Experiências de não-binariedade: o gênero, a psicanálise e uma nova epistemologia

Abstract

Insurgente na contemporaneidade em relação ao discurso hegemônico acerca da sexualidade e do gênero, a não-binariedade compreende transidentidades que rompem com o estatuto binário de gênero. A escassez de referências teóricas psicanalíticas acerca destas experiências de gênero levaram à delimitação de um campo que pretendeu produzir um discurso psicanalítico sobre o processo de generificação e sobre o conceito de não-binariedade. A produção deste discurso foi enriquecida pela comparação das narrativas de sujeitos não-binários acerca de suas percepções identitárias por si mesmos e pela alteridade. Por meio de levantamento bibliográfico com procedimento descritivo-exploratório inicial, no interior das teorias psicanalíticas freudiana, lacaniana e vincular, foram discutidos os conceitos de bissexualidade psíquica, identificação, triplo registro psíquico vincular e alianças inconscientes para pensar o processo de generificação. Com o auxílio da proposta de hibridização da psicanálise, de Ayouch, acrescentou-se o debate entre essas teorias e os estudos de gênero, queer, teorias decoloniais e transfeministas. Foi aplicado um questionário online a pessoas não-binárias em diferentes regiões do Brasil acerca de suas experiências de gênero. Foram analisados dados quantitativos por meio de gráficos de scores totais, frequências relativas e regressão linear múltipla por stepwise. Os dados qualitativos foram investigados a partir da Análise de Conteúdo Temática de Bardin. A discussão dos dados levou, primeiramente, à percepção de extensa multiplicidade de singularidades das transidentidades quanto a suas corporalidades e expressões de gênero. Em segundo lugar, levou ao questionamento da significação da categoria de humano entre diferentes cosmopercepções e, por último, à compreensão da existência de uma epistemologia do regime binário da diferença sexual. O resultado foi a identificação de um “pacto narcísico colonial”, que imbrica gênero, raça e outros marcadores hegemônicos interseccionais, e que propõe um modelo de generificação no qual processos de binarização decorrem da socialização cisnormativa, ainda que uma certa não-binariedade seja intrínseca à subjetividade humana. Concluímos com a proposta de uma epistemologia não-binária, com o intuito de subverter os efeitos complexos do regime binário, regime epistemológico da diferença sexual, no qual estamos inseridos e fomos subjetivados.

Insurgent in contemporary times in relation to the hegemonic discourse on sexuality and gender, non-binarity includes transidentities that break with the binary status of gender. The lack of psychoanalytic theoretical references on these gender experiences led to the delimitation of a field that sought to produce a psychoanalytic discourse on the process of generification and on the concept of non-binarity. The production of this discourse was enriched by comparing the narratives of non-binary subjects about their perceptions of identity in terms of themselves and otherness. By means of a bibliographical survey with an initial descriptive-exploratory procedure, within Freudian, Lacanian and bond psychoanalytic theories, the concepts of psychic bisexuality, identification, triple bond psychic register and unconscious alliances were discussed in order to think about the process of generification. With the help of Ayouch's proposal for the hybridisation of psychoanalysis, the debate between these theories and gender, queer, decolonial and transfeminist theories was added. An online questionnaire was applied to non-binary people in different regions of Brazil about their gender experiences. Quantitative data was analysed using total score graphs, relative frequencies and stepwise multiple linear regression. The qualitative data was investigated using Bardin's Thematic Content Analysis. The discussion of the data led, firstly, to the realisation of the extensive multiplicity of singularities of transidentities in terms of their corporealities and gender expressions. Secondly, it led to questioning the meaning of the category of human between different worldviews and, finally, to understanding the existence of an epistemology of the binary regime of sexual difference. The result was the identification of a ‘colonial narcissistic pact’, which intertwines gender, race and other intersectional hegemonic markers, and which proposes a generification model in which binarisation processes result from cisnormative socialisation, even though a certain non-binarity is intrinsic to human subjectivity. In conclusion, we propose a non-binary epistemology, with the aim of subverting the complex effects of the binary regime, the epistemological regime of sexual difference, in which we are inserted and have been subjectivised.