da ideia de justiça social”.73 Adentrando especificamente no tema do presente trabalho, o princípio do mínimo existencial sinaliza no sentido de que o Estado não pode abster-se de prestar políticas públicas em assessoramento em planejamento familiar, em fornecimento de contraceptivos ou medicamentos para infertilidade ou em realização de cirurgia para esterilização (preenchidos os requisitos da lei de planejamento familiar), alegando insuficiência de recursos motivada pelo princípio da reserva do possível. Isto porque tais ações concernem ao direito fundamental ao planejamento familiar, insculpido no texto constitucional e atrelado ao direito da saúde (arts. 226, §7º e art. 6º, respectivamente). 1.4 Princípios Científicos do Planejamento Familiar 72 GOSEPATH, Stefan. Uma pretensão de direito humano à proteção fundamental. In: TOLEFO, Claudia (Org.). Direitos Sociais em debate. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. p. 78-79. 73 HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Tradução de Héctor Fix Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003. p. 53-59. 47 Analisados os princípios jurídicos relacionados ao planejamento familiar, resta importante destacar os princípios médico-científicos ligados à temática. Eles foram expostos em doutrina especializada sobre o tema e abordam as particularidades mais práticas ligadas ao planejamento das famílias. São eles: 1. O planejamento familiar voluntário é uma importante medida sanitária. A disponibilidade de serviços de planejamento familiar tem uma grande importância na saúde do indivíduo, no relacionamento da família, da comunidade e de toda a nação. 74 Este postulado tem por escopo trazer a seguinte mensagem: o planejamento familiar depende da vontade das mulheres, homens, famílias, do livre-arbítrio dessas pessoas e instituições procurarem os programas de planejamento familiar, que se trata de essencial medida de saúde pública. É fundamental que existam as políticas públicas voltadas ao projeto parental, as quais beneficiarão os aspectos micro-macro, partindo da saúde do indivíduo até ao mundo. O segundo princípio, extraído da mesma obra, resta transcrito a seguir: 2. A menos que haja contra-indicação médica, os pacientes têm o direito de escolher os métodos de c